o ocaso de um mito chamado lula
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Os acertos de seu primeiro governo derivam da rara conjunção de uma bonança econômica internacional com os ajustes decorrentes do Plano Real. Finda a bonança e desfeitos os ajustes, restou a evidência de que não havia (nunca houve) um projeto de governo – e tão somente um projeto de poder.TRANSCRIPT
O ocaso de um mito chamado Lula
Do site do Ricardo Noblat em http://goo.gl/vtJR7C
26/03/2016 - 01h15
Lula (Foto: André Coelho / Agência O Globo)
Neste momento em que a Operação Lava Jato desconstrói a imagem de Lula, depurando -a de
todos os artifícios, instala-se uma espécie de assombro geral nos meios intelectuais e art ísticos
do país, onde ainda reina forte resistência aos fatos.
Tal depuração baseia-se em alentados registros – e o mais eloquente vem da própria voz de
Lula, captada nos recentes grampos telefônicos, autorizados pela Justiça, em que exibe solene
desprezo pelas instituições, em especial o Judiciário.
Não se deve apenas aos truques do marketing político-eleitoral a construção da imagem do
falso herói. Bem antes do advento dos Duda Mendonça e João Santana, hoje às voltas com a
Justiça, Lula já desfrutava de altíssimo conceito redentor, esculpido no âmbito universitário,
onde o projeto do PT foi engendrado.
E aqui cabe repetir o bordão lulista: nunca antes neste país, um presidente da República foi
brindado com tantos títulos honoris causa por parte de universidades, mesmo sem ter dado –
ou talvez por isso mesmo - qualquer contribuição à atividade intelectual.
Ao contrário: Lula e seus art ífices difundiram o culto à ignorância e ao improviso, submetendo a
atividade intelectual à condição subalterna de mera assessora de um projeto populista.
A epopeia de alguém que veio de baixo e galgou o mais alto cargo da República fascinou e
comoveu a intelligentsia brasileira, que o transfigurou em gênio da raça. Pouco interessava o
como e o quê fez no poder – questões que agora se colocam de maneira implacável -, mas o
simples fato de que a ele chegou.
O símbolo falsificava o ser humano por trás dele. E o país embarcou numa ilusão de que
agora, dolorosamente – e ainda com espantosas resistências, – começa a desembarcar.
Fernando Henrique Cardoso, símbolo da nata acadêmica nacional, deixou suas digitais
nesse processo. A eleição de Lula, em 2002, contou com sua colaboração. Como se
recorda, FHC desengajou-se da campanha presidencial de José Serra, dizendo a quem
quisesse ouvi-lo: “Agora, é a vez de Lula”.
Conta-se que, naquela ocasião, ao recebê-lo em Palácio, chegou a oferecer-lhe
antecipadamente a cadeira presidencial. Era o sociólogo sucedido pelo operário, ofício que
Lula já não exercia há mais de duas décadas. As cenas da transmissão da faixa presidencial,
encontráveis no Youtube, mostram um Fernando Henrique ainda mais deslumbrado que seu
sucessor.
Lula, na ocasião, disse-lhe: “Fernando, aqui você terá sempre um amigo” . No dia
seguinte, cessou o entusiasmo: o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, em sua primeira
entrevista, mencionava a “herança maldita” do governo anterior, frase repetida como mantra
até os dias de hoje.
E o “amigo” não mais pouparia seu antecessor, por quem cultiva freudiana hostilidade. A
erudição, ao que parece, o incomoda, embora a vida lhe tenha proporcionado meios bem mais
abundantes de obtê-la que a outros grandes personagens da cultura brasileira, de origem tão
modesta quanto a sua, como Machado de Assis, Gonçalves Dias e Cruz e Souza, mestiços
que, em plena escravidão, ascenderam ao topo da vida intelectual do país.
O mito Lula começou ainda na década dos 70, em pleno governo militar – e contou com
a cumplicidade do próprio regime, que, por ironia, o viu como peça útil na
desconstrução da esquerda, abrigada no velho MDB e em vias de defenestrar
eleitoralmente o partido governista, a Arena. O regime extinguiu casuisticamente o
bipartidarismo, de modo a esvaziar a frente oposicionista.
A frente, em que a esquerda tinha protagonismo, entendia que não era oportuno o surgimento
de um partido de base sindical, que a esvaziaria, diluindo os votos contrários ao regime. Lula
foi peça-chave nesse processo, concebido pelo general Golbery do Couto e Silva,
estrategista político do governo militar.
Há detalhes reveladores em pelo menos dois livros recentes: “O que sei de Lula”, de José
Nêumanne Pinto, que cobriu as greves do ABC pelo Jornal do Brasil naquele período, e
com ele conviveu; e “Assassinato de Reputações”, de Romeu Tuma Jr., cujo pai, o
falecido delegado Romeu Tuma, então chefe do Dops, foi carcereiro de Lula, no curto
período em que esteve preso.
Tuma e Nêumanne convergem num ponto: Lula foi informante do Dops, o que lhe facilitou a
construção do PT, a cujo projeto se agregariam duas vertentes fundamentais - a
esquerda universitária paulista e o clero católico da Teologia da Libertação.
Essa gênese explica a trajetória vitoriosa do partido: o clero proporcionou-lhe a capilaridade
das comunidades eclesiais de base e os acadêmicos prestígio e acesso à grande mídia.
A ambos, o PT retribuiu com Lula, o símbolo proletário de que careciam para forjar o primeiro
líder de massas que a esquerda brasileira produziu e que a levaria, enfim, a vencer eleições
presidenciais. Deu certo – e deu errado.
Lula chegou lá, mas corre o risco de concluir sua trajetória na cadeia. Os acertos de seu
primeiro governo derivam da rara conjunção de uma bonança econômica internacional com os
ajustes decorrentes do Plano Real. Finda a bonança e desfeitos os ajustes, restou a
evidência de que não havia (nunca houve) um projeto de governo – e tão somente um
projeto de poder.
A Lava Jato, ao tempo em que reduz Lula a seu exato tamanho, político e moral – e, ao que se
sabe, há ainda muito a vir à tona -, mostra o que fez, à frente do PT e do país, para que esse
projeto se consolidasse e o eternizasse como pai dos pobres – uma caricatura de Vargas, com
mais dinheiro e menos ideias.
De gênio político, beneficiário de uma conjuntura que desperdiçou, lega à posteridade sua
grande obra: Dilma Roussef, personagem patética que tirou do anonimato para compor um dos
momentos mais trágicos da história da República.
O historiador do futuro terá o desafio de decifrar o que levou a inteligência do país – cujo
dever de ofício é antever e evitar tais desvios - a embarcar num projeto suicida, a serviço
da estupidez, não hesitando em satanizar os que a ele se opõem.