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i t • '" o o S S I Ê o BRASIL VIRA MANCHETE: O PAPEL DA IMPRENSA NA FORMAÇÃO DO BRASIL MODERNO* E ste trabalho procura refletir sobre o pa- pel da imprensa na formação da opinião públi- ca, no Brasil e no Ceará, num momento crucial da modernização burguesa, quando se agudizava a dis- puta entre a Igreja e ou- tras instituições, em torno da ocupação do lugar de enunciador da Verdade. Na segunda metade do século passado, a estrutura religi- osa da organização social está sendo sacudida por toda a onda de valores que cercam a edificação do in- dividualismo humanista, e os jornais se fortalecem, junto com os livros, como agentes da autonomização moral da sociedade e de formação do povo como novo sujeito político. A cultura política emergente tem como símbolo a noção de liberdade, a qual não se afirmará apenas em relação à Igreja, mas tam- bém buscará acertar contas com a monarquia, com a escravidão e com o Romantismo. Os jornais acirrarão os ânimos populares a favor da Abolição e da República. Esse novo ideário, que confere desta- que à Democracia, Igualdade e Soberania Po- pular, recebe a adesão da opinião pública, que já nasce no Brasil como opinião publicada. O jornal concorre agora, com o púlpito e o CELESTE CORDEIRO" parlamento, para ser o locus de elaboração do dis- curso competente. Mas os representantes do conjun- to de valores que vai se tornando atrasado frente aos novos padrões também passa a apelar às estraté- gias de convencimento por meio da imprensa. Mesmo a criticando como "inven- ção de Satanás", como o faz o tradicionalista cearense Silva Bezerra, não deixam os reacionários de imple- mentar jornais e escrever artigos para enfrentar seus adversários ideológicos. Progressistas e reaci- onários, como veremos, reconhecem o "novo po- der", como é chamado pelo jornal O Cearense, em 27 de março de 1885: "o maior poder atual é a opinião pública, que há um século ganha proporções enormes. Hoje, todo homem de estado é forçado a contar com este novo po- der, autorizado pela multidão, estudado pelos sábios". RESUMO Este trabalho procura refletir sobre o papel da imprensa na formação da opinião pública, no Brasil e no Ceará, num momento crucial da modernização burguesa entre nós: a segunda metade do século passado, quando a estrutura religiosa da organização social está sendo sacudida por toda a onda de valores que cercam a edificação do individualismo humanista, e os jornais se fortalecem, Junto com os livros, como agentes da autonomização moral da sociedade e de formação do povo como novo sujeito político. Esse novo ideário, que confere destaque à Democracia, Igualdade e So- berania Popular, recebe a adesão da opinião pública, que já nasce no Brasil como opinião publicada O jor- nal concorre agora, com o púlpito e o parlamento, para ser o locus de elaboração do discurso competente. O presente artigo tentará argumentar no sentido de que a modernidade, e a entrada do povo na cena política, no Brasil, como em outros países, guardam afinidades profundas com a imprensa. O texto que se segue serviu de base para comu- nicação apresentada no XXI Congresso Latino- americano de Sociologia, ocorrido em S.Paulo, em agosto de 1997. Celeste Cordeiro, Doutora em Sociologia, é pro- fessora da Universidade Estadual do Ceará e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Asso- ciativismo e Políticas Públicas. 84 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v.29 N. 1/2 1998 A modernidade e a entrada do povo na cena política guardam afinidades profundas com a imprensa. Silva Bezerra, adversário ferrenho do novo estado de coisas, percebe bem esta sua característica, quando nos diz que "ao Estado pela graça de Deus se opõe o Estado pela graça dos homens - tal é a verda-

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o o S S I Ê

o BRASIL VIRA MANCHETE:O PAPEL DA IMPRENSA NA FORMAÇÃO DO BRASIL MODERNO*

Este trabalho procurarefletir sobre o pa-pel da imprensa na

formação da opinião públi-ca, no Brasil e no Ceará,num momento crucial damodernização burguesa,quando se agudizava a dis-puta entre a Igreja e ou-tras instituições, em tornoda ocupação do lugar deenunciador da Verdade. Nasegunda metade do séculopassado, a estrutura religi-osa da organização socialestá sendo sacudida portoda a onda de valores quecercam a edificação do in-dividualismo humanista, eos jornais se fortalecem,junto com os livros, comoagentes da autonomizaçãomoral da sociedade e deformação do povo como novo sujeito político.

A cultura política emergente tem comosímbolo a noção de liberdade, a qual não seafirmará apenas em relação à Igreja, mas tam-bém buscará acertar contas com a monarquia,com a escravidão e com o Romantismo. Osjornais acirrarão os ânimos populares a favorda Abolição e da República.

Esse novo ideário, que confere desta-que à Democracia, Igualdade e Soberania Po-pular, recebe a adesão da opinião pública,que já nasce no Brasil como opinião publicada.O jornal concorre agora, com o púlpito e o

CELESTE CORDEIRO" parlamento, para ser olocus de elaboração do dis-curso competente. Mas osrepresentantes do conjun-to de valores que vai setornando atrasado frenteaos novos padrões tambémpassa a apelar às estraté-gias de convencimento pormeio da imprensa. Mesmoa criticando como "inven-ção de Satanás", como o fazo tradicionalista cearenseSilva Bezerra, não deixamos reacionários de imple-mentar jornais e escreverartigos para enfrentar seusadversários ideológicos.

Progressistas e reaci-onários, como veremos,reconhecem o "novo po-der", como é chamadopelo jornal O Cearense, em

27 de março de 1885: "o maior poder atual éa opinião pública, que há um século ganhaproporções enormes. Hoje, todo homem deestado é forçado a contar com este novo po-der, autorizado pela multidão, estudado pelossábios".

RESUMOEste trabalho procura refletir sobre o papel da imprensana formação da opinião pública, no Brasil e no Ceará,num momento crucial da modernização burguesa entrenós: a segunda metade do século passado, quando aestrutura religiosa da organização social está sendosacudida por toda a onda de valores que cercam aedificação do individualismo humanista, e os jornaisse fortalecem, Junto com os livros, como agentes daautonomização moral da sociedade e de formação dopovo como novo sujeito político. Esse novo ideário,que confere destaque à Democracia, Igualdade e So-berania Popular, recebe a adesão da opinião pública,que já nasce no Brasil como opinião publicada O jor-nal concorre agora, com o púlpito e o parlamento, paraser o locus de elaboração do discurso competente. Opresente artigo tentará argumentar no sentido de que amodernidade, e a entrada do povo na cena política, noBrasil, como em outros países, guardam afinidadesprofundas com a imprensa.

O texto que se segue serviu de base para comu-nicação apresentada no XXI Congresso Latino-americano de Sociologia, ocorrido em S.Paulo,em agosto de 1997.Celeste Cordeiro, Doutora em Sociologia, é pro-fessora da Universidade Estadual do Ceará ecoordenadora do Núcleo de Pesquisa em Asso-ciativismo e Políticas Públicas.

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A modernidade e a entrada do povo nacena política guardam afinidades profundascom a imprensa. Silva Bezerra, adversárioferrenho do novo estado de coisas, percebebem esta sua característica, quando nos dizque "ao Estado pela graça de Deus se opõe oEstado pela graça dos homens - tal é a verda-

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deira assinatura, o caráter distintivo do que sechama o Estado moderno (. ..) [que] tem comoaliado a imprensa cotidiana, e já domina en-tre as classes que se instróem com ela"(1864:33).

São então levantadas duas característi-cas do "moderno liberalismo", quais sejam:"tudo regulamentar por leis' e "falar sem ces-sar do povo e querer fazer tudo em seu nome" .Dentro desses objetivos surgem "os soberbosdiscursos sobre certos direitos particulares,sobre aqueles principalmente que servem aseus desígnios, tais como a liberdade de im-prensa e a liberdade de associação"(idem, ibidem:59-grifos meus). Segundo nosafirma este autor, ao criticar a licenciosidadeda imprensa política, "não há representanteda nação que se atreva a soltar da tribunauma palavra contra tal licença, por uma idola-tria estúpida dessa horrível liberdade de im-prensa (. ..), esse culto mais que divino aoídolo da liberdade de imprensa" (íbid.:97-99).

Ainda que numa província distante daCorte, como o Ceará, temos na segunda me-tade do século passado periódicos represen-tativos das várias correntes de pensamentoque pugnavam então: liberais, conservadores,maçons, católicos, republicanos ... Funciona-vam nessa época, apenas em Fortaleza, 7 ti-pografias, e circulavam 6 jornais, dos quaisquatro diários: dois conservadores - Pedro 11e Constituição, e dois de extração liberal -Cearense e jornal de Fortaleza. Havia o se-manário Tribuna Católica, e o jornal maçôni-co Fraternidade.

Todas as novas idéias iluministas apare-cem nas páginas desses periódicos, assimcomo as propostas políticas afinadas com aliberalização do Estado. Há também um es-forço de auto-análise, na tentativa de com-preender o papel da imprensa. Visto comomeio de vulgarização dos princípios secula-res, cientificistas e democráticos, os jornalis-tas demonstram se compreender como

formadores de consciência política, principal-mente no momento em que o sistema eleito-ral se flexibiliza e destende. Intelectuaisengajados dos dois lados das fronteiras ideo-lógicas não dispensam a trincheira dos jor-nais, meio de comunicação fundamental quejá se tornara hábito do cotidiano urbano.

Em romances escritos à época e queretratam com fidelidade os costumes prevale-centes, como por exemplo A Afilhada, deOliveira Paiva, que descreve a Fortaleza dosanos 80, já se nota que a leitura diária dosjornais constitui comportamento habitual en-tre a classe proprietária e a nascente classemédia, formada por funcionários públicos,comerciantes, profissionais liberais, etc.

Já antes, na década de 70 do passadoséculo, temos uma significativa iniciativa deum grupo de jovens intelectuais defensoresdas bandeiras da Ilustração entre nós. Essesleitores de Darwin, Spencer e Littré, articulis-tas da folha maçônica, criam uma Academiaque estabelece, entre outras metas, o ensinoda leitura de jornais ao povo. Além das Con-ferências livres realizadas na praça principalda cidade, abordando Soberania Popular, Li-berdade Religiosa, Instrução Pública e outrostemas provo cativos , havia ainda a Escola Po-pular, que funcionava entre seis e meia e dezda noite, dirigida "aos pobres e operários",com aulas de leitura dos jornais da terra, cur-sos de ensino da Constituição do Império eonde se faziam comentários políticos ao al-cance do grande público (ver Menezes,1968:45).

IMPRENSA E OPINIÃO PÚBLICA

Pesquisando os jornais cearenses do pe-ríodo, vê-se, já em 1849, na edição de 26 denovembro do jornal liberal O Cearense, elogi-os à imprensa e sua relação com a idéia doséculo, o livre-arbítrio, para o qual a informa-

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ção - como formadora de opinião - é funda-mental: "no estado da civilização atual a im-prensa é uma necessidade vital para asociedade, como o pensamento, de que ela éa expressão, é uma condição do indivíduoC. .. ) [e] ninguém pode pôr peias ao pensa-mento, C. .. ) é loucura tentar obstar sua mani-festação" .

Em 1856, ao discorrer sobre o "cami-nho da civilização e do progresso", o editori-al d' O Cearense afirma a supremacia da opiniãosobre "os feitos dos exércitos": "é na verdadeabsurdo que a força seja a medida do dever,e a guerra em épocas de espiritualismo é naverdade um anacronismo". A palavra proferi-da pela "primeira potência da Europa" é "otriunfo da opinião sobre a força, a necessida-de da paz, e o progresso humanitário pelodesenvolvimento da agricultura, da indústriae do comércio. Colocar-nos-emos fora da li-nha de civilização atual?" (22/01). Como diráo mesmo jornal mais tarde (lQ de outubro), "aação da imprensa pode ser latente e vagaro-sa; não é por isso menos real e verdadeira. Éa gota d'água que gasta a pedra".

A ladainha sobre as virtualidades demo-cráticas da imprensa será constante em todoesse longo período do Segundo Reinado. Numsalto para 1870, percebemos que os valoresque relacionam imprensa e liberdade já im-pregnam o imaginário coletivo, a ponto delermos no jornal conservador Constituição: "Aliberdade não é só o progresso e a moralidade,a paz e a civilização, é sobretudo a iniciativa,o trabalho e a discussão. Instruir e discutir é oque há de mais nobre nas sociedades", afirmao jornal em 02 de abril, voltando a enfatizar ovalor da educação, em 12 de maio, quandojustifica: "Nos nossos dias as maiores lutas sãoas intelectuais, da imprensa e do parlamento;as maiores vitórias são as das idéias, dos ta-lentos contra as mediocridades, da razão so-bre a revolução, do estudo sobre a ignorânciainvejosa ou presumida".

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A razão e o enfrentamento ideológicosão realçados numa realidade que aprende aconviver com a opinião pública e com a opi-nião publicada. Em 1874, a presença de umjornal maçônico entre nós, desde o ano ante-rior, acirra os ânimos, e a imprensa se tornaveículo das críticas ao tradicionalismo católi-co. "Vivemos em tempo de análise", diz oFraternidade em 24 de novembro: "credosreligiosos e idéias políticas, para merecerema adesão dos homens, têm de ser discutidos esujeitar-se à crítica severa da razão e do bomsenso. A polêmica tornou-se o princípio do-minante deste resto de século". E o jornalis-mo fez-se a "válvula por onde a humanidadecivilizada respira e recebe nova seiva parasuperar os mil obstáculos que a tradição ain-da lhe cria a cada momento" (grifos meus).

A valorização da imprensa anda a parcom as homenagens à educação pública e aolivro. São todos considerados agentes doIluminismo contra o obscurantismo religioso.

O elogio ao livro pode ser visto em 1Q

de maio de 1874 no jornal maçônicoFraternidade, que afirma que, se "a escolamatou a sacristia, o livro fez calar o púlpito":"este instrumento da civilização demoliu osclaustros; verteu, para percepção do povo, alinguagem cabalística que Roma falava há al-guns séculos; e fez tábua rasa de quanto tinhaerguido a superstição e o fanatismo". No dia5 seguinte, o jornal maçônico continua:

Depois de algum tempo de obseruação, o cle-ro romano reconheceu que o ensino público,que se organiza nos países sujeitos à sua do-minação, rompe um ponto da malha por ondese deve ir toda aquela obra, cuidadosamentetecida durante muitos séculos. O livro é deuma afoiteza admirável; a escola, uma cons-piração de portas abertas.

O ainda presente, hoje, desafio da in-formação político-administrativa ao cidadão,

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já aparece. Em 1876 o sistema representativoe a liberdade de informação recebem a admi-ração do jornal conservador A Constituição em17 de setembro. É saudada a "formamonárquica-constitucional-representativa, sis-tema misto que compreende as excelênciasde todos os outros sistemas, tendo afinal porbase a soberania nacional (. ..)", em vigor nopaís. Além disso, é salientada a importânciada imprensa num governo livre, quando opovo pode ser

todos os dias informado de toda casta deexemplo político, (. ..) do teor das discussõespolíticas de um senado ou de uma assem-bléia popular - das disputas sobre o caráterou sobre a administração dos ministros, dasintrigas e das contestações dos partidos (. ..).Estes tópicos excitam uma universal curiosi-dade e, habilitando todo mundo a produzira sua opinião, formam um grande cabedalde conversação pública (. ..) (grifos meus).

o próprio Silva Bezerra, ideólogo maiordo tradicionalismo entre nós e crítico severo daimprensa, não deixa de apontar alguma virtudeem sua função informativa: "sem as queixas edenúncias, sem estes clamores da oposição pelaimprensa, não pode a Coroa saber qual é aação da administração c. ..), aquilatar o procedi-mento dos partidos, e fazer as mudanças que ascircunstâncias aconselharem" (1864:96).

Um exemplo do serviço cívico que a im-prensa pode prestar através de denúncias pú-blicas é dado pelo jornal A Constituição, de 07de abril de 1880, quando é descrita a figura do"plantador" numa localidade remota, cercadopor seus "domésticos": "Quando tal plantadoré "esclarecido", "a gente que o serve é feliz";quando há "abusos da autoridade particular", arepressão pelo poder público é difícil. "Só aimprensa, cuja liberdade é absoluta no Brasil,"em, a longos intervalos, assinalar tais abusosà vindita pública' (grifos meus).

A IMPRENSA E A OPOSIÇÃO

A imprensa será, no Brasil, em perío-dos de normalidade institucional, um refúgiopara a oposição. No Ceará provincial, nosperíodos de dominação conservadora, a im-prensa liberal se encrespa. Em 1853 a im-prensa parece ser a única trincheira, afastadosque estão os liberais de todo e qualquer pos-to de governo:

A imprensa é a única liberdade que hoje nosresta; e como nos governos representativos,quando a eleição tem sucumbido a uma in-fluência corruptora, ou à violência do poder,é ela que se encarrega de divulgar osinterêsses do país, de apresentar suas quei-xas, e de reclamar contra as injustiças dopoder (O Cearense: 10/05).

No número seguinte desse jornal, nova-mente é abordada a 'marcha da política'. Sãocolocados em relevo os três terrenos em quea oposição luta com o governo no sistemarepresentativo, que são a tribuna, a imprensae a urna.

Qualquer que seja o caráter da oposição, ouseja sistemática, radical e intolerante, ou sejamoderada, parcial, ou seja mesmo pessoal, éna tribuna, na imprensa e na urna que elapõeem ação todos os seus meios, desenvolve todosos seus recursos para conseguir o seu fim, aqueda do governo. Esta é a marcha ordinária,regular, da política em todos ospaíses que sãolivremente constituidos, e que se regempelo sis-tema representativo. Sirva de exemplo a mar-cha dospartidos na Inglaterra (23112).

A esse respeito, Silva Bezerra raciocinaque "a oposição, fora da tribuna e por conse-guinte da administração, não é um poder po-lítico, mas apenas uma força social que semanifesta pela imprensa ..." (1864:96).

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IMPRENSA E ELEiÇÕES

A expansão do corpo deliberante, como sacrifício do exc1usivismo aristocrático e oestabelecimento de um novo tipo de consen-so social, constitui o eixo das propostas polí-ticas modernizantes, em torno do qualcristalizou-se a luta entre antigos e modernos,também no Brasil. É uma conseqüência doprocesso de laicização da política, o qual vaiimplicar no enfrentamento com a Igreja e comtoda a cosmo visão tradicionalista e hierárqui-ca. A afirmação do princípio da soberaniapopular fará da discussão sobre a representa-ção política um campo privilegiado de toma-da de posição, e a imprensa cumpre o papelde massificar o debate, dentro - que fiqueclaro - das possibilidades presentes à épocaem análise. Na década de 70 do século pas-sado, já assistimos Zacarias de Góes citar StuartMill para afirmar que a participação política éo problema fundamental da época (ver Car-valho, 1996: 189), ponto também insistente-mente lembrado pelo cearense José deAlencar.

No debate sobre soberania e represen-tação, fica implícito todo um leque de ques-tões renovadas. As novas exigências daindependência política e do capitalismo in-ternacional obrigam o país a repensar suaforma de governo, o relacionamento interpro-vincial, o uso e regulamentação da força detrabalho. Vai se produzindo todo um conjuntode modificações gradativas nas maneiras depensar a política e de estabelecer normas eobjetivos para ela, assim como nas bases delegitimação da autoridade e da obediência. Aimprensa cotidiana abordará intensivamentetodas essas questões, e o problema das elei-ções é sempre visto de modo apaixonado,principalmente se o órgão de imprensa tra-duz o discurso do partido derrotado.

Os novos significados políticos que acategoria povo vai tomando dentro de uma

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concepção laica e liberal da política trazemconfusão e desconforto, principalmente no seiodos jornais conservadores. Em 05 de julho de1872, o jornal conservador A Constituição nosdá um exemplo das dificuldades em lidar como conceito moderno de povo:

a política antiga dividia uma nação em trêsclasses - clero, nobreza e pooo, a políticamoderna só reconhece uma - o povo. Já sevê, pois, que a política de hoje elimina o cle-ro e a nobreza (. ..). Se a política modernanão elimina o clero e a nobreza, mas con-funde tudo na significação do povo, é claroque a palavra povo não exprime mais o queexprimia outrora, é uma palavra velha comsignificação nova.

Para os jornais de extração democrática,porém, a confusão é positiva, e eis que surgeem Fortaleza o jornal Zé Povinho, órgão do"Clube da Rua", com uma afirmação que indi-ca as mudanças de mentalidade em vigor: "oZé Povinho de hoje é um novo ser, que en-tende de abstrações e da ciência de governarEstados... Hoje é o Zé Povinho da SoberaniaNacional" (28/11/1889 apud Montenegro,1980:65).

Em 1890, O Cearense ressalta a impor-tância do direito de reunião, e de uma im-prensa política verdadeiramente livre, parao sucesso do sufrágio universal (11/04). Dizainda que os jornais devem ser baratos "parapenetrarem profundamente nas massas po-pulares", e numerosos, "para representaremos matizes diversos da opinião". A veiculaçãodos primeiros programas políticos dos can-didatos e a defesa, pela imprensa, da tesede que os candidatos devem se apresentar àopinião pública, explicando suas opiniões eposições, começa a sacudir as bases do po-der oligárquico, controlado pela mão de fer-ro do patriarca, que nunca havia tidonecessidade de dar razões a ninguém, am-

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parado pela posse de grande propriedade,pelo tráfico de influência política, e pelo usoprivado e ostensivo da polícia. "A apresen-tação prévia dos programas por aqueles quedesejam os sufrágios populares" é novidadeanunciada pelo jornal conservador Pedra 11em 19 de março de 1881.

Para Silva Bezerra, a imprensa é, emtoda parte onde há eleições, '·0 veículo poronde, em regra, os mais corrompidos dispu-tam e conquistam a representação"; eleitos,eles "se impõem à Coroa como a própria opi-nião pública neles encarnada" 0864:70). Tam-bém a imprensa política é criticada pelopríncipe do progressismo cearense à época,Rocha Lima, que denuncia o ponto de vista"exclusivo e anticientífico" da imprensa polí-tica, a qual, segundo ele, verbera os atos dogoverno "não para corrigi-Io mas paradissolvê-lo" 0968: 321).

Desse modo, percebe-se que em todoesse processo de profundas mudanças noperfil de nossa brasilidade, a Imprensa tevedestaque especial.

Oliveira Lima observa que

a imprensa foi o grande veículo das idéias noBrasil. Emparte alguma é sua influência maiscaracterística e tem sido mais poderosa. Logoque se desencadeou fez a Independência,como depois a abdicação, a abolição e porfim a república, mais do que qualquer outrofator. Serviu de válvula ã maçonaria e de por-ta-voz ao Exército. (. ..) A princípio pessoal echocarreira, a imprensa foi-se depurando naagitação crescente das idéias e depressa pas-sou a discutir princípios mais do que atacarreputações, numa forma geralmente cortês,se bem que nem toda primorosa ... (J 986:210-211).

Mas foi principalmente a favor da Re-pública que a imprensa brasileira seposicionou: diz Oliveira Lima que "de 1822 a

1889 a monarquia foi a 'cabeça de turco' dospublicistas" (ibidem:203). E continua:

o papel que coube à Imprensa em 1831 desalvar a Monarquia brasileira, coube-lhe de1870 a 1889 para derrubá-Ia. (...) A substi-tuição do gabinete liberal Zacharias pelo ga-binete conservador Itaboraí em 1868 é poralguns publicistas considerado o início daúltima e grande campanha demolidora doImpério e é fato que os liberais, com o sena-dor Nabuco à frente, a exploraram o maispossível. Reforma ou Revolução - foi o seulema, e a revolução não veio mais cedo por-que a questão servil quase monopolizou aatenção pública até 1888 (ibidem: 36).

CAMPANHAS ABOUCIONIST A E REPUBUCANA

O abolicionista]oaquim abuco, sem dú-vida uma das figuras mais lúcidas de então arespeito do problema da escravidão, evocamais de uma vez o papel da imprensa nosucesso da campanha, em sua obra OAbolicionismo. Diz ele que o advento doabolicionismo "coincidiu com a eleição dire-ta, e sobretudo com a aparição de uma força,a qual se está solidificando em torno da im-prensa - cuja barateza e distribuição por to-das as classes é um fator importante na históriada democratização do país - força que é aopinião pública" 0938: 14).

Definindo a imprensa como "a grandearma de combate contra a escravidão e oinstrumento da propagação das idéias no-vas", labuco a elenca entre as "forças deprogresso e transformação", e afirma que"o pensamento dominante no jornalismotodo, do . orte ao Sul, é a emancipação"(ibidem: 189). ão deixa ainda de fazer no-tar a "liberdade absoluta da imprensa" naépoca, fato constatado por outros inúmerosestudiosos do período.

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De maneira semelhante ao que aconte-cia quanto à campanha abolicionista, que ha-via atravessado todos os partidos e traçadouma fronteira nítida entre os órgãos da im-prensa (ainda que ao final todos tenham seproclamado abolicionistas), a bandeira da Re-pública também cinde o campo da política eda opinião pública, principalmente em seusúltimos anos e meses. Mas desde muito tem-po essa tese já vinha sendo levantada pelosgrupos na oposição, por vezes apenas comométodo para assustar o Imperador.

Em 1851, O Cearense de 06 de maiojá faz um levantamento das três principaisposições políticas, e já se fala no 'partidorepublicano': os saquaremas, o partido da'ordem', "um conjunto forçado de muitosinterêsses egoísticos, de muitas pretensõesindignas, de muitas ambições infames", nãochega nem a ser analisado, é apenas insul-tado. O partido liberal realista é "sincero,honesto e animado por verdadeiro amor dapátria, mas vítima de um êrro funestíssimo";seu êrro é querer o "impossível dos impos-síveis": "achar a verdade do regime repre-sentativo sob a repugnante e negativacombinação das fórmulas monárquicas". "En-tretanto, leitor, ainda aí tendes C .. ) um ter-ceiro grupo - é o honrado e generosopartido republicano C .. ), que é "pela remis-são do povo, pelo triunfo infalível da de-mocracia, pela inauguração pacífica egloriosa da república no Brasil".

A catilinária republicana prossegue. 'ARepública perante Deus e a Escritura Sagra-da" é o título de artigo em 16 de maio, quetem o seguinte destaque inicial: "Quando oSenhor Deus quis castigar os pecados e a in-gratidão dos homens, mandou-lhes um rei paraos governar, porque um rei é o flagelo dasnações".

A palavra República já não espanta no-meia um longo artigo de 27 de maio, em con-tinuação ao tema republicano, onde o princípio

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do direito divino é considerado derrotado: "aépoca dos privilégios, e das castas, a do san-gue azul, e do sangue vermelho, e do sanguereal, a dos nobres e a dos plebeus, a dossenhores e dos escravos, já lá se foi para nãomais voltar. a humanidade não recua - avança".

Como exemplo das tendências protela-tórias de nossas elites, a questão republicanaserá discutida por décadas até sua solução.Como a questão da Abolição, que se intensifi-ca em 1850, com a lei de proibição do tráfi-co, mas só foi ser resolvida quase meio séculodepois. Nesses longos intervalos, mais oumenos intensamente, continuam presentes nosjornais, com cada lado da trincheira brandin-do suas palavras-de-ordem.

Em 1887, por exemplo, o conservadorPedro 11,de 04 de setembro, denuncia o com-portamento de "certos órgãos da imprensabrasileira": "são jornais tidos e havidos comoórgãos republicanos, que C ..) procuram de-sacreditar, desmoralizar e solapar as nossasinstituições". E por que os "publicistas repu-blicanos C ..) aconselham a mudança da situ-ação?" O editorial responde: "porque o partidoconservador não quer transigir com a desor-dem, com a anarquia que eles visam promo-ver para levar água a seu moinho C ..), fazerprosélitos e engrossarem as fileiras republi-canas" .

Proselitismo, é bem disso que se tratanuma época em que a neutralidade ainda nãoera considerada uma virtude da imprensa. Paraos jornais monarquistas, a República é "ummonstro", "um bicho de sete cabeças', para oqual importa "nada menos que o sacrifício denossa religião, de nossas pessoas, famílias ebens", segundo critica o liberal O Cearense.Já para este, a República implica na "igualda-de de todos perante a lei, sem distinção entrericos e pobres, nem entre nobres e popula-res" (05/03/1852). Temos aí uma boa ilustra-ção da guerra ideológica na imprensa e suautilização de símbolos populares.

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Em 1889,duas semanas depois da pro-clamação da República, O Cearense se en-trega à nova tarefa que estabeleceu para si .. o editorial intitulado Para o Povo, desen-volve "considerações sobre a república emgeral, com o fim de fazer conhecer ao povoo que é o regime republicano e quais osresultados que tem produzido em diversospaíses". As considerações são feitas a partirdo 'Catecismo Republicano', de C. Vieira eTeixeira Bastos. Sabidamente, o jornal jáanuncia a mudança de lema para "órgão de-mocrático" .

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