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O novo Iluminismo
Assim, o novo Iluminismo proclama sua crença no pluralismo e na tolerância e combate todos
os fanatismos, sabendo que eles não se originam da manipulação consciente do clero e dos
tiranos, como julgava a Ilustração, e sim da ação de mecanismos sociais e psíquicos muito
mais profundos. Revive a crença no progresso, mas o dissocia de toda filosofia da história,
que o concebe como uma tendência linear e automática, e passa a vê-lo como algo de
contingente, probabilístico e dependente da ação consciente do homem. O único progresso
humanamente relevante é o que contribui de fato para o bem-estar de todos, e os
automatismos do crescimento econômico não bastam para assegurá-lo. O progresso, nesse
sentido, não é uma doação espontânea da técnica, mas uma construção intencional pela qual
os homens decidem o que deve ser produzido, como e para quem, evitando ao máximo os
custos sociais e ecológicos de uma industrialização selvagem. Esse progresso não pode
depender nem de decisões empresariais isoladas nem das diretrizes burocráticas de um
Estado centralizador, e sim de impulsos emanados da própria sociedade. O Iluminismo
mantém sua fé na ciência, mas sabe que ela precisa ser controlada socialmente e que a
pesquisa precisa obedecer a fins e valores estabelecidos por consenso, para que ela não se
converta numa força cega, a serviço da guerra e da dominação. Repõe em circulação a
noção kantiana da “paz perpétua”, com pleno conhecimento das forças sócio-econômicas
que conduzem à guerra. Resgata o ideal do cosmopolitismo, do Weltbürgentum, sabendo
que nas condições atuais a universalidade possível não poderá ir muito além da esfera
cultural. Assume como sua bandeira mais valiosa a doutrina dos direitos humanos, sem
ignorar que na maior parte da humanidade só profundas reformas sociais e políticas podem
assegurar sua fruição efetiva. Combate o poder ilegítimo, consciente de que ele não se
localiza apenas no Estado tirânico, mas também na sociedade, em que ele se tornou invisível
e total, molecular e difuso, aprisionando o indivíduo em suas malhas tão seguramente como
na época da monarquia absoluta. Luta pela liberdade, cônscio de que ela não pode ser
apenas o do citoyen rousseauísta, mas também a de todos que se inserem em campos
setoriais de opressão, regidos por versões “regionais” da dialética hegeliana do senhor e do
escravo, como a relação homem-mulher, heterossexual-homossexual, etnia dominante-etnias
minoritárias. Advoga uma moral não-repressiva, derivada da moral da Ilustração, que
favoreceu a plena liberação das paixões, mas não a funda numa razão legiferante, que
descobre por atos individuais de intuição normas válidas para todos os homens, e sim num
processo consensual que permite o trânsito de uma normatividade heterônoma para uma
normatividade autônoma. Sabe, enfim, que grande parte desses valores só podem ser
realizados pela mudança das relações sociais, mas não desconhece que as tentativas até
hoje empreendidas para mudá-las levaram a novas formas de tirania. (…)
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São
Paulo, Companhia das Letras, 1987. p. 32-33.