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O novo-desenvolvimentismo nos governos Lula da Silva: a formulação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES)

ANDRÉ PEREIRA GUIOT1

1.0 - Introdução

Este trabalho visa trazer uma concisa discussão acerca da construção do projeto

“novo desenvolvimentista” no interior do Conselho de Desenvolvimento Econômico e

Social (CDES) nos governos Lula da Silva. Lançaremos mão, para tanto, de alguns

documentos publicados pela Secretaria do Conselho (SEDES) e, principalmente, das

atas das reuniões plenárias do CDES. O intuito principal é o de alinhavar elementos

introdutórios e parciaisda formulação de um projeto de sociabilidade burguesa para o

país, expressão da necessidade de remodelamento do modelo político-econômico em

vigor durante a década de 90, diante da profunda crise que atravessava.

A amplitude, diversidade e complexidade do programa intitulado como “novo

desenvolvimentismo” tomou forma e conteúdo claramente divulgado desde a ascensão

do PT à administração pública federal, em 2003, sendo continuamente aprimorado a

partir do segundo mandato de Lula da Silva (2007-2010), quando começou a engrossar

o debate acadêmico e a aderência de setores até então insatisfeitos com a política

econômica conduzida pelo Ministro da Fazenda Antônio Pallocci e pelo presidente do

Banco Central, Henrique Meirelles, muito embora, numa aparente “virada”, alguns

expoentes deste projeto tinham assumido relevantes papéis de apoio, formulação e

disseminação, na sociedade civil e política, de idéias caras ao neoliberalismo, durante os

governos FHC – como é o caso emblemático de Luiz Carlos Bresser Pereira.

Como objeto de estudos e de grandes controvérsias entre diversos autores (sejam

eles adesionistas e/ou formuladores, sejam eles críticos à direita ou à esquerda do

espectro político-ideológico), o “novo desenvolvimentismo”, vale dizer, o conjunto de

propostas econômico-sociais tido como uma “nova agenda pós-neoliberal”, porém,

dificilmente é analisado a partir das formulações expressas pelas agências do Estado

1 Doutorando do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista pela Capes.

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restrito. Sendo em geral emanada de intelectuais orgânicos social-liberais da burguesia

brasileira (economistas e cientistas políticos ligados a centros de pesquisa e/ou institutos

e departamentos universitários, a entidades da sociedade civil e, neste caso, também a

certas lideranças político-partidárias, todos quase sempre com vínculos próximos ou

estreitos ao Estado restrito), a produção e disseminação do projeto “novo

desenvolvimentista” é estudada, via de regra, a partir das linhas-mestras interpretativas

dos intelectuais e das entidades, centros e institutos em que eles circulam.

Contudo, neste tema, ganha extrema relevância e monumental volume de

produção de pesquisas e publicações o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A inserção desta agência estatal (vinculada, durante o governo Lula, à Secretaria de

Assuntos Estratégicos da Presidência da República) no debate sobre o desenvolvimento

brasileiro no século XXI passa a ocorrer sistematicamente sob a liderança de Márcio

Pochman, presidente do instituto durante o segundo governo Lula da Silva. Apenas do

conjunto de estudos conhecido como “Eixos Estratégicos do Desenvolvimento

Brasileiro”, uma das quatro dimensões do projeto “Perspectiva do Desenvolvimento

Brasileiro”, foi publicada uma série de 10 livros com 15 volumes que trata diretamente

dos temas do planejamento e das políticas “novo desenvolvimentistas”, a qual

“contribuíram ao menos 230 pessoas, mais de uma centenas de pesquisadores do

próprio Ipea e outras tantas pertencentes a mais de 50 instituições diferentes, entre

universidades, centros de pesquisa, órgãos de governo, agências internacionais, etc.”

(Ipea, 2010: 11).

O CDES credenciava-se como outra importante agência estatal envolvida na

proposta de elaborar estratégias de “desenvolvimento econômico com equidade social”

nos governos Lula da Silva. Concebido como arena constituída de 90 lideranças

representativas da sociedade civil brasileira e por 17 Ministros de Estado, além do

próprio Presidente da República, o artigo 8º da lei 10.683/03 reza que a competência do

CDES é

... assessorar o Presidente da República na formulação de políticas e diretrizes específicas, voltadas ao desenvolvimento econômico e social, produzindo indicações normativas, propostas políticas e acordos de procedimento, e apreciar propostas de políticas públicas e de reformas estruturais e de desenvolvimento econômico e social que lhe sejam submetidas pelo Presidente da República, com vistas à articulação das

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relações de governo com representantes da sociedade civil organizada e a concertação entre os diversos setores da sociedade nele representados.

2.0 – Alguns elementos constituidores do projeto “novo desenvolvimentista” no CDES

No dia 5 de agosto de 2004, o CDES, sob a coordenação de Jaques Wagner,

secretário-executivo da Secretaria do Conselho (SEDES) à época, promoveu a Mesa

Redonda denominada “Diálogo Social, Alavanca para o Desenvolvimento”. Neste

evento, participaram o presidente Lula da Silva, conselheiros, ministros de Estado e do

alto escalão do governo e convidados ilustres, dentre os quais se destacaram Maria João

Rodrigues (Assessora da Presidência da União Europeia), Roger Briesch (Presidente do

Comitê Econômico e Social da União Europeia), Julian Ariza Rico (Vice-presidente do

Conselho Econômico e Social da União Europeia). A abertura da solenidade, contudo,

ficou a cargo do economista e professor Celso Furtado que, diante da debilidade de seu

estado de saúde, remeteu à plenária do evento um vídeo gravado acerca dos “rumos do

desenvolvimento” no Brasil recente. Nele, Celso Furtado dizia que

A distinção entre crescimento econômico e desenvolvimento é uma questão que muito me apaixona. Fui quem primeiro formulou este problema, o que significa crescimento e o que significa desenvolvimento, mostrando que quando se fala desenvolvimento se introduziu o social e o político. Não se fala de desenvolvimento senão a partir do social, ao passo que se fala de crescimento econômico a partir dos dados estatísticos: PIB; renda nacional; exportações. Não precisa do social. Você pode ter crescimento econômico bastante forte, como o Brasil teve durante 30 anos seguidos, com crescimento de 7% ao ano, um crescimento extraordinário, com pouco desenvolvimento, desenvolvimento quase nulo, porque o sistema, a estrutura do sistema, não favorecia a abordagem dos problemas sociais (BRASIL, 2004a: 21).

A fala de Furtado é trazida aqui por que ela sempre foi referenciada dentro do

Conselho. Desenvolvimento implicaria, neste diapasão, necessariamente a diminuição

de desigualdades sociais. Como veremos, a partir da Agenda Nacional de

Desenvolvimento (AND), construída no CDES entre 2004 e 2005, toda e qualquer

política pública a ser formulada e adotada pelos ministérios deveria contemplar este

critério básico: a “redução das iniquidades”. Daí que, nos documentos do Conselho e

nas intervenções de seus membros nas reuniões plenárias, o tema do crescimento

econômico vir sempre acompanhado do epíteto “sustentado”, “com equidade”, “com

inclusão social”, “com distribuição de renda”, ou, ainda, como “desenvolvimento

autêntico”, na expressão do próprio Furtado. Em suma, capaz de “garantir a

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compatibilização entre segurança social e prosperidade material” (CARDOSO JR,

SANTOS e ALENCAR, (orgs). 2010: 11).

São numerosas, entretanto, as condições de construção do desenvolvimento tal

qual propugnado no interior do CDES. Remeteremo-nos as que nos parecem mais

recorrentes e aprofundadas no interior do Conselho. A primeira delas – e diria a mais

aludida - seria a formação de um novo e autêntico pacto social em prol do

desenvolvimento. “Pacto social”, “novo contrato social”, “construção de acordos ou

consensos”, “concertação ou diálogo social”, dentre outras expressões, equivaleriam à

“intensa aproximação, cooperação e parceria” entre capital e trabalho no esforço de

superação das dificuldades causadoras de barreiras ao desenvolvimento:

Queremos avançar na construção de um grande acordo. Um novo pacto firmado entre forças políticas, representações empresariais, sindicais e de vastos setores da sociedade civil. Este avanço deve estar informado pelos debates que travamos, sem a ilusão de que não temos divergências, mas a partir da confiança de que é possível estabelecermos marcos de consenso: um espaço comum no interior do qual podemos disputar posições, em busca de um sentido aceito por todos e que fundamentará as nossas ações políticas (Segunda Carta de Concertação. In: Ata da 2ª Reunião Plenária do CDES, p. 14-15).

Poderíamos elencar algumas dezenas de ocasiões, nas reuniões plenárias ou em

eventos promovidos pelo CDES, em que as intervenções do alto escalão do governo

Lula da Silva, inclusive do próprio presidente, apelavam para a necessidade de

construção de uma “aliança político-social entre as classes populares e o empresariado

nacional”, no dizer de José Dirceu, no aludido evento em 2004, sem a qual “não haverá

desenvolvimento no Brasil” (idem: 27). Lula da Silva, no pronunciamento na 8ª

Reunião Plenária do CDES, afirmara que

O desenvolvimento se constrói a partir de consenso. E o Conselho tem sido um espaço fundamental para que façamos isso. (...) trata-se, sobretudo, de construirmos um novo consenso estratégico nacional. Falo de um entendimento muito bem negociado, de longa duração, para assegurar que as oportunidades que se abrem para o Brasil não sejam perdidas (...). Para alcançá-lo, é necessário cada vez mais convergência (...).

Lideranças da sociedade civil organizar-se-iam sob os auspícios governamentais

para formulação, na sociedade política, de um projeto de “desenvolvimento com

equidade” sustentado pelo esforço da “pactuação” social. Apesar de serem utilizados

pelos analistas e conselheiros de maneira indiferenciada, Tarso Genro, primeiro

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mandatário do cargo de secretário-executivo do CDES, volta e meia mencionava, em

entrevistas e em curtos artigos, que os termos “pacto social” e “concertação” não eram

sinônimos. De qualquer modo, é importante observar que eles funcionavam como

ideários coesionadores no âmbito do próprio Conselho:

Não usamos o termo “pacto social” por ele estar associado a uma negociação entre trabalhadores e patrões. O termo concertação expressa melhor a experiência do Conselho. Inédita no Brasil, nunca tivemos diálogo organizado pelo Estado, de caráter estratégico, entre as classes sociais buscando os seus consensos e não as suas divergências. O Conselho é isso. É uma união – afinada e harmoniosa – na busca de um novo contrato social para construirmos um país economicamente forte e socialmente justo (grifos nossos)2.

A ideia colocada era de que a mobilização necessária para construção de um

“autêntico desenvolvimento” apenas se daria pela consensualização de uma pauta

mínima de mudanças necessárias ao país. Sem mudanças bruscas ou radicais, dever-se-

ia construir um projeto em que desenvolvimento econômico e social e coesão social

andariam lado a lado, ou melhor, ambos se nutririam.

A geração de empregos e renda era outra importantíssima condição para a

promoção do “desenvolvimento com inclusão”. Os documentos e falas dos conselheiros

apontavam para a perspectiva de que apenas se pode falar em “crescimento sustentado”

se se promove a inclusão social pela via da criação de postos de trabalho, isto é, de

empregos formais. O próprio Celso Furtado, na citada participação no evento, afirmou

que: “... a orientação deve ser a seguinte: se não avança na criação de emprego e na

distribuição de renda, estamos andando para trás... A última batalha a perder é a do

emprego” (BRASIL, 2004a: 22). O caráter do emprego, contudo, deveria incidir sobre a

oferta, isto é, empregos “sustentáveis”, e não “frentes de trabalho”: “devem ser criados

empregos que criem riqueza, que incidam na produção” (idem: 23). Na mesma ocasião,

José Dirceu asseverou que

O Brasil precisa fazer desenvolvimento com inclusão social – inclusão social é emprego, o nome da inclusão social é emprego. Transferência de renda é combate à pobreza e à miséria, ação de emergência. Educação e saúde são políticas públicas e sociais. Mas o nome da inclusão social é emprego (idem: 29).

2 Entrevista concedida ao Jornal Autonomia em nov/dez. de 2003, reproduzida no site do Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados e Empregados de empresas de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (Sindpd). Disponível em <http://www.sindpd.org.br/artigos/entrevistas Print.asp?id=3>. Acesso em 30/08/2010.

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A conselheira Sonia Fleury, contudo, refutou, em outro Painel, a assertiva de

Dirceu de que “o nome da inclusão é o emprego”. Disse Fleury: “penso que a inclusão

remete à condição de cidadania e não só a uma ocupação”, defendendo a conselheira

que “é preciso muito mais para transformar essas pessoas em cidadãos...” e que,

portanto, “a minha visão em relação ao social é que ele é a essência do projeto de

desenvolvimento e a questão econômica é a ele subordinada” (idem:124-125). Isto

revelava, inclusive, a exposição de posições distintas quanto ao próprio significado e à

estrutura sócio-econômica necessária ao atendimento e apoio à uma política social

“inclusiva” entre os integrantes do CDES e entre estes e os representantes do governo.

Obviamente, era extenso e variado o leque de opções apresentadas e debatidas

no CDES para que o Estado induzisse a criação de empregos. O tema quase atravessava

todas as pautas das reuniões plenárias e se colocava como preocupação central em

muitos documentos. Por isto, o debate travado no CDES sobre esta questão envolvia,

mesmo tangencialmente, toda a problemática das relações entre Estado, as classes

sociais e o desenvolvimento das forças produtivas no Brasil recente.

É possível, contudo, realçar importantes pontos recorrentes nas demandas dos

conselheiros para o enfrentamento da questão, sem pretensão em exauri-los:3 i) ênfase

contundente nas políticas de formação, qualificação e certificação profissional da força

de trabalho no Brasil, com destaque à formação da juventude (logo em2003, foi criado o

GT Primeiro Emprego no CDES); ii) induzir a formalização dos contratos de trabalho

assalariado (rurais e urbanos); iii) diminuir a carga tributária sobre as micro e pequenas

empresas e a contribuição previdenciária dos autônomos; iv) qualificar o emprego

através da política de valorização salarial; v) fomentar o empreendedorismo,

cooperativas e micro e pequenas empresas, garantido-lhes crédito e aperfeiçoando o

Simples; vi) promover os arranjos produtivos locais; vii) apoio e fomento à economia

solidária; viii) aperfeiçoar os programas de transferência de renda articulando-os às

políticas de geração de emprego.

A necessidade de criação de um sistema de financiamento com horizonte de

longo prazo para o barateamento dos custos do capital e incentivos ao investimento

3 As proposições foram retiradas da Agenda Nacional de Desenvolvimento, de 2005, e da Agenda para o

Novo Ciclo de Desenvolvimento, de 2010. Estes documentos constam em CARDOSO Jr., SANTOS e ALENCAR (orgs), 2010.

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progressivo era mais uma demanda, especialmente dos empresários, no CDES. Por

ocasião da apresentação da Agenda Nacional de Desenvolvimento (AND) ao Presidente

da República e aos Ministros de Estado presentes na 13ª Reunião Plenária do CDES, em

25 de agosto de 2005, o conselheiro José Carlos Braga, economista e professor da

Unicamp, na condição de um dos três sistematizadores dos grupos de discussão4 da

AND, afirmou ser necessário que o Brasil alterasse seu padrão de financiamento

calcado no financiamento externo, importando em vulnerabilidade, para outro que

envolvesse o sistema público/privado de financiamento do investimento e de

dinamização do mercado de capitais.5 É claro que a problemática do financiamento

envolve questões macroeconômicas complexas, diversificadas e conexas, exigidas pelo

grande capital, como aumento das exportações, conquistas de novos mercados,

alterações na política cambial e de juros, investimentos em ciência e tecnologia, forte

política creditícia, ganhos de produtividade, reforma tributária, diminuição do “custo

Brasil”, etc. Todas estas questões apareciam frequentemente nos debates e documentos

internos. Na 13ª Reunião do CDES, Antonio Pallocci reiterou algumas posições

exigidas pelos conselheiros-empresários:

(...) Os resultados destes indicadores revelam que o País está se financiando pelo esforço interno, com ganhos de produtividade. É o Brasil realizando o seu financiamento externo pelo esforço do seu trabalhador, das suas empresas, das suas exportações, no sentido de fazer com que o País tenha contas externas sólidas, pelos seus ganhos de produtividade e pela conquista de novos mercados (ATA da 13ª Reunião Plenária, 12 de maio de 2004).

Vale lembrar, ainda sobre esta questão, que a aprovação do projeto responsável

pelo estabelecimento das Parcerias Público-Privadas (PPP’s), amplamente requerido e

discutido no âmbito do Conselho, foi uma vitória significativa do grande empresariado.

As entidades patronais solicitaram e aplaudiram quando os governos Lula da Silva as

implantaram: 4 Na 12ª Reunião Plenária, em 12 de maio de 2005, foram criados 8 grupos de sistematização, negociação

e consolidação final da AND. Cada grupo era formado por oito conselheiros, respeitado a representatividade paritária de cada segmento social presente no Conselho. Tendo cada grupo um sistematizador, as atribuições destes era organizar as contribuições do debate da proposta da Agenda, construir o consenso entre os membros do grupo e, posteriormente, negociar com os sistematizadores dos outros grupos a versão final da Agenda a ser apresentada na 13ª Plenária (Cf. Garcia: 2010: 107). Os outros dois sistematizadores foram o empresário Horácio Lafer Piva e o Diretor Técnico do DEESE Clemente Ganz Lúcio. 5 Em sua apresentação, diz o conselheiro que seria criada uma Comissão, presidida por conselheiro do CDES e composta por integrantes do Governo, dos empresários e dos trabalhadores, para preparar, em 180 dias propostas, propostas para o sistema de financiamento.

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Para a Fiesp, o Programa de Aceleração do Crescimento, anunciado pelo presidente Lula em final de janeiro, merece toda a aprovação. (...) Nos últimos dois anos e meio (...) Skaf tem pregado, insistentemente, a necessidade de o Brasil crescer. (...) Propostas nesta direção foram desenvolvidas em conjunto pela Fiesp e pelo Iedi ao longo de 2006. Pouco antes das eleições de outubro, as sugestões foram entregues aos congressistas e candidatos ao governo estadual e à Presidência da República. Muitas estão contempladas no PAC (Salem, 2007).

A tensão mais presente nos debates das plenárias no primeiro governo Lula da

Silva era entre o ministro Antonio Palloci e presidente do Banco Central Henrique

Meirelles, responsáveis diretamente pela condução da política econômica do governo, e

conselheiros, pode-se dizer, mais “críticos” e “ativos”, isto é, que se colocavam mais à

frente no debate, polemizando diretamente com os ministros. Neste ponto, a nosso ver,

o projeto “novo desenvolvimentista” do CDES, ainda que não expressasse ausências de

disputas e divergências entre os próprios conselheiros, se desenhava numa direção clara

de refutação (ao menos discursiva) e de duras críticas à continuidade da adoção de

certas diretrizes econômicas herdadas do governo anterior, especialmente no que tange à

política de juros excessivamente altos, à sobrevalorização cambial e aos mega

superávits primários produzidos. “Duras críticas” se tomarmos como parâmetro de que

se tratava da reordenação minimalista, ou “nas franjas”, do modelo econômico – e não

de sua transformação radical –, aliado ao fato de que os conselheiros eram indicados

pelo próprio Presidente e, portanto, recrutados como colaboradores e aperfeiçoadores de

um dado projeto político.

Diante destas considerações, a referida contenda interna se explicitou na 10ª

Reunião Plenária do CDES, realizada em 10 de novembro de 2004, logo após a

exposição do Ministro da Fazenda Antônio Palocci e do Presidente do Banco Central

Henrique Meirelles sobre a situação macroeconômica do país à época, a qual o

conselheiro Sérgio Haddad, presidente da Abong, indagava a Palocci:

A primeira pergunta que vem a cabeça é a seguinte: é justo os bancos terem margens de lucros tão altas num País como o nosso? (...) A taxa de juros é alta. (...) Então pergunto: num País que precisa tanto crescer para poder dar emprego a milhões de pessoas, porque manter juros tão altos? A elevação dos juros reduz o ritmo de crescimento de preço porque inibe o investimento e sufoca a demanda de mercado. Isso significa contrair a atividade produtiva e aumentar o desemprego. Como entender que a política econômica pode ser eficaz se ela é construída através de danos sociais e justifica-se que os juros têm que ser altos por causa da inflação? (ATA da 10ª Reunião Plenária, 10/11/2004, p. 23).

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A fala de Haddad veio após a defesa de Márcio Arthur Cypriano (CEO do Banco

Bradesco) da política econômica do governo (elogiando o recorde da balança comercial,

a redução do risco-país, o enorme saldo em conta-corrente, a previsão de alta do

investimento externo estrangeiro, etc) e argumentou que “a formação das altas taxas de

juros envolve fatores que estão fora do alcance do setor financeiro” (idem: 19). Palocci

respondeu a Haddad com os fundamentos explicitamente propagados pelos neoliberais:

a) a história brasileira comprova que o custo de não pagar a dívida é socialmente muito

maior do que pagá-la, inclusive países que não tiveram condições de pagá-la sofreram

com queda de investimentos e a crise social aguda: “nenhum país que deixou de pagar

dívida teve crescimento econômico no período seguinte, nenhum” (idem: 25); b) um

bom equilíbrio fiscal garante recursos consistentes para área social no longo prazo; c)

juros altos são necessários para barrar a inflação e evitar a corrosão da renda das

famílias.

Sonia Fleury, Pedro Ribeiro de Oliveira, Antoninho Trevisan, Maria Vitoria

Benevides, Zilda Arns, acompanharam a crítica de Haddad, mas foi a dura realidade dos

“de baixo”, exposta por conselheira suplente Jurema Werneck6 que, de fato, revelou

agudas fragilidades no “diálogo” social apregoado:

Presidente Meirelles, tenho participado do Conselho e acho que essa é a primeira vez que fico com dificuldade de achar as palavras para traduzir o meu pensamento. E a minha dificuldade, na verdade, é movida por um profundo desencanto. É o desencanto da sensação de que tem um diálogo de surdos, pelo menos o diálogo que busco não é o diálogo do qual estou participando, ou seja, não há diálogo. (...) A apresentação do ministro Palocci para mim foi bastante contundente na afirmação da presença profunda desse diálogo de surdos. Porque a afirmação do sucesso da política econômica produzida pelo Governo Lula é uma afirmação de sucesso que não encontra eco nesse Brasil onde vivo. O ministro deu exemplo dos ganhos salariais. Eu vivo naquele Brasil onde mais de 50% da população está no mercado informal (...). Ainda que tenhamos esse super superávit, não tem um posto de saúde capaz de atender a diarréia que mata cada criança, que a Dona Zilda Arns vai tentar salvar com soro, porque o SUS não está respondendo como devia porque o dinheiro foi para aquele super superávit que está sendo feito. Esse é o Brasil em que vivo, que não dialoga com esse Brasil daqueles gráficos (ATA da 10ª Reunião Plenária, 10/11/2004, p. 38-39).

6 Graduada em Medicina, mestre em Engenharia de Produção, doutora em Comunicação e Cultura, Coordenadora da ONG Criola, do Rio de Janeiro e integrante da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras/ AMNB. Dados retirados em <http://www.fundodireitoshumanos.org.br/v2/ pt/team/adviser>. Acesso em 02/01/2014.

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A fala da conselheira Werneck expressava as insatisfações dos setores populares,

escassamente representados no CDES. No geral, contudo, as demais críticas não

punham em xeque o modelo de acumulação inaugurado no país durante a década de

1990, ou, ao menos, a reversão ou revisão de medidas neoliberais adotadas por FHC

(como privatizações das estatais, desregulamentação econômica, liberalização de fluxo

de capitais, revogação de direitos trabalhistas e sociais, implantação políticas sociais

compensatórias, dentre outras), mas no ajuste e adequação do modelo às exigências do

grande capital monopolista, da intelectualidade social-liberal, de (ex)dirigentes sindicais

“pró-produção e emprego” e de uma miríade de representantes de entidades da

sociedade civil de cunho particularista, mas sobretudo afinada com a reformatação do

projeto vigente.

3.0 – Desenvolvimento e des(igualdade) no CDES: algumas ponderações a partir do estudo do “Observatório da Equidade”

A proposta original de criação de um “Observatório Brasileiro da Desigualdade”

surgiu por intervenção e influência direta do conselheiro-empresário Oded Grajew,

ainda na 11ª Reunião Plenária, em março de 2005. Naquela ocasião, Grajew sugeria

quatro medidas práticas para combater a desigualdade no país e, dentre elas,

(...) a criação do Observatório Brasileiro da Desigualdade, formado pelo IBGE, pelo DIEESE e pelo IPEA. Este observatório terá a função de emitir pareceres sobre programas governamentais do ponto de vista do seu impacto sobre a desigualdade (...). Todos os programas e os planos de desenvolvimento, inclusive aqueles aqui apresentados no Conselho deverão ser acompanhados por um relatório de impacto sobre a desigualdade (ATA da 11ª Reunião Plenária, 10/03/2005, p. 26).

O documento “Proposta de Criação do Observatório da Equidade”, (BRASIL,

2005: 2) lembra que a primeira diretriz da AND para atender o objetivo de “fazer a

sociedade brasileira mais igualitária, sem disparidades de gênero, raça, com a renda e a

riqueza bem distribuídas e vigorosa mobilidade social ascendente” é:

Adotar a eqüidade como o critério a presidir toda e qualquer decisão dos poderes públicos. Incentivar a adoção do critério pela iniciativa privada. Estabelecer a obrigatoriedade de avaliação prévia de toda e qualquer ação governamental (envolvendo ou não recursos orçamentário-financeiros) quanto ao cumprimento do critério eqüidade (BRASIL, 2010: 17).

Oded Grajew e outros conselheiros, em muitos momentos, também usavam esta

passagem da AND para lembrar que um dos principais objetivos das proposições do

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CDES era o de oferecer maior “equidade” à sociedade. A expressão “equidade como

critério” é aqui pensada como

(...) capacidade e instrumentos para medir e acompanhar o enfrentamento do problema. Significa construção de indicadores e responsabilização clara de instâncias para análise dos impactos das políticas, a partir dos indicadores; emissão dos pareceres orientadores das decisões (de implementação ou não da política); e avaliação global da evolução da desigualdade brasileira (BRASIL, 2005: 2, grifos no original).

O uso do termo “equidade” era bastante gelatinoso dentre os conselheiros. Há

ocasiões em que “equidade” parece sinonimizar a própria igualdade, numa precisa

apreensão desta, evidentemente, ou então um caminho próspero e próximo para alcançá-

la. Muitas vezes, igualdade ou equidade era entendida como a própria capacidade do

poder publico, em “sinergia” com a iniciativa privada, em ofertar maiores igualdade de

oportunidades através de políticas publicas de alcance reduzido e setorizado (negros,

crianças, jovens, mulheres, idosos, mais pobres, etc) visando a redução precária do que

comumente se chama “desigualdades sociais”. Políticas públicas minimalistas,

focalizadas, compensatórias, emergenciais de “distribuição de renda” e “inclusão

social” apareciam vis-à-vis a mecanismos que pretendiam impulsionar, ou acelerar, o

crescimento econômico, ou seja, o investimento na “economia real”, como afirmavam.

Desta maneira, os mecanismos promotores da “equidade” passavam necessariamente

pelo esforço em fazer avançar a “igualdade de oportunidades” para a competição dos

indivíduos no mercado de trabalho com vistas à preparação e alcance da “mobilidade

social” pela via do mercado consumidor ou de trabalho.

Sob o epíteto de “um novo modelo de desenvolvimento econômico”, a expansão

da acumulação capitalista, a médio e longo prazo, era a condição para a redução da

pobreza e melhoria da prestação dos serviços públicos, ao lado de medidas

emergenciais. No CDES, as ações do Estado e do mercado, e suas interações, em prol

do crescimento econômico, deveriam se orientar na perspectiva da “equidade”, isto é, os

processos e os resultantes da acumulação capitalista deveriam se coadunar com o bem-

estar de todos, especialmente dos mais pobres e a alusão à preservação ambiental. Ou

seja, tratava-se de dividir, de maneira precária e direcionada, nem o crescimento do

bolo, e não o próprio bolo, mas suas migalhas.

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Embebido da ideologia social-liberal, edificado e propalado com recursos

empresariais de todo tipo (financeiro, associativo, midiático) no Brasil desde o governo

FHC, o conceito de “equidade” em voga no CDES, assim como de “eficiência”, “capital

social”, “empoderamento”, “governança”, se aproximava bastante daquele adotado pelo

Banco Mundial, tal como aparece no documento “Equidade e Desenvolvimento –

Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2006”:

Por equidade entendemos que as pessoas devem ter oportunidades iguais de buscar a vida que desejam e serem poupadas da extrema privação de resultados. A mensagem principal é que a equidade é complementar, em alguns aspectos fundamentais, à busca da prosperidade de longo prazo. Instituições e políticas que promovam um campo de atuação equilibrado – onde todos os membros da sociedade tenham as mesmas oportunidades de se tornarem socialmente ativos, politicamente influentes e economicamente produtivos, contribuem para o crescimento sustentado e o desenvolvimento. Mais equidade é, portanto, duplamente útil para a redução da pobreza: por meio de possíveis efeitos benéficos para o desenvolvimento de longo prazo agregado e por intermédio de mais oportunidades para os grupos menos favorecidos dentro de qualquer sociedade.

Seja como for, o fato é que em nenhum momento a questão da desigualdade

aparece nos documentos e nos debates internos das plenárias do Conselho num contexto

de determinações histórico-sociais de uma formação social calcada na subsunção, na

exploração e na expropriação do trabalho pelo capital no processo de expansão da

acumulação capitalista. Ora, isto é um aspecto fundante e estruturante das relações de

produção capitalistas. A crescente socialização das forças produtivas entra em

contradição com a apropriação e destinação privada hiperconcentrada do excedente

socialmente produzido, isto é, com as relações sociais de produção, sem contar com a

incessante conversão mercantil das distintas esferas vida social (mercantilização de

valores de uso). Assim, a ordem do capital avoluma, com cada vez mais com freqüência

e agudez, profundas crises sistêmicas, interditando qualquer possibilidade de solução da

desigualdade e das privações do conjunto das classes subalternas por meio de uma

genuína socialização do excedente produzido.

As análises totalizantes são afastadas, deslocando o enfrentamento da “questão

social”, o estudo sobre sua estruturação e perpetuação, do campo das lutas de classes,

das formas de lutas contra a produção social de expropriados, para o campo previamente

esquadrinhado e limitado da sua mensuração, através de inúmeras pesquisas, produção

de indicadores, relatórios de acompanhamento e avaliação de políticas, tal como o

Page 13: O novo-desenvolvimentismo nos governos Lula da Silva: a … · desenvolvimentismo” tomou forma e conteúdo claramente divulgado desde a ascensão do PT à administração pública

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Observatório da Equidade propunha. O trato investigativo e analítico da produção da

desigualdade no capitalismo como fenômeno histórico de uma relação social de classe

dava lugar à aplicação e manuseio de um arsenal de instrumentos “técnico-científicos”

homogeneizadores da realidade social.

4.0 – Referências bibliográficas e fontes:

BANCO MUNDIAL. Equidade e Desenvolvimento. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2006. Washington D.C., 2006.

BRASIL. Lei nº 10.683 de 28 de maio de 2003. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios e dá outras providências.

________. Secretaria de Relações Institucionais. Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Mesa Redonda: Diálogo Social – Alavanca para o Desenvolvimento. Brasília: Publicação Assessoria de Comunicação Social – SEDES/PR, 2004a.

______. Secretaria de Relações Institucionais. Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Atas das Reuniões Plenárias do Conselho de

Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República – CDES/PR.

______. Secretaria de Relações Institucionais. Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Proposta de Criação do Observatório da

Equidade. Brasília, 2005.

______ . Secretaria de Relações Institucionais. Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Agenda Nacional de Desenvolvimento – AND. 3. ed. Brasília: Presidência da República, CDES, 2010.

CARDOSO JR., José Celso, SANTOS, José Celso e ALENCAR, Joana (Orgs). Diálogos para o desenvolvimento: a experiência do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social sob o governo Lula. Brasília: IPEA, vol. 2, 2010.

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Estado, instituições e democracia: desenvolvimento. Brasília: Ipea, 2010.

SALEM, Armando V. Enfim, a opção pelo crescimento. Revista da Indústria, nº 125, fevereiro 2007.