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O negro na TV: análise crítica dos programas Esquenta! e Sexo e as Negas, novos produtos da Rede Globo de televisão RESUMO: Em qualquer sociedade democrática a constante atenção ao conceito e a problemática da representação faz-se fundamental. O poder adquirido pela televisão no Brasil determina a influência que ela exerce sobre o imaginário político e cultural da população do país. Porém como se dá a representação dos vários grupos que compõem a sociedade brasileira? Nesse sentido, procurando contribuir com este debate, propomos a análise de dois produtos televisivos recentes da Rede Globo: o programa de auditório Esquenta!, comandado pela apresentadora Regina Casé e o seriado Sexo e as Negas, idealizado por Miguel Falabella. Em ambos encontramos a temática da inclusão, o que já é um sinal de que o protagonismo negro é estranho à televisão. PALAVRAS-CHAVE: Conceitos de Comunicação; Rede Globo; Brasil; inclusão; representatividade; televisão. CONTEXTO: Esse trabalho foi produzido em função da disciplina Novas Teorias da Comunicação, ministrada pela docente Fabiana Grieco no segundo semestre de 2014. A disciplina integra o currículo da Pós-graduação em Produção e Gestão Jornalística do Senac São Paulo. Assinam o texto: Daniele Pires, Janete Figueira, Juliana Guerra, Nayara Souza, e Yuri Silva.

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O negro na TV: análise crítica dos programas Esquenta! e

Sexo e as Negas, novos produtos da Rede Globo de televisão

RESUMO: Em qualquer sociedade democrática a constante atenção ao conceito e a

problemática da representação faz-se fundamental. O poder adquirido pela televisão

no Brasil determina a influência que ela exerce sobre o imaginário político e cultural

da população do país. Porém como se dá a representação dos vários grupos que

compõem a sociedade brasileira? Nesse sentido, procurando contribuir com este

debate, propomos a análise de dois produtos televisivos recentes da Rede Globo: o

programa de auditório Esquenta!, comandado pela apresentadora Regina Casé e o

seriado Sexo e as Negas, idealizado por Miguel Falabella. Em ambos encontramos a

temática da inclusão, o que já é um sinal de que o protagonismo negro é estranho à

televisão.

PALAVRAS-CHAVE: Conceitos de Comunicação; Rede Globo; Brasil; inclusão;

representatividade; televisão.

CONTEXTO: Esse trabalho foi produzido em função da disciplina Novas Teorias da

Comunicação, ministrada pela docente Fabiana Grieco no segundo semestre de 2014.

A disciplina integra o currículo da Pós-graduação em Produção e Gestão Jornalística

do Senac São Paulo. Assinam o texto: Daniele Pires, Janete Figueira, Juliana Guerra,

Nayara Souza, e Yuri Silva.

1 – Televisão e seu poder

1.1 – Rede Globo de Televisão

A primeira emissora brasileira foi a TV Tupi Difusora, com início em 18 de

setembro de 1950. O fundador, Assis Chateaubriand, instalou 200 aparelhos em

diversos pontos da cidade de São Paulo, exibindo um show chamado TV na Taba, a

maioria das pessoas nem sabia do que se tratava.

A televisão brasileira nasceu num momento em que o maior veículo de

comunicação no país era o rádio, diferente da televisão norte-americana, que surgiu

mais influenciada pelo cinema. Devido a esta forte influência do rádio, a televisão

brasileira se utilizou da mesma programação e estilos.

Em 1965, foi criada a Rede Globo, pouco mais de um ano depois do Golpe

Militar. Seu crescimento foi vertiginoso durante o período ditatorial. Hoje é a maior

rede de televisão do Brasil, e uma das maiores do mundo. A história do conglomerado

midiático que hoje é chamado Grupo Globo começara décadas antes.

Em 1931, contando vinte e seis anos de idade, Roberto Marinho tornava-se

diretor do jornal O Globo, fundado em 1925 por seu pai, Irineu Marinho. Sua primeira

concessão de televisão foi dada em 1957 pelo Presidente Juscelino Kubitschek, cujo

governo ele apoiava. Sua segunda concessão foi dada pelo presidente João Goulart,

cujo governo ajudou a depor.

Inicialmente, como menciona Kehl (1986), a inauguração da TV Globo não

representou significativa ameaça às emissoras que já existiam. Ocorre, porém, que o

governo militar forneceu a estrutura para o desenvolvimento da televisão no Brasil e a

TV Globo se preparou para assumir essa parceria com o regime, tornando-se sua

maior aliada e beneficiária.

"O conglomerado Roberto Marinho configura-se, evidentemente,

como ‘grande empresa’ nesse período. E de maneira análoga ao que se

processa entre os setores da classe dominante, a Rede Globo assume

situação de monopólio, enquanto emissoras mais ‘artesanais’ se esfalecem

(...) Delineia-se a estratégia governamental, a qual, sob o pano de fundo de

uma política econômica desenvolvimentista, implanta sofisticados

aparelhos ideológicos e repressivos." (ROMEIRO apud KEHL, 1986, p.

178).

Kehl (1986) afirma que naquela época, o governo investia e se esforçava para

a formação e fortalecimento de poucas redes de televisão. Isso ajudou a Rede Globo a

se transformar na maior emissora da TV brasileira.

"A cor, sem dúvida, contribuiu para a glamurização da imagem de

um país que, na década de 60, era representado na música, no cinema e na

produção cultural em geral como miserável e subordinado. A estética

brilhante e clean da publicidade e do ‘padrão-Globo-de-qualidade’ foi se

tornando hegemônica e inviabilizou em poucos anos a estética do Cinema

Novo e do CPC." (KEHL, 1986, p. 202).

Nessa primeira fase o público do novo veículo de comunicação era reduzido,

porque o preço dos aparelhos era alto e existia a necessidade de grandes investimentos

para instalação das redes. Os aparelhos custavam pouco menos do que o valor de um

carro. Ter uma televisão era sinônimo de status.

Por um tempo significativo a televisão foi artigo de luxo, destinado à elite

brasileira. Os televisores eram trazidos do exterior, e por isso o preço do aparelho era

muito alto. Só quando os televisores começaram a ser fabricados no Brasil, em 1951,

é que os preços começaram gradativamente a baixar, e um público maior pôde ter

acesso a esta tecnologia.

Em 1967 o marechal Costa e Silva assumiu a presidência, iniciando-se o

período do "milagre econômico", encabeçado pela política econômica defendida por

Delfim Neto, então ministro da Fazenda. O país chegava a médias de crescimento do

PIB que ultrapassavam 10% ao ano. Mas a desigualdade social aumentava, e o mesmo

período também é lembrado como os "anos de chumbo".

A ditadura deu prioridade ao desenvolvimento de um moderno sistema de

telecomunicação, e impulsionou a compra de televisores a crédito. Algumas agências

publicitárias estrangeiras instaladas no Brasil já traziam a experiência do poder da

televisão para a divulgação publicitária e adotaram os mesmos procedimentos de

outros países.

Durante vinte anos os programas de TV tinham o nome do seu anunciante,

como por exemplo, o conhecido Repórter Esso. Dessa forma, a televisão se

popularizou muito rapidamente e tornou-se o principal canal de veiculação de

propagandas.

1.2 - Programas de auditório

Os programas de auditório têm uma forte influência em nossa televisão, sendo

hoje constantes na grade de programação de muitos canais. A interação do público

presente nos estúdios de gravação causa a identificação do telespectador com o

espetáculo.

A aproximação do apresentador do programa com o telespectador é realizada

através do auditório. A presença desse público permite uma comunicação direta entre

emissores e receptores, do programa com os espectadores. O auditório de um

programa funciona como um sistema de representação do convívio em sociedade.

Atualmente na Rede Globo são cerca de dez programas de auditório, entre

fixos e temporários, como o Caldeirão do Huck, Amor & Sexo, Altas Horas,

Domingão do Faustão, TV Xuxa e Esquenta!. Este último é um dos objetos de nossa

análise.

Uma das principais referências de Regina Casé para a elaboração do

Esquenta!, foram os programas de auditório do apresentador Chacrinha1.

“O Chacrinha nos oferece um grotesco com função social. Suas

incursões pelo irreal, sua construção de um pequeno mundo exagerado em

gestos e trejeito, sua provocação do risível pela irrisão, devolvem ao

espectador brasileiro a figura, há muito perdida, do palhaço” (SODRÉ,

1975, p80).

O formato de um programa de auditório estabelece a identificação do público

em todos os detalhes da representação, estéticos, de conteúdo, cenário, música e

linguagem, que caracterizam esse grupo inserido no contexto do programa.

"Não basta, por exemplo, a visibilidade pura e simples de um

indivíduo na mídia – a excessiva exposição de sua imagem na tevê ou nos

jornais. É preciso que se apele para todo um arsenal de identificações entre

a imagem e a audiência, a fim de se obter efeitos, não mais apenas

projetivos, como no caso do entretenimento clássico, e sim de

reconhecimento narcísico de si mesmo no ‘espelho’ tecnocultural."

(SODRÉ, 2002, p.34).

1 Chacrinha – José Aberlardo Barbosa de Medeiros (Surubim, 30 de Setembro de 1917 – Rio de

Janeiro, 30 de Junho de 1988), apresentador de programas de auditório de grande sucesso, nas décadas de 50 a 80.

2. Programa Esquenta!

O programa transmitido aos domingos é conduzido pela apresentadora Regina

Casé. Tem como principais integrantes no palco, os sambistas Arlindo Cruz,

Mumuzinho, Péricles, Xande de Pilares, e Leandro Sapucahy, e também o ator

Douglas Silva, que trabalhou em filmes sucessos de bilheteria como Cidade de Deus e

Cidade dos Homens. Essa característica, a participação de artistas de diferentes meios

no staff do programa, é uma das inovações da marca Esquenta!.

Apesar das atrações serem em sua maioria artistas populares e seu público-

alvo a população mais carente, de baixa renda, o multiculturalismo é predominante.

Durante a apresentação, são abordados assuntos dos mais diversificados, como

culinária, música, cultura, política, filosofia, moda, entre outros. Os quadros

contagiam o telespectador por utilizar de humor e alegria.

O programa retrata manifestações da cultura das comunidades, ao mesmo

tempo que reúne no palco, para participarem durante todo o programa, artistas da

teledramaturgia, o carro-chefe da TV Globo. A estética do programa procura

representar uma verdadeira festa, com pessoas de diferentes lugares reunidas, e

muitos figurantes das comunidades cariocas. Conta também com um grupo de dança

da comunidade do Cantagalo (RJ) e com alguns garis da cidade do Rio de Janeiro.

3. A periferia

De acordo com pesquisa pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE), aproximadamente 6% da população do país, vive em favelas, ou aglomerados

subnormais, como são denominadas tecnicamente pelo IBGE. Apenas na região

Sudeste são mais de 3 milhões de domicílios.

Tabela – As Dez maiores favelas do Brasil (Fonte: IBGE/2011

Nome Estado População

1º Rocinha RJ 69.161

2º Sol Nascente DF 56.483

3º Rio das Pedras RJ 54.793

4º Coroadinho MA 53.945

5º Baixadas da Estrada Nova Jurunas PA 53.129

6º Casa Amarela PE 53.030

7º Pirambú CE 42.878

8º Paraisópolis SP 42.826

9º Cidade de Deus AM 42.476

10º Heliópolis SP 41.118

Os moradores das comunidades brasileiras são em sua maioria alegres, o que é

comprovado por uma pesquisa realizada pelo instituto Data Favela2, chamado

“radiografia da nova favela brasileira”. Nesta pesquisa foram ouvidas cerca de 2 mil

pessoas de 63 comunidades, em 35 cidades do Brasil. Segundo a mesma, 94% dos que

moram em favelas se dizem felizes.

Para um dos criadores do programa Esquenta!, Hermano Vianna3, a expressão

periferia adquiriu importância com o passar dos anos:

"A expressão "periferia" nem tinha essa força toda que tem

hoje. Ao lado da Regina, a ideia foi "jogar luz" sobre certos

movimentos, locais, personagens, comportamentos e ritmos

musicais que foram tendo destaque ao longo dos anos. [...]

Considero o Esquenta! como o reflexo de tudo que a gente produziu

antes."

4. Regina Casé: Ícone das comunidades

Os ícones têm alto poder de sugestão. Qualquer qualidade tem,

por isso, condições de ser um substituto de qualquer coisa que a ele

assemelhe. Daí o universo das qualidades, as semelhanças proliferem. Daí

os ícones sejam capazes de produzir em nossas mentes as mais

imponderáveis relações de comparação. (SANTAELLA, 1983, p.13)

A música de abertura de seu programa, composta pelo cantor Arlindo Cruz,

traduz em sua letra a forma como Regina Casé representa espontaneamente cidadãos

humildes.

“Alô Regina!

É tão gente fina que sabe chegar

Em qualquer esquina

2 Data Favela. Instituto de pesquisa criado pelo mesmo dono do instituto Data Popular, referência em

pesquisas das classes C, D e E. 3 Hermano Vianna, (João Pessoa, 1960), antropólogo, pesquisador cultural, idealizador de programas

de tevê, consultor de novelas e colunista do jornal do Rio de Janeiro “O Globo”.

Lá na cobertura, na laje ela está

É quem domina.

Porque tem a sina de ser popular... alô

Alô rainha! [...]”

Filha de Geraldo Casé, famoso diretor de programas de TV, Regina cresceu no

meio da produção cultural. Atuou em grupos de teatro e em filmes do Cinema Novo.

Sua primeira experiência na televisão foi o programa Guerra dos Sexos, em 1983,

seguida por outros programas humorísticos, como o TV Pirata. Em 1991, estreou o

Programa Legal, dirigido por Guel Arraes. O programa, idealizado pela própria

Regina em parceria com Hermano Vianna, misturava os gêneros documentário, ficção

e humor.

Em 1995, começou a apresentar o programa Brasil Legal, em que viajava o

país mostrando a diversidade cultural brasileira. Em geral, os lugares visitados eram

desconhecidos pelo grande público, inusitados, característica que dava a cara do

programa. Depois de três anos no ar, o Brasil Legal deu lugar ao programa Muvuca,

também produzido pelo núcleo Guel Arraes.

O Muvuca era uma mistura de entrevistas e grandes reportagens, que

mesclavam histórias de famosos e anônimos, colocando-os em uma mesma narrativa.

No Canal Futura, Regina passou a dedicar-se a programas educativos. Em 2002, sua

trajetória na televisão ganhou uma nova dimensão, quando estreou como roteirista no

seriado Cidade dos Homens.

Em 2006, Regina voltou à TV Globo com o Central da Periferia. Programa

em que percorria as periferias do país revelando curiosidades, moda, hábitos, gírias e

músicas que construíam a identidade de cada um desses lugares e de seus moradores.

Mais tarde o programa transformou-se no quadro Minha Periferia, apresentado no

Fantástico. O quadro se aprimorou, e Regina Casé chegou até a transmitir alguns

programas com um pouco das periferias africanas.

Em uma entrevista recente, a apresentadora declarou que seu trabalho tem

como objetivo principal “aproximar o Brasil que come do Brasil que têm fome”.

5. "Compromisso Social" e Indústria Cultural

O programa Esquenta! gravado em 17 de maio de 2013, reuniu no palco,

Paulo Skaf, presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), e

José Junior, da ONG AfroReggae. O encontro entre Skaf e José Junior foi noticiado

em destaque pelo jornal da Fiesp, que registrou a parceria da instituição com a ONG

como importante, para viabilizar a instalação do primeiro escritório de representação

fora do Rio de Janeiro.

O AfroReggae completou vinte anos em 2013. O objetivo da instituição é

transformar a vida de moradores de comunidades carentes com a promoção de

oficinas de arte e cultura, assim como cursos profissionalizantes.

Reportando-nos comparativamente ao estudo de Adorno sobre os programas

musicais e suas análises do jazz, podemos questionar que a arte que identifica a

cultura negra das periferias não exprime a libertação. Comentam, a respeito do

pensamento de Adorno, Armand e Michèle Mattelart em História das teorias da

comunicação:

Segundo ele, sua função social primordial é reduzir a distância entre o

indivíduo alienado e a cultura afirmativa, isto é, a exemplo da arte

afirmativa, uma cultura que favorece não o que deveria afirmar – a saber, a

resistência - mas, pelo contrário, a integração ao status quo.

(MATTELART, 1999, p. 77)

O jornal da Fiesp destaca o comentário da apresentadora Regina Casé, ao

apresentar nomes como João Jorge, do Olodum, o juiz Odilon de Oliveira, Marlova

Stawinski, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e

Cultura), além de José Junior e Paulo Skaf: “Hoje nós temos aqui convidados de todos

os lugares, de todas as classes, e que se sentem em casa com a gente”.

O site do programa informa que o tema da conversa foi “A criatividade do

brasileiro em transformar a dor em arte e alegria, e o Brasil em uma terra mais justa”,

segundo a matéria do jornal da Fiesp. Na ocasião, o AfroReggae anunciou seus

primeiros projetos com a Fiesp. O “Empregabilidade”, integração de egressos do

sistema penal e presos no regime semiaberto, ao mercado de trabalho; e o “Cultura de

Ponta” – que consiste em uma seção no website Catraca Livre produzida e redigida

por jovens da periferia.

Armand e Michèle Mattelart destacam o pensamento de Marcuse, e seu O

homem unidimensional.

A racionalidade técnica, a razão instrumental reduziram o discurso e o

pensamento a uma dimensão única, que promove o acordo entre a coisa e

sua função, entre a realidade e a aparência, a essência e a existência.

Essa “sociedade unidimensional” anulou o espaço do pensamento crítico.

(MATTELART, 1999, p.81)

Outros dois casos foram marcantes na história do programa Esquenta!. O

primeiro deles foi a participação do secretário de Segurança do Estado do Rio de

Janeiro, José Mariano Beltrame, em janeiro de 2013, para falar do "sucesso" das

Unidades de Polícia Pacificadora.

O segundo caso foi o programa produzido em homenagem ao dançarino do

Esquenta!, Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, morto em abril de 2014 por um

policial da UPP do Pavão Pavãozinho, favela na região de Copacabana. O programa

pretende atuar em função da manutenção do status quo, ou para impulsionar a

transfomação?

No site Diário do Centro do Mundo, o jornalista capixaba Marcos Sacramento

critica de maneira aberta o programa Esquenta!, considerando-o extremamente

conservador. Segundo ele, é o maior percentual de negros na televisão brasileira,

porém reforçando o estereótipo dos negros brasileiros como indivíduos suburbanos,

subempregados, mas ainda assim felizes. Diz o jornalista: “Sou negro e não sei

sambar, não pinto meus cabelos de louro, não uso cordões, não andam gingando nem

falo em dialeto. Não sou exceção, felizmente”.

Já nas redes sociais a aprovação do programa é evidente; só no Facebook,

mais de 275.000 (duzentas e setenta e cinco mil) pessoas curtiram a página do

programa. A associação da pessoa negra com o morador das comunidades dos morros

cariocas, promovida pelo Esquenta!, influência positivamente na auto valorização dos

indivíduos que vivem esta realidade, ou é mesmo um estereótipo que impede que a

sociedade como um todo, consiga perceber o cidadão negro em outras posições

sociais, em outro tipo de realidade?

6. Televisão e identidade

(MCLUHAN, 1969, p. 62)

"O choque de guerra criado pelo barulho violento foi adaptado à

Odontologia mediante o dispositivo conhecido com audiac. O paciente

coloca o aparelho de escuta e vai aumentando o volume do ruído até o

ponto em que não mais sente a dor do motor. A seleção de um único

sentido para estimulação intensa, ou, em tecnologia, de um único

sentido "amputado", prolongado ou isolado, é a razão parcial do efeito

de entorpecimento que a tecnologia como tal exerce sobre seus

produtores e consumidores. Pois o sistema nervoso central arregimenta

uma reação de embotamento geral ao desafio de uma irritação

localizada"

O ser humano estabelece, através do contato cotidiano com as mais diversas

tecnologias, o "embotamento", ou a "amputação", de algumas de suas funções vitais.

A maneira pela qual a população reage à produção televisiva é sintomática do poder

que a telinha exerce, sobre a construção simbólica, e o reconhecimento de mundo dos

espectadores. Este trabalho procurou levar isso em consideração, abordando um tema

que tem importância política em nosso país, uma vez que a televisão corresponde a

forte referência para o imaginário social dos brasileiros.

O entorpecimento causado pela televisão é um velho conhecido4. A função

cumprida pelo maquinário audiovisual doméstico foi, paradoxalmente, a de "educar"

o povo brasileiro. Qualquer meio de comunicação tem este poder, e talvez devesse ter

este sério compromisso. Porém, a concentração das concessões dos meios de

comunicação no Brasil, nas mãos de algumas poucas famílias, é uma realidade

preocupante. Se a televisão pode ser educativa, o monopólio dos meios de difusão em

massa, restrito a um grupo ínfimo, torna-os verdadeiros suseranos da informação. O

poder decorrente disso é quase imensurável.

Esse é o motivo do implícito, quase inconsciente, "mal-estar" na realidade

sociocultural do país. A desigualdade social mostra a sua cara na TV, "a gente se vê

por aqui". A mímese da vida perde o tom de fantasia e entretenimento para passar a

orientar cidadãos através da "formação de opinião".

Logra-se muito sucesso nesta empreitada, e o caso da influência que a Rede

Globo exerce sobre a população brasileira é marcante. As duras críticas à emissora, de

um lado, e também o seu grande público de admiradores fiéis, do outro, demonstram a

força política deste veículo, que é o maior conglomerado de comunicação da América

Latina.

Podemos afirmar que a questão da representação dos grupos marginalizados

nos meios de comunicação acontece de maneira fantasiosa, numa reprodução

mecânica da marginalização real. É mais um reflexo das desigualdades sociais do

país, que de forma naturalizada apresenta o personagem negro como um elemento

exótico, descolado da composição étnica do povo brasileiro.

A reprodução de estereótipos não necessariamente são atitudes injuriosas ou

racistas, mas têm consequências da mesma forma. Durante entrevista ao apresentador

4 "A televisão me deixou burro muito burro demais/ Agora todas as coisas que eu penso me parecem

iguais". Trecho da música "Televisão" do grupo de rock Titãs, lançada em 1985 no segundo álbum da banda, que leva o nome da música. A canção se tornou um clássico do rock nacional.

Jô Soares, realizada em outubro de 2014, Miguel Falabella mostrou-se emocionado.

Ele acabou chorando ao falar do privilégio em poder contracenar com Marília

Pêra, tomando emprestado o lenço do apresentador. Isso foi logo depois de ter se

mostrado triste com a repercussão do seriado Sexo e as Negas.

A estética televisiva hegemônica é eurocêntrica e exclui uma verossímil

presença imagética do personagem negro e índio. O gênero da comédia é revelador.

Ainda hoje, Falabella é lembrado por seu personagem Caco Antibes, cujo jargão "Eu

tenho horror a pobre" ilustra bem o teor do conteúdo adequado à mídia tradicional.

Caco Antibes foi um retrato muito divertido da década de 90. A qualidade da

sua mensagem é proporcional à explicitação das contradições sociais. Cláudia

Gimenez interpretou no seriado Sai de Baixo, que teve grande sucesso durante seus

vários anos de exibição, a personagem Edileuza, que com Ribamar (Tom Cavalcante),

e Caco Antibes, tornavam risíveis as interações entre as classes sociais.

Em 2014 o seriado Sexo e as Negas estreou em meio a um boicote. Não

pretendia ser determinado pela temática racial, mas de gênero. O que aconteceu foi

um questionamento da reprodução de estereótipos, e o tema do preconceito tornou-se

protagonista. No website do programa há depoimentos dos atores da série. Quase

todos falam da questão racial.

A atriz Corina Sabbas (que interpreta Tilde) defende o programa:

"São quatro mulheres objetivas, que vão atrás de seus ideais. Somos negras,

neguinhas, pretinhas, pretas. Muita gente que tem dificuldade em chamar o outro de

negro, acha que isso é pejorativo. Queremos mostrar que ser negra é lindo, ter cabelo

crespo é lindo. Não só as negras, todas as mulheres."

(MCLUHAN, 1969, p. 75)

A internet e a massificação do seu acesso são agentes da transformação.

Podemos afirmar que esta reverberação imediata (a desaprovação ao programa) só foi

"O híbrido, ou encontro de dois meios, constitui um

momento de verdade e revelação, do qual nasce a forma

nova. Isto porque o paralelo de dois meios nos mantém nas

fronteiras entre formas que nos despertam da narcose

narcísica. O momento de encontro dos meios é um

momento de liberdade e libertação do entorpecimento e do

transe que eles impõem aos nossos sentidos."

possível por um motivo: o "híbrido". A internet está destituindo a televisão da

comunicação vertical (top-down). As formas de comunicação tendem a se

horizontalizar cada vez mais com a popularização do acesso à rede.

O papel que a televisão exerceu na cultura brasileira foi, paradoxalmente, a de

"educar" a massa de telespectadores. Se a educação de qualidade sempre foi um

privilégio para poucos no Brasil, a telinha todavia, popularizou-se, e "formou" a sua

massa de espectadores. O direito à comunicação é um tema que tem urgência em ser

discutido. Porque os meios de comunicação têm peso fundamental na formação crítica

e na validação de valores da sociedade.

Cento e vinte sete anos se passaram desde a abolição da escravidão no Brasil.

Passado este tempo, persiste a marginalização da população negra em uma escala

absurda, e naturalizada. A tela da TV ao invés de dar espaço à transformação, de ser

um "espelho tecnocultural" progressista, acaba reproduzindo a exclusão e as

desigualdades reais do país. Este trabalho procurou lançar um olhar, partindo do caso

dos programas Esquenta! e Sexo e as Negas, para representação dos grupos étnicos

que compõem a sociedade brasileira.

A desproporção entre protagonistas (seja no telejornalismo, dramaturgia ou

direção/produção) negros, índios e brancos, nos meios de comunicação no Brasil, é

um agente que contribui decisivamente para a manutenção do status quo. Pudemos

ver através das considerações acerca dos programas da TV Globo, Esquenta! e Sexo e

as Negas, que o negro na TV é tão incomum, que a maneira como é representado

consegue despertar as pessoas do entorpecimento causado pela telinha.

Procuramos mostrar que a representação dos grupos que compõem a

sociedade brasileira deve ultrapassar os limites perpetrados pelos donos do poder e da

informação. Para isso o a presença dos grupos marginalizados precisa deixar de ser

um retrato estético exótico para firmar seus pés no chão da realidade. Podemos chegar

a conclusão que, mesmo que programas como Esquenta! e Sexo e as Negas

apresentem maior protagonismo do negro, isso não é o bastante. Há que se rever os

meios de comunicação em sua estrutura para se alcançar o necessário.

7. Entrevista realizada em setembro de 2014, por Daniele Pires

Hilton Cobra fala de maneira incisiva sobre a ausência do negro na TV

O ator e diretor de teatro, presidente da Fundação Cultural Palmares, faz suas

considerações acerca da presença do negro na TV. E também sobre a questão dos

meios de comunicações serem concessões públicas.

Você acha que a televisão está cumprindo seu papel, na valorização da cultura negra?

Uma das coisas que pode fazer com que a televisão, realmente, abra de forma

plena os espaços, é que a população brasileira entenda o que é uma concessão pública.

É fazer com que o Congresso vote o projeto de lei da [deputada] Jandira Feghali.

Você sabe que a televisão aberta é obrigada a destinar uma parte da sua grade, um

percentual da sua grade, para a programação regional. Essa lei5 visa aumentar essa

grade, aumentar esse percentual. Essa lei não passa no Congresso. E não passa porque

a Rede Globo não deixa.

Outra coisa, tem que ser investido nessa televisão brasileira aberta, porque

aquilo é uma concessão pública, eles não são donos daquilo, eles têm direitos mas têm

deveres também, e acontece que não cumprem. Não tem presença de negro na Rede

Globo, esse negócio de você 'botar' uma novela com setenta atores, dois atores negros,

isso não é presença.

Quando o movimento negro cobra eles fazem uma novela com um núcleo

negro, depois que o movimento relaxa eles tiram. Isso tem sido tônica há vinte, trinta

anos. A televisão brasileira não nos quer, de fato, dentro dela. A televisão brasileira

aberta, sobretudo, não quer falar sobre a vida do povo negro. Não quer. E quando fala

é de forma pejorativa. Raríssimas são as exceções, mas é raríssimo.

O exemplo que eu dou sempre é, a Thaís Araújo como protagonista, ajoelhada,

no dia 20 de novembro, o dia que se comemora Zumbi dos Palmares, o Dia da

Consciência Negra, a Rede Globo coloca ela ajoelhada, para outra atriz branca dar

uma bofetada, aquilo é um absurdo, e a Globo sabe exatamente o que está fazendo.

Em um minuto, menos de um minuto, ela destrói todo um movimento. Isso tem sido a

tônica eterna, dentro da Rede Globo, dentro da televisão brasileira.

5 PL 256/91: "Regulamenta o disposto no inciso III do artigo 221 da Constituição Federal,

referente à regionalização da programação artística, cultural e jornalística das emissoras de rádio e TV e dá outras providências." Extraído do portal da Câmara dos Deputados. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=15222

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KEHL, Maria Rita. Eu vi um Brasil na TV. In: SIMÕES I.F.; COSTA, A.H. Um

país no ar: história da TV brasileira em três canais. Editora Brasiliense, São Paulo,

1986.

KEHL, Maria Rita. Televisão e violência do imaginário. In: BUCCI, Eugênio.

(Org.). A TV aos 50: criticando a TV brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Ed.

Fundação Perseu Abramo, 2000.

MATTELART, Armand e Michéle; História das teorias da comunicação. Edições

Loyola. 1999.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como cxtensões do homem

(Understanding Media). São Paulo, Cultrix.

MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado Favela: A maior

pesquisa já feita sobre a favela brasileira. Editora Gente Liv e Edit Ltd, 2014.

SANTAELLA, Lúcia; NÖTH, Winfried; MENEZES, Philadelpho. O que é

semiótica. Editora brasiliense. 1983.

SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco: introdução a cultura de massa

brasileira. Rio de Janeiro: Vozes, 1975.

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Acesso: 26/03/2015, às 19h00min.

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Acesso: 26/10/2014, às 22h35min.

"Samba da Regina", de Arlindo Cruz. Música de abertura do programa

“Esquenta!” da Rede Globo