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O negro na TV: análise crítica dos programas Esquenta! e
Sexo e as Negas, novos produtos da Rede Globo de televisão
RESUMO: Em qualquer sociedade democrática a constante atenção ao conceito e a
problemática da representação faz-se fundamental. O poder adquirido pela televisão
no Brasil determina a influência que ela exerce sobre o imaginário político e cultural
da população do país. Porém como se dá a representação dos vários grupos que
compõem a sociedade brasileira? Nesse sentido, procurando contribuir com este
debate, propomos a análise de dois produtos televisivos recentes da Rede Globo: o
programa de auditório Esquenta!, comandado pela apresentadora Regina Casé e o
seriado Sexo e as Negas, idealizado por Miguel Falabella. Em ambos encontramos a
temática da inclusão, o que já é um sinal de que o protagonismo negro é estranho à
televisão.
PALAVRAS-CHAVE: Conceitos de Comunicação; Rede Globo; Brasil; inclusão;
representatividade; televisão.
CONTEXTO: Esse trabalho foi produzido em função da disciplina Novas Teorias da
Comunicação, ministrada pela docente Fabiana Grieco no segundo semestre de 2014.
A disciplina integra o currículo da Pós-graduação em Produção e Gestão Jornalística
do Senac São Paulo. Assinam o texto: Daniele Pires, Janete Figueira, Juliana Guerra,
Nayara Souza, e Yuri Silva.
1 – Televisão e seu poder
1.1 – Rede Globo de Televisão
A primeira emissora brasileira foi a TV Tupi Difusora, com início em 18 de
setembro de 1950. O fundador, Assis Chateaubriand, instalou 200 aparelhos em
diversos pontos da cidade de São Paulo, exibindo um show chamado TV na Taba, a
maioria das pessoas nem sabia do que se tratava.
A televisão brasileira nasceu num momento em que o maior veículo de
comunicação no país era o rádio, diferente da televisão norte-americana, que surgiu
mais influenciada pelo cinema. Devido a esta forte influência do rádio, a televisão
brasileira se utilizou da mesma programação e estilos.
Em 1965, foi criada a Rede Globo, pouco mais de um ano depois do Golpe
Militar. Seu crescimento foi vertiginoso durante o período ditatorial. Hoje é a maior
rede de televisão do Brasil, e uma das maiores do mundo. A história do conglomerado
midiático que hoje é chamado Grupo Globo começara décadas antes.
Em 1931, contando vinte e seis anos de idade, Roberto Marinho tornava-se
diretor do jornal O Globo, fundado em 1925 por seu pai, Irineu Marinho. Sua primeira
concessão de televisão foi dada em 1957 pelo Presidente Juscelino Kubitschek, cujo
governo ele apoiava. Sua segunda concessão foi dada pelo presidente João Goulart,
cujo governo ajudou a depor.
Inicialmente, como menciona Kehl (1986), a inauguração da TV Globo não
representou significativa ameaça às emissoras que já existiam. Ocorre, porém, que o
governo militar forneceu a estrutura para o desenvolvimento da televisão no Brasil e a
TV Globo se preparou para assumir essa parceria com o regime, tornando-se sua
maior aliada e beneficiária.
"O conglomerado Roberto Marinho configura-se, evidentemente,
como ‘grande empresa’ nesse período. E de maneira análoga ao que se
processa entre os setores da classe dominante, a Rede Globo assume
situação de monopólio, enquanto emissoras mais ‘artesanais’ se esfalecem
(...) Delineia-se a estratégia governamental, a qual, sob o pano de fundo de
uma política econômica desenvolvimentista, implanta sofisticados
aparelhos ideológicos e repressivos." (ROMEIRO apud KEHL, 1986, p.
178).
Kehl (1986) afirma que naquela época, o governo investia e se esforçava para
a formação e fortalecimento de poucas redes de televisão. Isso ajudou a Rede Globo a
se transformar na maior emissora da TV brasileira.
"A cor, sem dúvida, contribuiu para a glamurização da imagem de
um país que, na década de 60, era representado na música, no cinema e na
produção cultural em geral como miserável e subordinado. A estética
brilhante e clean da publicidade e do ‘padrão-Globo-de-qualidade’ foi se
tornando hegemônica e inviabilizou em poucos anos a estética do Cinema
Novo e do CPC." (KEHL, 1986, p. 202).
Nessa primeira fase o público do novo veículo de comunicação era reduzido,
porque o preço dos aparelhos era alto e existia a necessidade de grandes investimentos
para instalação das redes. Os aparelhos custavam pouco menos do que o valor de um
carro. Ter uma televisão era sinônimo de status.
Por um tempo significativo a televisão foi artigo de luxo, destinado à elite
brasileira. Os televisores eram trazidos do exterior, e por isso o preço do aparelho era
muito alto. Só quando os televisores começaram a ser fabricados no Brasil, em 1951,
é que os preços começaram gradativamente a baixar, e um público maior pôde ter
acesso a esta tecnologia.
Em 1967 o marechal Costa e Silva assumiu a presidência, iniciando-se o
período do "milagre econômico", encabeçado pela política econômica defendida por
Delfim Neto, então ministro da Fazenda. O país chegava a médias de crescimento do
PIB que ultrapassavam 10% ao ano. Mas a desigualdade social aumentava, e o mesmo
período também é lembrado como os "anos de chumbo".
A ditadura deu prioridade ao desenvolvimento de um moderno sistema de
telecomunicação, e impulsionou a compra de televisores a crédito. Algumas agências
publicitárias estrangeiras instaladas no Brasil já traziam a experiência do poder da
televisão para a divulgação publicitária e adotaram os mesmos procedimentos de
outros países.
Durante vinte anos os programas de TV tinham o nome do seu anunciante,
como por exemplo, o conhecido Repórter Esso. Dessa forma, a televisão se
popularizou muito rapidamente e tornou-se o principal canal de veiculação de
propagandas.
1.2 - Programas de auditório
Os programas de auditório têm uma forte influência em nossa televisão, sendo
hoje constantes na grade de programação de muitos canais. A interação do público
presente nos estúdios de gravação causa a identificação do telespectador com o
espetáculo.
A aproximação do apresentador do programa com o telespectador é realizada
através do auditório. A presença desse público permite uma comunicação direta entre
emissores e receptores, do programa com os espectadores. O auditório de um
programa funciona como um sistema de representação do convívio em sociedade.
Atualmente na Rede Globo são cerca de dez programas de auditório, entre
fixos e temporários, como o Caldeirão do Huck, Amor & Sexo, Altas Horas,
Domingão do Faustão, TV Xuxa e Esquenta!. Este último é um dos objetos de nossa
análise.
Uma das principais referências de Regina Casé para a elaboração do
Esquenta!, foram os programas de auditório do apresentador Chacrinha1.
“O Chacrinha nos oferece um grotesco com função social. Suas
incursões pelo irreal, sua construção de um pequeno mundo exagerado em
gestos e trejeito, sua provocação do risível pela irrisão, devolvem ao
espectador brasileiro a figura, há muito perdida, do palhaço” (SODRÉ,
1975, p80).
O formato de um programa de auditório estabelece a identificação do público
em todos os detalhes da representação, estéticos, de conteúdo, cenário, música e
linguagem, que caracterizam esse grupo inserido no contexto do programa.
"Não basta, por exemplo, a visibilidade pura e simples de um
indivíduo na mídia – a excessiva exposição de sua imagem na tevê ou nos
jornais. É preciso que se apele para todo um arsenal de identificações entre
a imagem e a audiência, a fim de se obter efeitos, não mais apenas
projetivos, como no caso do entretenimento clássico, e sim de
reconhecimento narcísico de si mesmo no ‘espelho’ tecnocultural."
(SODRÉ, 2002, p.34).
1 Chacrinha – José Aberlardo Barbosa de Medeiros (Surubim, 30 de Setembro de 1917 – Rio de
Janeiro, 30 de Junho de 1988), apresentador de programas de auditório de grande sucesso, nas décadas de 50 a 80.
2. Programa Esquenta!
O programa transmitido aos domingos é conduzido pela apresentadora Regina
Casé. Tem como principais integrantes no palco, os sambistas Arlindo Cruz,
Mumuzinho, Péricles, Xande de Pilares, e Leandro Sapucahy, e também o ator
Douglas Silva, que trabalhou em filmes sucessos de bilheteria como Cidade de Deus e
Cidade dos Homens. Essa característica, a participação de artistas de diferentes meios
no staff do programa, é uma das inovações da marca Esquenta!.
Apesar das atrações serem em sua maioria artistas populares e seu público-
alvo a população mais carente, de baixa renda, o multiculturalismo é predominante.
Durante a apresentação, são abordados assuntos dos mais diversificados, como
culinária, música, cultura, política, filosofia, moda, entre outros. Os quadros
contagiam o telespectador por utilizar de humor e alegria.
O programa retrata manifestações da cultura das comunidades, ao mesmo
tempo que reúne no palco, para participarem durante todo o programa, artistas da
teledramaturgia, o carro-chefe da TV Globo. A estética do programa procura
representar uma verdadeira festa, com pessoas de diferentes lugares reunidas, e
muitos figurantes das comunidades cariocas. Conta também com um grupo de dança
da comunidade do Cantagalo (RJ) e com alguns garis da cidade do Rio de Janeiro.
3. A periferia
De acordo com pesquisa pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), aproximadamente 6% da população do país, vive em favelas, ou aglomerados
subnormais, como são denominadas tecnicamente pelo IBGE. Apenas na região
Sudeste são mais de 3 milhões de domicílios.
Tabela – As Dez maiores favelas do Brasil (Fonte: IBGE/2011
Nome Estado População
1º Rocinha RJ 69.161
2º Sol Nascente DF 56.483
3º Rio das Pedras RJ 54.793
4º Coroadinho MA 53.945
5º Baixadas da Estrada Nova Jurunas PA 53.129
6º Casa Amarela PE 53.030
7º Pirambú CE 42.878
8º Paraisópolis SP 42.826
9º Cidade de Deus AM 42.476
10º Heliópolis SP 41.118
Os moradores das comunidades brasileiras são em sua maioria alegres, o que é
comprovado por uma pesquisa realizada pelo instituto Data Favela2, chamado
“radiografia da nova favela brasileira”. Nesta pesquisa foram ouvidas cerca de 2 mil
pessoas de 63 comunidades, em 35 cidades do Brasil. Segundo a mesma, 94% dos que
moram em favelas se dizem felizes.
Para um dos criadores do programa Esquenta!, Hermano Vianna3, a expressão
periferia adquiriu importância com o passar dos anos:
"A expressão "periferia" nem tinha essa força toda que tem
hoje. Ao lado da Regina, a ideia foi "jogar luz" sobre certos
movimentos, locais, personagens, comportamentos e ritmos
musicais que foram tendo destaque ao longo dos anos. [...]
Considero o Esquenta! como o reflexo de tudo que a gente produziu
antes."
4. Regina Casé: Ícone das comunidades
Os ícones têm alto poder de sugestão. Qualquer qualidade tem,
por isso, condições de ser um substituto de qualquer coisa que a ele
assemelhe. Daí o universo das qualidades, as semelhanças proliferem. Daí
os ícones sejam capazes de produzir em nossas mentes as mais
imponderáveis relações de comparação. (SANTAELLA, 1983, p.13)
A música de abertura de seu programa, composta pelo cantor Arlindo Cruz,
traduz em sua letra a forma como Regina Casé representa espontaneamente cidadãos
humildes.
“Alô Regina!
É tão gente fina que sabe chegar
Em qualquer esquina
2 Data Favela. Instituto de pesquisa criado pelo mesmo dono do instituto Data Popular, referência em
pesquisas das classes C, D e E. 3 Hermano Vianna, (João Pessoa, 1960), antropólogo, pesquisador cultural, idealizador de programas
de tevê, consultor de novelas e colunista do jornal do Rio de Janeiro “O Globo”.
Lá na cobertura, na laje ela está
É quem domina.
Porque tem a sina de ser popular... alô
Alô rainha! [...]”
Filha de Geraldo Casé, famoso diretor de programas de TV, Regina cresceu no
meio da produção cultural. Atuou em grupos de teatro e em filmes do Cinema Novo.
Sua primeira experiência na televisão foi o programa Guerra dos Sexos, em 1983,
seguida por outros programas humorísticos, como o TV Pirata. Em 1991, estreou o
Programa Legal, dirigido por Guel Arraes. O programa, idealizado pela própria
Regina em parceria com Hermano Vianna, misturava os gêneros documentário, ficção
e humor.
Em 1995, começou a apresentar o programa Brasil Legal, em que viajava o
país mostrando a diversidade cultural brasileira. Em geral, os lugares visitados eram
desconhecidos pelo grande público, inusitados, característica que dava a cara do
programa. Depois de três anos no ar, o Brasil Legal deu lugar ao programa Muvuca,
também produzido pelo núcleo Guel Arraes.
O Muvuca era uma mistura de entrevistas e grandes reportagens, que
mesclavam histórias de famosos e anônimos, colocando-os em uma mesma narrativa.
No Canal Futura, Regina passou a dedicar-se a programas educativos. Em 2002, sua
trajetória na televisão ganhou uma nova dimensão, quando estreou como roteirista no
seriado Cidade dos Homens.
Em 2006, Regina voltou à TV Globo com o Central da Periferia. Programa
em que percorria as periferias do país revelando curiosidades, moda, hábitos, gírias e
músicas que construíam a identidade de cada um desses lugares e de seus moradores.
Mais tarde o programa transformou-se no quadro Minha Periferia, apresentado no
Fantástico. O quadro se aprimorou, e Regina Casé chegou até a transmitir alguns
programas com um pouco das periferias africanas.
Em uma entrevista recente, a apresentadora declarou que seu trabalho tem
como objetivo principal “aproximar o Brasil que come do Brasil que têm fome”.
5. "Compromisso Social" e Indústria Cultural
O programa Esquenta! gravado em 17 de maio de 2013, reuniu no palco,
Paulo Skaf, presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), e
José Junior, da ONG AfroReggae. O encontro entre Skaf e José Junior foi noticiado
em destaque pelo jornal da Fiesp, que registrou a parceria da instituição com a ONG
como importante, para viabilizar a instalação do primeiro escritório de representação
fora do Rio de Janeiro.
O AfroReggae completou vinte anos em 2013. O objetivo da instituição é
transformar a vida de moradores de comunidades carentes com a promoção de
oficinas de arte e cultura, assim como cursos profissionalizantes.
Reportando-nos comparativamente ao estudo de Adorno sobre os programas
musicais e suas análises do jazz, podemos questionar que a arte que identifica a
cultura negra das periferias não exprime a libertação. Comentam, a respeito do
pensamento de Adorno, Armand e Michèle Mattelart em História das teorias da
comunicação:
Segundo ele, sua função social primordial é reduzir a distância entre o
indivíduo alienado e a cultura afirmativa, isto é, a exemplo da arte
afirmativa, uma cultura que favorece não o que deveria afirmar – a saber, a
resistência - mas, pelo contrário, a integração ao status quo.
(MATTELART, 1999, p. 77)
O jornal da Fiesp destaca o comentário da apresentadora Regina Casé, ao
apresentar nomes como João Jorge, do Olodum, o juiz Odilon de Oliveira, Marlova
Stawinski, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e
Cultura), além de José Junior e Paulo Skaf: “Hoje nós temos aqui convidados de todos
os lugares, de todas as classes, e que se sentem em casa com a gente”.
O site do programa informa que o tema da conversa foi “A criatividade do
brasileiro em transformar a dor em arte e alegria, e o Brasil em uma terra mais justa”,
segundo a matéria do jornal da Fiesp. Na ocasião, o AfroReggae anunciou seus
primeiros projetos com a Fiesp. O “Empregabilidade”, integração de egressos do
sistema penal e presos no regime semiaberto, ao mercado de trabalho; e o “Cultura de
Ponta” – que consiste em uma seção no website Catraca Livre produzida e redigida
por jovens da periferia.
Armand e Michèle Mattelart destacam o pensamento de Marcuse, e seu O
homem unidimensional.
A racionalidade técnica, a razão instrumental reduziram o discurso e o
pensamento a uma dimensão única, que promove o acordo entre a coisa e
sua função, entre a realidade e a aparência, a essência e a existência.
Essa “sociedade unidimensional” anulou o espaço do pensamento crítico.
(MATTELART, 1999, p.81)
Outros dois casos foram marcantes na história do programa Esquenta!. O
primeiro deles foi a participação do secretário de Segurança do Estado do Rio de
Janeiro, José Mariano Beltrame, em janeiro de 2013, para falar do "sucesso" das
Unidades de Polícia Pacificadora.
O segundo caso foi o programa produzido em homenagem ao dançarino do
Esquenta!, Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, morto em abril de 2014 por um
policial da UPP do Pavão Pavãozinho, favela na região de Copacabana. O programa
pretende atuar em função da manutenção do status quo, ou para impulsionar a
transfomação?
No site Diário do Centro do Mundo, o jornalista capixaba Marcos Sacramento
critica de maneira aberta o programa Esquenta!, considerando-o extremamente
conservador. Segundo ele, é o maior percentual de negros na televisão brasileira,
porém reforçando o estereótipo dos negros brasileiros como indivíduos suburbanos,
subempregados, mas ainda assim felizes. Diz o jornalista: “Sou negro e não sei
sambar, não pinto meus cabelos de louro, não uso cordões, não andam gingando nem
falo em dialeto. Não sou exceção, felizmente”.
Já nas redes sociais a aprovação do programa é evidente; só no Facebook,
mais de 275.000 (duzentas e setenta e cinco mil) pessoas curtiram a página do
programa. A associação da pessoa negra com o morador das comunidades dos morros
cariocas, promovida pelo Esquenta!, influência positivamente na auto valorização dos
indivíduos que vivem esta realidade, ou é mesmo um estereótipo que impede que a
sociedade como um todo, consiga perceber o cidadão negro em outras posições
sociais, em outro tipo de realidade?
6. Televisão e identidade
(MCLUHAN, 1969, p. 62)
"O choque de guerra criado pelo barulho violento foi adaptado à
Odontologia mediante o dispositivo conhecido com audiac. O paciente
coloca o aparelho de escuta e vai aumentando o volume do ruído até o
ponto em que não mais sente a dor do motor. A seleção de um único
sentido para estimulação intensa, ou, em tecnologia, de um único
sentido "amputado", prolongado ou isolado, é a razão parcial do efeito
de entorpecimento que a tecnologia como tal exerce sobre seus
produtores e consumidores. Pois o sistema nervoso central arregimenta
uma reação de embotamento geral ao desafio de uma irritação
localizada"
O ser humano estabelece, através do contato cotidiano com as mais diversas
tecnologias, o "embotamento", ou a "amputação", de algumas de suas funções vitais.
A maneira pela qual a população reage à produção televisiva é sintomática do poder
que a telinha exerce, sobre a construção simbólica, e o reconhecimento de mundo dos
espectadores. Este trabalho procurou levar isso em consideração, abordando um tema
que tem importância política em nosso país, uma vez que a televisão corresponde a
forte referência para o imaginário social dos brasileiros.
O entorpecimento causado pela televisão é um velho conhecido4. A função
cumprida pelo maquinário audiovisual doméstico foi, paradoxalmente, a de "educar"
o povo brasileiro. Qualquer meio de comunicação tem este poder, e talvez devesse ter
este sério compromisso. Porém, a concentração das concessões dos meios de
comunicação no Brasil, nas mãos de algumas poucas famílias, é uma realidade
preocupante. Se a televisão pode ser educativa, o monopólio dos meios de difusão em
massa, restrito a um grupo ínfimo, torna-os verdadeiros suseranos da informação. O
poder decorrente disso é quase imensurável.
Esse é o motivo do implícito, quase inconsciente, "mal-estar" na realidade
sociocultural do país. A desigualdade social mostra a sua cara na TV, "a gente se vê
por aqui". A mímese da vida perde o tom de fantasia e entretenimento para passar a
orientar cidadãos através da "formação de opinião".
Logra-se muito sucesso nesta empreitada, e o caso da influência que a Rede
Globo exerce sobre a população brasileira é marcante. As duras críticas à emissora, de
um lado, e também o seu grande público de admiradores fiéis, do outro, demonstram a
força política deste veículo, que é o maior conglomerado de comunicação da América
Latina.
Podemos afirmar que a questão da representação dos grupos marginalizados
nos meios de comunicação acontece de maneira fantasiosa, numa reprodução
mecânica da marginalização real. É mais um reflexo das desigualdades sociais do
país, que de forma naturalizada apresenta o personagem negro como um elemento
exótico, descolado da composição étnica do povo brasileiro.
A reprodução de estereótipos não necessariamente são atitudes injuriosas ou
racistas, mas têm consequências da mesma forma. Durante entrevista ao apresentador
4 "A televisão me deixou burro muito burro demais/ Agora todas as coisas que eu penso me parecem
iguais". Trecho da música "Televisão" do grupo de rock Titãs, lançada em 1985 no segundo álbum da banda, que leva o nome da música. A canção se tornou um clássico do rock nacional.
Jô Soares, realizada em outubro de 2014, Miguel Falabella mostrou-se emocionado.
Ele acabou chorando ao falar do privilégio em poder contracenar com Marília
Pêra, tomando emprestado o lenço do apresentador. Isso foi logo depois de ter se
mostrado triste com a repercussão do seriado Sexo e as Negas.
A estética televisiva hegemônica é eurocêntrica e exclui uma verossímil
presença imagética do personagem negro e índio. O gênero da comédia é revelador.
Ainda hoje, Falabella é lembrado por seu personagem Caco Antibes, cujo jargão "Eu
tenho horror a pobre" ilustra bem o teor do conteúdo adequado à mídia tradicional.
Caco Antibes foi um retrato muito divertido da década de 90. A qualidade da
sua mensagem é proporcional à explicitação das contradições sociais. Cláudia
Gimenez interpretou no seriado Sai de Baixo, que teve grande sucesso durante seus
vários anos de exibição, a personagem Edileuza, que com Ribamar (Tom Cavalcante),
e Caco Antibes, tornavam risíveis as interações entre as classes sociais.
Em 2014 o seriado Sexo e as Negas estreou em meio a um boicote. Não
pretendia ser determinado pela temática racial, mas de gênero. O que aconteceu foi
um questionamento da reprodução de estereótipos, e o tema do preconceito tornou-se
protagonista. No website do programa há depoimentos dos atores da série. Quase
todos falam da questão racial.
A atriz Corina Sabbas (que interpreta Tilde) defende o programa:
"São quatro mulheres objetivas, que vão atrás de seus ideais. Somos negras,
neguinhas, pretinhas, pretas. Muita gente que tem dificuldade em chamar o outro de
negro, acha que isso é pejorativo. Queremos mostrar que ser negra é lindo, ter cabelo
crespo é lindo. Não só as negras, todas as mulheres."
(MCLUHAN, 1969, p. 75)
A internet e a massificação do seu acesso são agentes da transformação.
Podemos afirmar que esta reverberação imediata (a desaprovação ao programa) só foi
"O híbrido, ou encontro de dois meios, constitui um
momento de verdade e revelação, do qual nasce a forma
nova. Isto porque o paralelo de dois meios nos mantém nas
fronteiras entre formas que nos despertam da narcose
narcísica. O momento de encontro dos meios é um
momento de liberdade e libertação do entorpecimento e do
transe que eles impõem aos nossos sentidos."
possível por um motivo: o "híbrido". A internet está destituindo a televisão da
comunicação vertical (top-down). As formas de comunicação tendem a se
horizontalizar cada vez mais com a popularização do acesso à rede.
O papel que a televisão exerceu na cultura brasileira foi, paradoxalmente, a de
"educar" a massa de telespectadores. Se a educação de qualidade sempre foi um
privilégio para poucos no Brasil, a telinha todavia, popularizou-se, e "formou" a sua
massa de espectadores. O direito à comunicação é um tema que tem urgência em ser
discutido. Porque os meios de comunicação têm peso fundamental na formação crítica
e na validação de valores da sociedade.
Cento e vinte sete anos se passaram desde a abolição da escravidão no Brasil.
Passado este tempo, persiste a marginalização da população negra em uma escala
absurda, e naturalizada. A tela da TV ao invés de dar espaço à transformação, de ser
um "espelho tecnocultural" progressista, acaba reproduzindo a exclusão e as
desigualdades reais do país. Este trabalho procurou lançar um olhar, partindo do caso
dos programas Esquenta! e Sexo e as Negas, para representação dos grupos étnicos
que compõem a sociedade brasileira.
A desproporção entre protagonistas (seja no telejornalismo, dramaturgia ou
direção/produção) negros, índios e brancos, nos meios de comunicação no Brasil, é
um agente que contribui decisivamente para a manutenção do status quo. Pudemos
ver através das considerações acerca dos programas da TV Globo, Esquenta! e Sexo e
as Negas, que o negro na TV é tão incomum, que a maneira como é representado
consegue despertar as pessoas do entorpecimento causado pela telinha.
Procuramos mostrar que a representação dos grupos que compõem a
sociedade brasileira deve ultrapassar os limites perpetrados pelos donos do poder e da
informação. Para isso o a presença dos grupos marginalizados precisa deixar de ser
um retrato estético exótico para firmar seus pés no chão da realidade. Podemos chegar
a conclusão que, mesmo que programas como Esquenta! e Sexo e as Negas
apresentem maior protagonismo do negro, isso não é o bastante. Há que se rever os
meios de comunicação em sua estrutura para se alcançar o necessário.
7. Entrevista realizada em setembro de 2014, por Daniele Pires
Hilton Cobra fala de maneira incisiva sobre a ausência do negro na TV
O ator e diretor de teatro, presidente da Fundação Cultural Palmares, faz suas
considerações acerca da presença do negro na TV. E também sobre a questão dos
meios de comunicações serem concessões públicas.
Você acha que a televisão está cumprindo seu papel, na valorização da cultura negra?
Uma das coisas que pode fazer com que a televisão, realmente, abra de forma
plena os espaços, é que a população brasileira entenda o que é uma concessão pública.
É fazer com que o Congresso vote o projeto de lei da [deputada] Jandira Feghali.
Você sabe que a televisão aberta é obrigada a destinar uma parte da sua grade, um
percentual da sua grade, para a programação regional. Essa lei5 visa aumentar essa
grade, aumentar esse percentual. Essa lei não passa no Congresso. E não passa porque
a Rede Globo não deixa.
Outra coisa, tem que ser investido nessa televisão brasileira aberta, porque
aquilo é uma concessão pública, eles não são donos daquilo, eles têm direitos mas têm
deveres também, e acontece que não cumprem. Não tem presença de negro na Rede
Globo, esse negócio de você 'botar' uma novela com setenta atores, dois atores negros,
isso não é presença.
Quando o movimento negro cobra eles fazem uma novela com um núcleo
negro, depois que o movimento relaxa eles tiram. Isso tem sido tônica há vinte, trinta
anos. A televisão brasileira não nos quer, de fato, dentro dela. A televisão brasileira
aberta, sobretudo, não quer falar sobre a vida do povo negro. Não quer. E quando fala
é de forma pejorativa. Raríssimas são as exceções, mas é raríssimo.
O exemplo que eu dou sempre é, a Thaís Araújo como protagonista, ajoelhada,
no dia 20 de novembro, o dia que se comemora Zumbi dos Palmares, o Dia da
Consciência Negra, a Rede Globo coloca ela ajoelhada, para outra atriz branca dar
uma bofetada, aquilo é um absurdo, e a Globo sabe exatamente o que está fazendo.
Em um minuto, menos de um minuto, ela destrói todo um movimento. Isso tem sido a
tônica eterna, dentro da Rede Globo, dentro da televisão brasileira.
5 PL 256/91: "Regulamenta o disposto no inciso III do artigo 221 da Constituição Federal,
referente à regionalização da programação artística, cultural e jornalística das emissoras de rádio e TV e dá outras providências." Extraído do portal da Câmara dos Deputados. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=15222
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KEHL, Maria Rita. Eu vi um Brasil na TV. In: SIMÕES I.F.; COSTA, A.H. Um
país no ar: história da TV brasileira em três canais. Editora Brasiliense, São Paulo,
1986.
KEHL, Maria Rita. Televisão e violência do imaginário. In: BUCCI, Eugênio.
(Org.). A TV aos 50: criticando a TV brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Ed.
Fundação Perseu Abramo, 2000.
MATTELART, Armand e Michéle; História das teorias da comunicação. Edições
Loyola. 1999.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como cxtensões do homem
(Understanding Media). São Paulo, Cultrix.
MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado Favela: A maior
pesquisa já feita sobre a favela brasileira. Editora Gente Liv e Edit Ltd, 2014.
SANTAELLA, Lúcia; NÖTH, Winfried; MENEZES, Philadelpho. O que é
semiótica. Editora brasiliense. 1983.
SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco: introdução a cultura de massa
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http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-esquenta-de-regina-case-e-o-programa-
mais-racista-da-tv/
Acesso: 09/10/2014, às 21h14min
<https://www.facebook.com/pages/Programa-Esquenta/155616427826543>
Acesso: 09/10/2014, às 21h30min
<http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/auditorio-e-
variedades/porque-hoje-e-sabado.htm>
Acesso: 26/10/2014, às 15h00min.
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=15222
>
Acesso: 26/03/2015, às 19h00min.
<http://www.direitoshumanos.usp.br/>
Acesso: 26/10/2014, às 22h35min.
"Samba da Regina", de Arlindo Cruz. Música de abertura do programa
“Esquenta!” da Rede Globo