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“ONDE”: UM VOCÁBULO POLIVALENTE SIRLEY RIBEIRO SIQUEIRA RESUMO: Este trabalho tem por objetivo discutir o que é estabelecido nas gramáticas normativas acerca do pronome/advérbio onde em oposição a outros empregos deste termo tanto na modalidade oral quanto na modalidade escrita da língua. Buscam-se subsídios teóricos no funcionalismo lingüístico (GIVÓN, 1979; HEINE, 1991; TRAUGOTT; HEINE, 1991), uma vez que este tem procurado dar ênfase aos aspectos modifi- cadores da língua relacionados às pressões de uso que se tem feito dela. As gramáticas tradicionais (GT) postulam que os traços característicos de onde seriam os [+anafórico] e [+circunstancial (locativo)]. Entretanto, além de ser comum ouvir-se o emprego do pro- nome/advérbio em questão com valores diferentes dos que são expostos na GT na língua oral, é possível encontrar exemplos de usos do item já no século XVI como operador argumentativo, elemento anafórico com antecedente virtual ou mesmo sem ante- cedente.

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“ONDE”: UM VOCÁBULO POLIVALENTE

SIRLEY RIBEIRO SIQUEIRA

RESUMO:

Este trabalho tem por objetivo discutir o que é estabelecido

nas gramáticas normativas acerca do pronome/advérbio onde em

oposição a outros empregos deste termo tanto na modalidade oral

quanto na modalidade escrita da língua.

Buscam-se subsídios teóricos no funcionalismo lingüístico

(GIVÓN, 1979; HEINE, 1991; TRAUGOTT; HEINE, 1991),

uma vez que este tem procurado dar ênfase aos aspectos modifi-

cadores da língua relacionados às pressões de uso que se tem feito

dela. As gramáticas tradicionais (GT) postulam que os traços

característicos de onde seriam os [+anafórico] e [+circunstancial

(locativo)].

Entretanto, além de ser comum ouvir-se o emprego do pro-

nome/advérbio em questão com valores diferentes dos que são

expostos na GT na língua oral, é possível encontrar exemplos de

usos do item já no século XVI como operador argumentativo,

elemento anafórico com antecedente virtual ou mesmo sem ante-

cedente.

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Introdução

Este tema foi escolhido por chamar atenção para o número

de construções envolvendo o item lexical em questão, sobretudo

nos textos de alunos que destoam da chamada norma culta que

postula que os traços característicos de “onde” seriam os de

[+anafórico] e [+circunstancial (locativo)], principalmente. Estas

construções não têm se restringido apenas à oralidade, mas tam-

bém é possível observar que as mudanças se insinuam com certa

freqüência também no registro escrito, fato que reforça ainda mais

a necessidade de um estudo aprofundado deste fenômeno, visto

que a língua escrita, por tender a ser mais conservadora, poderia

rejeitar tais usos.

Começou-se a imaginar se este caráter polissêmico de “on-

de” seria privativo da sincronia atual ou não e, por isso, foram

investigadas outras sincronias com o intuito de observar se “on-

de” também possuiria outros valores em tempos passados. Nesta

tarefa, buscaram-se respostas para os seguintes questionamentos:

a) estaria “onde” funcionando como pronome relativo com ante-

cedente virtual?; b) seria o caso de um elemento anafórico sem

antecedente explícito?; c) sua função seria apenas de conectivo?;

d) sua localização estaria ligada a sua função?; e) estaria compon-

do uma unidade pré-fabricada?

Inicialmente, serão apresentados estudos relacionados ao

termo em questão, com especial ênfase para os estudos tradicio-

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nais e a seguir a linha teórica que orientará a pesquisa (a dos estu-

dos funcionalistas). Posteriormente, serão expostos os aspectos

metodológicos e a análise dos dados, com o objetivo de se estabe-

lecerem algumas conclusões.

1 – Revisão da literatura

Neste item apresentar-se-ão características das categorias

em que “onde” pode figurar. Além de seu emprego canônico, que

o enquadraria entre os pronomes relativos (substituindo sintag-

mas) ou entre os advérbios (atuando como adjunto adverbial de

lugar), muitas vezes “onde” aparece como elemento de conexão e,

por isso, outras visões que procuram ampliar a questão também

serão expostas.

1.1 – Estudos tradicionais

De modo geral, “onde” nas gramáticas tradicionais aparece

como pronome relativo ou como advérbio.

De acordo com Cunha e Cintra (2001, p. 342), por exem-

plo, pronomes relativos “são assim chamados porque se referem,

de regra geral, a um termo anterior – o antecedente.”

Bechara (2003, p. 287), ao definir advérbio, afirma que “é a

expressão modificadora que por si só denota uma circunstância

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(de lugar, de tempo, modo, intensidade, condição, etc.) e desem-

penha na oração a função de adjunto adverbial.”

A seguir serão expostas visões de autores de gramáticas

normativas acerca do caso específico de “onde”, bem como a

classificação adotada por eles. Embora, como poderá ser notado,

os autores possuam alguma discordância acerca da exata classifi-

cação do vocábulo, todos são unânimes ao destacar, explicitamen-

te ou não, que o antecedente do termo denota sempre espaço físi-

co, ou seja, possui valor locativo.

É interessante destacar que o compromisso das gramáticas

que serão citadas é o de expor o que elas consideram como “cor-

reto” em relação ao uso da língua, ou seja, sua função é a de esta-

belecer uma norma que orientaria o falar culto. Devido a este

caráter intrínseco que possui, fica evidente que as variações lin-

güísticas são desprezadas e que as mudanças que são abraçadas

por muitos usuários são classificadas como erros.

Cunha e Cintra (Op. cit., p. 343 e 351), inicialmente, inclu-

em “onde” entre os pronomes relativos e afirmam que sua função

sintática é a de adjunto adverbial (“Entrava-se de barco pelo cor-

redor da velha casa de cômodos onde eu morava.” – M. Quintana)

Mais adiante, tratando dos valores e empregos dos relati-

vos, os autores registram que “como o ‘onde’ desempenha nor-

malmente a função de adjunto adverbial (= o lugar em que, no

qual) ‘onde” costuma ser considerado por alguns gramáticos ad-

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vérbio relativo” (“Sob o mar sem borrasca, onde enfim se descan-

sa.” – A. Nobre).

Como se pode observar, os autores não apresentam uma

clara opção por uma classe gramatical ou outra.

Bechara (Op. cit., p. 171, 293, 294), assim como Cunha e

Cintra, arrola “onde” entre os pronomes relativos (“A casa onde

moro é espaçosa.”).

A seguir, tratando dos advérbios, Bechara chama atenção

para o fato de existirem advérbios de base pronominal devido a

sua origem e, entre estes, ele inclui “onde”, classificado como

advérbio relativo. Na realidade, não é dada uma explicação satis-

fatória sobre a diferença entre advérbio relativo e pronome relati-

vo e os exemplos utilizados são idênticos. Observe as palavras do

autor e o exemplo apresentado para advérbio relativo, idêntico ao

usado anteriormente para ilustrar o exemplo de pronome relativo:

Os advérbios relativos, como os pronomes relativos, servem para referir-se a unidades que estão postas na oração anterior. Nas idéias de lugar empregamos onde, em vez de em que, no

qual (e flexões): A casa onde mora é excelente. (BECHA-RA, 2003)

Depreeende-se claramente a indecisão, dada a dificuldade

para a tarefa, em se classificar “onde”como pronome relativo ou

como advérbio relativo.

Lima (1992, p. 176) classifica a palavra “onde”apenas co-

mo advérbio relativo; o autor opta por essa posição ao comparar

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“onde”com termos como “quando” e “como”, que funcionam

como advérbios e conjunções.

De acordo com Luft (1988, p. 92), “onde” seria um prono-

me relativo de natureza adverbial precedido de substantivo de

lugar: “A terra onde nasci.”.

Como se pode observar, não existe um consenso entre os

gramáticos em relação à classificação da palavra “onde”. Devido

justamente ao caráter normativo e valorizador da língua escrita,

especialmente a do século XIX, não são encontrados, nas obras

citadas, exemplos que contemplem a oralidade ou ainda citações

de outros usos que se tem feito do vocábulo (haja vista não ser o

compromisso da gramática tradicional dar conta desses conteú-

dos). Desta forma, “onde” não aparece entre os elementos capazes

de estabelecer conexão, tarefa que, segundo a gramática tradicio-

nal, caberia apenas às preposições e às conjunções.

Acerca destas categorias, Cunha e Cintra (Op. cit.) afirmam

que as preposições “são palavras invariáveis que relacionam dois

termos de uma oração, de tal modo que o sentido do primeiro

(antecedente) é explicado ou completado pelo segundo (conse-

qüente)” e que as conjunções “são vocábulos gramaticais que

servem para relacionar duas orações ou dois termos semelhantes

da mesma oração.” A partir destas definições, fica evidente o

caráter relacional atribuído a estas classes de palavras: as preposi-

ções ligando sintagmas e as conjunções unindo sintagmas ou ora-

ções.

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Devido a este posicionamento restritivo que a gramática

tradicional adota, ao citar apenas as preposições e as conjunções

como elementos capazes de estabelecer conexão, serão também

apresentados outros autores que discutem o assunto.

1.2 – Outras perspectivas

Koch (2004) procura expandir o assunto expondo que, além

das conjunções e advérbios sentenciais (também chamados de

advérbios de texto), há outras palavras (expressões) de ligação

que podem estabelecer, entre orações, enunciados ou partes do

texto, diversos tipos de relações semânticas ou pragmáticas, atu-

ando, assim, como conectores interfrásticos, responsáveis pela

conexão ou junção. Segundo a autora, as relações podem ser do

tipo lógico-semântico ou do tipo discursivo ou argumentativo.

As relações lógico-semânticas ocorrem entre orações que

compõem um enunciado e são realizadas através de conectores ou

juntores do tipo lógico. Algumas das relações destacadas por Ko-

ch (Ibidem. P. 68-71) são as seguintes:

1 – Relação de condicionalidade – a conexão entre duas orações é

feita com a introdução do conector “se” ou similar na oração

antecedente e com o operador “então” (geralmente implícito)

na oração conseqüente.

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2 – Relação de causalidade – expressa-se pela conexão de duas

orações, uma das quais encerra a causa que acarreta a con-

seqüência contida na outra.

3 – Relação de mediação – ocorre por meio de duas orações, nu-

ma das quais se expõem os meios para se atingir um fim ex-

presso na outra.

4 – Relação de disjunção – esta relação pode ser tanto do tipo

lógico quanto do tipo discursivo e se expressa através do co-

nectivo “ou” que, por ser ambíguo, pode ter valor exclusivo

ou inclusivo (um ou outro, possivelmente ambos).

5 – Relação de temporalidade – ocorre a conexão de duas ora-

ções, localizando-se no tempo ações, eventos, estados de

coisas “no mundo real”, ou a ordem em que se teve percep-

ção ou conhecimento deles. O relacionamento temporal pode

ser do tipo simultâneo (exato, pontual), anterior/ posterior,

contínuo ou progressivo.

6 – Relação de conformidade – expressa-se pela conexão de duas

orações em que se mostra a conformidade do conteúdo de

uma com algo exposto na outra.

7 – Relação de modo – numa das orações é expresso o modo co-

mo se deu determinada ação ou evento contido na outra.

As relações discursivas ou argumentativas são aquelas

que ocorrem ao se encadearem enunciados distintos (cada um

resultante de um ato de fala diverso). Estes encadeamentos podem

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ocorrer entre orações de um mesmo período, entre dois ou mais

períodos e, também, entre parágrafos de um texto. Os conectores

responsáveis por esta tarefa, ao introduzirem um enunciado, de-

terminam-lhe a orientação argumentativa e por isso são também

chamados de operadores ou encadeadores de discurso ou ainda de

operadores argumentativos. Segundo Koch (Op. cit., p. 72-6), as

relações estabelecidas podem ser pragmáticas, discursivas ou

argumentativas. Entre as principais destas relações, a autora des-

taca as seguintes:

a) conjunção – ligam-se enunciados que contém argumentos para

uma mesma conclusão, através de operadores como: “e, tam-

bém, não só... mas também, tanto... como, além de, além disso,

ainda, nem” (= e não).

b) disjunção argumentativa – trata-se da disjunção de enunciados

que possuem orientações discursivas diferentes e resultam de

dois atos de fala distintos, em que, por meio do segundo, pro-

cura-se provocar o leitor/ouvinte para levá-lo a modificar sua

opinião ou, simplesmente, aceitar a opinião expressa no pri-

meiro.

c) contrajunção – ocorre a presença de enunciados com orienta-

ções argumentativas diferentes, em que prevalece a do enunci-

ado introduzido pelo operador: “mas” (porém, contudo, toda-

via etc.). Quando se emprega o operador “embora” (ainda que,

apesar de (que) etc.) ganha relevo, a orientação argumentativa

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do enunciado não introduzido pelo operador (“Embora não

quisesse sair de casa, foi ao passeio para agradar os pais.”).

d) explicação ou justificativa – quando se encadeia sobre um pri-

meiro ato de fala, outro ato que justifica ou explica o anterior.

e) comprovação – por meio de um novo enunciado, adiciona-se

uma possível comprovação da asserção apresentada no primei-

ro.

f) conclusão – através de operadores como “portanto, logo, por

conseguinte, pois”, etc., introduz-se um enunciado de valor

conclusivo em relação a dois (ou mais) atos de fala anteriores

que contêm premissas, uma das quais, geralmente, permanece

implícita, por tratar-se de que é voz geral, de consenso em da-

da cultura, ou, então, verdade universalmente aceita.

g) comparação – com o uso de operadores “como” (tanto, tal)...

“como” (quanto), “mais...(do) que”, “menos... (do) que”, esta-

belece-se entre um termo comparante e outro comparado uma

relação de inferioridade, superioridade ou igualdade. A relação

comparativa também possui caráter argumentativo, uma vez

que a comparação se faz tendo em vista dada conclusão a fa-

vor ou contra a qual se pretende argumentar.

h) generalização/ extensão – o segundo enunciado manifesta uma

generalização do fato contido no primeiro ou uma amplifica-

ção da idéia nele expressa.

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i) especificação/ exemplificação – no qual o segundo enunciado

particulariza e/ou exemplifica uma declaração de ordem mais

geral apresentada no primeiro.

j) contraste – o segundo enunciado apresenta uma declaração que

se opõe a do primeiro, produzindo um efeito retórico.

l) correção/ redefinição – ocorre quando o segundo enunciado

tem por objetivo corrigir ou redefinir de algum modo o conte-

údo do primeiro.

O trabalho de Koch ganha relevância na medida em que

procura ampliar o leque de termos com a função de estabelecer

conexões, muitos deles sequer mencionados na tradição gramati-

cal. Suas reflexões permitem que os leitores pensem sobre a lín-

gua e até citem outros elementos que atuam como conectores,

mas que não são expostos como tais nas gramáticas normativas.

Este trabalho procurará verificar se este poderia ser o caso de

“onde”.

2 – Estudos funcionalistas

Os estudos funcionalistas vêem a língua como um instru-

mento de comunicação, sujeito a pressões de uso provenientes de

diferentes situações comunicativas, o que pode alterar algum as-

pecto de sua estrutura gramatical. Em outras palavras, pode-se

dizer que, no paradigma funcional, a análise da estrutura lingüís-

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tica se dá ao mesmo tempo em que é feito o estudo das condições

discursivas em que ocorreu determinado enunciado.

O funcionalismo procura adotar um posicionamento seme-

lhante ao do filósofo Pierce (1940) que acreditava que havia prin-

cípios motivadores do signo lingüístico e princípios cognitiva-

mente arbitrários. Em outras palavras, trata-se de assumir que a

iconicidade não é absoluta, mas moderada já que ocorre interação

tanto de aspectos transparentes quanto de arbitrários.

Devido justamente a este enfoque apresentado para análise

da língua e de sua gramática é que não poderia ser outro o refe-

rencial teórico a orientar um trabalho que pretende apresentar

alguns empregos ainda não registrados nas gramáticas tradicio-

nais que os falantes têm dado a onde de acordo com suas necessi-

dades comunicativas.

A seguir serão expostas algumas das principais característi-

cas de um conceito muito tratado dentro dos estudos funcionais

que é o da gramaticalização.

2.1 – A gramaticalização nos estudos funcionais

Antes de ser exposta uma definição para o termo “gramati-

calização”, é preciso ter em mente que este termo relaciona-se à

variação e à mudança lingüística. Isto é, a gramática de uma lín-

gua é assumida como não-estática devido ao fato de que as lín-

guas estão constantemente se modificando por meio da criação de

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novas expressões e de novos arranjos morfossintáticos. Logo,

pode-se afirmar que a gramática está sempre em formação (gra-

mática emergente, como chama Givón) e que a estrutura lingüísti-

ca é relativamente instável. Note-se que o termo “gramática” é

usado no sentido sincrônico referindo-se ao conjunto de regulari-

dades motivadas por pressões cognitivas e, principalmente, pelo

uso.

Hopper e Traugott (1993, p. 15) definem gramaticalização

como “o processo pelo qual itens e construções lexicais passam,

em determinados contextos lingüísticos, a servir a funções grama-

ticais, e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver

novas funções gramaticais”.

O processo de gramaticalização abrange o estudo tanto da

trajetória dos elementos lexicais que migraram para a gramática

quanto daquelas categorias menos gramaticais que se tornaram

mais gramaticais.

Os estudos funcionalistas mostraram que a dicotomia estru-

turalista que colocava em pólos opostos a sincronia e a diacronia

estava equivocada e que seria mais adequado falar em pancronia,

uma vez que uma mesma transformação pode ocorrer repetida-

mente, ou seja, a mudança nem sempre está ligada à sucessão

temporal, há outros fatores que interferem na mudança como os

de ordem cognitiva. Em outras palavras, trata-se de analisar os

fenômenos lingüísticos observando concomitantemente aspectos

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sincrônicos e diacrônicos e não exclusivamente uma ou outra

face.

2.2 – A trajetória unidirecional da gramaticalização

Segundo a trajetória unidirecional da gramaticalização, cer-

tos itens lexicais passam a ser usados como elementos com fun-

ção gramatical ou itens que estão no âmbito da gramática passam

a assumir funções ainda mais gramaticais. Paulatinamente, atra-

vés do uso, seu emprego torna-se mais previsível e regular e o

resultado é um novo arranjo sintático com características morfo-

lógicas especiais e possíveis adaptações fonológicas. Esta é, por-

tanto, uma característica básica do processo de gramaticalização.

Sobre a gramaticalização, Neves (1997, p. 121) destaca o

trabalho de Heine et al (1991) que expõem com detalhes as carac-

terísticas da trajetória unidirecional:

a) precedência do desvio funcional (conceptual ou semânti-co), sobre o formal (morfossintático e fonológico);

b) descategorização de categorias lexicais prototípicas;

c) possibilidade de recategorização, com estabelecimento da iconicidade entre forma e significado;

d) perda de autonomia de um elemento (uma palavra autôno-ma passa a clítica, um clítico passa a afixo);

e) erosão ou enfraquecimento formal.

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2.3 – A abstratização

Uma das características da gramaticalização é o surgimento

da abstratização – termo usado pelos funcionalistas para designar

a passagem de um termo concreto para o abstrato ou de um me-

nos concreto para um mais abstrato.

A principal fonte motivadora da abstratização são os pro-

cessos denominados como metafóra e metonímia, pois, através

deles, elementos concretos da experiência humana dão origem a

entidades abstratas, como os elementos da gramática. Traugott e

Heine (Op. cit.) propuseram uma escala segundo a qual a abstrati-

zação, no percurso da gramaticalização obedeceria à trajetória

espaço>(tempo)>texto. Ou seja, elementos concretos de natureza

espacial ou temporal sofreriam abstratização e passariam a atuar

como categorias gramaticais.

3 – Procedimentos metodológicos

Buscaram-se dados a partir do site www.ime.usp.br/tycho

ligado à Universidade de São Paulo. Os corpora disponíveis no

site estão divididos em séculos e de acordo com o gênero textual

a que pertencem.

Os textos escolhidos para análise neste presente trabalho

enquadram-se no gênero carta pessoal (optou-se por apenas um

gênero para viabilizar a comparabilidade). Foram pesquisados

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textos do século XVI ao XIX, usando-se apenas um autor por

século (D. João III, Frei Antônio das Chagas, Cavaleiro de Olivei-

ra e Almeida Garret, respectivamente) e procurou-se uniformizar

a quantidade de material coletado adotando-se o número aproxi-

mado de palavras que aparecia disponível no século XVI - aquele

que dispunha de menos dados (cerca de 51.000 palavras). Devido

à dimensão deste texto, nem todos os exemplos de “onde” empre-

gado de modo não canônico foram expostos.

Embora tenham sido encontrados, obviamente, exemplos

em que “onde” aparecia em sua forma canônica, não foram feitas

menções a esses casos, já que o interesse desta pesquisa são os

usos do item como conectivo, elemento anafórico com anteceden-

te virtual ou mesmo sem antecedente explícito, etc.

Durante a análise dos dados, buscou-se observar as seguin-

tes variáveis: a) tipo de antecedente; b) ocorrência sem anteceden-

te explícito; c) atuação como elemento de conexão; d) localização

no fragmento (iniciando período, após pausa); e) inserção numa

unidade pré-fabricada1.

Devido à baixa freqüência do elemento, a análise foi feita,

prioritariamente, de modo qualitativo. Para realização desta tare-

fa, separaram-se as ocorrências do item por século, observando-se

1 Segundo Erman e Warren (2001), as unidades pré-fabricadas podem

ser definidas como a combinação de, pelo menos, dois constituintes, favorecida por falantes nativos a partir de sua preferência em relação a outras combinações alternativas que poderiam ser equivalentes, mas que não estão tão convencionalizadas.

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os usos considerados não-canônicos e, a seguir, procurou-se esta-

belecer uma comparação entre estes empregos nos diferentes sé-

culos pesquisados.

4 – Análise dos dados

Neste item, os dados encontrados serão apresentados, inici-

almente, século a século e, a seguir, procurar-se-á estabelecer

padrões de ocorrência, comparando-se os empregos nas diferentes

sincronias.

4.1 – Usos não canônicos de “onde”

4.1.1 – Usos não canônicos de “onde” no século XVI

Observando-se os exemplos de (1) a (3) que pertencem ao

século XVI, nota-se que o primeiro deles apresenta “onde” aglu-

tinado à preposição “de” e após uma pausa. Neste caso, o elemen-

to analisado funciona como um elemento anafórico-textual, cujo

antecedente não aparece de modo explícito no texto. Os exemplos

(2) e (3) contêm o item em questão precedido da preposição

“por” e após uma pausa, formando com esta uma unidade pré-

fabricada, conforme Erman e Warren (2001), que funciona como

um operador argumentativo de conclusão, nos termos de Koch

(2004).

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(1) E o que me dizes que vos pareçe que se deve fazer no ne-guocio, e asy de como cõpre a meu serviço vos virdes, me pa-rece tudo muito beem, vendo a maneira que se la teem em vos Responder, e cam difirente he da Rezam e fundamento cõ que vos mandey, e vendo tambem como lhe Respondestes á Res-posta que vos deram por sprito; e as Rezões tam bõas e evi-dentes de que nom querem conheçer; dhonde estaa claro que vosa estada nam pode aproveitar, antes danaria, vendo que se requeria por vos o neguoçio nos termos ~e que ele pode fi-quar. (...)

(2) Eu sam e~fformado que nas armadas da India pasadas ffa-leceo muyta gente, asy por ir mall agasalhada, como por ffall-ta d'aguoa; e que a causa d'iso ffoy daremse muitas camaras a pesoas por meus alvaras, e asy carregare~se muytas pipas de vinho por minha licença, por homde os home~s fficaram mall agasalhados e nas naaos se nã pode carregar a agoa e mãti-mento a ellas necesarios. 09/02/1533

(3) Requeryo d'Alcanhaes, Paull de Muya, e Llizeras de oyto centos e trinta moios, faze~dose quaa cõtar provimento em menos do que pareçe que pode aver; e d'Andalluzia sam man-dados vyr mill cafizes de trigo e seis mill quintaes de bizcou-to, por omde pareçe que estaa bem provido. Vos mandareis lloguo de llaa pesoas que façam vyr este trigo aos fornos, e se ainda llaa estevere~ os mosos da camara que foram estar nas naoos da India vos deveis de servir d'elles, asy nisto como em todo o mais que cõpra a esas armadas; 13/08/1533

4.1.2 – Usos não canônicos de onde no século XVII

Os exemplos (4) a (9) pertencem ao século XVII. O exem-

plos (4) e (5) contêm o elemento “onde” aglutinado à preposição

“de” e funcionando como item anafórico-textual em contextos

que se mostram ambíguos, já que há certa dificuldade em se iden-

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tificar exatamente o antecedente em cada um dos casos, isto é, no

exemplo (4), tanto o antecedente pode ser “coração” ou “aqueles

celestes desejos” e no exemplo (5), a dúvida é se o sintagma re-

tomado seria “as infinitas misericórdias de Deus” ou “estes po-

vos”.

(4) Senhor meu, amor de Deus se acenda na alma de V. S. e lhe encha o coração daqueles celestes desejos, donde se co-meçam a provar as eternas doçuras ainda nesta vida. 25/10/1671

(5) Mas ainda assim me alegro muito de ver as infinitas mise-ricórdias que Deus usa connosco e com estes povos, donde são notáveis as cousas que sua bondade tem feito, porque quási todos estavam em ódios e os mais deles se tem concor-dado e ajustado no exterior de seus bandos e parcialidades, e no interior muito reformados, abraçando os exercícios, con-fissões e restituições; 21/03/1676

Nos exemplos (6) (segundo elemento destacado) a (8),

“onde” aparece como pronome relativo que retoma um anteceden-

te virtual. Às vezes, aparece desacompanhado e, em outros casos,

aglutinado à preposição “de”. Em todos os casos, contudo, é pre-

cedido de uma pausa.

(6) Assim em outras cousas de juízo e entendimento faltam

ainda muitas negações, por onde convém que com particular

estudo se exercite V. M. na mortificação total dos seus interi-

ores e na santa humildade, donde melhor se conservam os

fervores do Espírito Santo, assim como as brasas na cinza.

25/08/1674

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(7) Eu hei de ver se posso despir a V. M. até da sua própria

alma, de modo que me fique em um fundo e nudeza de espíri-

to, donde não há nada, nem ainda de Deus, mais que Deus.

(8) Chorai muito todo aquele tempo que o não buscastes no

vosso coração, donde o tendes, mas ainda sem a lâmpada do

fogo eterno, e por isso ainda às escuras. 25/10/1674

O primeiro item destacado do exemplo (6) e o que aparece

a seguir são casos que, como já foi dito, apresentam a estrutura de

uma unidade pré-fabricada e, novamente, esta seqüência de cons-

tituintes atua como operador argumentativo de conclusão.

(9) Assim em outras cousas de juízo e entendimento faltam ainda muitas negações, por onde convém que com particular estudo se exercite V. M. na mortificação total dos seus interi-ores e na santa humildade, donde melhor se conservam os fervores do Espírito Santo, assim como as brasas na cinza. 25/08/1674

4.1.3 – Usos não canônicos de onde no século XVIII

Os exemplos (10) a (14) são do século XVIII. Observando-

se “onde” nos exemplos (10) e (11), nota-se que foi utilizado de-

sacompanhado de preposição e está atuando como pronome rela-

tivo que retoma um antecedente virtual.

(10) Verdadeiramente me parece que não poderíamos amar sem ser ciosos, porque em chegando aquele alto grau de a-mor, onde nos conservamos por causa da nossa inconstância

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natural, é preciso que para entrarmos na frialdade ou para descaírmos no aborrecimento passemos pelo ciúme. 29/03/1736

(11) É necessário evitar a solidão, onde a alma padece por fal-ta de objectos que a divirtam. Não é menos conveniente fugir das lições, das companhias e dos alimentos que incitam pai-xões amorosas. 22/09/1736

No exemplo (12), “onde” também funciona como prono-

me relativo, entretanto, seu antecedente é “história”, um item que

remete de certa maneira a tempo.

(12) Deslustrou a Júlio César o louco amor de Servília, fazen-do-se o dia do seu triunfo o mais plausível para o pasquim. Sendo Vitorino nobremente adornado das prendas que se de-sejam em um grande príncipe, ninguém se atreve a recomen-dá-las na História, onde só se acha abominada a dos seus a-mores desordenados. 20/09/1736

No exemplo a seguir, é possível perceber que onde seja um

elemento anafórico-textual, contudo o contexto não permite iden-

tificar exatamente o antecedente do termo.

(13) Eu não duvido de que os ninhos das rolas façam, como pretendem alguns, o mesmo e ainda melhor efeito com os a-néis que os ninhos das andorinhas; porém uma bolsa cheia de boas moedas, quando se não quer usar a raspadura das asas das cigarras, creio que na maior parte das ocasiões e com a maior parte das pessoas, de que é necessário examinar as cir-cunstâncias, há-de ser de virtude mais específica e mais efec-tiva que a dos anéis, saiam eles da quentura das rolas, ou do bafo das andorinhas, onde já disse que devem estar nove dias. 07/02/1737

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No exemplo (14) mostra que a estrutura formada pela pre-

posição “por” e o elemento “onde” ainda persiste no século XVII-

I. Entretanto, sua função, neste caso, se diferencia, pois, no e-

xemplo a seguir, “por onde” retoma “palavra”, um antecedente de

natureza virtual e não funciona como operador argumentativo.

(14) Como convém acautelar na captura das religiosas toda a indecência, e poderia suceder alguma se fossem a buscar-se pelas celas e por outros esconderijos, o que talvez seria neces-sário se elas antecipadamente soubessem que se tem determi-nado prendê-las, fazem-se as ditas prevenções, divulgando que se manda pôr cerco ao Convento, e esta fama deve Vossa V. M. confirmar, sem soltar palavra por onde possa alguém conjecturar que se trata de prisão. 27/02/1749

4.1.4 – Usos não canônicos de onde no século XIX

Os dados finais são do século XIX e mostram onde sendo

empregado para retomar um antecedente virtual que, com exceção

do exemplo (15), aparece imediatamente antes do item em ques-

tão.

(15) Ill.mo Ex.mo Sr. Tenho a honra de passar às mãos de V. Exa. p.a a fazer prezente onde convêm a certidão do meu fa-cultativo Sr. Dr. Barral, nosso illustre consocio, aonde consta a absoluta impossibilidade em que ha muito me tenho achado de satisfazer os deveres que me impõem nos nossos estatutos, e que nenhum socio menos sabe, e pode, mas não deseja satis-fazer mais do que este que é De V. Exa. Att.o V.or e Obg.do Almeida Garrett [XII. Ao Conde do Lavradio 25. ] 25/07/1854

(16) Vou ver se dou alguma ordem à nossa Secretaria, e se formo um corpo d'élèves , donde p.a o futuro se possa tirar

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algum proveito. Estamos bem faltos de tudo. Dê-me Vossa V. Exa. as suas ordens a q. satisfarei como q.m sou De V. Exa. M.to att.o e C.o Almeida Garrett08/08/1852

(17) Outro caso de loucura ou idiotice é o do nosso bom Car-los Mayer que não há meio de arrastar para o seio da família, onde a mulher está nas vésperas de o brindar com um filho. 26/09/1892

4.2 – Padrões de ocorrência de “onde”

Os dados coletados apresentam o uso no século XVI de

uma unidade pré-fabricada (“por onde”), que funciona como ope-

rador argumentativo de conclusão. Este emprego bastante abstra-

tizado também ocorre no século XVII. No século XVIII, contudo,

observa-se que, nos dados examinados, a mesma estrutura apare-

ce, porém, não funcionando como um operador argumentativo de

conclusão, mas sim como um elemento anafórico que retoma um

antecedente virtual. Em todos os casos, “por onde” se exibe após

uma pausa.

No século XIX, não foram encontradas ocorrências deste

tipo de estrutura no corpus pesquisado. Estas informações suge-

rem que, por hipótese, o emprego da seqüência de constituintes

em questão tenha passado a ser cada vez menos utilizada com o

passar do tempo, especialmente com a função de operador argu-

mentativo.

O elemento “donde”, fruto da aglutinação da preposição

“de” ao elemento “onde”, nos dados pesquisados, aparece nos

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séculos XVI, XVII e XIX e é empregado em contextos ambíguos,

cuja recuperação do antecedente é difícil, ou para retomar antece-

dentes virtuais. Assim como “por onde”, também ocorre após

uma pausa. Este usos mostram o item sendo empregado de um

modo já abstratizado, embora numa escala menor se comparado à

estrutura “por onde”.

Encontraram-se ocorrências de “onde” (desacompanhado

de preposição) sendo utilizado para retomar antecedentes virtuais

nos séculos XVII, XVIII e XIX. No século XVII, identificou-se

um exemplo de “onde” usado para recuperar um termo de valor

temporal (história), o que indica, numa escala, uma posição in-

termediária entre aquele usado para retomar antecedentes virtuais

e o que é utilizado como operador argumentativo.

Tendo em vista um esquema que demonstrasse os empre-

gos mais abstratizados, uma possível representação destas ocor-

rências seria a que se verifica abaixo:

Anafórico-textual sem antecedente explícito > anafórico

com antecedente virtual > anafórico com antecedente temporal >

elemento de conexão.

O aparecimento de dados como estes parece corroborar o

princípio da extensão imagética instantânea2 postulado por Votre

2 Votre (1999) propõe um princípio de extensão imagética instantânea,

de acordo com o qual a faculdade da metáfora atuaria de modo instan-tâneo permitindo o acesso a todas as possibilidades e potencialidades na mente dos falantes de determinada comunidade discursiva, a partir de diferentes contextos situacionais.

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(1999), uma vez que sentidos muito abstratos ocorreram em sin-

cronias distantes como as dos séculos XVI e XVII e, por conse-

guinte, a hipótese de um percurso unidirecional da gramaticaliza-

ção estaria em dúvida. Entretanto, ainda assim, não parece ser

possível fazer a afirmação de que o sentido mais abstrato não

tenha derivado de um sentido mais concreto, já que não foram

pesquisadas sincronias mais distantes ainda.

Considerações finais

Ao longo da pesquisa, foi possível constatar que usos muito

abstratos de “onde”, como o de operador argumentativo, já eram

encontrados no século XVI, ao lado da preposição “por”, com-

pondo com esta uma unidade pré-fabricada, conforme Erman e

Warren (2001). Este fato parece reforçar o princípio da extensão

imagética instantânea formulado por Votre (Op. cit.).

Contudo, esta hipótese não pôde ser totalmente confirmada,

uma vez que outras sincronias mais distantes não foram pesquisa-

das e, por isso, não haveria como observar se a trajetória unidire-

cional de gramaticalização foi seguida ou não.

Outros empregos não previstos na gramática normativa

também foram encontrados, como o que “onde” aparece como

anafórico-textual sem um antecedente explícito ou num contexto

ambíguo, cuja recuperação do referente torna-se uma tarefa difícil

e, ainda, como um elemento que retoma um antecedente que ex-

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pressa um lugar virtual e não, concreto. Esta verificação confirma

a hipótese de que outros valores menos concretos poderiam ser

encontrados em outras sincronias.

O corpus pesquisado, apesar de reduzido, pode ser conside-

rado significativo, na medida em que é capaz de confirmar algu-

mas das suposições levantadas. O gênero textual escolhido (carta

pessoal) aproxima-se de certa forma da oralidade, se comparado a

outros, e contém em si diversas seqüências tipológicas como ex-

põe Marcuschi (2002). Com o intuito de aprofundar o estudo so-

bre os diversos valores de “onde” em sincronias até mais distantes

das pesquisadas, cogita-se a possibilidade de se ampliar o corpus

privilegiando uma seqüência tipológica em específico, mesmo

que aparecesse em diferentes gêneros textuais.

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