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MARA C. MIRANDA GOMES O NACIONAL E O POPULAR NO ESPETÁCULO OPINIÃO-1964 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, do Curso de História, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof º. Dr. Marcos Napolitano. CURITIBA DEZEMBRO/2004.

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MARA C. MIRANDA GOMES

O NACIONAL E O POPULAR NO ESPETÁCULO OPINIÃO-1964 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, do Curso de História, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof º. Dr. Marcos Napolitano. CURITIBA

DEZEMBRO/2004.

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RESUMO

O espetáculo Opinião estreou em dezembro de 1964, no Rio de Janeiro, e tinha

como protagonistas e intérpretes João do Valle, Nara Leão e Zé Kéti. Consistia na

apresentação de músicas, de tradição popular e folclórica, intercaladas a textos, que

falavam da situação social do país, e diálogos entre os protagonistas, que relatavam suas

experiências de vida. Caracterizado como um espetáculo de transição na vida cultural do

país na década de 60, podemos dizer que o Opinião manteve, do ponto de vista simbólico,

praticamente intocada a proposta de aliança de classes presente no paradigma nacional-

popular pré-64, principalmente a aliança intelectual/povo, na qual o primeiro fala pelo

segundo. Concordamos com a tese de que o espetáculo procurou dar maior ênfase popular

aos dilemas nacionais, revertendo, assim, uma tendência da arte engajada anterior ao golpe

militar. Ao recorrer às formas musicais e poéticas da cultura popular, na tentativa de

equacionar, no campo cultural, o impasse estético-ideológico das esquerdas e popularizar as

artes de conteúdo político, o Opinião acabou redimensionando os termos da aliança de

classes que dava o tom da política e da cultura brasileiras pré-64.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................01

2 NACIONAL-POPULAR: CONCEITO E CRÍTICAS.............................................04

3 O OPINIÃO EM RELAÇÃO AO MANIFESTO DO CPC/UNE:

CONTINUIDADES E/OU RUPTURAS?...................................................................18

3.1 O GRUPO E O SHOW OPINIÃO ........................................................................26

4 O “ESPETÁCULO”... .............................................................................................32

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................44

6 FONTES ...................................................................................................................47

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................48

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1- INTRODUÇÃO

Nas décadas de 1950 e 1960 observou-se no Brasil um processo de transformação

social e a formação de uma cultura política até então desconhecidos. A adesão e a

organização política de setores da sociedade em torno de idéias ligadas as questões

nacionais deu origem a um amplo movimento nacionalista. Nesse processo, a participação

de artistas, intelectuais e estudantes, oriundos da classe média, teve uma importância

singular.

Temas como nacionalismo, imperialismo, reforma agrária, cultura popular, entre

outros, foram amplamente discutidos e debatidos por partidos políticos, movimentos sociais

(principalmente o estudantil), organizações e instituições. A orientação política e ideológica

desses debates deu-se à luz do paradigma nacional-popular. Também no campo cultural o

paradigma nacional-popular orientou debates e ações. Questões sobre o rumo da “revolução

brasileira”, a necessidade de engajamento do artista, a função social da arte, a defesa de

uma pedagogia estético-política para conscientização das massas, entre outras,

encontravam-se na ordem do dia e norteavam a atuação de artistas e intelectuais engajados.

Porém, o golpe militar de 1964 ao romper a ligação de artistas, intelectuais e da esquerda

nacionalista com o povo (através do fechamento de organizações populares, entidades e

sindicatos), colocava, para esses mesmos atores, problemas e impasses políticos e culturais

que não poderiam ser ignorados.

No debate intelectual, que se seguiu a 1964, em torno do novo contexto político-

ideológico estava presente a questão da música popular e do paradigma nacional-popular

enquanto eixo cultural da esquerda e, que veio sofrer um revisão em diversos ângulos. A

cultura passou a ter uma importância fundamental, até porque se constituiu no único

veículo possível de atuação da esquerda1. Se a esquerda, artistas e intelectuais haviam

“falhado” na sua tarefa cultural de conscientização política para fortalecer a luta pelas

reformas, era chegado o momento de continuar a tarefa que, dessa vez, tinha como objetivo

principal a resistência a ditadura.

1 NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 58.

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É nesse contexto que surge o grupo e o espetáculo Opinião; seus fundadores,

Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa, entres outros, já

vinham de uma longa discussão e formulação dos problemas estético-ideológicos em torno

do teatro engajado brasileiro e da necessidade de ampliação da audiência das artes de

caráter político2. Esses artistas e intelectuais, muitos remanescentes do extinto CPC/UNE

(entidade que procurava, a partir da cultura popular, desenvolver uma pedagogia estético-

política que auxiliasse na conscientização das massas), levaram adiante as propostas e

intenções do Manifesto do CPC/UNE revista, agora, a luz dos novos debates e, produziram

o espetáculo Opinião. Estreando em dezembro de 1964, no Rio de Janeiro, o espetáculo

tinha como protagonistas e intérpretes João do Valle, Nara Leão e Zé Kéti, e consistia na

apresentação de músicas, de tradição popular e folclórica, intercaladas a textos, que

falavam da situação social do país, e diálogos entre os protagonistas, que relatavam suas

experiências de vida. No Opinião, a junção com a música popular, por ser uma arte de

público massivo, agia no sentido de efetivar o meio expressivo mais adequado para

ampliação do público e, de colocar, para o mesmo, uma nova perspectiva do eixo cultural

nacional-popular que vinha resultando dos debates3.

Caracterizado como uma produção de transição na vida cultural do país na década

de 60, o trabalho de conclusão de curso tem como objetivo a análise do espetáculo, visando

estabelecer possíveis continuidades e/ou rupturas, em relação ao paradigma nacional-

popular pré-64, efetivadas pelo espetáculo. Como balizas para a análise elegeram-se alguns

aspectos, são eles: aliança de classes, aliança intelectual/povo, e a relação povo-público.

Estes aspectos serviram de parâmetros para a comparação entre as opções estéticas e

ideológicas do espetáculo e as das produções culturais engajadas do início dos anos 60,

norteadas pelo mesmo paradigma. Para que o objetivo fosse alcançado, utilizou-se como

fontes o livro Cultura Posta em Questão, de Ferreira Gullar4, escrito em 1965; o

Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos

2 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 65. 3 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 65. 4 GULLAR, F. Cultura Posta em Questão. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1965.

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Estudantes (CPC/UNE), redigido em março de 19625; o texto de apresentação do

espetáculo6, de dezembro de 1964; e a gravação em fita cassete do show7.

O trabalho foi dividido em três capítulos: no primeiro, procurou-se delimitar o

conceito de nacional-popular entendido por artistas e intelectuais engajados do período.

Bem como articulá-lo as críticas feitas, posteriormente, às produções culturais engajadas

dos anos 60. O livro Cultura Posta Em Questão, de Ferreira Gullar, obra paradigmática

sobre a cultura e a arte engajada da 1º metade da década de 60, foi utilizado como fonte

neste momento do trabalho.

No segundo capítulo, procurou-se comparar as opções estéticas e ideológicas do

espetáculo Opinião às orientações do Manifesto do CPC, considerado uma produção

representativa da cultura nacional-popular do início dos anos 60. Como fontes, foram

utilizados o Anteprojeto do Manifesto do CPC/UNE e os textos de apresentação do

espetáculo Opinião.

O terceiro capítulo traz a análise o espetáculo propriamente dito: a estrutura, os

diálogos, as músicas, enfim, a articulação das partes do show aos aspectos acima

levantados. Ou seja, como o Opinião conseguiu, na prática, colocar para o público as

tranformações por que passava o modelo cultural nacional-popular enquanto eixo norteador

das produções culturais engajadas. As fontes utilizadas neste capítulo foram a gravação, em

fita cassete, e o texto de apresentação do espetáculo Opinião.

5 Extraído de: Hollanda, H. B. de. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde, 1960-1970. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 121-144. 6 Apud: Arte em Revista. n 1, jan/mar-1979. p. 58-59. 7 Disco gravado em 1965.

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2- O NACIONAL E O POPULAR: CONCEITO E CRÍTICAS

Nas décadas de 1950 e 1960 observou-se no Brasil um processo de transformação

social e a formação de uma cultura política até então desconhecidos8. A adesão e a

organização política de setores da sociedade em torno de idéias ligadas as questões

nacionais deu origem a um amplo movimento nacionalista. Nesse processo, a participação

de artistas, intelectuais e estudantes, oriundos da classe média, teve uma importância

singular.

Temas como nacionalismo, imperialismo, reforma agrária, cultura popular, entre

outros, foram amplamente discutidos e debatidos por partidos políticos, movimentos sociais

(principalmente o estudantil), organizações e instituições. A orientação política e ideológica

desses debates deu-se à luz do paradigma nacional-popular; orientação essa que ainda hoje

causa polêmica e crítica. Mas, o que significava e quais eram os eixos centrais da ideologia

do nacional-popular?

Segundo Miliandre Garcia de Souza, embora o conceito de nacional-popular tenha

sido desenvolvido por Antonio Gramsci, a influência do filósofo italiano não inspirou

diretamente a concepção de nacional-popular empregada pelos intelectuais brasileiros

engajados da década de 60. Por um lado, é necessário considerar a particularidade do

conceito elaborado para análise de uma conjuntura específica: o contexto histórico-cultural

da Itália dos anos 20 e 30 sob o regime fascista. Por outro lado, as questões sobre cultura

popular e nacionalismo, pautadas pelos intelectuais dos anos 60, estavam baseadas em um

princípio que, ao mesmo tempo, atribui singularidade ao conceito nacional-popular

8 PÉCAULT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil. Entre o povo e a nação. São Paulo: Ed. Ática, 1990. Tomamos emprestada do autor a definição de cultura política: É “um fenômeno de sociabilidade

política e uma adesão implícita a uma mesma leitura do real. A sociabilidade política fica no seio de uma

categoria social específica -no caso, os intelectuais e as camadas intelectualizadas. Há um processo de

comunicação tal que as idéias se transformam num sentido comum, que é a conversão da teoria em “filosofia espontânea da multidão” ou conversão da filosofia espontânea em teoria”. E completa o autor: “ ... esta

(cultura política), se fundamenta no encontro das gerações de 1930 e 1960. Um encontro que se manifesta

nas representações do plano político e, mais precisamente, na visão da evolução histórica, do povo e da

nação”. P 184-185.

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construído pelos intelectuais e, o diferencia da relação dos princípios de hegemonia e

contra-hegemonia de Gramsci: o conceito de alienação9.

Desta forma, com relação ao conceito de nacional-popular do filósofo italiano e do

seu emprego nas análises sobre arte e cultura, as idéias sobre a nacionalização e

popularização das linguagens artísticas desenvolvidas pela intelectualidade brasileira se

aproximam, com algumas ressalvas e em determinados momentos, as teses de Gramsci.

Logo, pode-se dizer que o “processo de constituição, organização e atuação da

intelectualidade engajada pode ser analisado de acordo com o conceito de nacional-

popular elaborado por Antonio Gramsci, mas não se restringe unicamente ao sentido

político empregado pelo filósofo”10.

No Brasil, o modelo político-econômica denominado nacional-popular, ou

populismo, definiu-se a partir do governo de Getúlio Vargas e, foi a forma de hegemonia

ideológica por meio da qual a burguesia tentou – e obteve em elevado grau- o consenso da

classe operária para a construção da nação burguesa, através da associação entre

trabalhismo e projeto de industrialização. Trabalhismo como promessa de proteção da

classe trabalhadora (no campo litigioso entre patrões e empregados) por um Estado

paternalista; o projeto de industrialização como interesse comum entre a burguesia e o

operariado11. Essa fórmula funcionou bem até o final da década de 50, quando as

contradições e impasses inerentes a esse modelo (a própria industrialização e o crescimento

e organização da classe operária) acabaram por minar as bases de sustentação sobre as

quais o nacional-popular havia se erguido. O desfecho, a resolução dos impasses acontece –

depois de um período de muita agitação - em 1964, com o golpe militar.

Entre meados de 1961 e Março de 1964 temos o governo de João Goulart que, como

herdeiro político de Vargas, tenta conciliar - através de uma democracia populista -, os

interesses do capital nacional-internacional e os direitos dos trabalhadores. Procurando

9 SOUZA, Miliandre Garcia de. Do Arena ao CPC: o debate em torno da arte engajada no Brasil (1959-64). Dissertação de Mestrado. UFPR, 2002. Introdução. De acordo com a autora, somente através do encontro entre as categorias povo e intelectuais estaria a possibilidade da instituição de uma cultura nacional-popular que tivesse por objetivo, única e exclusivamente, a fundamentação de uma conjuntura contra-hegemônica. Pois, “todo movimento intelectual se torna ou volta a se tornar nacional se se verificou uma ‘ida ao povo’, se ocorreu uma fase de ‘Reforma’ e não apenas de ‘Renascimento’”. 10 SOUZA, Miliandre Garcia de. Do Arena ao CPC: o debate em torno da arte engajada no Brasil (1959-64). Dissertação de Mestrado. UFPR, 20002. Introdução. 11 GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. A esquerda brasileira: Das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ed. Ática, 1987, p. 16.

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levar adiante um modelo cujos limites estavam postos, o conturbado governo de JG não

tinha nem poderia ter “pretensões revolucionárias, não só porque a lógica do nacionalismo

populista não as comporta, como também porque não se faz revolução a partir do Estado-

isto, pelo menos, 1789 e 1848 ensinaram”12. Contudo, por um breve momento, o povo, ou

os dominados, ‘saíram as ruas’ e fizeram uma aparição na cena da “grande política”, o que

criou uma expectativa de revolução, tanto à direita quanto à esquerda. A primeira, no caso,

para reprimí-la e a segunda para dirigí-la. Isso porque desde os anos 20 sempre prevaleceu,

em ambos os lados, um modelo explicatico sobre a história e a sociedade brasileira que

favorecia a imagem de uma revolução por vir13. Imagem esta que estará presente em muitas

canções de protesto nas quais, ‘o dia de amanhã’, representa bem esse imaginário.

Na base das lutas políticas e ideológicas da esquerda estão interpretações

diferenciadas sobre a história e a realidade brasileira. Isso implicará na modificação global

da representação do processo econômico e político, principalmente a partir de 1960,

quando o povo ‘ganha as ruas’ e a sua condução se coloca como uma tarefa urgente para as

vanguardas. Por um lado temos a defesa da “frente única nacional” – na qual a aliança de

classes é imprescindível e o Estado governa em nome do povo e da nação - e da revolução

democrático-burguesa, fundamental para eliminar os resquícios feudais do Brasil (a tônica

é antiimperialista). Por outro lado temos a defesa de uma “frente política popular” – o povo

(sua vanguarda) escolhe seus próprios dirigentes que governam em seu nome e em seu

interesse próprio- e da revolução socialista14. A primeira tese, do Partido Comunista

Brasileiro/PCB, foi a de maior aceitação entre artistas e intelectuais engajados - até porque

boa parte deles estava ligada ao partido, direta ou indiretamente. Desta forma, a

hegemônica cultural da esquerda (embora em permanente disputa, como atestam os

discursos sobre a nação e o povo) era, em certa medida, a hegemonia cultural do PCB, pelo

menos até 1964.

12 CHAUÍ, Marilena. Seminários. O Nacional e o Popular na Cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. p 67. 13 CHAUÍ, Marilena. Op. cit. São traços fundamentais desse modelo: ausência de uma burguesia forte; ausência de um proletariado organizado e maduro; presença de uma classe média capaz de se radicalizar em defesa dos interesses nacionais; ausência de uma ideologia nacional. Em função das ausências e privações anteriores e do lugar específico da classe média como funcionária do universal, ou seja, do Estado e de suas instituições, o único sujeito histórico é o aparelho estatal, a partir do qual, no qual e pelo qual se dão as transformações. Logo, criação e consolidação da unidade nacional pelo Estado nacional como agente histórico. Imagem esta compartilhada tanto pela direita quanto pela esquerda. P. 67-68. 14 CHAUÍ, Marilena. Op. cit, p. 70.

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No campo cultural o paradigma nacional-popular também orientou debates e

ações; questões colocadas para artistas e intelectuais sobre o rumo da “revolução

brasileira”, como a necessidade de engajamento do artista, a função social da arte, a defesa

de uma pedagogia estético-política para conscientização das massas, entre outras, foram

amplamente difundidas e defendidas, e, logo após 64, reafirmadas em função do impasse

estético-ideológico colocado para a cultura pelo golpe militar. Ferreira Gullar em seu livro

Cultura Posta em Questão de 1965 discute e defende alguns princípios que informaram e

formaram artistas e intelectuais engajados. Poeta, militante do PCB, presidente do Cento

Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes-CPC/UNE, Ferreira Gullar foi uma

das figuras centrais da cultura engajada do período. Não por acaso, seu livro é uma

verdadeira apologia da cultura popular, do nacionalismo e da necessidade de engajamento,

discutidos e defendidos a partir da situação em que encontravam-se a cultura e a arte no

período.

Já de partida, na introdução do livro, Ferreira Gullar chama a atenção do leitor para

a necessidade, colocada pelo momento histórico, de opção do intelectual brasileiro:

“participar ou não da luta pela libertação econômica do país, vale dizer, pela implantação

da justiça social que só se fará com a distribuição justa das riquezas criadas pelos que

trabalham”. Todas as demais argumentações do livro girarão em torno desse momento

decisivo na história do país, qual seja, a revolução brasileira. Diferente da concepção do

CPC/UNE, para o autor só existem duas opções paras os artistas neste momento: o

isolamento artepurista ou a participação. Mas, o autor adianta, a participação política do

artista não se dá apenas através da opção ideológica, ela é também determinada pela própria

evolução histórica do problema artístico numa sociedade de massas15.

No caso brasileiro, em função das contradições do processo encontra-se em curso

um fenômeno cultural de extrema complexidade, fenômeno este que se caracterizaria,

grosso modo, pela tomada de consciência da realidade brasileira16. Para Gullar esse

fenômeno é a cultura popular. Segundo o autor, a cultura popular não se resume a

manifestação de uma “nova tendência”, cujas características básicas seriam uma temática

nacional e direta ou indiretamente didática; a expressão surge como uma denúncia dos

15 GULLAR, Ferreira. Cultura Posta em Questão. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1965. Introdução. 16 GULLAR, F. Op. cit; p. 2.

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conceitos culturais em voga que buscam esconder o seu caráter de classes. Logo, como o

resultado da desmistificação produzida pelo desenvolvimento industrial que coloca a

necessidade de se repensar o conceito de arte e cultura17.

Desta forma, a definição de cultura popular está na consciência de que a cultura

tanto pode ser instrumento de conservação como de transformação social. É essa visão

desmistificada dos valores culturais que, naturalmente, leva o intelectual a agir, em

primeira etapa, sobre seus próprios instrumentos de expressão para, através deles, contribuir

na transformação geral da sociedade18. Mas, a partir dessa tomada de consciência da

realidade brasileira, como se coloca para o artista o problema da criação artística no âmbito

da cultura popular? De acordo com Ferreira Gullar, para o artista engajado a obra é

concebida como um tipo de ação sobre a realidade social e deve-se buscar o modo mais

eficaz de fazê-la exercer essa ação. Assim, o caráter político e/ou revolucionário de uma

criação artística não está presente apenas no resultado, e sim, no próprio processo de

criação. Este, por sua vez, não exclui problemas como o do público, a liguagem a adotar, o

tom, como a criação chegará ao público desejado, entre outros; enfim, esses problemas

estão intimamente ligados e participam mesmo da criação artística19.

A produção artística da cultura popular visa contribuir para aumentar o nível de

consciência do público, através de mensagens em última análise políticas. Para atingir o

povo a que se destina – da classe operária, passando pelo campesinato, a classe média

(estudantes) até chegar as massas marginalizadas (analfabetos) – artistas engajados ligados

a cultura popular fazem uso dos meios de comunicação e ação dos movimentos estudantil e

operário e das organizações camponesas. Mas, a produção artística da cultura popular não

se limita a produzir para o povo, vai além: paralelamente ao trabalho de crítica dos valores

culturais e da produção artística existe a necessidade de se desenvolver uma ação mais

próxima da massa. Não apenas produzir para o povo, mas trabalhar com ele, visando

desenvolver nele os meios de comunicação e produção cultural, e obter nesse trabalho um

conhecimento mais objetivo de determinada comunidade que permita maior eficácia na

elaboração de obras que sejam dirigidas ao povo20. Daí a importância e a necessidade,

17 GULLAR, Ferreira. Cultura Posta em Questão. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1965. p 2. 18 GULLAR, F. Op. cit., p. 3. 19 GULLAR, F. Op. cit., p. 4. 20 GULLAR, F. Op. cit, p. 6-7.

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segundo Gullar, de organismos que deêm sustentação a esse trabalho, como é o caso do

MCP-Recife21 e do CPC/UNE.

De acordo com o autor, por realizar um trabalho de desalienação das atividades

culturais em suas várias manifestações e, conseqüentemente, por em questão valores e

princípios tidos como universais, a cultura popular tem caráter eminentemente nacional e

mesmo nacionalista. Isso porque, ao encarar a cultura como um problema social o artista se

depara com problemas reais de sua própria situação social e questões internas de seu

trabalho, como a criação e a distribuição da produção artística. No Brasil, onde grande parte

dos bens culturais consumidos pela população são estrangeiros como o são também os

meios de distribuição, os problemas com que se depara o artista (ou melhor, boa parte

deles) tem causas em interesse estranhos ao país, na dominação imperialista22. Desta

forma, a luta do artista engajado na cultura popular se trava, de início, contra o

imperialismo, afirma Ferreira Gullar.

O trabalho de cultura popular é orientado por uma nova visão nacional; uma visão

crítica que leva em consideração as necessidades do desenvolvimento cultural do país para

fazer a troca de experiências com o exterior. Não se trata, explica Gullar, pois, de um

isolacionismo cultural, e sim de crítica à assimilação de princípios e valores externos (que

integraram e integram o processo cultural do país) que impliquem a anulação ou entrave da

consciência do intelectual (e não do povo). Tal como princípios e valores externos, a arte

exprime, direta ou indiretamente, explícita ou implicitamente uma visão de mundo ou, em

última análise, uma ideologia. Neste ponto reside a importância da desmistificação do

conceito de arte e cultura como um fim em si; o significado da arte, expresso através de

recursos metafóricos ou simbólicos próprios da liguagem artística, é seu verdadeiro

conteúdo. Desta forma, o pensamento racional não está excluído da linguagem específica

da arte. Tanto não está, que o artista engajado parte de uma visão dentro da qual a realidade

se dá explicada23.

Segundo Ferreira Gullar, a arte reflete conceitos, pontos de vista sobre a realidade,

por isso deve ser concebida como veículo de conscientização do público. É esta atitude

21 Movimento de Cultura Popular, surgido em Pernabuco durante o governo de Miguel Arraes. O movimento de base estruturou-se em torno da mobilização de professores primários e educadores que trabalhavam com o método de alfabetização de Paulo Freire. 22 GULLAR, Ferreira. Cultura Posta em Questão. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1965. p. 8. 23 GULLAR, Ferreira. Op. cit, p. 21.

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consciente que o artista deve ter com respeito a realização da obra e o seu significado.

Desta forma, sua função social será excercida na medida em que tenha consciência de sua

responsabilidade e compreenda que a arte é um meio de comunicação coletiva 24.

Nota-se, a partir dessa breve exposição, a posição do autor com relação aos

impasses estético-ideológicos vivenciados por artistas e intelectuais engajados antes e,

principalmente, após o golpe militar. Dialogando com seus pares, o autor procura defender,

justificar e reinterar seu compromisso com o povo e com a transformação social. O tom do

discurso em nada se diferencia do do Manifesto do CPC/UNE, o que pode representa uma

continuidade, em termos teórico e prático, com relação ao paradigma nacional-popular

anterior ao golpe.

A idéias e princípios discutidos e defendidos por Ferreira Gullar fazem parte da

representação construída por um determinado setor da sociedade –os intelectuais – acerca

da realidade brasileira de um período, a saber, primeira metade da década de 1960. As

representações construídas a cerca de uma conjuntura histórica são parte integrante desta

mesma conjuntura e, como tal, constituem também, fatos históricos. É em cima de alguns

aspectos das representações nação-nacinal e povo-popular que Marilena Chauí procura

fazer uma análise crítica do nacional-popular na cultura, aspectos estes, presentes sobretudo

nos Cadernos do Povo Brasileiro e no anteprojeto do Manifesto do CPC, publicações

representativas do paradigma nacional-popular da primeira metade da década de 60.

A primeira crítica da autora de Seminários diz respeito a postura autoritária de

intelectuais e artistas engajados no ideal nacional-popular. Na verdade, o autoritarismo não

estava presente nos diálogos e discussões entre intelectuais, apesar das diferentes posições

políticas defendidas. Ele aparecia quando a discussão, ou melhor, o esclarecimento, era

dirigida ao povo. Este aspecto é bem evidente no campo cultural, onde formou-se uma

pedagogia política com o intuito de equiparar a “consciência social ao ser social” das

massa, para que esta pudesse cumprir seu papel histórico de agente das transformações

estruturais da sociedade. Nas várias manifestações artística e cultural produzidas com esse

intuito, percebe-se que a pedagogia era antes persuasão do que discussão e esclarecimento,

embora a intenção fosse pedagógica25.

24 GULLAR, Ferreira. Op. cit, p. 24. 25 CHAUÍ, Marilena. Seminários. O Nacional e o Popular na Cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. p 83.

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De acordo com Marilena Chauí, os intelectuais não diziam de onde e a partir do que

estavam falando, porquê possuiam uma consciência e ação não alienadas que os garantisse

credibilidade e reconhecimento; simplesmente apresentavam-se como portadores de uma

fala universal, cujas premissas eram evidentes26. Aliás, esse aspecto do nacional-popular é

o mais criticado pela autora. Categorias como povo, nação, popular, leis objetivas,

vanguarda, entre outros, são apresentados e utilizados como se fossem entidades totalmente

desarticuladas de conceitos, conjunturas, como se fossem um fim em si. Nesse tipo de

procedimento podemos observar um paradoxo, senão uma contradição: se a intenção de

intelectuais e artistas era a de conscientizar as massas - para que elas pudessem entrar em

sintonia e contribuir com as transformações estruturais do país -, e se essa conscientização

passava pela desmistificação de valores e princípios próprios da classe dominante e

arraigados na sociedade(como salientava Gullar), então esse tratamento dado as categorias,

vinha no sentido de mistificar e não o contrário, uma vez que não explicava as origens, as

divisões, as composições que constituem cada categoria. Dessa forma, um debate/projeto

que visava conscientizar as massas através da desmistificação acabava por tornar-se um

roteiro programático que deveria ser seguido pelo povo, enquanto o debate propriamente

dito, que visava a direção do processo político, ficava restrito a vanguarda, aos

intelectuais/artistas.

Outras características do nacional-popular trabalhadas por Marilena Chauí estão

presentes nas apresentações e nos conceitos de povo e nação. Os discursos são apresentados

pelos intelectuais como discursos sobre o povo e a nação, mas como em sua maioria estão

articulados a uma estratégia de poder e não peocupados em explicar o significado dos

termos, operam um deslizamento no qual o discurso torna-se do povo e da nação (porque

discurso de sua vanguarda, interessada na subordinação dos interesses e identidades de

classe, etnias ou regiões a um interesse geral e a uma identidade mais abrangente, dos quais

é portadora), e termina como discurso que diz o povo e a nação; logo uma ideologia do

povo, da Nação, etc. Desta forma, segundo a autora, embora tenham a pretensão expô-lo, os

intelectuais estão, na verdade, construíndo o nacional e o popular. Nessas construções,

povo-popular e nação-nacional são apresentadas como “entidades positivas e abstratas cuja

26 CHAUÍ, Marilena. Op. cit, p. 83.

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existência, necessidade e movimento são postulados pelos dircursos, mas não expostos por

eles”27.

De acordo com Marilena Chauí, porque não vai ao encontro de um anseio genuíno

das camadas populares, e porque tenta subordinar os interesses e as várias identidades

baseadas no consenso de seus participantes, ou seja, o elemento popular, é que o discurso

nacional e do povo tende a se esgotar em si mesmo e nas vontades e práticas de poder

associadas. Estas, por sua vez, disputam a apropriação do símbolo Nação porque não são

homogêneas e sim, conflitantes entre si. Logo, o discurso nacional não é ideologia solta no

ar, insere-se numa complexa rede de práticas de dominação e, por isso, pode alcançar certa

ressonância popular. Contudo, e apesar da pressão dos aparelhos ideológicos do Estado e

outros, essa aceitação é algo artificial, postiço, logo, precário, não tendo nada de nacional-

popular, como o quer o nacionalismo, afirma a autora. (falta referência)

O povo aparece, nesses discursos, sob duas perspectivas: como objeto, comportando

uma definição, uma diferenciação interna e uma missão; e como destinatário. Enquanto

objeto é definido como “o novo na história”; diferencia-se em povo “fenomênico”

(alienado, inconsciente, passivo, desorganizado, produtor de uma arte do povo e uma arte

popular; enfim, a síntese da falsa consciência que, por isso, necessita da orientação e

condução de uma vanguarda), e em povo “essencial” (consciente, ativo, cultivado,

comunitário e, produtor de uma arte popular revolucionária), no qual se enquadra a

vanguarda, uma vez que optou por ser povo; a missão é a “passagem do reino da

necessidade para o reino da liberdade”28. Em outra palavras, a revolução democrático-

burguesa ou a revolução socialista, dependendo do resultado da disputa político-ideológica

da esquerda.

A tônica nacionalista dos discursos está intimamente relacionada a antiimperialista e

é sustentada por uma concepção etapista da revolução. Segundo Chauí, a interpretação do

imperialismo na época se dá como intervenção de nações estrangeiras sobre a nação

brasileira, e não como “intervenção concertada do capital internacional sob direção do

capital financeiro, isto é, como imperialismo propriamente dito”. Desta forma, o nacional-

popular era guiado por uma representação nacionalista do imperialismo, representação esta

27 CHAUÍ, Marilena. Seminários. O Nacional e o Popular na Cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. p 84. 28 CHAUÍ, M. Op. cit., p 86.

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que era afirmada e confirmada pelos os fatos 29. Contudo, segundo a autora, a ênfase no

imperialismo, ou melhor, em alguns fatos que deixavam por conta do imperialismo todos os

“eventos”, acabava por deixar ‘escondida’ uma questão essencial: os limites da política

populista que utiliza o Estado como fator de mobilização30.

A análise crítica desenvolvida por Marilena Chauí - e por outros autores, ao longo

dos anos 80 - sobre o nacional-popular é endossada, em grande parte, por Michel Debrun;

principalmente no sentido de desmistificar, ou desarticular, entidades que se oferecem

como evidentes. Logo, de desconstruir a imagem apresentada do nacional-popular como

ideologia dele próprio. Escrevendo no final dos anos 80, Michel Debrun procura – em seu

trabalho A Identidade Nacional Brasileira – mapear e analisar a gênese da dualidade entre

identidade política e identidade cultural e, avaliar as possibilidades da sua evolução;

dualidade esta que, segundo o autor, está presente tanto nas produções do nacional-popular

dos anos 60, quanto nas análises críticas feitas a ele, entres elas, a de Marilena Chauí.

Tomando como base as análises presentes nos Ensaios sobre o Nacional e o Popular na

Cultura Brasileira de Marilena Chauí, o autor começa fazendo algumas ressalvas às teses

defendidas pela autora.

Primeiramente, o conceito de nacional-popular não parece intrinsecamente vazio, ou

contraditório. Segundo Debrun, pode haver em tese união real, embora parcial, do nacional

e do popular; ou seja, consenso popular em torno de valores nacionais e identidade nacional

de quem participa desse consenso. É o caso da história das velhas nações; a invenção da

Nação deve-se precisamente à necessidade de criar um liame forte entre muitos elementos

heterogêneos. Desta forma, as diferenças ou oposições de classes, etnias ou regiões

invocadas para demonstrar a impossibilidade de tal consenso, não devem ser tomadas como

rígidas ou inflexíveis. Embora a nação tenha um caráter abstrato-mesmo quando baseada no

consenso- e paire em cima do social imediato, ela comporta uma esfera pública na qual ou

em torno da qual são tratados, hierarquizados ou reestruturados, interesses e relações

conflitantes, com o intuito de se chegar à definição de um interesse geral sustentado por

uma relação de hegemonia. Neste sentido, e apesar dos conflitos irredutíveis como de

29 CHAUÍ, Marilena. Op. cit; p 71/72. À título de exemplos a autora cita alguns fatos: o FMI, a Aliança para o Progresso, o IBAD, o IPES, a violência americana contra Cuba e a América Central, a política Lincoln Gordon-Roberto Bob Campos Fields, a presença maciça do capital estrangeiro, entre outros; enfim, uma realidade bastante palpável. 30 CHAUÍ, M. Op. cit., p. 72.

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classes, etnias ou regiões, é possível falar de consenso popular em torno de valores

nacionais e identidade nacional para além de mero artefato ideológico31.

O relativo êxito do discurso nacional e das identidades nacionais outorgadas que ele

produz, mostra que ele se impõe num semivácuo32. Segundo Debrun, isso demonstra que

existe uma aceitação; logo, pode haver um potencial popular pronto a cristalizar nesse

sentido, até porque, a proliferação das identidades de base necessita de um quadro geral em

relação ao qual, e dentro do qual, ela possa se situar. Dessa forma, fica difícil explicar essa

aceitação só pelo peso das práticas de dominação; o “discurso nacional deve encontrar

âncora, senão numa identidade nacional já presente, pelo menos num anseio para que tal

identidade se desenvolva, eventualmente dirigida contra as práticas de dominação

associadas a esse discurso”33. A possibilidade de reduzir a Nação e a identidade nacional à

ideologias onde existe um continuidade e generalidade do discurso nacional constitui uma

possibilidade- limite, se não se pode alcançar esse limite, pode-se, pelo menos, aproximar-

se dele, afirma o autor.

Terceiro, embora procure demonstrar a impossibilidade de um nacional-popular no

Brasil, esta impossibilidade não é estendida para a esfera cultural. De acordo com Debrun,

não se exclui que haja um consenso, no caso, uma comunhão – em torno, por exemplo, da

música popular ou popular/erudita – brasileira. As críticas ao nacional-popular são

dirigidas, sobretudo, ao caráter ilusório de um consenso nacional político, ou cívico-

político, em torno de objetivos também políticos 34.

Aliás, segundo Michel Debrun, a idéia de um nacional-popular cultural e de uma

identidade nacional cultural é um tema recorrente e bastante familiar na tradição intelectual

brasileira. Esta, procura inscrever um brasilidade e, a partir dela, fazer com que a cultura se

torne – através de seus portadores - auto-referencial, e vise seu próprio alargamento e

aprofundamento; nisto consistiria sua universalidade. Essa ‘tradição’ de uma identidade

nacional cultural comporta três vertentes: na primeira, encontra-se a noção ou a idéia de

uma esfera pública no campo cultural – com valores a serem protegidos ou promovidos,

31 DEBRUN, Michel. A Identidade Nacional Brasileira. Estudos Avançados, 4(8), p, 42-43. 32 DEBRUN, M. Op. cit, p, 43. Em função das condições históricas de marginalização da sociedade brasileira que impossibilitou - e impossibilita – a população de ter acesso numa ação coletiva autônoma, geradora de uma nova identidade nacional. 33 DEBRUN, M. Op. cit., p. 43. 34 DEBRUN, M. Op. cit. p. 44.

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pelo desejo senão por obrigação; ou seja, a cultura não deve sofrer invasão, imperativos

representados por questões éticas ou ético-cívico-políticas35.

Uma segunda vertente está acentada no aspecto da especificidade, da diferença

básica da cultura brasileira. De acordo com o autor, esta especificidade/diferença da cultura

brasileira é possível pela multiplicação das interações entre o pólo exógeno/endógeno e o

pólo endógeno; entre estes dois pólos existem inúmeras modalidades de empréstimos,

alianças, antagonismos e interpretações recíprocas. De acordo com essa idéia de uma

dualidade básica da cultura brasileira, faz-se necessária e essencial a igualdade tensa entre

os dois pólos; igualdade na qual residiria – e sem perspectiva de superação a curto e médio

prazos – a identidade nacional brasileira. E, por fim, uma terceira vertente, cuja identidade

nacional cultural estaria baseada na possibilidade de uma interação generalizada entre

classes, etnias, regiões, etc. Essa interação interessaria tanto ao aspecto comunitário como

ao da diferença da identidade cultural. Neste caso, não existe a dialética tensa de público e

de privado, vigente na esfera política; mas uma transição e uma oscilação suave entre os

dois pólos36.

É claro que não existe uma rigidez ou aspectos próprios que separem, de forma

irredutível, essas vertentes. Ao contrário, elas são próximas e, muitas vezes se

“entrecruzam”. Afinal, partem de uma mesma premissa, a crença na existência de uma

identidade nacional cultural.

Segundo Michel Debrun, essa dualidade entre identidade política e identidade

cultural, presente em toda a tradição intelectual brasileira, deriva-se do fato de uma

dimensão ter sido mais bloqueada mais do que a outra. Ou seja, na dimensão cívico-política

o advento de uma identidade nacional forte tem sido bloqueada desde as origens37. Estes

bloqueios, por sua vez, dificultaram – e dificultam – a emergência e, sobretudo, a

continuidade do nacional-popular. Na ausência de uma identidade nacional surgiram

pseudo-identidades. Algumas outorgadas pelos grupos dominantes e, por isso, artificiais;

outras mais naturais, porém raquíticas, por resultarem, seja da acomodação dos atores às

estruturas de dominação, seja da sua revolta, mas desprovida de bases, contra essas

estruturas. Em todos os casos, os atores oscilavam – e oscilam – entre essas identidades;

35 DEBRUN, Michel. A Identidade Nacional Brasileira. Estudos Avançados, 4(8). P. 44. 36 DEBRUN, M. Op. cit., p, 45. 37 DEBRUN, M. Op. cit. p, 46.

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oscilações estas que significam a não identificação com a própria identidade. De acordo

com o autor, hoje é possível perceber a ruptura, senão o abalo de certos bloqueios, o que

permite vislumbrar a possibilidade de uma nova identidade que seja, simultaneamente,

menos oscilante e mais capaz de servir de base para uma intervenção sociopolítica coerente

e de longa duração38.

Para Debrun, no campo cultural não ocorreu o mesmo que no campo cívico-político,

apesar da marginalização de um elemento impulsionador essencial – o negro. Parecem

haver várias explicações para a expansão da esfera sociocultural e, de geração da identidade

nacional durante o processo de marginalização. O autor cita duas: a primeira é a própria

pujança da afirmação negra e de outras camadas marginalizadas. Essa pujança é, ao

mesmo tempo, um fenômeno natural e uma resposta à exclusão da identidade cívico-

político efetiva (senão teórica). A segunda é a tentativa (por parte dos grupos dominantes)

de neutralizar as aspirações cívico-políticas das camadas populares. Isso se deu da seguinte

forma: depois de terem combatido, passam a valorizar um comunidade cultural de que eles

próprios podem fazer parte. O que constitui uma estratégia válvula de escape, por um lado

e, por outro, uma integração real, e não apenas ideológica, de todos os brasileiros. Contudo,

essa integração é folclorizada e turistificada por parte dos grupos dominantes, por ser

apenas cultural e polarizada em torno de valores de origem afro-brasileira39.

Essa segunda explicação é um pouco problemática; neste exemplo dado, a classe

dominante tentou neutralizar tanto as aspirações cívico-políticas como as sócio-culturais

das camadas negras e marginalizadas. Contudo, somente na primeira obtiveram “sucesso”;

na segunda, a existência de relações e interações coletivas de base permitiu a constituição

de uma memória coletiva capaz, não só de impedir a neutralização de suas aspirações

sócio-culturais como também, de servir de núcleo para uma possível identidade nacional

cultural. Possível, pois essa identidade parece não estar totalmente constituída; caso

contrário, essa “integração real de todos os brasileiros” não seria folclorizada e/ou

turistificada. Logo, essa integração parece ainda ter muito de ideológico.

Ao longo desse capítulo procurou-se expor diferentes posições sobre o nacional-

popular. Posições estas que resultam tanto de perspectivas diferenciadas, quanto do

38 DEBRUN, Michel. A Identidade Nacional Brasileira. Estudos Avançados, 4(8). P. 46. 39 DEBRUN, M. Op. cit., P. 46-47.

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distanciamento de cada autor com relação a um determinado período da nossa história, no

qual o naciona-popular encontrava-se na ordem do dia para os intelectuais/artistas, em

particular, e para a sociedade, em geral. Esta exposição visa, primeiramente, nos situar na

evolução dos debates acerca do tema, particularmente no seu aspecto cultural. As

divergências e as polêmicas em torno do nacional-popular, principalmente em relação as

manifestações/produções artíticas e culturais orientadas por esse paradigma parecem

demonstrar que, embora a intenção primeira - conscientizar o povo para a transformação

estrutural da sociedade - não tenha se efetivado, tais manifestações/produções tiveram uma

importância fundamental na fomentação de debates/reflexões sobre arte, cultura, função

social da arte/artista, cultura como instrumento de transformação social, entre outros.

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3- O OPINIÃO EM RELAÇÃO AO MANIFESTO DO CPC/UNE:

CONTINUIDADES E/OU RUPTURAS?

Os debates e discussões acerca do nacional-popular na cultura não ficaram apenas

restritos ao plano teórico. As transformações por que passava o país exigia de intelectuais

e artistas mais do que formulações, reflexões explicações sobre os problemas econômico-

político-sociais nacionais. Era preciso ir além, por em prática o que vinha resultando de

tantos debates, e da tomada de consciência da realidade brasileira, e contribuir

efetivamente para a mudança. A cultura política que se formou possibilitou a promoção

de políticas culturais40 - que saíam do âmbito do Estado, embora estivessem ligadas a ele

– por parte de partidos e entidades. É o caso, por exemplo, do CPC/UNE.

Surgido na esteira do MCP e tendo como base a valorização da cultura popular, o

Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes-CPC/UNE tinha como

objetivo horizontalizar a cultura, “levá-la ao povo que se manifestava através dos

sindicatos, dos seus jornais, de suas organizações”41. Nesta horizontalização da cultura

residia a necessidade de popularização (ou, ampliação do público) das artes de conteúdo

político; necessidade esta que já vinha sendo debatida e trabalhada pelo teatro de Arena

desde final dos anos 50. Não por acaso, foi da área teatral que saiu boa parte dos artistas

militantes do CPC/UNE, assim como o primeiro núcleo da entidade a se organizar foi o

do teatro.

As discordâncias internas, existentes desde a organização do CPC/UNE,

alcançariam o auge no plano político-ideológico com a publicação em outubro de 1962,

portanto, alguns meses após a organização da entidade, do anteprojeto do Manifesto do

CPC/UNE. A polêmica maior girou em torno da aplicação de duas teses: a “arte popular

revolucionária” e a prioridade dada ao “conteúdo” em detrimento da “fórmula”, condição

40 COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras, 1999. Tomamos emprestado do autor a definição de política cultural: “A política cultural se constitui em uma ciência da

organização das estruturas culturais, (....) é entendida habitualmente como programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas. [grifos do autor] p. 293. 41 MORAES, Dênis de .Vianinha: cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Ed. Nórdica, 1991. p 85.

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necessária para que tal arte pudesse ser criada42. Vejamos alguns pontos importantes do

manifesto:

O Manifesto do CPC/UNE tinha como objetivo orientar a produção de intelectuais

e artistas, e via na arte um instrumento de transformação social; isso porque, ao

compreender a arte como uma das muitas manifestações da superestrutura interligada a

infra-estrutura, o artista toma consciência dos condicionamentos a que estão submetidas as

manifestações culturais e, é capaz de realizar um trabalho criador verdadeiramente livre. A

dialética entre a base econômica e cada setor da superestrutura acaba proporcionando uma

relativa autonomia da arte que, por sua vez, quando transformada em uma força ativa e

eficiente, é capaz de influir sobre a base material da sociedade. Nesta compreensão

consistiria a condição e possibilidade de qualquer arte revolucionária43.

Conforme o Manifesto, levando em conta o grau de consciência, os artistas e

intelectuais brasileiros podiam ser distribuídos de acordo com três atitudes distintas: o

conformismo, o inconformismo, ou a atitude revolucionária conseqüente.

Na primeira atitude, a conformista, alienada, o artista pensa e valoriza a posição e o

papel da arte dentro da sociedade pela concepção idealista, não percebendo a arte como

elemento constitutivo da superestrutura social. Na segunda atitude, a inconformista, o

artista é movido por um vago “sentimento de repulsa pelos padrões dominantes”; não nota,

contudo, que a simples recusa não o coloca necessariamente ao lado do povo e de sua luta.

A terceira atitude, a “revolucionária e conseqüente”, é a adotada pelo CPC, através

da opção de seus membros “de ser povo, de ser parte integrante do povo, destacamentos de

seu exército no front cultural”44. Para tanto, o Manifesto do CPC/UNE faz a distinção de

três tipos de concepção de cultura para mostrar a sua posição na produção artística. São

elas: a arte do povo, a arte popular e a arte popular revolucionária.

A arte do povo se constitui em um produto de comunidades economicamente

atrasadas do meio rural ou urbano ainda não atingidas pela industrialização. Nesta arte, o

artista não se distingue da massa consumidora e, a arte se limita – em função do nível

primário de elaboração artística – a um simples ordenamento dos dados mais visíveis da

42 MORAES, D. de. Op cit., p. 115. 43 Anteprojeto do Manifesto do CPC. Apud: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: cpc,

vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 121-144. 44 HOLLANDA, H. B. de. Op. cit., P. 127.

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consciência popular. A arte popular, por sua vez, se constitui numa arte em que é possível

notar a divisão do trabalho; o artista pertence a um estrato social diferente de seu público,

que é constituido pela população dos centros urbanos desenvolvidos. Enquanto a arte do

povo tem como função satisfazer necessidades lúdicas e de ornamentos, na arte popular,

mais apurada e com um gau de elaboração técnica superior, a finalidade é oferecer um

passatempo, uma ocupação ao público.

De acordo com o Manifesto, a escolha do CPC/UNE recai sobre o que ele chama de

“arte popular revolucionária” e, se caracteriza pela essência do povo e pela vivência, por

parte do artista, dessa essência quando da percepção da “posse de poder pela classe

dirigente e, a conseqüente privação de poder que se encontra o povo enquanto massa de

governados pelos outros e para os outros”. Dessa forma, a arte pretende ser popular através

da identificação com a aspiração fundamental do povo e, revolucionária porque

“revolucionar a sociedade é passar o poder ao povo”45.

Para tanto, na arte popular revolucionária a comunicação com o povo-público deve

ser um compromisso do artista e intelectual. Conforme o Manifesto, não se trata de uma

negligência formal, já que a pesquisa formal do artista revolucionário se desdobra em duas

direções: por um lado ela tem antes o “caráter sociológico de levantamento das regras e dos

modelos, dos símbolos e dos critérios de apreciação estética que se encontram em vigência

na consciência popular”. Por outro, consiste no “trabalho constante de aferir os seus

instrumentos a fim de que com eles poder penetrar cada vez mais fundo na receptividade

das massas”46.

As críticas feitas ao Manifesto vieram tanto de componentes do CPC/UNE,

principalmente os ligados as áreas do cinema e da música, como de autores que se

dedicaram ao estudo da cultura e da arte engajadas da década de 1960, a partir do início dos

anos 80 Entre eles podemos citar Marilena Chauí. Para a autora, embora o CPC/UNE seja

definido como “orgão cultural das massas” e “fruto da própria iniciativa criadora do povo”,

45 Anteprojeto do Manifesto do CPC. Apud: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 131. 46HOLLANDA, H. B. de. Op. cit., P. 139.

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o Manifesto não teve como destinatário o povo, e sim o intelectual e o artista “alienado”.

Aliás, o povo só aparece no Manifesto quando da pergunta: “o que sou eu?”47.

Segundo Chauí, o Manifesto representa bem a construção de um imáginário

político no qual entidade como o povo, por exemplo, é concebida, por artistas e intelectuais

engajados, ora como povo fenomênico (realmente existente), ora como povo essencial (uma

invenção, parte da construção desse imaginário). De acordo, ainda, com Marilena Chauí,

essa ambigüidade com relação a concepção de povo vai além. O termo povo aparece tanto

como sinônimo de classe dominada , plebe, quanto como sinônimo de vanguarda, populus e

optimates. Daí, porque os intelectuais/artistas do CPC/UNE não podem ter no povo real ou

fenomênico um parceiro político e cultural ou um interlocutor igual, é que optaram por ser

povo ou, optaram por ser a vanguarda do povo, condutores, dirigentes, educadores48.

Segundo Marcos Napolitano, o manifesto tentava disciplinar a criação de artistas

engajados porque o que se priorizava na arte era um canal, um veículo ideológico adequado

ao conteúdo nacionalista em questão e não sua qualidade estética. Assim, antes do povo, o

artista deveria se converter aos novos valores e procedimentos, nem que para isso tivesse

que abrir mão de seu “deleite estético e da vontade de expressão pessoal”49. Logo, as

preocupações estéticas deveriam ficar, assim, subordinadas ao conteúdo ideológico.

Essas questões, contudo, não foram muito bem assimiladas, principalmente nos

núcleos de música e cinema. Segundo Napolitano, no caso da música, a “submissão da

‘forma’ ao ‘conteúdo’ e da ‘expresão’ à ‘comunicação’ significava uma ruptura total com

as bases convencionais da bossa nova, formadora e inspiradora dos principais criadores

musicais, mesmo entre os simpatizantes do CPC”50. De acordo com o autor, a produção

musical do campo que mais tarde ficou conhecido genericamente como “canção de protesto

nacionalista” pouco foi informada pelas formulações estéticas e ideológicas do Manifesto,

embora alguns músicos engajados tivessem tentado realizar, em alguns momentos e obras

específicas, os preceitos do manifesto. Álias, áreas como o cinema, as artes pláticas e a

música (popular e erudita), esteticamente, foram pouco influenciadas pelo manifesto. Nos

47CHAUÍ, Marilena. Seminários. O Nacional e o Popular na Cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. p. 86-87. 48 CHAUÍ, Marilena. Seminários. O Nacional e o Popular na Cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. p. 91. 49NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 41. 50 NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p 43.

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campos da poesia e do teatro a busca de comunicabilidade e o mimetismo das formas

artísticas populares parece ter sido um procedimento mais presente; essas áreas necessitam,

inclusive, de análises mais acuradas, conclui o autor51.

No caso específico da música, Miliadre Garcia ressalta que a aproximação de

compositores ligados a Bossa Nova “nacionalista” à cultura popular (ou a compositores

populares), alcançou, no campo político, as propostas do PCB (de formação de uma frente

única como tática necessária para a revolução brasileira). Contudo, no aspecto estético, essa

aproximação visava muito mais a ampliação das formas poéticas e sonoras dos

compositores da Bossa Nova “nacionalista”, do que a promoção e a organização dos

compositores populares ou a “reprodução” das músicas das camadas populares para se

alcançar as massas e comunicar sua mensagem. Ou seja, embora compositores ligados a

Bossa Nova “nacionalista” atuassem e militassem no CPC/UNE, como é o caso de Carlos

Lyra, suas produções musicais distanciavam-se das formulações estéticas e ideológicas do

Manifesto, conclui a autora52

Essa tentativa, por parte do teatro, de realizar as intenções formuladas pelo

Manifesto fica explícita nas várias peças montadas e apresentadas pelo núcleo de teatro do

CPC/UNE nos sindicatos, favelas e ruas, para a conscientização do povo. Um episódio

envolvendo Oduvaldo Vianna Filho, demonstra bem o distanciamento entre a formulação

ideológica da arte pretendida e produzida pelo CPC/UNE e a sua percepção pelo povo. “Ao

representar, num subúrbio carioca, um dos autos que denunciavam o imperialismo no

Brasil, Vianinha entrou em cena vestido de Tio Sam e, desapontado, ouviu um cidadão

rindo e comentando: ‘Olha só o papai Noel...’”53. Por mais que tivessem como base a

cultura popular, o caráter pedagógico desenvolvido pelos cepecistas excluía a própria

cultura popular, ou seja, excluía a compreenção de que as camadas populares possuem

manifestações e representações artística/culturais próprias, e que expressam seu modo de

perceber, assimilar e agir sobre a realidade vivida. Manifestações estas que estão

diretamente relacionadas a posição (marginalizada) ocupada por essse setores na sociedade.

51 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 43-44. 52 SOUZA, Miliandre Garcia de. Do Arena ao CPC: o debate em torno da arte engajada no Brasil (1959-64). Dissertação de Mestrado. UFPR, 2002, p. 109-110. 53 MORAES, Dênis de .Vianinha: cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Ed. Nórdica, 1991. p 117. Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, foi ator, tramaturgo e diretor de teatro; teve uma intensa militância na área cultural, foi militante do PCB, um dos ideólogos do TPE, do CPC e do Opinião. Em todos os espaços sempre perseguiu a popularização da arte para que esta chegasse as massas.

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Curiosamente, a aproximação do CPC/UNE da cultura popular, não se daria no

setor de teatro, e sim através do núcleo da música. Essa aproximação fica evidente com o

contato entre artistas/intelectuais do CPC/UNE e músicos populares, principalmente do

samba. Contudo, esse contato, direcionado para o público da classe média, especialmente

estudantes, visava menos um trabalho de base que procurasse captar e compreender as

manifestações populares e seus sentidos – e, a partir disso trabalhá-las para que a

conscientização do povo estivesse de acordo e servisse de base para as Reformas de Base

pretendidas pelo governo Jango e defendidas e apoiadas por partidos e entidades-, do que

informar artistas sobre elementos e materiais poéticos e sonoros que pudessem equacionar,

segundo Napolitano, a “tensão interna do debate estético/ideológico da esquerda

nacionalista”; debate este que oscilava “entre a ‘pedagogia dos sentidos’(ainda que

motivada ideologicamente) e a exortação política (onde não se colocava o problema da

busca de uma excelência estética)”54. Entre as produções realizadas nesse sentido, podemos

citar a Noite da Música Popular Brasileira, realizada no Teatro Municipal do Rio de

Janeiro em dezembro de 1962, e o show Opinião, realizado em dezembro de 1964. Além do

citado acima, dois outros aspectos em comum pareciam orientar as produções, embora

realizadas em momentos diferentes: uma aliança política, na qual o artista da classe média e

o povo se reconhessem atingidos pelo mesmo conjunto de contradições, e se encontram

para superá-lo; e o povo/público.

Esses aspectos começam a ganhar força a partir de 1964, com o golpe militar,

momento de reflexão, por parte de artistas engajados, sobre a eficácia do projeto político-

ideológico-cultural do CPC/UNE; nesta autocrítica, três aspectos são destacados: o

voluntarismo, o dogmatismo teórico e as concepções estreitas que faziam o movimento

subestimar os valores estéticos e culturais, por um lado, e por outro, superestimar as

possibilidades de conscientização popular através de uma “arte revolucionária” exterior ao

povo. Em outras palavras, a compreensão de que o plano estético, ao contrário de alienar,

era o “lugar, por excelência, da participação revolucionária do artista” 55.

54 NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 48. 55 VIANNA Fº, O. Apud: MORAES, Dênis de .Vianinha: cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Ed. Nórdica, 1991. p. 133-134.

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No caso dos remanescentes do CPC/UNE, a ênfase recaía na busca de um teatro que

encarasse as questões sociais e políticas do país, sem perder de vista, como ressalta Gullar-

que a situação do Brasil havia mudado radicalmente: “o trabalho pós-CPC tinha outro

conteúdo: éramos agora um grupo voltado para a resistência à ditadura. Já não tínhamos

aquela ilusão de fazer um teatro para o povo, para a classe operária. Queríamos um teatro

de resistência, que atingisse a classe média, os estudantes e os setores de oposição”56. Era a

volta das preocupações e intenções que orientaram o Arena (na verdade, estas questões

nunca deixaram de informar os artistas do CPC/UNE); ou seja, a necessidade de ampliação

do público- de maior nível cultural- das artes de conteúdo político (privilegiando a temática

nacional).

As preocupações e anseios, de artistas e intelectuais engajados, expressos por Gullar

demonstram bem a situação e os limites postos à cultura em geral no pós-golpe. Como

afirma Roberto Schwarz, embora a vigilância do regime militar avançasse, já em 64, no

sentido de calar a oposição -fosse através do fechamento de organizações populares e

culturais (o que quebrava a ligação entre direção e base), ou através da perseguissão direta a

parlamentares, sindicalistas e ativistas políticos-, artistas e intelectuais não foram

“perturbados” de início; entre 1964-68 esses setores gozaram de uma relativa liberdade de

criação e expressão, apesar do fechamento das organizações e espaços culturais de atuação

dos artistas engajados e intelectuais (é o caso do CPC/UNE)57. Desta forma, a cultura

passou a ter uma importância fundamental, até porque se constituia no único veículo

possível de atuação da esquerda58. Se a esquerda, artistas e intelectuais haviam “falhado” na

sua tarefa cultural de conscientização política do povo para fortalecer a luta pelas reformas,

era chegado o momento de continuar a tarefa, que dessa vez tinha como objetivo principal a

derrubada da ditadura, não mais através da conscientização do povo, e sim de artistas,

intelectuais e, principalmente, estudantes.

Segundo Napolitano, antes e, principalmente, depois do golpe de 64 a cultura

engajada brasileira já vinha discutindo e assumindo a necessidade de atingir um público

massivo, “o consumidor ‘médio’ de bens culturais, na esperança que a popularidade fizesse

56 GULLAR, F. apud MORAES, D. de. Op. cit., p. 136. 57 SCHWARZ, Roberto. “Cultura e Política, 1964-1969”. In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 62. 58 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit., p. 58.

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os artistas reencontrarem a expressão genuína do próprio povo”. E será através da música

popular, e em menor grau o teatro, que a cultura avançará rumo a esse objetivo; ou melhor,

através das “artes performáticas”. As peças musicas (junção do teatro e da música) terão

uma importância singular na articulação das artes performáticas, tendo na música um

campo de expressão privilegiado59.

Esses espetáculos –que serão sucesso de crítica e público-, de acordo com Marcos

Napolitano, se constituíram na tentativa de articular drama, poesia e crítica social, onde a

música ocupará o papel de articuladora do debate estético e ideológico, no qual não poderia

ser ignorado a derrota sofrida pela esquerda e o contexto autoritário. No debate intelectual,

que se seguiu a 1964, em torno do novo contexto político-ideológico estava presente a

questão da música popular e do paradigma nacional-popular enquanto eixo cultural da

esquerda e, que veio sofrer um revisão em diversos ângulos. Segundo Napolitano, a partir

desse momento o nacional-popular passará a ser visto e concebido como núcleo ético e

político para a construção da resistência e não mais como estratégia reformista. Em termos

culturais tratava-se, agora, de fazer com que o popular desse sentido para o nacional. Essa

diferença é destacada pelo autor; referindo-se a canção engajada pré-64: esta era

caracterizada por uma tentativa de adequação entre “sofisticação estética e pedagogia

política, na busca por um produto cultural nacional de alto nível”. Agora, partir do golpe,

tratava-se da “busca utópica da identidade popular mais genuína possível”, e que deveria

orientar a postura do intelectual/artista nacional. Essa postura, afirma o autor, por mais que

tentasse, não conseguia dar cabo do velho e conhecido dilema da aliança entre intelectual e

povo, na qual o primeiro fala pelo segundo. Como vanguarda, condutores, dirigentes ou

educadores, os intelectuais ao falarem pelo povo construíam seus discursos a partir de um

conjunto de representações simbólicas que tendiam, na maioria das vezes, a desconsiderar

as contradições existentes no povo real 60.

Apesar das mudanças apontadas por Marcos Napolitano no paradigma nacional-

popular na cultura pós-golpe, aspectos importantes desse paradigma pré-64 -principalmente

na sua vertente CPC/UNE- parecem ter continuado a influenciar intelectuais/artistas

engajados, em particular, e a cultura, em geral. Dentre esses aspectos podemos destacar: a

59 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit., p. 65. 60 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit., p. 69.

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aliança de classes, o povo/público. Os espetáculos musicas realizados entre 64 e 66,

representam bem esse período de transição por que passava a cultura brasileira; tal como

todo período de transição é possível observar a coexistência de elementos de continuidade e

ruptura. Com relação ao paradigma nacional-popular na cultura, nos ateremos a um

espetáculo, em especial, para a análise desses aspectos; o espetáculo Opinião que, além de

ter sido o primeiro, tornou paradigmático para os que se seguiram; vejamos porquê?

3.1- O GRUPO E O SHOW “OPINIÃO”

O grupo Opinião foi fundado no segundo semestre de 1964 pelos remanescentes do

extinto CPC/UNE: Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Armando Costa e Ferreira

Gullar, entre outros. A proposta do grupo era a de buscar o “meio expressivo adequado para

ampliar o público das artes de conteúdo político”. Para tanto, segundo Vianninha, a

“concepção (sobre o plano estético) tinha de se orientar para o campo das transformações

estéticas, de atualização cultural do teatro em relação ao seu tempo, nos seus temas mais

complexos e em suas mais altas tradições”. Logo, o papel do artista, por isso mesmo,

assumia outra dimensão: “... O importante não era expressar sua consciência real e sim sua

consciência possível”61.

A primeira produção do grupo foi o show Opinião, que estreou em dezembro de

1964 no Rio de Janeiro. O espetáculo musical procurava articular, através da música, o

drama, a poesia e a crítica social. De acordo com a proposta do grupo, a recorrência a

música popular era prioritária, já que era uma arte de público massivo62. O show tinha

como protagonistas os intérpretes e compositores Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale; e

consistia na apresentação de músicas de tradição popular e folclórica, intercaladas a textos,

que falavam da situação social do país; e diálogos entre os protagonistas, que relatavam

suas próprias experiências de vida.

A intenção geral do espetáculo era a de construir a resistência democrática ao

regime autoritário; dois outros objetivos, mais específicos, eram destacados no manifesto

de apresentação do show: o primeiro estava relacionado à valorização da música popular

61 VIANA Fº, Oduvaldo. apud MORAES, D. de. Op. cit. p. 134. 62 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 66.

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como expressão de anseios sociais; o segundo era uma tentativa de propor saídas para o

problema de repertório do teatro (e porque não também da música?) brasileiro. Segundo o

próprio manifesto:

Nara, Zé kéti e João do Vale têm a mesma opinião- a música popular é tanto mais expressiva quanto tem uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social; quando mantém vivas as tradições de unidade e integração nacionais” 63.

Nas intenções do espetáculo a opção assumida era clara, e representava uma

continuidade com relação ao paradigma nacional-popular pré-64 e com a linha política do

Partido Comunista Brasileiro/PCB. A necessidade de união, aliança de classes ou setores da

sociedade para construção da resistência ou para resolução dos problemas do teatro e da

música. A escolha dos três personagens - uma moça de classe média da Zona Sul, um

operário favelado carioca e um camponês nordestino -, foi tática, pois simbolizava os

setores da sociedade tidos como “forças progressivas” pela linha política do PCB: a

burguesia nacional, o operariado e o campesinato. E acrescenta Ferreira Gullar: “A junção

desses personagens, numa aproximação de classes, correspondia à preocupação do Vianna

de formar uma frente ampla da intelectualidade como única forma de combater o novo

regime”64.

Para além da questão política, a aliança intelectual/povo também está presente de

acordo com a prática cultural do CPC/UNE; no qual o artista engajado deve procurar fazer

o “levantamento das regras e dos modelos, dos símbolos e dos critérios de apreciação

estética que se encontram em vigência na consciência popular”, e o “trabalho constante de

aferir os seus instrumentos a fim de que com eles poder penetrar cada vez mais fundo na

receptividade das massas”65. O levantamento do material musical e poético do show contou

com a ajuda de Heitor dos Prazeres, Cartola, Dona Zica, entre outros, que recolheram o

material do “partido alto”, o “desafio” entre os cantadores Cego Aderaldo e Zé Pretinho foi

63 COSTA, A. VIANA Fº, O. PONTES, P. As intenções do Opinião. Apud: Arte em Revista. Nº 1, Jan-Mar/1979. p. 58. 64 GULLAR, Ferreira. apud MORAES, D. de. Op. cit., p. 137. (grifo nosso). 65Anteprojeto do manifesto do CPC. Apud: HOLLANDA, H. B. Op. cit., p. 139.

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recolhido por Cavalcanti Proença, enfim, tudo para que o Opinião, ou Nara, pudesse não

apenas cantar para o público, mas interpretar o público66

.

Atento as questões ligadas a música popular, para Marcos Napolitano o espetáculo

representou sim, “uma continuidade na idéia de aliança de classes”, embora tenha reduzido

“a amplitude dessa aliança” ao dar maior ênfase ideológica e estética aos segmentos

populares67. Segundo o autor, o repertório de pesquisa e retorno à música popular de “raiz”,

que fosse além da classe social ou região, possibilitou um fôlego extra a política do

nacional-popular; só que agora, com uma perspectiva diferente e, esse seria o seu mais

importante sentido histórico. Dessa vez, tratava-se do caráter popular orientar o nacional na

busca por resoluções para o campo cultural; ou seja, o intelectual/artista dever-se-ia pautar

na busca pela “identidade popular mais genuína possível” como forma de romper o impasse

estético-ideológico e construir a resistência68.

De acordo com Napolitano, o tratamento musical e ideológico dado ao espetáculo -

em direção aos materiais sonoros populares-, não apenas resolveu, temporariamente, o

impasse colocado pelo golpe, como também resultou numa das vertentes da

institucionalização da MPB; a partir desse momento, a MPB passaria a se tornar uma “sigla

ideologicamente reconhecível”. Embora mais tarde essa vertente fosse excluída do processo

em função das mudanças no nível do mercado69. Essa busca pela “identidade popular mais

genuína possível” pode ser vista e ouvida na composição e repertório do espetáculo, no

qual sete músicas são do “sambista do morro” Zé Keti, cinco são de João do Vale,

“nordestino/retirante”, duas são folclóricas e outras são de compositores ligados a Bossa

Nova. Logo, o morro e o nordeste/campo aparecem como os lugares geográficos da música

popular de “raiz”e, de resistência.

A pretexto de contarem suas vidas, os personagens falariam sobre conflitos sociais e

os impasses do país, numa integração de experiências artísticas e existenciais- e que

representavam a tomada de consciência da própria realidade brasileira e a necessidade de

trazer essa realidade para o teatro-, que ia além do palco e atingia o público. “ De todas, a

direção mais atraente é a da inclusão do objetivo mais determinado, do real mais

66 COSTA, A. VIANA Fº, O. PONTES, P. As intenções do Opinião. Apud: Arte em Revista. Nº 1, Jan-Mar/1979. p. 58. 67 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 73. 68 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 73. 69 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 73.

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acontecido, do presente mais vivido, na obra de arte.(...) O fato real sucedido está invadindo

o teatro, empurrando a ficção...as platéias estão perdendo o gosto pelos contos de

fada...Quer o concreto, o particular...”70.

Essa completa “sintonia” de expectativas e anseios entre palco e público é bastante

criticada por Edélcio Mostaço. Segundo o autor, em função da censura nada no espetáculo

podia ser muito explícito, o que não influenciava no resultado final, já que o Opinião

operava uma comunicação de circuito fechado, no qual o povo do palco era o mesmo povo

da platéia71.

Com relação a essa tese -bastante comum na historiografia sobre a cultura do

período-, de que a cultura engajada pós-golpe passou a operar em um circuito de

comunicação fechado, não atingindo, dessa forma o “grande público”. Marcos Napolitano

chama a atenção para o fato de que, se por um lado fechava-se para o artista engajado os

espaços desligados do mercado, por conta da repressão, por outro, abria-se o mercado, num

período em que a indústria cultural no país passava por uma reestruturação72. Segundo o

autor, esses espetáculos representaram menos o fechamento de um circuito, do que a

ampliação e a massificação do público, bases importantes para compreender e entender a

entrada dos produtos culturais de esquerda na indústria cultural do país. Desta forma, para

Napolitano, o Opinião e os demais espetáculos podem ser vistos como a ponte entre os

públicos restritos da bossa nova e a audiência massificada dos festivais da canção

transmitidos pela tv73.

Mas, quem era o povo no Brasil para o Opinião? De acordo com os Cadernos do

Povo Brasileiro, o povo -resultado da junção do conceito de povo e de nação, sob a égide

de uma cultura, que dissipava as contradições que encobriam cada termo-, é o “conjunto de

classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas de

desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive”74. De acordo ainda

com o Manifesto do CPC/UNE, este mesmo povo se diferencia em povo “fenomênico”

70 BOAL, Augusto. Na nossa opinião. Apud: Arte em Revista. Nº 1, Jan-Mar/1979. p. 59. 71 MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política. Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982. p. 77. 72 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 67. 73 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 70. 74 SODRÉ, N. W. Quem é o povo no Brasil. Cadernos do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962. p. 22. Apud: MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política. Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982. p. 78.

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(alienado, inconsciente, passivo, desorganizado, produtor de uma arte do povo e uma arte

popular; enfim, a síntese da falsa consciência que, por isso, necessita da orientação e

condução de uma vanguarda), e em povo “essencial” (consciente, ativo, cultivado,

comunitário e, produtor de uma arte popular revolucionária), no qual se enquadra a

vanguarda, uma vez que optou por ser povo75

.

Sendo assim, segundo Mostaço, o Opinião – artistas e intelectuais- estava fazendo a

sua parte enquanto povo, de acordo com o ideário cepecista (quanto a prática artística) e a

estratégia ideológica do PCB, reiterando, desta forma, o modelo estético nacional-popular.

Por um lado, de acordo com a prática artística pretendida pelo CPC/UNE, o Opinião

(intelectuais/artistas) procurava “intuir, captar, interpretar os sentimentos, emoções e

esperanças e projetos que o povo engendrava e angariava”. Por outro lado, com relação a

estratégia ideológica do PCB, cabia ao Opinião ter opinião e uma posição alinhada ao

povo, procurando captar as “emoções populares” e transformá-las em instrumentos de

transformação social76.

Essa identificação com o povo, explícita na opção por ser povo, não se limitava ao

palco, estendia-se também à platéia. Para Mostaço, a estética do Opinião, fiel ao circuito

fechado de comunicação - que trazia para o teatro as expectaticas e fórmulas do protesto-,

do povo para o povo, resultou na construção ou afirmação de mito(s), sem entrar em

questões como as constituintes, objetivos, meios e os fins desse(s) mito(s)77.

Segundo o autor, o Opinião contribuiu decisivamente para mitificar, no plano real e

imaginário, o povo; entendido enquanto frente nacionalista. Essa mitificação resultou

também na crença de que o agente transformador da sociedade era esse mesmo povo/

frente, e não mais a classe operária. Crença esta que, de acordo com Mostaço, corroborava

a política de massas do PCB -antes o pacto populista e agora a frente nacionalista-, e a

ilusão de que mesmo à sombra o PCB continuava a luta, a frente representando a coesão

das esquerdas em torno das mesmas táticas e estratégias, o que tempo demostrou ser uma

inverdade78.

75Anteprojeto do Manifesto do CPC. Apud: HOLLANDA, H. B. Op. cit., p. 139. 76 MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política. Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982. p. 79. 77 MOSTAÇO, E. Op. cit., p. 81. 78 MOSTAÇO, E. Op. cit., p. 86.

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Em segundo lugar, para Mostaço, o Opinião contribuiu também para iludir seu

público em “rituais cívico-esquerdizantes”, através da crença de que “bastava tem uma

opinião que o governo cairia”, substituindo, desta forma, as tarefas concretas de luta por

uma ida ao teatro79. Essa afirmação do autor apresenta alguns problemas:

Primeiro ele parece ignorar que no momento em que o Opinião estreou a esquerda

já atravessava um período de “autocrítica” dos lugares e posições defendidos até então;

autocrítica esta que não levará muito tempo para alcançar, de fato, a prática política. Isso

fica evidente com os muitos rachas e mudanças de tática, métodos e até estratégias, como a

adesão de muitos setores da esquerda a luta armada. Segundo, coincidentemente ou não, foi

justamente o estudantil o primeiro movimento a se reorganizar e sair às ruas, já em 65. Os

estudantes levavam as bandeiras contra as primeiras medidas de intervenção nas

universidades e contra a ditatura militar. Ou seja, se as opções do Opinião não foram além

dos limites postos pela hegemonia cultural do PCB e, reforçaram a própria linha política do

partido (como de fato reforçaram), isso não significa que não existissem vozes

discordantes, e que a luta política tenha sido abandonada, ou substituída por rituais e

produtos culturais de esquerda.

Segundo Napolitano, ao colocar-se como uma autocrítica ao campo teatral e musical

da esquerda pré-64, o Opinião procurou radicalizar e realizar os termos do Manifesto do

CPC/UNE na tentativa de desenvolver formas populares de comunicação, “negando tanto o

‘teatro de autor’, quanto ‘música de elite’, de acordo com os termos da época”. Apesar das

críticas posteriores à base estética e ideológica do Opinião, o resultado conseguido não

pode ser ignorado: embora temporariamente, o espetáculo resolveu o problema de

repertório e massificou uma cultura musical nacional-popular. Estes aspectos, conclui o

autor, devem ser considerados se se quiser entender historicamente eventos como o

Opinião80. A seguir, veremos como o Opinião conseguiu, através das músicas, dos

diálogos, do espetáculo, articular os aspectos trabalhados neste capítulo e contribuir com as

transformações por que vinha passando o modelo cultural nacinal-popular.

79 MOSTAÇO, E. Op. cit., p. 81. 80 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 71.

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4- O “ESPETÁCULO”...

O regime autoritário implantado em 1964, ao cortar a ligação da esquerda com o

povo impedindo a continuidade da ação cultural desenvolvida até então, e que visava

conscientizar o povo para a revolução democrático-burguesa, colocou para

intelectuais/artistas a necessidade de impedir a desagregação de setores engajados e de

continuar o desenvolvimento da ação cultural, que visava, agora, a resistência democrática

ao regime militar; resistência esta, que se daria através da popularização da artes engajadas

na tentativa da atingir outros segmentos da sociedade, principalmente estudantes da classe

média. A possibilidade encontrada pela esquerda foi a canalização dessa ação cultural para

um circuito de espetáculos, cuja característica principal era a fusão entre as artes

performáticas de espetáculo (cinema, teatro, música). Desta forma, a produção cultural

engajada passa a realizar-se num circuito nitidamente integrado ao sistema81.

Segundo Marcos Napolitano, até 1967, esta saída encontrada pela esquerda -

popularização da arte engajada através do mercado -, não era incompatível com a atuação

política da artistas e intelectuais. Isso porque, de acordo com o autor, tinha-se uma visão

mais instrumental e neutra do mercado, como canal de distribuição das idéias colocadas em

forma de bens culturais. A essa visão, somava-se o processo de reestruturação da indústria

cultural, no qual as grandes empresas ainda não haviam consolidado sua hegemonia sobre o

mercado de bens culturais82.

As artes performáticas, através desse circuito de espetáculos, constituiram-se numa

espécie de “laboratório” para a TV. Para Napolitano, esses espetáculos compreendiam a

articulação da imagem, encenação gestual e interpretação musical com um conceito de

performance mais expressionista, em relação a intimista da Bossa Nova. Esta, por sua vez,

continuava sendo um parâmetro de “aggiornamento cultural e estético de prestígio entre os

músicos engajados” principalmente com relação ao procedimento. Segundo o autor, num

outro momento e dentro de um outro contexto cultural e mercantil, essas características

serão exploradas pela TV e servirão de base para atingir um público amplamente massivo e

81 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 30. 82 NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 67.

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pouco ou quase nada impactado pela Bossa Nova, pelo teatro engajado e pelo cinema

novo83.

O show Opinião e os demais espetáculos musicais da época seguiram este padrão.

Tendo a música como amálgama do debate estético e ideológico proposto, os espetáculos

“procuravam equacionar uma nova perspectiva popular para os dilemas nacionais”; este

equacionamento, segundo Napolitano, deu-se através da busca de expressividade a da

aproximação com formas musicais e poéticas mais próximas da cultura popular, tanto do

mundo rural como dos subúrbios das cidades84.

Classificado como uma experiência nova no teatro brasileiro, fruto do trabalho de

um grupo de intelectuais e artistas que romperam com a cultura de elite procurando levar a

cultura ao povo, e rompendo com os métodos usuais, o espetáculo Opinião foi feito “de

modo a revelar o substrato humano, social e político, que se encontra sob as composições

musicais de João do Valle e Zé kéti e na opção de Nara ao se tornar a intérprete da música

popular socialmente engajada”85. A partir desta intenção, o espetáculo opera um guinada

em direção a um repertório popular, no total, cinco músicas são de João do Valle, sete são

de Zé Kéti, duas são folclóricas, outras são de compositores conhecidos do circuito

bossanovista, como Sérgio Ricardo e Carlos Lyra (Esse mundo é meu, Deus e o diabo na

terra do sol e Marcha da Quarta Feira de Cinzas, respectivamente) e uma composição de

Edu Lobo (Borandá).

Esses números são interessantes pois demonstram, de acordo com Napolitano, a

incorporação de novos compositores, novos materiais sonoros e poéticos e padrões de

interpretação. Ou seja, uma revisão dos paradigmas de criação cultural à medida que se

fechava um dos canais de comunicação entre artista-povo e o mercado musical se tornava

mais complexo e amplo. No caso específico do Opinião, por um determinado período, o

samba “autêntico” e os ritmos folclóricos passaram a definir esse ideal de criação musical.

Contudo, segundo Napolitano, o leque de opções da chamada “‘canção engajada’, que logo

passaria a ser sinônimo de MPB”, era bastante amplo e traduzia contradições tanto do

83 NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 67-68. 84 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 68. 85 Capa do disco Opinião, gravado em 23/08/1965.

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mercado como das diversas referências musicais, culturais e até ideológicas dos artistas. Ou

seja, de forma alguma o panorama musical (e cultural) do período era homogêneo86.

Para Napolitano, com o golpe militar um outro tema passa a ser privilegiado na

criação cultural. A partir desse momento, tão importante quanto a busca por uma

consciência nacional-popular em forma de canção, era o tema, a construção da resistência

que ganhava destaque. Aliás, a consciência nacional-popular deveria pautar-se e constituir-

se a partir da resistência ao novo regime autoritário87. A temática da resistência perpassa

todo o espetáculo e é destacada no texto de apresentação:

“[...] Há uma idéia central organizadora da obra, embora nem sempre explícita. A mesma idéia informa as canções de Zé e João, de Peter Seeger e do anônimo espanhol: ‘al pueblo y a las flores no los mata el fuzil’. Por que não os mata, Opinião tenta dizer: a simples existência de Opinião é prova de perenidade de flores e povo.”88

A estrutura do espetáculo foi construída de modo a intercalar músicas, denúcias, e

diálogos entre os protagonistas. Já na apresentação, os protagonistas procuram demarcar as

dificuldades enfrentadas por cada setor da sociedade: João do Valle destaca as dificuldades

que os nordestinos enfrentam, seja em função da seca, ou do descaso do governo: “Meu

nome é João Batista Valle. [...] Minha terra tem muita coisa engraçada. Mas o que tem mais

é muito sacrifício pra gente viver”. José Flores de Jesus, Zé Kéti, coloca para o público as

dificuldades enfrentadas por compositores populares (principalmente os sambistas) para

entrarem no mercado musical, seja através da venda de músicas ou da gravação de discos89.

“Meu nome é Nara Leão. [...] Não é por que eu vivi em copacabana que só posso

cantar determinado estilo de música [...]”90. Nara Leão parece iniciar sua apresentação já

justificando seu lugar no espetáculo, ao lado de João do Valle e Zé kéti. Ou seja, o lugar

mesmo do intelectual ao lado do povo, falando por ele, já que como vanguarda possui a

consciência da realidade brasileira, da necessidade de mudança dessa mesma realidade:

“[...] eu quero cantar toda música que ajude a gente a ser mais brasileiro. Ou faça todo

86 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 105-106. 87 NAPOLITANO, M. Op. cit., p. 105. 88 BOAL, A. Na nossa Opinião. Apud: Arte em Revista. n. 1, Jan-Mar/79. p. 59. [grifos no original]. 89 Gravação do disco Opinião, 1965. 90 Gravação do disco Opinião, 1965.

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mundo querer ser mais livre. Que ensine a aceitar tudo, menos o que pode ser mudado

[...]”91.

O tratamento dado pelo espetáculo à questão da aliança intelectual/povo varia entre

a justificativa, o questionamento e a reafirmação da necessidade desta aliança. Em outra

passagem do espetáculo, Nara dialóga com uma voz que começa a questioná-la sobre o seu

papel, o seu lugar:

Voz – Nara, você é bossa nova. Tem voz de copacabana, jeito de copacabana. Nara Leão- Eu me viro(...) Voz- Nara. NL- Que é? Voz- O dinheiro do disco você vai distribuir entre os pobres, é? NL- Ah, não me picota a paciência. Voz- Você pensa que música é Cruz Vermelha, é? NL- Não. Música é pra gente cantar. Cantar o que a gente acha que deve cantar.

Com o jeito que tiver, com a letra que for. Aquilo que a gente sabe, canta. Voz- Você não sente nada disso, Nara, deixa de frescura. Você tem uma mesa de

cabeceira de mármore que custou 180 contos, Nara. Você já viu um lavrador, Nara? NL- Não. Mas todo dia vejo gente que vive à custa dele. Voz- Manera, Nara, manera. NL- Me deixa sossegada. Voz- Não vai dar certo, Nara. Você vai perder o público de copacabana, lavrador

não vai entender. Nara, por favor, ninguém mais seu amigo e ...92 Nesse instante Nara interrompe a voz e começa a cantar a Marcha da Quarta- feira

de Cinzas de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes (“E no entanto é preciso cantar / mais do

que nunca é preciso cantar / é preciso cantar e alegrar a cidade / a tristeza que a gente tem /

qualquer dia vai se acabar...”). De acordo com Heloísa Buarque de Hollanda, sem deixar de

lado o sentido original da música, sua inserção neste momento do espetáculo a investe de

um sentido político que lhe dá nova conotação. Instala-se de maneira definitiva e

progressiva, uma certa desconfiança em relação aos “discursos fechados e simbólicos das

Certezas, Verdades e Palavras de Ordem”. Esse procedimento, segundo a autora, revela um

novo princípio constitutivo de uma dicção mais relativizada e, portanto, mais crítica93. Se

91 Gravação do disco Opinião, 1965. 92 Apud: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 34. 93 HOLLANDA, H. B. de. Op. cit., p. 34-35.

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por um lado, o diálogo anterior começa a questionar o lugar do intelectual ao lado do povo

como incerto, assim como era o momento, por outro, a interrupção do diálogo pela música

parece reafirmar a necessidade dessa aliança, ainda mais nesse momento, e apesar da

desconfiança que começa a se instalar, mas ainda de forma sutil:

.

“Me lembro de ter assistido várias vezes ao show, de pé, arrepiada de emoção cívica. Era um rito coletivo, um programa festivo, uma ação entre amigos. A platéia fechava com o palco. Um encontro ritual, todos em ‘casa’, sintonizados secretamente no fracasso de 64, vivido como um incidente passageiro, um erro informulado e corrígivel, uma falência ocasional cuja consciência o rito superava”94.

Esse caráter “ritual” do Opinião, vivenciado e expresso por Heloísa Buarque de

Hollanda, no qual platéia e palco comungavam da mesma frustração, opinião e

expectativas, e reafirmado por Edélcio Mostaço, faz parte de uma tendência da

historiografia (sobre a cultura no período posterior ao golpe), e que vê na produção cultural

engajada pós-64 a atuação em um circuito de comunicação fechado e que teria servido

apenas de “consolo moral” para a frustração da derrota sofrida.

Para Edélcio Mostaço, o Opinião apoiava-se na personalidade de seus intérpretes,

que passaram, de uma hora para outra, à condição de mitos95. No espetáculo nada podia ser

muito explícito, em função da censura, o que não influenciava o resultado. Tal como nos

ritos religiosos, onde os mitos subjazem numa forma conhecida pelos fiéis, o espetáculo

Opinião circunscrevia um código todo próprio, acobertado sob forte simbolização, ressalta

o autor96.

Essa forte simbolização do Opinião, e que permitia que a “platéia fechasse com o

palco”, é destacado também em críticas feita ao espetáculo quando da sua estréia.

Confessamos humildemente que, diante do Opinião, nos faltam armas para uma apreciação crítica digna deste nome. (...) O nosso comentário sobre o Opinião não poderá, portanto, ser mais do que o resumo das impressões de um espectador quase leigo.

94 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 35. 95 MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política. Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982. p. 79-80. Segundo o autor, o mito define-se pela “heteronomia de seu corpus em relação às suas origens reais; ou seja, é uma forma autônoma, referente a algo que existiu, mas totalmente independente, em sua existência separada de suas constituintes originais”. E acrescenta: “ Como relação de alteridade é, então, pura ideologia”. 96 MOSTAÇO, E. Op. cit., p. 77.

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Partindo desta premissa, gostaríamos de declarar, de saída, que pouquíssimos foram os espetáculos teatrais que nos proporcionaram, nos últimos meses, um prazer e uma satisfação comparáveis aos que sentimos assistindo a esse agradável e interessante Opinião.

E conclui o autor do artigo: “(...) acreditamos que o espectador se divertirá, como

nós nos divertimos, assistindo ao show, e que dificilmente deixará de concordar com a

Opinião do Teatro de Arena de São Paulo”97.

Depois de 11 anos, quando o Opinião já havia se tornado um show paradigmático,

esse caráter ritualístico e festivo atribuído ao espetáculo é destacado de forma mais clara e

crítica. Essa crítica aparece quando, em 1975, o espetáculo é remontado, tendo agora

Marília Medalha no lugar de Nara Leão e a direção de Bibi Ferreira:

(...) E aí sua (do Opinião) originalidade consistia em polarizar algumas mornas tentativas anteriores e, principalmente, um sentimento de certa forma coletivo de impotência e frustração. O espetáculo funcionou como uma autêntica revelação, de efeito catártico sobre o público que lotou por cerca de 7 meses o teatro de instalações precárias. (...) neste sentido, Opinião é uma festa. Um acontecimento festivo. Festivo, no mais sadio e exaltado significado do termo”98.

Essa revelação feita pelo espetáculo, segundo a autora do artigo, caracterizaria a

atualidade do espetáculo, 11 anos mais tarde. Embora tenha sido esvaziado de seu

significado objetivo, a contestação e a importância de um ato de afirmação, o espetáculo “é

ainda fonte maior de informação de uma realidade brasileira pouco conhecida”, realidade

esta, que é vivenciada pelos intérpretes no seu cotidiano99. Principalmente com relação ao

lado “popular” do espetáculo. O povo ganha voz através dos relatos de João do Valle e Zé

Kéti, que procuravam passar para o público os problemas e dificuldades enfrentados pelas

camadas populares da sociedade.

A situação de miséria, exploração e de descaso vivida pelo campesinato brasileiro, e

representado pela população nordestina, é destacada no espetáculo através de denúcias e

das músicas de João do Valle. A música Borandá de Edu Lobo e interpretada por Nara

97 MICHALSKI, Yan. A Opinião de todos nós. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, Caderno B, 15/12/1964. p. 3. 98 VENTURA, Mary. Show Opinião- uma nova visão de uma mesma verdade. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, caderno B, 27/05/1975. 99 VENTURA, M. Op. cit.,

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Leão trata da única opção dada a uma população diante da seca, da miséria e do descaso,

seja dos governantes ou de Deus: a migração.

Vamo Borandá / que a terra já secou / Borandá / que a chuva não chegou / .../ já fiz mais de mil promessas / rezei tanta oração / deve ser que eu rezo baixo / pois meu Deus não ouve não /... / quanto mais eu vou pra longe / mais eu penso sem parar / que é melhor partir em pranto / que ver tudo piorar / Borandá / que a terra já secou / Borandá / que a chuva não chegou...100.

A resistência de uma população que não se deixa vencer, que continua lutando por

melhores condições de vida, mesmo que para isso tenha que abandonar sua terra, é cantada

também em outra música, Carcará de João do Valle. A música refere-se a um pássaro do

nordeste, o carcará, que consegue se adaptar as adversidades para sobreviver. No meio da

música, Nara Leão informa a porcentagem da migração nordestina no país, na década de

1950. A resistência, a luta e a coragem do carcará representariam a resistência e a coragem

do nordestino e do povo brasileiro.

A reação do público é inconteste. Aplausos longos, assobios e gritos transformaram

este trecho no auge do espetáculo, e a música em emblema da canção engajada do período.

Ainda hoje, quando se pensa no Opinião é a música Carcará que vem a cabeça.

Principalmente com a interpretação de Maria Bethânia (que substituiu Nara Leão no

espetáculo), que deu à música uma intensidade dramática maior do que a de Nara Leão.

Carcará pega mata e come / Carcará não vai morrer de fome / Carcará mais coragem do que homem / Carcará pega mata e come / ... Em (1950) havia dois milhões de nordestinos vivendo fora dos seus estados natais: 10% da população do Ceará emigrou; 13% do Piauí; mais de 15% da Bahia; 17% de Alagoas... / Carcará pega mata e come...101.

Tal como a seca, a miséria e a migração, a morte também faz parte da vida cotidiana

de milhões de nordestinos. Após o canto e a apresentação para o público de uma incelença

com as letras do alfabeto, João do Valle procurava passar sua experiência com a morte, e

como esta era algo rotineiro no setão nordestino. Em seguida Nara Leão declama um trecho

do poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto:

100 Gravação do disco Opinião, 1965. 101 Gravação do disco Opinião, 1965.

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“Morte! Morte é coisa de todo dia. Mesmo viajando num caminhão, de noite quando via luz-lampião acesa numa casa de madeira... podia contar: era velório. De noite se ouvia a cantoria”. / Como aqui a morte é tanta / só é possível trabalhar nessas profissões / que fazer da morte ofício ou bazar / só os roçados da morte / compensa o que cultivamos / (...) / morte que se morre / de velhice antes dos trintas / de emboscada antes dos vintes / de fome um pouco por dia / 102.

Mas apesar da miséria, da exploração e da marginalidade a que foram relegados,

durante anos, os camponeses- em geral- e os nordestinos- em particular, os ventos da

mudança ou da necessidade de mudança já pareciam soprar na consciência desta população.

Na verdade, tratava-se da tomada de consciência da realidade brasileira através da cultura

popular e que deveria, a partir da música, do teatro, do cinema e dos livros, atingir a

população e conscientizá-la do papel que tem como transformadora da situação social do

país. Em Sina de Caboclo de João do Valle e interpretada por Nara Leão aparece a

consciência da exploração sofrida, mas a solução para essa exploração ainda é a migração

para o “sul”, e o destino da maioria dos retirantes, assim como foi para João do Valle, a

construção civil.

Mas plantar pra dividir / não faço mais isso não / eu sou um pobre caboclo / ganho a vida na enxada / o que eu colho é dividido / com quem não plantou nada / se assim continuar / vou deixar o meu sertão / mesmo com os olhos cheios d’água / e uma dor no coração / vou pro Rio carregar massa / pros pedreiros em construção / Deus até tá ajudando / tá chovendo no sertão / mas plantar pra dividir / não faço mais isso não...103.

E, em seguida, João do Valle acrescenta:

Quer vê eu bater / enxada no chão / com força e coragem / com satisfação / é só me dar terra / pra ver como é / eu planto feijão, arroz e café / vai ser bom pra mim / e pro doutor / eu mando feijão / ele manda trator / vocês vão ver o que é produção / (...) / mas plantar pra dividir / num faço mais isso não / 104.

Aqui aparece o que seria a solução para o problema do campesinato brasileiro: a

reforma agrária. Esta, através da mudança na estrutura fundiária do Brasil, acabaria com os

resquícios feudais da sociedade e com as forças reacionárias aliadas ao imperialismo norte-

americano. Ao libertar o país do jugo imperialista, a reforma agrária contribuiria com a

102 Gravação do disco Opinião, 1965. 103 Gravação do disco Opinião, 1965. 104 Gravação do disco Opinião, 1965.

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democratização e o desenvolvimento social e econômico do Brasil, atingido todos os

setores da sociedade, do trabalhador rural ao “doutor”.

Mas o espetáculo Opinião não se aproximou apenas de formas sonoras e poéticas

próximas da cultura popular do mundo rural. Para tentar equacionar o impasse estético e

ideológico colocado para a produção cultural e transmitir sua mensagem, o espetáculo

também recorreu à cultura popular urbana. Presentes, sobretudo, nos subúrbios das cidades,

formas musicais e poéticas próximas da cultura urbana foram representadas pelo samba105;

o morro tinha a sua vez.

Os sambas apresentados no espetáculo eram, em sua maioria, de Zé kéti, e suas

temáticas variavam entre a situação social do morro, ou da favela, e a situação de

marginalidade vivida pela população do morro, e em particular pelo sambista. A imagem

do morro “pobre porém feliz” é desconstruída. Em seu lugar aparece todo o drama, a

dificuldade e a resistência de uma população historicamente excluída. Essa mesma

descontrução atinge também a imagem do sambista malandro, outrora caracterizado como

“boa vida”, um indivíduo pouco preocupado com o trabalho e com a situação do país. As

músicas O Favelado e Nega Dina, ambas compostas e interpretadas por Zé kéti, são

exemplos desse novo tratamento dado ao morro e ao sambista:

O morro sorri / a todo momento / o morro sorri / mas chora por dentro / quem vê o morro sorrindo / pensa que ele é feliz / coitado / o morro tem sede / o morro tem fome / o morro sou eu / o favelado / o morro sou eu / o favelado / ...106

A Dina subiu o morro do Pinto pra me procurar / não me encontrando foi ao morro da Favela / com a filha da Estela pra me perturbar / (...) / só porque faz uma semana que não deixo uma grana / pra nossas despesas / ela pensa que a minha vida é uma beleza / eu do duro no baralho pra poder viver / a minha vida não é mole não / entro em cana todo hora, sem apelação / eu já ando assustado e sem paradeiro / sou um marginal brasileiro /...107

Segundo Marcos Napolitano, o sertão nordestino e o morro-subúrbio simbolizavam

não apenas territórios da música popular de raíz ou da cultura popular em geral, mas

também espaços imaginários de resistência “popular” ao novo regime militar. Desta forma,

105 NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 68. 106 Gravação do disco Opinião, 1965. 107 Gravação do disco Opinião, 1965.

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tanto artistas e intelectuais como a juventude estudantil engajada deveriam se aproximar

desses espaços e dessa cultura popular na tentativa de encontrar uma saída para a criação

cultural engajada e construir a resistência democrática ao regime autoritário108.

A resistência cantada no samba Opinião de Zé kéti, cuja sentido original da letra

refere-se a recusa em abandonar o morro, ganha um sentido político no espetáculo e

simboliza a opinião que todos deveriam ter diante deste novo contexto. Juntamente com

Carcará, Opinião tornar-se-á sinônimo de canção engajada do período.

Podem me prender / podem me bater / podem até deixar-me sem comer / que eu não mudo de opinião / daqui do morro eu não saio não / se não tem água eu furo um poço / se não tem carne eu compro um osso / e ponho na sopa / e deixa andar / fale de mim quem quiser falar / aqui eu não pago aluguel / se eu morrer amanhã / seu doutor / estou pertinho do céu / podem me prender / podem me bater / podem até deixar-me sem comer / que eu não mudo de opinião / ... 109

Embora as músicas do espetáculo tivessem um caráter grave, e mesmo dramático,

principalmente quando referentes a situação nordestina, o espetáculo também possuia

momentos de descontração e alegria. Essa alegria, euforia, festa, seria o dado novo do

espetáculo, segundo Heloísa Buarque de Hollanda. De acordo com a autora, a festa

representaria, então, uma crítica à prática e ao “discurso político que caracterizava a definia

a ação cultural da geração anterior”110. Esse elemento novo, caracterizado pela alegria,

aparece principalmente nos diálogos entre os protagonistas, quando de alusões feitas ao

novo regime autoritário, despertando no público risos e aplausos . É o caso, por exemplo,

do trecho do espetáculo onde os protagonistas explicam os apelidos que ganharam e o

porquê de tais apelidos:

Zé Kéti- Esse negócio de apelido: você sabe porque é que me chamo Zé Kéti... É o seguinte: quando minha mãe ficou sozinha pra me sustentar, ela foi ser empregada doméstica. Quando minha mãe voltava deziam pra ela: “o Dona Leonor, o Zé ficou quieto. O Zé ficou quietinho. Zé quietinho, Zé quietinho. E acabou Zé Kéti. Aí então comecei a escrever meu apelido com “K”. “K” tava dando sorte, tava por cima:

108 NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 71. 109 Gravação do disco Opinião, 1965. 110 HOLLANDA, Heloísa B. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 34-35.

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Kennedy, Krushev, Kubtschek. É minha camaradinha. Mas acho que agora a sorte “michô”....111

Em outra passagem do espetáculo, um diálogo entre Zé kéti e Nara Leão, procurava

representar, para o público, as situações difíceis, e as vezes engraçadas, passadas por Zé

Kéti -quando resolveu largar os estudos e “cair na vida” atrás da sorte. Construído com

gírias próprias da época (o que dava um caráter mais despojado e divertido ao relato) o

diálogo termina utilizando palavras e expressões que remetiam, também, ao contexto

político:

(...) Nara Leão- O distinto... tá de tôca... Zé kéti- Tô, tô. Ô boa roupa, olha, minha barra tá... NL- Fica à vontade, tó um baseado. Dá uma puxada aí. ZK- Já peguei, camaradinha. Muito obrigado, mas já peguei agora mesmo com um valente. “praga de mãe” com “coisa ruim”...eu já tô doidão. Tô baratinado NL- Nada. Deixa vê o olho. Num tá vermelho... ZK- Psiu! Num fala em vermelho não, que vermelho tá fora de moda. NL- Tu não é de nada, papo-careta. Por falar em meter a mão, tira a nota aí... ZK- Tô duro compadre. Durão, durão. Eu agora sou da “linha dura”...112 Contudo, esse aspecto novo, a alegria, não está solto no espetáculo. Ao contrário,

para Heloísa Buarque de Hollanda, existe uma articulação entre as partes do show através

de um movimento que é oscilante: “soltar o elemento novo (a alegria) e prendê-lo em

seguida (a lição)”113. O caráter didático das produções culturais desenvolvidas pelo

CPC/UNE continua presente no Opinião.

A lição era a opinião que todos deveriam ter o direito de expressar, e que não havia

surgido do nada. Era fruto da tomada de consciência da realidade brasileira e do trabalho

desenvolvido na tentativa de transformar essa realidade. Apesar do resultado - o golpe

militar-, o trabalho não havia sido em vão, as sementes tinham sido plantadas, e o Opinião

era prova disso. Como declarava Nara: “Foi Cinema Novo, foi Bossa Nova, foi teatro que

apresentava autores brasileiros. Tem uma coisa que eu descobri, que todo mundo descobriu:

111 Gravação do disco Opinião, 1965. 112 Gravação do disco Opinião, 1965. 113 HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 35.

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o Brasil era o que a gente fazia dele [...]”114. Diante do novo contexto, o Opinião procurava

fazer a sua parte, deixava a sua mensagem, a sua opinião:

Pobre não é um / pobre é mais de dois / muito mais de três / e vai por aí / (...) / repare bem que / só de vez em quando / pobre é feliz / aí tanto desgosto / assim a vida vale a pena não / mas é explicar a situação / dizer pra ele que / pobre não é um / pobre é mais de cem / muito mais de mil / mais de um milhão / e vejam só / Deus dando a paisagem / metade do céu já é meu /.... / Mas plantar pra dividir / não faço mais isso não /.... / Podem me prender / podem bater / que eu não mudo de opinião /.... / Deus dando a paisagem / o resto é só ter coragem /.... / Carcará pega mata e come....115.

Esta foi a resposta cultural dada pelo Opinião ao golpe militar de 1964. Através de

um retorno a “raiz da música popular brasileira”, representada pelo samba e pelos ritmos

nordestinos, o espetáculo conseguiu encontrar uma saída para o impasse colocado para

criação cultural engajada pós-64. Apesar de ter mantido praticamente inalterado alguns

aspectos do modelo cultural nacional-popular pré-64 (a aliança intelectual/povo e o caráter

didático da pedagogia estética-política pretendida e desenvolvida pelo CPC/UNE), o

Opinião teve o mérito de propor e realizar uma revisão dos paradigmas de criação cultural

da esquerda, ao colocar os problemas políticos ideológicos nacionais numa perspectiva

mais popular, e de ampliar o público das artes de conteúdo político116.

114 Gravação do disco Opinião, 1965. 115 Gravação do disco Opinião, 1965. 116 NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 72-73.

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5- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do trabalho, procurou-se estabelecer as possíveis continuidades e/ou

rupturas, com relação ao modelo cultural nacional-popular pré-64, efetivadas pelo

espetáculo Opinião, em 1964. Para tanto, elegeram-se alguns aspectos que serviram de

parâmetros para a comparação entre as opções estéticas e ideológicas do espetáculo e as das

produções culturais engajadas pré-64, e norteadas pelo paradigma. Estes aspectos foram: a

aliança de classes, a aliança intelectual/povo e a relação povo-público.

No primeiro capítulo, procurou-se delimitar o conceito de nacional-popular

entendido por artistas e intelectuais engajados do período. Tendo como base o livro de

Ferreira Gullar, obra paradigmática sobre a cultura e a arte engajada da 1º metade da

década de 60, pode-se dizer que o conceito de nacional-popular, estava ligado a tomada de

consciência da realidade brasileira e a transformação desta mesma realidade através da

arregimentação de intelectuais e da conscientização das classes populares. À cultura e a

seus produtores cabia a função de equiparar a “consciência social ao ser social”, ou seja, de

transformar a consciência do povo, para que este pudesse ocupar e realizar o seu papel de

agente transformador da sociedade. Para tanto, era necessário que artistas e intelectuais

entrassem em contato com o povo e sua cultura para, através dela, comunicar sua

mensagem. A cultura e a arte eram concebidas, então, como um instrumento político-

ideológico fundamental para a transformação estrutural do país. Ou seja, nesse momento

era preciso que a produção cultural privilegiasse menos o experimento e a estética e mais a

mensagem e a forma a serem transmitidas.

Em seguida, buscou-se comparar as opções estéticas e ideológicas do espetáculo

Opinião às orientações do Manifesto do CPC/UNE, considerado uma produção

representativa da cultura nacional-popular do início dos anos 60. O Manifesto procurava

orientar artistas e intelectuais na produção de obras de conteúdo político. Tais obras

deveriam privilegiar a comunicação com o público. Como o público a que eram destinadas

não pertencia ao mesmo extrato social do artista, era necessário que este estivesse em

constante contato com as camadas populares, afim de capitar formas de comunicação e

expressão próprias destas camadas para, desta forma, comunicar sua mensagem. Logo, a

aliança intelectual/povo era imprescindível. O intelectual/artista deveria recorrer à cultura

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popular na tentativa de capitar sentimentos e anseios do povo e devolver, para este mesmo

povo, a sua cultura, agora com um conteúdo político que auxiliaria na sua própria

desalienação. Estreando em dezembro de 1964, momento em que a esquerda começava a

fazer uma autocrítica sobre sua atuação no processo que resultou no golpe militar, o

espetáculo Opinião parece reinterar, em vários aspectos, as premissas do Manifesto.

Fundado por remanescentes do extinto CPC/UNE, o Opinião levou ao palco protagonistas

que simbolizavam a aliança de classes própria do nacional-popular pré 64, principalmente a

aliança intelectual/ povo. Nara Leão: uma artista da classe média; Zé Kéti: um sambista e

operário, e João do Valle: um nordestino retirante representariam, no espetáculo, os setores

da sociedade tidos como progressistas pela esquerda nacionalista, ou seja, Nara Leão

representaria a burguesia nacional, Zé Kéti o operariado e João do Valle o campesinato.

Recorrendo à formas sonoras e poéticas próximas da cultura popular do campo e da cidade,

o espetáculo procurou não apenas reinterar a necessidade de tal aliança, que agora visava a

construção da resistência ao novo regime autoritário, como também resolver o impasse

estético-ideológico colocado para o campo cultural pelo golpe militar.

O terceiro capítulo trouxe a análise o espetáculo propriamente dito: a estrutura, os

diálogos, as músicas, enfim, a articulação das partes do show aos aspectos acima

levantados. Através dos diálogos entre os protagonistas e das músicas apresentadas no

espetáculo, o Opinião procurou mostrar para a platéia seu posicionamento diante do novo

contexto político. As músicas, em sua maioria composições de Zé kéti e João do Valle,

referem-se a situação social, de luta e resistência de populações historicamente excluídas,

populações estas que são representadas, no espetáculo, pelo morro carioca e pelo sertão

nordestino. Sem perder o sentido original, o tratamento político dado as canções pelo

espetáculo transformava a cultura popular, o morro e o sertão nordestino em espaços e

locais próprios da resistência popular. Tais espaços e locais deveriam, a partir de agora,

orientar a atuação de artistas, intelectuais e do público, majoritariamente estudantes da

classe média, na construção da resistência democrática ao regime militar.

Sendo assim, pode-se dizer que o Opinião manteve, do ponto de vista simbólico,

praticamente intocada a proposta de aliança de classes presente no paradigma nacional-

popular pré-64, principalmente a aliança intelectual/povo, na qual o primeiro fala pelo

segundo. Concordamos com a tese de que o espetáculo procurou dar maior ênfase popular

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aos dilemas nacionais, revertendo, assim, uma tendência da arte engajada anterior ao golpe

militar. Ao recorrer às formas musicais e poéticas da cultura popular, na tentativa de

equacionar, no campo cultural, o impasse estético-ideológico das esquerdas e popularizar as

artes de conteúdo político117, o Opinião acabou redimensionando os termos da aliança de

classes que dava o tom da política e da cultura brasileiras pré-64.

117 NAPOLITANO, M. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 68.

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6-FONTES

Fonte Primária:

A gravação do Espetáculo Opinião em fita cassete. Gravação feita a partir do disco

Opinião, 1965.

Fontes Secundárias:

Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes.

[Rio de Janeiro], 1962.

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Rio de Janeiro, Dez/1964.

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1965.

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15/12/1964. p. 3.

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Jornal do Brasil, caderno B, 27/05/1975.

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7- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

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Paulo: Brasiliense, 1983.

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1999.

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MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política. Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta

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