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22 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 O MUNICÍPIO EM JUÍZO NidiaCaldasFarias Procuradora da Procuradoria Trabalhista do Município do Rio de Janeiro Introdução No presente trabalho, abordarei os aspectos processuais do Município em juízo. Não se pretende, entretanto, lançar novas luzes sobre a matéria, tampouco sugerir um sistema judicial diferente do que está posto quando se tem o Município como uma das partes da demanda. Pretende-se abordar os aspectos de ordem prática do cotidiano forense da representação judicial do Município, detectando por vezes dificuldades e excessos oriundos de interpretação imprópria da legislação aplicável, mas sem descurar-se de uma análise científica. Examina-se a polêmica da convivência em um mesmo ordenamento jurídico de princípios que indicam para a isonomia das partes em juízo, mas conferem prerrogativas à Fazenda Pública, que é termo genérico abrangente das três classes de Fazenda, ou seja, da União, dos Estados e Distrito Federal e dos Municípios. Procura-se, ainda, examinar do ponto de vista prático as prerrogativas e garantias do Município quando em juízo, como a impenhorabilidade dos seus bens; os prazos prescricionais e processuais; a eficácia da sentença proferida em desfavor do Município; a desnecessidade de antecipação de custas processuais; a figura do Procurador do Município; efeitos da revelia, restrições à tutela de urgência em relação ao Município; o cumprimento de obrigações pecuniárias pelo Município, dentre outras. I. A expressão fazenda pública e sua abrangência A expressão Fazenda Pública é normalmente evocada como representativa da feição patrimonial das pessoas jurídicas de direito público interno, tanto mais quando observadas sob sua atuação judicial: são a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios. Somam-se as respectivas autarquias que,

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22 Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004

O MUNICÍPIO EM JUÍZO

NidiaCaldasFariasProcuradora da Procuradoria Trabalhista do Município do Rio

de Janeiro

Introdução

No presente trabalho, abordarei os aspectos processuais do Município em juízo. Não se pretende, entretanto, lançar novas luzes sobre a matéria, tampouco sugerir um sistema judicial diferente do que está posto quando se tem o Município como uma das partes da demanda. Pretende-se abordar os aspectos de ordem prática do cotidiano forense da representação judicial do Município, detectando por vezes dificuldades e excessos oriundos de interpretação imprópria da legislação aplicável, mas sem descurar-se de uma análise científica.

Examina-se a polêmica da convivência em um mesmo ordenamento jurídico de princípios que indicam para a isonomia das partes em juízo, mas conferem prerrogativas à Fazenda Pública, que é termo genérico abrangente das três classes de Fazenda, ou seja, da União, dos Estados e Distrito Federal e dos Municípios.

Procura-se, ainda, examinar do ponto de vista prático as prerrogativas e garantias do Município quando em juízo, como a impenhorabilidade dos seus bens; os prazos prescricionais e processuais; a eficácia da sentença proferida em desfavor do Município; a desnecessidade de antecipação de custas processuais; a figura do Procurador do Município; efeitos da revelia, restrições à tutela de urgência em relação ao Município; o cumprimento de obrigações pecuniárias pelo Município, dentre outras.

I. A expressão fazenda pública e sua abrangência

A expressão Fazenda Pública é normalmente evocada como representativa da feição patrimonial das pessoas jurídicas de direito público interno, tanto mais quando observadas sob sua atuação judicial: são a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios. Somam-se as respectivas autarquias que,

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mesmo componentes da Administração Indireta, conservam a natureza do ente formador, além das fundações públicas que a elas se equiparam.

O termo fazenda, em sentido amplo, é sinônimo de patrimônio ou riquezas de uma pessoa. Seu uso mais difundido refere-se às finanças estatais, não casualmente se aplicando o vocábulo para designar a pasta que, nos âmbitos federal e estadual, cuida do dinheiro governamental, ainda que no campo municipal preferira-se a enunciação “secretaria das finanças”.

Por força da tradição, a designação Fazenda Pública se solidificou para definir o poder público em juízo. Não raramente, em vez de ocorrer a menção à pessoa jurídica que é parte no processo, utiliza-se genericamente a expressão sob análise, tal qual fossem idênticas

1.

Assim, a Fazenda Pública recebe essa designação quando a Administração Pública, por qualquer de suas entidades estatais, por suas autarquias, por suas fundações públicas ou por seus órgãos que tenham capacidade processual, ingressa em juízo.

É da Justiça Federal o foro competente para julgamento das causas em que a União, suas autarquias ou empresas públicas são partes, em primeira instância, com exceção das causas relacionadas à falência, acidentes de trabalho e às sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho (art. 109, I, CF).

Os Estados-membros demandam nas suas respectivas Capitais, de conformidade com a Lei de Organização Judiciária de cada um, salvo nas ações reais e nos mandados de segurança, onde o foro é o da situação da coisa ou o da sede da autoridade coatora.

Os Municípios, que gozam dos mesmos privilégios da Fazenda Pública, litigam na Comarca da sede, com ou sem privatividade de juízo ou vara, de acordo com a organização judiciária do Estado-membro.

A Fazenda Pública é representada em juízo por seus procuradores judiciais. Não há necessidade de apresentação de procuração ad judicia, uma 1Nelson Nery Júnior “embora tecnicamente a locução Fazenda Pública devesse indicar apenas e

tão somente o Estado em juízo com seu perfil financeiro, na verdade se tem denominado dessa forma, tradicionalmente, a Administração Pública por qualquer das entidades da Administra-ção Direta (União, Estado e Município) e autárquicas, irrelevante o tipo de demanda em que a entidade se vê envolvida” (Princípios do processo civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 49).

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vez que pelo seu título de nomeação e por disposição da Lei 9.469, de 10-7-97, art. 9º, presume-se conhecido o mandato judicial.

Assim, quando a Fazenda Pública está em juízo, são admissíveis algumas prerrogativas processuais, v.g., prazos dilatados, isenção de pagamento antecipado de custas processuais e preparo, não incidência do efeito da revelia, etc

2.

II. Isonomia e normas processuais fazendárias

A Constituição Federal consagra em seu art. 5º, caput, o princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza. É um dos mais caros valores plasmados no texto político.

Em primeiro plano, alerte-se que o princípio constitucional da isonomia volta-se mormente ao legislador, impondo-lhe, na elaboração da norma, respeito à igualdade.

Contudo, uma visão simplificada do fenômeno jurídico nos mostra que as leis são concebidas como regras definidoras de situações da vida.

Impossível, portanto, olvidar que, em termos meramente objetivos, a lei sempre causará a separação, destinando-se a incidir sobre certas pessoas e ficando outras alheias aos seus influxos.

Usando diferentes termos, a Constituição não prega propriamente a isonomia, mas veda a discriminação injustificada. Distinção sempre haverá e, por vezes, será fator de orgulho para o sistema jurídico. Odiosa é a diferenciação maliciosa ou ofensiva a outros valores jurídicos correlatos

3.

O princípio da igualdade tem a preocupação de mostrar quando a desigualdade é prezada pelo ordenamento jurídico. A desigualdade não é indesejada pela ordem jurídica, o que não se quer é o tratamento desigual injustificado.

2Ibid.: “quem litiga com a fazenda pública ou com o Ministério Público não está enfrentando

um outro particular, mas sim o próprio povo, razão bastante para o legislador beneficiar aquelas duas entidades com prazos especiais, atendendo ao princípio da igualdade real das partes no processo”.3PEREIRA, Hélio do Valle. Manual da Fazenda Pública em juízo. Rio de Janeiro: Renovar,

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Comum que a isonomia seja apreciada com base na conhecida tese aristotélica – tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Encampando-se o entendimento de que a discriminação não é, em princípio, ilegítima, deve-se investigar em quais situações será ela efetivamente atentatória à isonomia.

Não é demais recordar que existe um regime processual peculiar em favor da Fazenda Pública. Aliás, o presente estudo tem como propósito analisar os pontos de distanciamento entre o sistema comum e o afeto aos litígios envolvendo o Poder Público.

Vale, agora, fazer a indagação: é legítimo o tratamento diferenciado dado à Fazenda Pública em juízo?

Não se podem ter por ilegítimas as normas que tragam regramento próprio em relação à atuação fazendária em juízo. A Fazenda Pública tem status peculiar, compreendendo o zelo pelas coisas do Estado e do interesse público, sendo legítimas as medidas destinadas a evitar malversações ou omissões lesivas aos bens e interesses geridos pelos agentes do Estado. Sua feição é única: não é a projeção de uma pessoa formal, mas de todas as pessoas naturais amalgamadas. Esse grau de abstração sociológico dá-lhe uma dimensão tão profunda que veda seja vista como um ente jurídico a disputar, com outros, interesses individualizados. É antitético supor a vinculação entre Fazenda Pública e propósitos egoísticos, singularizados

4.

Nesse passo, a edição de normas que abarquem somente a presença do poder público não revela insurgência do ordenamento jurídico.

Não se trata de um privilégio concedido à Fazenda Pública, como querem alguns, mas de uma prerrogativa voltada a preservar a isonomia.

A prerrogativa existe quando é essencial ao fim em que se concentra. Quando a lei confere prerrogativas à Fazenda Pública tem em mente permitir que a instituição cumpra seus objetivos. Verifica-se, pois, o princípio da essencialidade a nortear o tratamento diferenciado.

A prerrogativa opõe-se ao privilégio na medida em que este não é essencial para que a Fazenda Pública funcione e alcance seus objetivos, é apenas uma situação mais cômoda. O privilégio quebra o princípio da igualdade e não é

4Ibid., p. 25

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desejado pela ordem jurídica.

Cite-se como exemplo ilustrativo o artigo 99 do Código de Processo Civil, segundo o qual a União pode ser acionada no foro da capital do Estado ou do Território. Trata-se, nitidamente, de prerrogativa conferida à União pois se esta só pudesse ser demandada no interior, pela dimensão espacial que possui, sua defesa poderia ficar prejudicada. Portanto, é essencial que possa ser demandada na capital do Estado ou do Território.

Assim, pode o Poder Legislativo dar tratamento (aparentemente) mais favorável à Fazenda Pública, mas no afã de equilibrar a disputa com os particulares. Nada mais se faz senão impor diferenciações para, afinal, encontrar-se a identidade. Só que essa missão deve estar ligada, sempre, a esse propósito. Quando, diferentemente, se quebra a isonomia formal só para atribuir uma dose de benefício, sem que esse fator discriminatório desloque consigo a marca da razoabilidade, será ilegítimo.

A isonomia estará, por isso, sempre atrelada a um outro princípio, o princípio da razoabilidade, o qual guarda grande cumplicidade com o tratamento das questões fazendárias em juízo.

A razoabilidade não busca propriamente premiar o que é razoável, mas afastar o desarrazoado. Deseja-se apenas reconhecer que a atividade legiferante não é desmensurada, muito menos reprimida por normas constitucionais expressas.

A Constituição faz parte do Direito. O ato de legislar também. E, dentro dele, tudo tem limites e está sujeito à revisão.

Para Luís Roberto Barroso, o princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão sendo informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar.

Toma-se como exemplo a fundamentação da decisão emanada pelo Supremo Tribunal Federal no Julgamento da medida cautelar na ADI 1753 MC / DF, onde se questiona o prazo de cinco anos para propositura de ação rescisória pela

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Fazenda Pública (quando o particular tem apenas dois anos para o mesmo fim), in verbis:

Ementa: Medida Provisória nº 1577-6/97, art. 4º e parágrafo único: ampliação do prazo de decadência de dois para cinco anos, quando proposta a ação rescisória pela União, os Estados, o DF e os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas. (...) A igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law; quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais que, além da vestustez, têm sido reputados não arbitrários por visarem a compensar dificuldades da defesa em juízo das entidades públicas; se, ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais: parece ser esse o caso das inovações discutidas, de favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo. (grifos acrescentados)

Assim, o princípio da razoabilidade terá grande utilidade na apuração da constitucionalidade de normas processuais fazendárias, propiciando avaliar se estará ocorrendo equilíbrio entre o interesse público que se pretende proteger e a justa expectativa do particular em obter resposta jurisdicional célere, com desenvolvimento procedimental equilibrado.

Nos tópicos que se seguem, abordar-se-á individualmente cada prerrogativa conferida ao Município e a sua legitimidade.

III. As prerrogativas do município em juízo

III. A - Prazos processuais diferenciados

É tradicional, em nosso direito processual, a dilatação dos prazos em favor da Fazenda Pública

5.

O Município, por força do artigo 188 do Código de Processo Civil, possui prazo em quádruplo para oferecer contestação e em dobro para apresentar recurso. Excetuam-se os prazos estipulados em leis especiais.5Inicialmente, a ampliação era concedida pela legislação imperial em favor do réu preso (Lei

de 11.09.1830), posteriormente passando aos códigos estaduais promulgados de acordo com a Constituição Federal de 1891. (NERY JÚNIOR, op. cit., p. 43).

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Vale ressaltar, por oportuno, que a regra do Código de Processo Civil não se estende às sociedades de economia mista, empresas públicas, serviços sociais autônomos e entes de cooperação em geral.

Como restou demonstrado, em princípio, não é ilegítima a distinção, desde que atendido o interesse público e respeitada a razoabilidade.

O Código de Processo Civil cometeu deslize técnico ao disciplinar o prazo diferenciado da Fazenda Pública para contestar. Sabe-se que a contestação é uma das modalidades de resposta (art. 297 do CPC). Em interpretação teleológica, percebe-se que o legislador, referindo-se à espécie (contestação), objetivou expressar o gênero (resposta). Acima das palavras da lei está o seu espírito. Sem esforço ou ampliação de significado, chega-se à autêntica intenção legislativa

6. Portanto, a quadruplicação do prazo estende-se também

à reconvenção e às exceções (de incompetência relativa, impedimento ou suspeição). Logo, cuidando-se de procedimento ordinário, o prazo para contestar, reconvir e excepcionar será de sessenta dias.

A diferenciação exposta no art. 188 do Código de Processo Civil aplica-se a todos os procedimentos. O posicionamento pouco flexível de Moniz de Aragão

7, ao sustentar que as normas de exceção merecem interpretação

restritiva, de maneira que o art. 188 ficaria limitado ao âmbito interno do Código de Processo Civil, ficou quase insulado.

Não nos parece uma prerrogativa que afronte o devido processo legal, ou que não resista a uma análise do ponto de vista do Princípio da Razoabilidade.

Não se pode vislumbrar a perspectiva de beneficiamento da Administração, concedendo-lhe prazo mais alargado, tão somente na esperança de, ampliado o tempo de meditação e elaboração da defesa, lograr maiores chances de êxito na 6Carlos Maximiliano: “nunca será demais insistir sobre a crescente desvalia do método filoló-

gico, incomparavelmente inferior ao sistemático. (...) Só ignaros poderiam, ainda, orientar-se pelo suspeito brocardo – verbis legis tenacitir inhaerendum – ‘apeguemo-nos firmemente às palavras da lei’. Ninguém ousa invocá-lo; nem mesmo quem de fato o pratica”. (Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 122-123).7O autor alega que não se podem aplicar “analogicamente normas que constituam exceção a

regras gerais”. O fundamento estima-se, é falho, visto que não se cuida de analogia, mas de aplicação subsidiária. Outrossim, o art. 188 do CPC não é especial, mas geral, justo que inserto em lei de mesma natureza.

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demanda. Não se trata disso, procura-se equiparar o Município ao particular. Fixa-se como pressuposto que o poder público, por circunstâncias peculiares, merece posicionamento processual distinto, com isto se reequilibrando o jogo de forças com as pessoas privadas.

Sabe-se que em favor do Município, para justificar a prerrogativa processual do benefício do prazo, erigem-se dois pontos fundamentais, a saber: i) interesse público tutelado e ii) dificuldades de ordem burocrática.

O Município em juízo recebe a denominação de Fazenda Pública porque, em última análise, é o erário que suporta eventuais encargos patrimoniais da demanda. Via de regra, qualquer demanda judicial envolve despesas com o erário público, seja pretensão que envolva servidores públicos, ações de ressarcimento por danos materiais ou morais ou ações anulatórias cujo ato impugnado venha a causar prejuízos ao particular. Dessa forma, a posição do Município em juízo sempre será a de defesa do interesse público. “Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno direito público”

8. Proclama a superioridade do interesse

da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o particular, como condição até mesmo da sobrevivência e asseguramento deste último.

Acresçam-se à qualidade do interesse defendido em juízo as dificuldades de ordem prática do litígio entre o particular e o Município.

A estrutura fazendária, muito mais complexa do que a encontrada em organismos particulares, conduz a maiores dificuldades operacionais, justificando a ampliação dos prazos.

É certo que os defeitos da estrutura interna administrativa não deveriam servir para amparar os males que ela própria faz surgir. Só que o fundamento levantado acaba se justificando, se consideradas as dificuldades operacionais administrativas, face à imensidão de dados que envolvem e que acabam sensibilizando a necessidade de especial atenção à realidade.

III. B - Custas procesuais

O Município, quando litiga em juízo, não está dispensado do pagamento de custas processuais. A prerrogativa que a lei lhe atribui é o pagamento das despesas do processo, ao final, se vencido. Eis a inteligência do artigo 27 do CPC.

No conceito de despesas processuais estão também envoltos gastos derivados do processo, como honorários periciais, indenização com

8MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros,

1994.

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deslocamento de testemunhas, condução de oficial de justiça. Enfim, todos os desembolsos que sejam reflexo imediato da relação processual.

Com efeito, a robustecer a razão de ser desse comando legal, têm-se questões de ordem prática e, ao mesmo tempo, questões de ordem lógica. Estas últimas podem ser detectadas quando se tem em conta que, na maioria das vezes, à exceção da Fazenda Municipal e em última análise, a própria Fazenda Pública é credora das custas processuais que seriam devidas e cobradas no início da questão. As varas estaduais privativas dos feitos da Fazenda Pública, como órgãos integrantes da Administração Pública Estadual, se por imperativo legal exigissem o pagamento de custas iniciais aos entes públicos estaduais, estariam cobrando de si mesmas, caso se faça uma análise da Administração Pública como um todo. Excepciona-se a esfera municipal, por não possuir poder judiciário próprio, mas, nesta hipótese, a justificativa de ordem prática é suficiente para manutenção da prerrogativa.

Como já mencionado no item anterior, as dificuldades engendradas por máquinas burocráticas inviabilizariam o depósito prévio de custas processuais por parte dos entes de direito público. Ao contrário do particular em juízo, que necessita tão-somente sacar o numerário suficiente para pagar as custas ou emitir cheque para fazer o pagamento, o Município enfrenta diversos expedientes, v g., requisição do procurador, autorização do chefe de setor, envio de ofício à secretaria de finanças, preparo, a assinatura do empenho etc. Todo este mecanismo inviabilizaria, até desestimularia a cobrança de dívidas de pequena monta, por exemplo, ou a interposição de recursos em determinados casos, e, em última análise, seria o interesse público o único prejudicado, em detrimento do interesse privado.

III. C - O Procurador do município

O Município é representado por procurador habilitado para o fim de defendê-lo. Assim dispõe o art. 12 do Código de Processo Civil.

Como disposto, no artigo 12, inciso II, em relação à Fazenda Pública Municipal, além dos procuradores, o prefeito também poderá fazê-lo, com a óbvia exigência de ser advogado habilitado. Esta exceção vai de encontro ao 9Art. 28 da Lei nº 8.906/96: “A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as

seguintes atividades: I – chefe do Poder Executivo e membros da Mesa do Poder Legislativo e seus substitutos legais”.

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artigo 28 da Lei n° 8.906/96 – que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil

9.

A aparente antinomia, lançando-se mão de interpretação sistemática, deve ser resolvida com a imposição ao chefe do Poder Executivo Municipal de exercer advocacia somente enquanto representante legal do município de que seja titular.

Por imperativo lógico, não há necessidade de o procurador judicial do Município atuar munido de procuração ad judicia, sendo necessária somente a juntada de documento que comprove sua condição de representante do Município, o que gera a presunção de sua capacidade jurídico-processual; presunção, é de bom alvitre ressaltar, juris tantum haja vista a necessidade de o procurador encontrar-se com suas obrigações quitadas perante a Ordem dos Advogados do Brasil.

A regra não se aplica, no entanto, aos advogados contratados para defender interesses dos Municípios, que devem portar e apresentar procuração ad judicia com poderes para tanto. É comum a representação por advogado, quando há necessidade, por exemplo, do ajuizamento e acompanhamento de causas de interesse de determinado Município em outros foros, vezes distantes da sede.

Uma das peculiaridades da representação do Município em juízo é a necessidade de citação pessoal na pessoa do Procurador-Geral ou daqueles que a lei administrativa expressamente indicar. De resto, os deveres e direitos de procuradores de entes públicos são absolutamente semelhantes aos impostos e concedidos a advogados que patrocinam interesses privados.

Com relação a prazos em quádruplo e dobro, a prerrogativa, ou privilégio, como querem alguns juristas, é dirigida ao Município e não aos seus representantes judiciais. Contudo, a prerrogativa do prazo diferenciado deferido ao Município, certamente, beneficia o procurador que, no mais das vezes, é sobrecarregado com diversas ações sob sua responsabilidade e não pode eximir-se do seu dever funcional.

O procurador do Município exerce, por dever de ofício, a advocacia, dentro dos limites de suas atribuições. Desta forma, não pode eximir-se do patrocínio de causa a ele distribuída, ao contrário do advogado privado que aceita determinada causa se lhe aprouver.

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III. D - Prazo prescricional

A Fazenda Pública está sujeita aos influxos prescricionais, seja em seu benefício ou em seu desfavor.

O professor Arnoldo Wald conceitua a prescrição “como o decurso do tempo que faz convalescer uma lesão de direito no interesse social.” De aguçado senso o conceito porque demonstra a prescrição não do direito em si, mas a lesão ao direito. E prossegue o civilista, “se invocarmos a idéia de que toda lesão de direito cria uma responsabilidade em virtude da qual o prejudicado pode recorrer à Justiça para obter ressarcimento dos danos sofridos, podemos afirmar que a prescrição faz desaparecer a responsabilidade, mantendo, todavia, em vigor, mas desarmada, a relação originária. Tanto assim é que, se for paga uma divida prescrita, quem a pagou não pode exigir a devolução do pagamento da dívida prescrita.”

10

A prescrição das ações pessoais contra o Município e suas autarquias é disciplinada no Decreto n° 20.910, de 06 de janeiro de 1932, que em seu artigo 1° já dispõe: “As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originaram.”

O Decreto n° 20.910/32 é complementado pelo Decreto-Lei n° 4.597, de 19 de agosto de 1942, que regula a prescrição qüinqüenal das dívidas passivas das autarquias, ou entidades e órgãos paraestatais, bem como a toda e qualquer ação contra os mesmos. Como se verifica, estendeu-se a regra da prescrição qüinqüenal às autarquias, fundações públicas e entidades paraestatais.

Digno de nota é o fato de que tanto o Decreto n° 20.910/32 como o Decreto-lei n° 4.597/42 surgiram durante o governo autoritário de Getúlio Vargas, demonstrando o cuidado extremado de governantes centralizadores com os interesses da fazenda pública em detrimento do interesse privado.

A prescrição qüinqüenal, segundo tranqüilo entendimento, vincula-se 10

WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.11

Hely Lopes Meirelles: “(...) sobejam razões para essa orientação jurisprudencial, uma vez que não se pode admitir pretendesse o legislador alterar o instituto da propriedade, ao abreviar a prescrição em favor da Fazenda Pública. (...) admitir-se a prescrição qüinqüenal nas ações reais, equivaleria a estabelecer um usucapião de cinco anos em favor da União, dos Estados-Membros e dos Municípios, o que seria um novo meio de adquirir, não admitidos por lei”.

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somente às postulações de caráter pessoal, não àquelas de natureza real. Na realidade, nesse último caso, parece mais adequado ter em mente que se está tratando, por vias transversas, do usucapião. Não foi realmente o objetivo da lei permitir que houvesse aquisição da propriedade imobiliária no exíguo prazo de cinco anos

11. Enfim, o quinquênio mencionado pelo Decreto nº 20.910/32

diz respeito aos direitos de índole apenas obrigacional.

Com relação à prescrição das ações reais contra o Município, a jurisprudência e doutrina inclinam-se por admitir a aplicação do prazo prescricional do Código Civil, não se aplicando o decreto regulamentador da prescrição qüinqüenal.

A compreensão jurisprudencial aponta, ainda, que o lustro atinge somente as prestações vencíveis período a período, não ofendendo o fundo de direito, na hipótese de lesões que se renovem continuamente, como se dá, por exemplo, com o decréscimo remuneratório de servidor público

12.

A interrupção da prescrição contra o Município, por sua vez, ganha tratamento diverso nos moldes do Decreto-lei n° 4.597/42, artigo 3°. Interrompida a contagem da prescrição, seu prazo, quando for retomado, volta a fluir pela metade. Entretanto, para que sejam evitadas injustiças, entende-se que a soma dos dois períodos não pode ser inferior aos cinco anos originalmente previstos

13. Ainda quanto à interrupção, a regulamentação própria prevê que

a sua suspensão apenas poderá ocorrer por uma única oportunidade.

De forma original, o art. 7º do Decreto nº 20.910/32 estipula que a citação leva à interrupção da prescrição, mas esse efeito fica derrogado se o processo for anulado. O dispositivo merece ser atualizadamente compreendido.

12BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 85. Nas relações jurídicas de trato sucessivo

em que a Fazenda Pública figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior à propositura da ação.BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 443. A prescrição das prestações anteriores ao período previsto em lei não ocorre, quando não tiver sido negado, antes daquele prazo, o próprio direito reclamado, ou a situação jurídica de que ele resulta.13

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 383. A prescrição em favor da Fazenda Pública recomeça a correr, por dois anos e meio, a partir do ato interruptivo, mas não fica reduzida aquém de cinco anos, embora o titular do direito a interrompa durante a primeira metade do prazo.

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Na realidade, a interrupção da prescrição retroage à data da distribuição da demanda, funcionando a citação como condição de eficácia daquele fato, com efeito retroativo. De outro norte, a anulação do processo só pode ser compreendida como a menção à decretação de invalidade de determinados atos processuais. Aí, se a citação tiver igual destino, realmente o efeito interruptivo da prescrição não ocorre, como já propõe o próprio art. 219, que reclama citação válida.

Sob distinta análise, o Decreto nº 20.910/32 cuida apenas do prazo prescricional em favor da Fazenda Pública, isto é, somente determina o qüinqüênio quando o Poder Público for sujeito passivo do direito. Por extensão, entende-se costumeiramente que a prescrição contra a Fazenda Pública (quando esta for a titular do direito) deve ser contada de acordo com as regras comuns previstas no Código Civil, salvo disposição especial. Então, tirante casos como o direito tributário, no qual é prevista a prescrição qüinqüenária também contra a Fazenda

14, pode ela exercitar suas pretensões não levando em consideração

o lustro, mas sim aqueles outros prazos previstos genericamente na legislação civil, bem como as causas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição.

Contudo, há insurgência contra essa postura, alegando-se, em essência, quebra da isonomia. Por que, em favor da Fazenda Pública, o prazo prescricional pode ser apenas de cinco anos, e, em situações idênticas, quando a prescrição for em seu desfavor, pode esse período ser ampliado? Por extensão, aponta-se que esse lapso deve ser (também em desfavor do Poder Público) de cinco anos, mantendo-se paralelo entre as situações jurídicas dos particulares e do Estado

15.

Nessa mesma linha, deve ser analisado que a prescrição, mesmo em favor 14

Art. 174 do CTN: “A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em 5 (cinco) anos, contados da data da sua constituição”.15

MELLO, op. cit., p. 123 e ss.16

Por atentar à indisponibilidade dos direitos fazendários, Edílson Pereira Nobre Júnior conclui diversamente do sustentado no texto, advogando que o juiz pode reconhecer, independente-mente de alegação, a prescrição – quando se cuidar de decisão que venha a favorecer o Poder Público (Prescrição: decretação de ofício em favor da Fazenda Pública. Revista de Direito Administrativo, n. 211, p. 221 e ss.).17

Correspondente ao art. 194 do Novo Código Civil18

PEREIRA, op.cit., p. 603.

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da Fazenda Pública, não pode ser decretada de ofício. O art. 219, parágrafo 5º, do CPC, permite que seja reconhecida, independentemente de provocação, a prescrição de direitos não-patrimoniais. Não se fala, ali, em direitos disponíveis ou indisponíveis

16. Ora, todos os direitos sujeitos à prescrição dizem respeito

a créditos; logo, nunca haverá prescrição de direitos que não tenham conteúdo patrimonial. Por isso, o dispositivo em comento é inoperante. Beviláqua, em atenção à correspondente regra do Código Civil (art. 166)

17, já observava que

“não há prescrição senão de direitos patrimoniais”18

.

III. E - Impenhorabilidade dos bens do município e os precatórios judiciais

Intuitiva a necessidade de disciplinar particularizadamente a execução contra a Fazenda Pública. Impossível seria a sua submissão ao regime ordinário, posto que nosso processo executivo se fundamenta na expropriação de bens do devedor – o que, na hipótese, é inviável, haja vista a inalienabilidade inerente ao patrimônio estatal. De outro lado, a peculiar disciplina orçamentária dificultaria o pagamento de plano, sob pena de desordenar as despesas já diferentemente agendadas. A própria continuidade dos serviços públicos poderia ficar comprometida com a quitação de outros débitos. Adite-se que a impessoalidade que rege a atividade administrativa não se afina com a eleição de critérios aleatórios, razão pela qual há controle especial para a definição das quitações por ocorrer.

Realmente, não se pode ignorar as peculiaridades inatas do patrimônio estatal. Reforça-se o entendimento de que o direito processual é sensível à questão de direito material subjacente, in casu, direito financeiro e administrativo.

O regime constitucional de execução por quantia certa contra o Poder público, incluídas as Autarquias, impõe a necessária expedição de precatório, cujo pagamento, à conta dos créditos respectivos, deve observar rigorosamente a ordem cronológica de apresentação, com exceção dos créditos de natureza alimentícia.

A impenhorabilidade dos bens do Município é decorrência lógica do disposto no artigo 100 e §§ da Constituição Federal, que dispõe acerca da forma como se processará a execução de sentenças judiciais contra o Município.

O Código de Processo Civil, por seu turno, disciplina a matéria execução

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contra a Fazenda Pública, em seus artigos 730 e 731, de logo observando-se que o Município será citado para oferecer embargos no prazo de 10 (dez) dias, não se cogitando da regra de nomeação de bens para garantia do juízo.

Na hipótese de não interposição dos embargos à execução, desencadear-se-á o precatório judicial por meio de requisitório do juiz competente para a causa, por intermédio do presidente do Tribunal – competente para conhecer de eventuais recursos. Consigna o inciso II, artigo 730, CPC, que o pagamento da obrigação líquida imposta à Fazenda Pública será feito na ordem de apresentação do precatório e à conta do respectivo crédito.

O presidente do tribunal, ao receber o precatório, deve fazer análise estritamente formal. Detectado erro de forma, deve ocorrer diligência visando à sua sanação (por exemplo, falta de juntada de documento, ausência de certidão do trânsito em julgado da sentença exeqüenda). Admite-se que erros materiais sejam retificados pela presidência do tribunal

19.

Quando o art. 1º-E da Lei nº 9.494/97 menciona a revisão de ofício dos cálculos, sugere, naturalmente, a faculdade do juiz presidente do tribunal de corrigir erro material que lhe salte à vista, pois não se pode cogitar do dever de reexaminar os cálculos na sua inteireza, já que a expedição de precatório não se confunde com a remessa necessária dos cálculos do juízo da execução à apreciação da instância administrativa da presidência do tribunal, como se se tratasse de duplo grau de jurisdição obrigatório, com amplíssima possibilidade de reexame dos cálculos.

Deve-se dar ao dispositivo interpretação compatível com a Constituição Federal, entendendo que tais alterações se limitam aos erros materiais, sob pena de quebra do princípio do juiz natural e de supressão da soberania da atividade jurisdicional.

Os créditos de natureza alimentar também se submetem ao regime de precatório. A diferença é que será formado rol específico de credores, que terão necessária prioridade de pagamento, ainda que haja outros precatórios mais antigos. De tal sorte, deverão existir duas relações de precatórios, por ordem cronológica – uma alimentar, outra comum.

19BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Adin 1.098-1-SP. Relator: Min. Marco Aurélio apud

NEGRÃO, Theotônio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. p. 765.

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A exceção ao regime de precatório está no parágrafo 3º do art. 100, que propicia o pagamento imediato de créditos de “pequeno valor”, introduzido pela Lei nº 10.099/00.

Outro aspecto a ser analisado diz respeito à possibilidade de pagamento imediato de valores decorrentes de transação em juízo em que figura como uma das partes a Fazenda Pública, especificamente, a celebração de acordos judiciais após o trânsito em julgado da sentença desfavorável à Fazenda Pública.

O Professor Américo Luis Martins da Silva, em exclusiva monografia acerca do tema é taxativo no sentido de autorizar a transação desde que haja numerário suficiente para atender todas as partes que se encontrarem em situação semelhante, sob pena de configurar discriminação ou preterição. Eis importante passagem de sua monografia:

Caso haja lastro orçamentário dentro da rubrica ‘pagamento de sentenças judiciais’, entendemos que a Fazenda Pública não só pode como deve ir pagando, após o trânsito em julgado das sentenças proferidas em embargos à execução ou do devedor (no caso de improcedência total ou procedência parcial) ou após decorrido o prazo para oferecer embargos sem que o tenha feito, os valores apurados em liquidação de sentença, até que se esgote o montante da previsão orçamentária. O que a Fazenda Pública não pode fazer é escolher dentre os casos que se encontram na mesma situação para realizar pagamento imediato, uma vez que isto é contrário aos objetivos das disposições constitucionais e legais a respeito da matéria, ou seja, entendemos que o principal objetivo do legislador, constituinte ou ordinário, não seja o de impedir que a Fazenda Pública efetue o pagamento imediato da condenação judicial, caso possua a quantia necessária para cobrir os valores devidos e destinada a esse fim, mas sim, impedir que se privilegie alguns exeqüentes em detrimento de outros cujo processo de execução encontra-se na mesma fase. De maneira que, a nosso ver, a Fazenda Pública pode pagar as condenações antes que sejam expedidos os precatórios, desde que o faça em relação a todos os casos que se encontram na mesma situação ou respeite a antigüidade do trânsito em julgado da sentença que julgou os embargos ou do término do prazo para oferecer os embargos, a fim de que não haja qualquer espécie de discriminação ou preterição.

A técnica constitucional da execução contra a Fazenda Pública sempre estimulou a eternização dos créditos, propiciando que o valor da quitação se desse com base na quantia nominalmente referida no precatório. De fato, em sua redação primitiva, a Constituição Federal dizia que os precatórios seriam

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apresentados até 1º de julho e, até esse marco, atualizados monetariamente. O tempo que mediava até o pagamento levava à corrosão do valor original, incentivando o credor a reclamar diferenças. A Emenda Constitucional nº 30/2000, dando nova redação ao parágrafo 1º do art. 100 da Constituição Federal, determinou que, doravante, haja atualização monetária (não de juros!) no momento do pagamento do precatório.

A jurisprudência acerca do tema, inicialmente vacilante, ora adotava o entendimento que não é devida a inclusão de juros moratórios em precatório complementar, ora adotava o entendimento pela inclusão dos juros no lapso de tempo compreendido entre a expedição e o efetivo pagamento do precatório, consolidou-se a partir do julgamento do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 305.186-SP, pela 1.ª Turma do STF, publicado no DJ em 18.10.2002.

No referido julgado o Supremo Tribunal Federal consignou o entendimento que não são devidos juros moratórios no período compreendido entre a data de expedição e a do efetivo pagamento de precatório judicial, no prazo constitucionalmente estabelecido, à vista da não-caracterização, na espécie, de inadimplemento por parte do Poder Público.

Oportuno transcrever a ementa do referido acórdão:Constitucional. Crédito de natureza alimentar. Juros de mora entre a data da expedição do precatório e a do efetivo pagamento. c.f., art. 100, § 1.º (redação anterior à EC 30/2000). Hipótese em que não incidem juros moratórios, por falta de expressa previsão no texto constitucional e ante a constatação de que, ao observar o prazo ali estabelecido, a entidade de direito público não pode ser tida por inadimplente. Orientação, ademais, já assentada pela Corte no exame da norma contida no art. 33 do ADCT. Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF; AgRE 305186/SP; 1.ª Turma. Relator: Min. Ilmar Galvão; Data do Julgamento: 17/09/2002. DJ, 18 out. 2002)

Ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal, por meio de seu Pleno, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 298616, publicado no DJ em 08/11/2002, reafirmou o entendimento do aresto anteriormente transcrito.

III. F - Reexame necessário

O art. 475, inciso I, do CPC, com a nova redação dada pela Lei nº 10.352/2001, disciplina o reexame necessário quanto às sentenças proferidas 20

Araken de Assis sustenta que o reexame é, na verdade, a antiga “apelação ex offício”. À “apelação ex offício” também se referia Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Pro-cesso Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1998. v. 5, p. 163). Haveria, assim, apelações voluntárias e obrigatórias.

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 39

contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público.

Convergentemente, o inciso II do art. 475 do CPC determina o reexame em face da sentença que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública.

A sentença proferida contra a Fazenda Pública afeta o interesse de todos os cidadãos, por isso, deve ser revista pelo Tribunal.

Anote-se, desde logo, que desnecessária a dupla previsão nos incisos I e II do art. 475 do CPC. A primeira disposição, mais ampla, abriga a segunda.

O reexame necessário não é recurso, mas condição de eficácia da sentença

20. É insuficiente a decisão prolatada pelo juiz de primeiro grau, sendo

imprescindível o novo julgamento da causa pela instância superior. Mais do que a ratificação pelo tribunal, a sentença, enquanto pendente o reexame, está inibida de gerar efeitos.

A sentença proferida contra o Município só se submete à remessa obrigatória quando analisado o mérito. O reexame procura preservar o interesse primário fazendário. Se a decisão é meramente terminativa do feito, com o condão de apenas gerar coisa julgada formal, não existe razão para maiores precauções. Mas, atente-se, devem ser consideradas como referentes ao mérito todas as sentenças que envolvam deliberação sobre o direito material. Como tal, estão incluídas as modalidades expostas no art. 269, bem assim aquelas que, nada obstante a nomenclatura, também respeitem ao direito substantivo. Por exemplo, o indeferimento da petição inicial com base na decadência (art. 295, inciso IV c/c art. 267, inciso I do CPC) é inegavelmente pertinente ao mérito.

As sentenças do processo de execução, não dos embargos, estão fora da abrangência do art. 475 do CPC

21. A execução não tem por escopo a prolação

21Excepciona esse postulado a decisão proferida em exceção de pré-executividade e que leve

ao reconhecimento da inexistência do crédito exeqüendo. A decisão é proferida entranhada no próprio processo de execução, mas equivale àquela prolatada em embargos.22

É o que vem entendendo o STJ, em embargos de divergência: “a sentença que rejeita ou acolhe parcialmente os embargos à execução de título judicial opostos pela Fazenda Pública, incluídas as Autarquias, não está sujeita ao reexame necessário, procedimento este incompatível com a regra do CPC, art. 520, V, que impõe o recebimento de eventual apelação apenas no efeito devolutivo e permite o prosseguimento da execução pelo credor”. (EResp 226.551-PR. Relator: Min. Edson Vidigal).

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de decisão, mas a realização de atos materiais tendentes à satisfação do credor. O processo de conhecimento, diversamente, tem índole dialética e se destina ao proferimento de decisão definitiva, atraindo a qualidade da imutabilidade. De tal modo, a sentença do processo de execução, quando chegue a resultado positivo, não gerará coisa julgada material.

O processo de liquidação, todavia, tem natureza cognitiva. Ainda assim, era praticamente pacífico que não se poderia falar em sucumbência nas simples homologações de cálculo do contador, procedimento existente antes da reforma processual (art. 604 CPC). Por extensão, a jurisprudência também se tem inclinado a negar o cabimento do reexame necessário na sentença de improcedência de embargos à execução de sentença (não de títulos extrajudiciais) contra a Fazenda Pública

22.

O reexame não exclui o uso do recurso (ambos serão apreciados seqüencialmente pelo tribunal). E como está previsto visando à proteção de específicos interesses, não se presta a prejudicá-los. Não é possível, só à vista de reexame necessário, ocorrer reforma da sentença em desfavor da Fazenda Pública

23.

Proferido o julgamento no reexame necessário, a causa submete-se a idêntico regime àquele em que julgada apreciação da apelação. Por conseguinte, são cabíveis recursos extraordinário, especial e embargos de declaração. Admitem-se embargos infringentes quando o julgamento se der por maioria de votos

24. Se assim não fosse, estaria sendo forçada a Fazenda

Pública a cumulativamente recorrer25

.

Como antes mencionado, a Lei nº 10.352/2001 reformulou o reexame necessário. Não haverá a medida quando a condenação (não o pedido ou o valor da causa) for igual ou inferior a sessenta salários mínimos, o que só poderá ser reconhecido quando a decisão contiver referência expressa à quantia devida.

A questão, porém, tem alguma complexidade, pois a condenação pecuniária rotineiramente levará em conta o valor original da obrigação 23

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 44. No reexame necessário, é defeso, ao Tribunal, agravar a condenação imposta à Fazenda Pública.24

BRASIL. Tribunal Federal de Recursos. Súmula nº 77. Cabem embargos infringentes a acórdão não unânime proferido em remessa ex offício.25

Araken de Assis, ao argumento que o reexame tem natureza recursal, reafirma o cabimento dos embargos infringentes.

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acrescido de verbas acessórias. É o caso de juros e correção monetária. Usual, dessa maneira, que o juiz explicite somente a quantia devida a título principal, enunciando os encargos que incidirão. Mesmo assim a decisão será líquida, pois a descoberta do quantum debeatur dependerá somente de operações algébricas.

Outrossim, o reexame não ocorrerá no caso em que o direito controvertido não for superior àqueles mesmos sessenta salários mínimos. Cuida-se de regra mais ampla, pois leva em consideração não só o objeto mediato, mas também a natureza da sentença, que não precisa ser necessariamente condenatória.

Dessa forma, estão abrangidos a ação anulatória de contrato, o pedido condenatório para entrega de bem móvel, a declaração de inexistência de obrigação tributária, etc.

É essencial que o juiz, quando da sentença, tenha condições de precisar a extensão patrimonial do litígio. Dessa forma, se não houver dados que apontem para a avaliação do direito controvertido, não há como derrogar o reexame.

Deve-se ter em conta, nesse ponto, que não se pode seguir cegamente o valor dado à causa. É verdade que deve ele traduzir a avaliação pecuniária do litígio.

É conveniente, por isso, que o juiz, ao se deparar com o pedido envolvendo o Município, diligencie a emenda da petição inicial, caso não esteja aclarado o valor do bem litigioso ou busque defini-lo no curso da relação processual.

A remessa fica também afastada quando a sentença estiver fundada em súmula de tribunal superior competente ou de jurisprudência do plenário (não apenas de turma) do Excelso Pretório (art. 475, parágrafo 3º do CPC).

É evidente que a simples invocação de súmula não conduz à superação do reexame. Deve-se apreciar se a hipótese decidida tem pertinência com o enunciado jurisprudencial.

Convém também esclarecer que a súmula deverá existir no momento da publicação da sentença. Se surgir posteriormente, a remessa continua

26BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 423. Não transita em julgado a sentença por

haver omitido o recurso ‘ex offício’, que se considera interposto ‘ex lege’.

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cogente.

O juiz costuma advertir, na sentença, a respeito do reexame. Caso assim não ocorra, deverá, após o trânsito em julgado para as partes, remeter os autos à instância superior, sem prejuízo de assim proceder a qualquer momento ou por avocação da instância superior. Enquanto não ocorrer o reexame, a decisão não é eficaz

26. Havendo recurso, o processo sobe para análise conjugada da

apelação e do reexame necessário. Não pode o Município, por decorrência lógica, renunciar à garantia do reexame, acatando a decisão; quando muito, pode apenas deixar de recorrer.

III. G - Da revelia

A ausência de contestação leva à presunção de veracidade dos fatos descritos na petição inicial, mas na pressuposição de que se cuide de direitos disponíveis (art. 320, inciso II do CPC). A falta de impugnação a um fato, ainda que presente contestação, conduz a idêntico efeito, tornando-o incontroverso, mas desde que, igualmente, haja disponibilidade (art. 302, inciso I do CPC).

Entende-se que “direito indisponível é direito que não pode ser retirado da pessoa, quer pela alienação, quer pela renúncia, quer pela diminuição ou substituição de seu conteúdo”

27. Cuida-se daqueles que aderem à pessoa,

que, nada obstante sua manifestação de vontade, deles não pode abdicar, independentemente do título (unilateral, bilateral, renúncia, transação, etc).

No tocante à esfera de interesse das pessoas jurídicas de direito público, é evidente a indisponibilidade. É que não podem seus representantes abrir mão de prerrogativas da entidade representada, por não atuarem em nome próprio, mas em prol de ente que age no interesse coletivo

28.

Assim, a revelia não gera a presunção de veracidade dos fatos narrados pelo autor em face do Município. A falta de impugnação de algum fato descrito pelo demandante não gerará a presunção de veracidade quando se tratar de pessoa jurídica de direito público.

27MIRANDA, op. cit, v.4, p. 202.

28Celso Antônio Bandeira de Mello: “a indisponibilidade dos interesses públicos significa que

sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis".

Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 8, n. 13, jan./dez. 2004 43

Imagine-se uma ação contra o Município em que o mesmo, citado, deixe de contraditar a alegação do autor. Não havendo disponibilidade dos seus direitos, não se aplicam, só pela inércia defensiva, os efeitos processuais próprios da falta de impugnação: o fato descrito pelo demandante não é automaticamente compreendido como verdadeiro. Ainda que não incontroverso, há necessidade de sua comprovação. Conseqüentemente, é preciso que o autor traga aos autos elementos de convicção que confirmem as afirmações presentes na petição inicial.

Convém alertar que as restrições derivadas da indisponibilidade dos direitos fazendários estão vinculadas à necessidade de preservar o interesse público primário.

No entanto, a falta de contestação ou de impugnação por parte da Fazenda Pública não pode se converter em sistema punitivo do particular. O juiz, no caso concreto, deverá avaliar a plausibilidade da versão fática haurida no processo e se a falta de impugnação deriva, em realidade, de provável existência do fato invocado.

Enfim, tudo há de ser sopesado em razão das circunstâncias específicas do processo.

III. H - Restrições à tutela de urgência em relação ao município

Como é cediço, o exercício da função jurisdicional, no processo de conhecimento, objetiva a formulação da norma jurídica concreta que deve nortear e presidir determinada situação e, no processo de execução, visa à atuação prática desse preceito insculpido in concreto.

Editado o vigente CPC, esmerou-se a doutrina em definir os princípios retores da tutela cautelar, que pela primeira vez recebia uma disciplina particularizada.

É pacífico, em sede doutrinária e jurisprudencial, que o processo cautelar tem por fito resguardar, assegurar, através de medidas urgentes e provisórias, a eficácia e utilidade, no plano pragmático, da futura prestação jurisdicional a ser entregue no processo principal, seja no cognitivo ou executivo.

Mais recentemente, passou-se a diferenciar a tutela cautelar (arts. 796 e segs. do CPC) da antecipação da tutela (arts. 273 e 461 do CPC), ocorrendo

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referência a um gênero, isto é, uma categoria que abarca aquelas duas espécies. Eis que surge comum menção à tutela de urgência. Percebeu-se, portanto, que o processo cautelar não era o único a considerar o fator tempo como circunstância apta a acelerar a necessidade de provimento judicial.

A tutela de urgência é assunto tormentoso, tanto mais se observado quanto à sua aplicação às lides fazendárias.

Na legislação de regência constam importantes limitações à convocação da tutela de urgência (cautelar e antecipatória) em relação à Fazenda Pública.

Não se pode taxar de inconstitucional, por puro e simples postulado teórico, essa situação.

O juiz deverá conceder a tutela de urgência quando perceber presentes os requisitos legais. Não se trata de ato arbitrário, mas circunscrito à presença de seus requisitos.

O art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, ao garantir o acesso à tutela jurisdicional, inclusive em relação à ameaça de direito, vinculou o legislador e o aplicador da lei. A tutela de urgência, seja na modalidade cautelar ou antecipatória, não se afasta desse contexto.

No entanto, não padece dúvida que o interesse privado há de submeter-se ao interesse público, impondo-se a prevalência deste sobre aquele.

A tutela de urgência não é valor absoluto, na simples consideração de que não existem direitos absolutos e ilimitados.

Por isso, são aprioristicamente legítimas as regras que delimitem a incidência da tutela de urgência, reclamando requisitos específicos (suficiente comprovação fática, relevância da tese jurídica, urgência, etc.) e afastando, em casos determinados, a sua invocação (v.g., irreversibilidade, vulneração de outros direitos).

A Lei nº 8437/92 dispôs sobre limites à concessão de medidas cautelares contra atos do poder público. O legislador pode (e deve) normatizar a tutela de urgência. O que lhe é vedado é macular a sua essência.

Há intenso debate sobre o cabimento da antecipação da tutela em relação à Fazenda Pública. Os arts. 273 e 461 do CPC, que normatizam a questão, são silentes sobre esse aspecto.

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A Lei nº 9.494/97 procurou restringir a sua aplicação. Como já se disse, admite-se que o legislador imponha limites ao uso das tutelas de urgência; não se consente, diversamente, que haja simples vedação ao seu uso.

Nesse passo, convém refutar os argumentos mais comuns levantados para autorizar o uso da tutela de urgência contra a Fazenda Pública.

As sentenças desfavoráveis à Fazenda Pública estão previamente submetidas ao reexame necessário. O reexame necessário susta a eficácia da sentença. Como, então, permitir que a lei determine que uma decisão de cognição sumária, onde dispensa-se os rigores que estão presentes em decisões definitivas, seja, de logo, eficaz sem ser submetida ao reexame.

Ademais, a execução contra a Fazenda Pública é feita de forma especial e com obediência ao disposto no artigo 730 do CPC.

Sem falar na incompatibilidade da antecipação de tutela com a necessidade de expedição de precatório, conforme determina o art. 100 da Constituição Federal. Não se pode colocar a decisão antecipatória em posição superior à sentença transitada em julgado, a qual depende de precatório.

No caso específico da Lei nº 9.494/97, todavia, o STF deferiu liminar na Ação Direta de Constitucionalidade nº 04, declarando-a compatível com a Constituição Federal. Essa deliberação tem eficácia erga omnes, a exemplo do que ocorre nas ações diretas de inconstitucionalidade. Em conseqüência, surge presunção absoluta de compatibilidade da Lei nº 9.494/97 com a Constituição.

Sendo assim, é de se concluir que, em casos especiais, o interesse particular submete-se ao espectro do interesse público, de molde a coibir a concessão de medidas judiciais que poderiam causar grave lesão aos cofres públicos.

IV. - Conclusão

Ao longo deste trabalho procurou-se ter demonstrado a importância e, até, a necessidade em conferir-se tratamento diferenciado ao Município quando em juízo.

A importância crescente deste regime diferenciado, longe de ser uma mera concessão de privilégios ao ente público, é resultado da evolução do Direito que, partindo das peculiaridades que cercam a Fazenda Pública litigando

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em juízo, permite a derrogação do sistema jurídico ordinário em seu favor, diferenciando o seu tratamento legislativo – circunstância que, exercida nos limites constitucionais, é legítima.

É em homenagem à supremacia do interesse público sobre o particular e à indisponibilidade do interesse público pela Administração que o processo civil sofre adaptações amoldando-se na mesma medida ao regime de direito público.

A Administração Pública precisa gozar de prerrogativas, não por supremacia, mas por legitimidade funcional.

O sistema diferenciado concedido à Fazenda Pública não pretende o primado do todo sobre a vontade particular, mas apenas da vontade geral legítima em relação àquela que se revelar contrária ao interesse público.

Mas isso apenas haverá de ocorrer em relação à Fazenda Pública, conceito que limita a sua incidência às pessoas jurídicas de direito público, afastando-se todas as demais formas de expressão estatal. Não se propicia que outras entidades, mesmo nascidas e mantidas a serviço do Estado, recebam mercês processuais, quebrando as premissas constitucionais. Se o Estado abre mão das prerrogativas próprias da personalidade jurídica de direito público, submete-se ao sistema processual comum, sem exceções.

Os limites e as derivações decorrentes deste regime diferenciado concedido à Fazenda Pública foram objeto deste estudo.

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