o mundo em ruínas as zonas cinzentas na escrita de gonçalo tavares

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Texto de Erick Gontijo Costa sobre o romance Jerusalém, de Gonçalo Tavares.

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  • 102 103Kalope, So Paulo, ano 6, n. 12, p. Kalope, So Paulo, ano 6, n. 12, p. ago./dez., 2010. ago./dez., 2010.

    cadeia de conjuno entre vtimas e algozes, em que o oprimido se torna opressor e o carrasco, por sua vez, aparece como vtima (AGAMBEN, 2008, p. 30). Em Jerusalm, o que se l o processo de destruio dos lugares fixos da narrativa, j que no h exa-tamente personagens loucas de um lado e ss de outro, salvao para alguns e perdio para outros, e a prpria estrutura narrativa encena a confuso espao-temporal de que fala.

    As personagens centrais so Mylia Busbeck, para quem a dor era uma palavra essencial (TAVARES, 2006, p. 7) e que, em suas vises, percebia a alma das pessoas com pelos pubianos; Ernest Spengler, um suicida manco, apresentado ao leitor ao p da janela de seu quarto, beira de um salto; Hinnerk Obst, um veterano de guerra que vaga pelas ruas, portando uma arma e s vias do assassinato; Theodor Busbeck, um cientista que pretende escrever a Histria do Horror. Em sua solido, todos vagam nos limites de lugares em que dentro e fora so como duas lnguas que no se comunicam entre si: ora uma igreja ou um edifcio-priso (TAVARES, 2006, p. 7), onde presos so aqueles que esto em li-berdade, do lado de fora, sem poder entrar, ora o Hospcio Georg Rosenberg. L, mdicos como Theodor Busbeck pretendem ser o limite que legisla sobre tudo, inclusive a vida e a morte, alm de buscarem conter a loucura:

    O mdico sou eu, no te esqueas. Eu que determino quando que as pessoas esto saudveis ou doentes. No limite sou eu como mdico que determino quem est morto. Fui eu que aprendi durante anos com professores e manuais sou eu que conheo a cabea de um doente e a cabea de algum com sade. Sou eu que devo dizer se s ou no uma mulher saudvel (TAVARES, 2006, p. 43).

    Os loucos que passam por Georg Rosenberg, por sua vez, em sua errncia e imprevisibilidade, permitem ver que, no espao aberto da cidade ou cercados pelos muros do Hospcio, no h liberdade ou apaziguamento da dor em um mundo de regras absurdas.

    Frente a esse cenrio catastrfico, o Hospcio de Jerusalm mais no seria que uma pretensa forma de conteno da loucura, pois,

    moTs-cls:

    Palavras-chave:

    Jerusalm - horror loucura narrativa

    Jerusalm horreur folie rcit

    ^

    ^

    Jerusalm, romance vencedor do prmio Portugal Telecom de Li-teratura de 2007, escrito pelo autor portugus Gonalo M. Tavares, o terceiro livro da tetralogia O Reino, composta por Um Ho-mem: Klaus Klump (2003), A Mquina de Joseph Walser (2004), Jerusalm (2006) e Aprender a Rezar na Era da tcnica (2007).

    Neste Reino, Jerusalm antes signo da conflituosa condio humana que um espao geogrfico. O espao narrativo dissol-vido na ausncia de marcas de uma cidade real, e as referncias espaciais resumem-se aos nomes de ruas aparentemente ficcio-nais: Klirk Pursch e Moltke. Nesse lugar, so as palavras que delineiam outra geografia, imprecisa: a dos seres errantes na paisagem da loucura, da dor, da solido, da morte, enfim, dos limites do humano.

    Esse limite que se esboa o da prpria escrita, que demarca zonas cinzentas na paisagem do humano, tal como as pde testemunhar Primo Lvi em seus escritos. Sobre essa zona, Agamben, em O que resta de Auschwitz, afirma: Ela aquela da qual deriva a longa

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  • 104 105Kalope, So Paulo, ano 6, n. 12, p. Kalope, So Paulo, ano 6, n. 12, p. ago./dez., 2010. ago./dez., 2010.

    a parte louca da Histria, se conseguir entrar na cabea do Horror e com esta conseguir dialogar, o que farei a seguir? (TAVARES, 2006, p. 54)

    Menos ortodoxa que sua empatia com o no normal a justificativa que o cientista encontra para a parte louca que habita sua teoria: o instinto cientfico de que se orgulhava era resumido numa frase: um homem que no procure Deus louco. E um louco deve ser tratado (TAVARES, 2006, p. 56). No limiar de sua teoria, paira a prpria loucura, que se infiltra sorrateiramente em suas ideias, como se de facto no quisesse ser mdico, mas sim santo (...) um santo inteligente capaz de perceber os miolos da Histria, (...) chegaria ao que milhares de homens pequenos e grandes, violentos ou pacficos haviam tentado: dominar a Histria (TAVARES, 2006, p. 53).

    As regras desse jogo absurdo em que vivem as personagens sur-gem, em meio ao livro, na estrutura de um mise em abyme, como outro livro, que lido em tom de recusa por Theodor Busbeck: Europa 02. Em uma das pginas dessa obra, o cientista se abis-ma, e o leitor pode perceber: h uma lei a governar O reino de Jerusalm:

    Lei

    Podes cumprir as regras com exactido mas, num determi-nado momento, eles apresentam um pequeno documento--lei, e ento percebes: vais ser morto.

    O que fazem aleatrio, mas nunca ilegal. Primeiro mos-tram a lei, o documento que determina a aco.

    Ningum resiste. As pessoas aceitam a lei. Se no, seria pior (TAVARES, 2006, p. 118).

    Jazem, na base dessa lei fundamental que rege a precria condio das personagens, elementos aleatrios como o absurdo e o caos,

    se para o diretor Gomperz o lugar demarca um limite entre loucura e razo, para um dos loucos que observa a chuva por uma janela fica claro nesse lugar, sob todas as formas, o exterior infiltra-se no interior:

    Uma certa conteno, pedia-se por vezes, conteno nessa actividade exercida frente s janelas: o exterior do hospital era ao mesmo tempo, um espao infantil pouco adequado seriedade exigida aos loucos e adulto de mais, perigoso, portanto. O exterior est molhado!, repetia vezes sem conta um dos loucos.

    Quando chovia mesmo, as telhas seguravam a gua por instantes at que, de repente, uma reunio lquida caa l de cima, com uma violncia comedida, mas que se tornava um excelente divertimento para um homem h tempo de mais sentado a ver pela janela a chuva cair (TAVARES, 2006, p. 156).

    O Hospcio Georg Rosenberg como uma espcie de Jerusalm, a terra da salvao dos que sofrem; entretanto, tambm a terra da perdio, pois, assim como o espao interior do hospital invadido pelo exterior materializado em chuva, os respons-veis pelo tratamento da loucura so por ela atravessados at a dissoluo das fronteiras de sua sanidade, que no livro no se ope dialeticamente loucura. Exemplo disso so as teorias do renomado mdico Theodor Busbeck, que visam a nada mais nada menos que a construo de uma Histria do Horror em todas as pocas e o estabelecimento de regras para o Horror ao longo da Histria: Queria que do meu estudo resultasse um grfico um nico grfico que resumisse, que permitisse estabelecer uma rela-o entre o horror e o tempo (TAVARES, 2006, p. 45). Entretanto, Theodor percebe em si mesmo o perigo presente na formulao de sua teoria pretensamente cientfica, que visa a compreender uma possvel lgica interna ao Horror. Ele pressente:

    Essa capacidade para entrar nas cabeas estranhas, como al-guns colegas diziam. Era dessa empatia com o no normal que poderia nascer algo de inaceitvel. Se chegar a perceber

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