o mundo de segunda-mão fotografia, colagem e processos digitais na prática da pintura

Upload: marco-giannotti

Post on 11-Mar-2016

39 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Tese Final Mestrado de Vitor Iwasso

TRANSCRIPT

  • 1So Paulo.2011

    O Mundo de Segunda-Mofotografia, colagem e processos digitais na prtica da pintura

    Dissertao de mestrado apresentado ao Departamento de Artes Plsticas da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo

    Orientador: Prof. Dr. Marco Garaude Giannotti

    Vitor Rezkallah Iwasso

  • 2AGRADECIMENTOS

    Marco GiannottiSilvia LaurentizJos SpaniolDora Longo Bahia Shimpe IwassoSimone IwassoDaniela IwassoMaiara CamargoLiliane BenettiYukie HoriCynthia SanchesErica FerrariRenata ManeschyEurico LopesDaniel Lopes

  • 3BANCA EXAMINADORA

    So Paulo, Maro de 2011.

    1.

    2.

    3.

  • 4

  • 5RESUMOO conjunto aqui apresentado d forma a parte das reflexes tericas em an-damento durante minha pesquisa de mestrado na rea de Poticas Visuais. Proposta como um complemento, esta exposio escrita no pretende vali-dar ou definir um sentido srie de pinturas que constitui sua contrapartida experimental, mas sugerir condies interpretativas, no s a meu processo artstico, como a outras pesquisas poticas que partem de questionamentos semelhantes.

    Tendo como pano de fundo o momento atual de onipresena da tecnologia da informtica em qualquer aspecto da vida cotidiana, pretendo uma inves-tigao sobre os efeitos dessa revoluo digital no modo como produzimos e nos relacionamos com imagens no mundo contemporneo e, de modo mais especfico, sobre os possveis dilogos de um suporte tradicional como a pintura nesse contexto.

  • 6

  • 7

  • 8Ao tratar do pintor da vida moderna em seu embate com a velocidade urbana, Baudelaire se refere necessidade de uma arte mnemnica, dado o medo de no agir com suficiente rapi-dez, de deixar o fantasma escapar antes que sua sntese tenha sido extrada.(BAUDELAIRE, 2002:32)

    As pinturas reunidas sob o ttulo geral O Mundo de Segunda-mo apre-sentam o desdobramento de uma prtica pictrica anterior, que teve como ponto de inflexo o momento em que o computador foi incorporado ao processo criativo. Essa presena da mquina, que no intencionou em nenhum momen-to uma mudana de suporte, teve dois efeitos complementares sobre minha potica. Considerando o mtodo de trabalho at ento utilizado, posso dizer que o computador me permitiu construir imagens de modo mais condizente com minha percepo de um mundo constantemente mediado pela tecnologia da informtica; uma tentativa de utilizar os recursos da mquina a servio de novas possibilidades pictricas. No outro lado da questo, encontra-se uma ex-perincia de trazer para a tela operaes caractersticas da lgica da mquina. Tenho na pintura, portanto, o foco e o sentido dessa pesquisa. Se o uso do computador me possibilita agir sobre a velocidade e a saturao de informaes visuais inerentes ao universo digital, o deslocamento para a tela rompe o fluxo, conferindo outro tempo e significado a essa realidade. O que busco como pintor no a verso em tinta de um imaginrio virtual, e sim, uma continuidade da pintura nesse novo contexto. Minhas primeiras tentativas de apreender com o desenho a coliso de signos que constitui a paisagem urbana de uma metrpole como So Paulo desenhos esses que, posteriormente, serviriam de base para pin-tura em pouco tempo se mostraram inviveis. Por um lado, os materiais necessrios nunca estavam mo quando esses encontros espontneos chamavam a ateno do olhar, andando pelas ruas, durante um trajeto de nibus, ou no carro, observando o entorno no tempo de espera de um se-mforo fechado. Quando tinha os meios materiais necessrios para o regis-tro, normalmente em casa, olhando pela janela do apartamento, o tempo do desenho se mostrava incapaz de captar tais imagens antes que essas se

    INTRODUO

  • 9perdessem novamente no fluxo contnuo da cidade. J nessa poca (2005), o tempo que dispunha em frente ao compu-tador em grande parte pela necessidade profissional como designer, mas tambm como usurio padro da web era muito maior do que o tempo em contato com o mundo porta afora; circulava muito mais por espaos virtu-ais do que pelos quarteires do bairro. A maior parte das imagens a que eu tinha acesso era, portanto, virtual. Alguns anos antes, quando comecei a usar a internet diariamente, criei o hbito de copiar para o computador imagens que me chamavam a ateno durante os percursos de pgina a pgina. Sem me ater a critrios ou finalidades especficas, formei aos poucos uma grande coleo, constan-temente atualizada, composta por fotografias de qualquer assunto, peas de design grfico, propagandas, material promocional diverso, ilustraes, stills de filmes, reprodues de obras de arte, etc., normalmente sem refe-rncias sobre autoria ou propsito desse material. Dentre os diversos grupos que compunham esse arquivo, as imagens ligadas street art passaram a me interessar de modo particular. Ainda que esse movimento tenha origens anteriores aos anos 2000, nesse momento, com a popularizao das cmeras digitais e dos blogs, que uma profuso de registros de intervenes urbanas comeou a ser disponibilizado on-line. Dado o carter efmero e a localizao especfica de tais propostas, postar os registros dessas aes na web permitia no s compartilh-los com outros usurios de qualquer lugar do mundo, como lhes fornecer uma sobrevida, mesmo quando o original j estivesse destrudo. Embora os trabalhos, em si, no me despertassem maiores questes, o modo como essas imagens se impunham no tecido urbano ia de encontro a solues que eu buscava na pintura. Sobre as camadas de informao visual espontaneamente criadas na cidade como a tinta de um muro que descas-ca, revelando trechos da cor antiga, ou o dilogo involuntrio de impressos aplicados numa mesma parede , esses artistas depositavam outras, prove-

  • 10

    nientes de um universo distinto, estabelecendo relaes de forma contnua, seja pelo acrscimo de novas imagens ou pela deteriorao das antigas, numa espcie de palimpsesto mal apagado.

    Captar um aspecto determinado de uma relao em fluxo demanda-va um registro rpido. Assim, a substituio do desenho por fotografias me pareceu a melhor forma no s de agilizar o processo, mas de aumentar o nmero de referncias. Passei, ento, a imprimir em papel parte das ima-gens dessa arte de rua que ofereciam trechos visualmente interessantes e, baseado nessas impresses, procurava recombin-los na tela. Mesmo partindo de imagens diferentes, as pinturas que produzi desse modo, apre-sentavam uma homogeneidade pictrica, muito mais livremente inspira-das do que adaptadas de imagens pr-existentes. Na mesma medida em que no me sentia vontade para simplesmente copiar uma dessas fotos de modo integral, j que, normalmente, apenas um trecho da imagem me interessava, tais momentos de interesse pareciam fazer sentido somente em seu contexto original, perdendo fora quando reinterpretados no pla-no da pintura. Por mais evidente que hoje me parea, foi somente durante essa srie que percebi que minha questo no estava nos efeitos que essas imagens apresentavam, mas no processo de construo que gerava esses encontros, rudos e relaes foradas; um processo de colagem.

    A introduo do software (Adobe Photoshop) no momento seguinte criou uma ligao direta entre as imagens consumidas (copiadas da internet) e as imagens produzidas (para a pintura), desvelando na potica um processo de colagem latente, de algum modo, j orientado pela lgica digital.

  • 11

  • 12

    Parece pertinente enfatizar a relao com a cidade, uma vez que as experin-cias de Picasso e Braque, que inauguram a colagem como forma artstica, se si-tuam num momento de transformao da paisagem urbana nas metrpoles eu-ropeias. Na primeira dcada do sculo XX, o desenvolvimento da indstria grfica, relacionada tanto propagan-da e ao comrcio de bens de consumo manufaturados, como divulgao de mensagens polticas e entretenimento popular, condiciona uma configurao visual indita no espao pblico. Sobre a estrutura arquitetnica da cidade, ca-madas de informao vo sendo depo-sitadas em ritmo crescente; fragmentos heterogneos de imagem e tipografia so justapostos e logo, sobrepostos, dis-putando com as atraentes vitrines das lojas a ateno do transeunte.

    Eugne AtgetAvenue de lbservatoire, 1926

    A COLAGEM COMEA NA CIDADE

  • 13

    Ainda que os efeitos da for-mao de uma nova subjetividade em dilogo direto com as mu-danas culturais e epistemolgicas trazidas pelo avano da sociedade industrial j pudessem ser senti-dos em obras anteriores, os papier collers desse perodo traduzem de modo mais contundente a fruio desse espao urbano renovado. De modo anlogo ao olhar do passante que associa trechos da profuso de elementos dispostos em seu cami-nho, o observador desses trabalhos se depara com um conjunto frag-

    mentado, cujo sentido dado aos poucos pelas relaes dspares que se estabelecem entre o conjunto e o plano da pintura. Em um aspecto complemen-tar, a utilizao desses fragmentos reflete uma vivncia material da cidade. Os pedaos de jornais, bi-lhetes, rtulos, selos, recibos de compras e toda sorte de impressos que figuram nessas obras criam uma espcie de registro do trajeto de um indivduo pela cidade seja como vestgio de consumo ou atestado de um itinerrio pelas ruas.

    Pablo PicassoViolo, partitura e taa, 1912

    Caneta, nanquim, guache e colagem sobre papelo

    45.5cm x 26cm.

  • 14

    Vemos isso tarde demais, 2008.leo s/ tela. 90cm x 60cm

    (pgina oposta)Pequenas causas perdidas, 2008leo s/ tela. 200cm x 150cm

  • 15

  • 16

    .IMAGENS DO MUNDO

    Considerando a apropriao de pro-dutos industrializados disponveis (no caso deste trabalho, de modo mais especfico, imagens mecanicamente produzidas) como parte constitutiva do processo de colagem, o desenvol-vimento tcnico da fotografia e, por extenso, do cinema, paralelamente ao avano da indstria grfica, pontua um aspecto fundamental.

    Frente aos mtodos tradicio-nais de produo de imagem, a foto-grafia apresentava uma alternativa mais condizente com um momento de re-definio de termos como velocida-de, acelerao e fluxo. A facilidade e rapidez do processo e a possibilidade de reproduo em maior escala, por um baixo custo, colocam em circula-o uma quantidade desproporcional de imagens. Alheia a restries temti-cas, a fotografia forma aos poucos um grande catlogo da realidade visual. O mundo torna-se acessvel a partir de suas representaes fotogrficas.

    Ainda que o dilogo entre cinema e cola-gem seja bastante amplo e significativo para as duas partes poderamos sugerir como exemplo elementar a estrutura de monta-gem (combinao de tomadas distintas, cuja justaposio forma um novo sentido), e a fragmentao da tela em planos simultneos a apropriao do filme em si, como com-ponente de outros trabalhos, ainda demora-ria algumas dcadas para se tornar vivel.

    Abel GanceNapoleon, 1927222min.

  • 17

    A utilizao desse lbum co-letivo, em intenes artsticas diver-sas, pe em jogo, de modo consp-cuo, a arbitrariedade de significados da imagem fotogrfica. Partindo de um processo anlogo aos primeiros papier collers no que diz respeito fatura (seleo, recorte e aplicao com cola sobre um suporte), a cola-gem fotogrfica oferece, em distin-o a estes, no mais uma imagem que se completa na relao entre os fragmentos dispostos, mas metfo-ras visuais que se revelam na tenso criada entre imagens cujo significa-do aparente nos dado de imediato, pelo carter descritivo da fotografia. A foto mostra, mas no declara (ou, em tese, apenas afirma a existncia do objeto fotografado). Recombina-da em diferentes obras (ou contex-tos), portanto, uma mesma imagem passa a ter outros significados alm daquele proposto pelo fotgrafo (que no podemos determinar, pos-suindo apenas a foto pronta).

    Por outro lado, a despeito dos enunciados propostos por es-sas obras estejam elas ligadas ao Construtivismo, Surrealismo, Da-dasmo ou movimentos posteriores que utilizam a mesma tcnica , sua aparncia final de um conjunto de recortes, que explicita seu processo de construo. Choque iconogr-fico e coliso material operam em igual medida sobre significado; o suporte e o contedo so fotogrfi-cos, mas o resultado no se prope fotografia. Nesses termos, a utilizao da fotomontagem pelos fotgrafos apresenta um caminho divergente. Considerada, por definio, o regis-tro nico de um acontecimento no tempo do disparo, a imagem foto-grfica, em tese, estaria pronta no negativo, impossibilitando qualquer modificao de seu contedo. In-corporar elementos externos a essa matriz de modo convincente impli-cava, portanto, suprimir a juno

    Com o desenvolvimento dos meios de transporte e do turismo decorrente desse outros continen-tes chegaram Europa em imagens. Tambm um mundo invisvel ao olho foi capturado pela lente das cmeras, apresentando um aspecto indito da realidade.

    No a realidade que as fotos tornam imediatamente acessvel, mas sim as imagens. (SONTAG, 2004:181)

  • 18

    aparente dos fragmentos, em uma imagem integral, que pudesse ser entendida como verdica, mesmo oferecendo um contedo distante da realidade. Alternativas como ex-posies diferentes sobre o mesmo negativo, exposio de negativos diferentes sobre o mesmo suporte e at mesmo a colagem de trechos de outras fotos sobre uma j exis-tente, produzindo em seguida uma fotografia dessa imagem adulterada, deveriam, assim, considerar ques-tes como iluminao e escala para produzir uma sensao de unidade. Pautadas em convenes da pintura, essas imagens sugerem o momento pregnante de uma ao, ao contr-rio da narrativa sugerida pela mon-tagem de momentos distintos nas fotocolagens. Presena constante na hist-ria da fotografia quase desde o in-cio com diversas finalidades , a fotomontagem repercutir de modo significativo na esttica digital.

    O ponto de convergncia entre fotografia e produo indus-trial demarcado pelo mtodo de impresso meio-tom amplificaria a difuso de imagens, principalmente por meio da imprensa. Traduzindo a matriz fotogrfica em um conjunto de pontos cuja variao em tamanho e densidade corresponde variao de luminosidade da imagem origi-nal, a tcnica permitiu uma srie de novas operaes grficas. Liberta de seu suporte original, a imagem foto-grfica se torna ainda mais malevel, abrindo outras possibilidades de sig-nificado. Uma reproduo fidedigna da realidade ainda que duplamen-te filtrada, pelo fotgrafo e pelo edi-tor passa a figurar nas pginas im-pressas, dos catlogos de produtos s notcias dos peridicos, formando substrato para uma sociedade cada vez mais regida pela imagem. A relao entre arte, inds-tria grfica e cultura de massa ativa-da na colagem se atualiza de modo Hanna Hch. Untitled, 1921

    Fotomontagem. 35.6cm x 30.5cm

  • 19

    contnuo no decorrer do sculo XX, na medida em que o desenvol-vimento das duas ltimas lana no-vas variveis que alteram o estatuto da primeira. Se, no sentido mais evidente, o aumento da quantidade e diversidade de imagens em circu-lao significa mais material para os artistas, por outro lado, as no-vas tcnicas so tambm cooptadas, transformando-se em ferramentas

    expressivas. Mesmo consideran-do que a incorporao desse novo aparato tecnolgico a serigrafia na dcada de 60, fotocopiadoras na dcada de 70 e computadores e in-ternet, nos anos 80 e 90 respecti-vamente se restrinja potica de alguns artistas, a presena dessas no universo da arte afeta o sentido das tcnicas de produo tradicionais, forando redefinies de conceito.

    Oscar G. ReijlanderThe Two Ways of Life, 1857. Fotomontagem a partir da exposio de trinta negativos diferentes

    Jeff WallDead Troops (A Vision After an Armbush of a Red Army Patrol Near Moqor, Afghanis-tan, Winter, 1986), 1992.Transparency in lightbox. 229cm x 4178cm

    A aparente unidade das imagens de Jeff Wall camufla um processo digi-tal que dialoga com a fotomontagem tradicional e com a pintura do scu-lo XIX. Duplamente construda, a realidade que suas fotos mostram , em primeira instncia, encenada, permitindo ao fotgrado dispor os elementos no plano antes do clique, enfatizando assim a teatralidade da composio. No momento seguin-te, trechos das vrias tomadas dessa mesma cena so recombinados minu-ciosamente no software, gerando uma imagem homogna, porm composta layers de momentos distintos.

  • 20

    Assim como anos antes a inveno da fotografia foi tomada por alguns pin-tores como uma ameaa, acredito que a propaganda da Kodak deve ter acu-ado vrios fotgrafos profissionais da poca. Com o lanamento da primeira cmera automtica, em 1988, a tec-nologia oferecia a qualquer pessoa a capacidade de produzir imagens, pres-cindindo de conhecimento ou habilida-de especfica anterior. Para alvio dos profissionais, no entanto, ao priorizar a simplicidade operacional, a constru-o das cmeras automticas suprimiu recursos, impossibilitando a fotografia amadora de qualquer chance de com-petio quanto qualidade final. A infinidade de nascimentos, casamentos, aniversrios, viagens e eventos da vida cotidiana registrados dessa forma consideravelmente se-melhantes, seja pela cultura fotogrfi-ca vigente, pela ausncia dos recursos

    MUNDO DE IMAGENS

    Voc aperta o boto, ns fazemos o resto A nica cmera que qualquer pessoa pode usar sem instrues

  • 21

    de regulagem ou pelo processo de revelao padronizado a que eram submetidas sempre tiveram circu-lao restrita, conformadas depois de prontas em lbuns de famlia ou porta-retratos. Satisfazia, assim, os interesses de um pblico sem maio-res ambies criativas, que almejava registrar seus prprios momentos Kodak sem esforo de aprendizado ou tempo de produo. A fotografia amadora amplia, portanto, outro ni-cho das imagens do mundo, situado fora da arte e do comrcio. O ns fazemos o resto ain-da perduraria por mais de um scu-lo antes de ser substitudo pelo faa voc mesmo da era digital.

    Tendo isso posto, tomarei aqui o aperfeioamento das cmeras digitais, na virada do milnio, como o primeiro passo em direo a uma mudana paradigmtica no processo fotogrfico que, por extenso, im-plicar na sociedade em geral, uma transformao nesse modo de pro-duo e consumo de imagens.

    De imediato, a cmera di-gital elimina o filme e o processo qumico de revelao; voc aperta o boto e a mquina te d uma ima-gem. Livre do custo e do nmero de poses estipulado pelo filme, o usurio pode clicar at o limite de armazenamento do carto de me-mria, com a possibilidade de editar as imagens em tempo real, apagan-do os resultados insatisfatrios. Se, antes, o usurio faria 24 fotos per-mitidas pelos filmes convencionais, faz agora 240 sem nenhum nus fi-nanceiro. Em decorrncia, o tema deixa de ser relevante; o tempo do olhar, buscando na cena o instante decisivo que justifique o disparo, deslocado para um momento pos-terior, procurando no resultado de muitos cliques, a melhor imagem. Considerando, contudo, que em sua forma comercial no design grfico, imprensa ou propa-ganda, por exemplo a fotografia estava vinculada impresso, ten-do o alto custo do papel como fator determinante no lucro, em termos

    Gerhard Richter Atlas (Albumfotos, p.6 e p.3, 1962)

  • 22

    de circulao, no h mudana radi-cal. Em termos gerais, ainda que o barateamento dos gadgets digitais capazes de produzir imagens (alm das mquinas fotogrficas, filmado-ras, celulares com cmera e webca-ms) tenha impulsionado a invaso desses dispositivos em praticamente todas as esferas da sociedade, o real impacto causado pelo aumento des-proporcional dessas imagens s se-ria inteiramente sentido na segunda etapa dessa mudana, com a popula-rizao da internet.

    Se uma cmera digital em mos legava a qualquer pessoa o do-mnio sobre um processo completo de produo de imagem, o resultado deste continuava restrito a uma es-fera domstica na maior parte dos casos; qualquer um pode fazer uma foto, mas s parte dessas fotografias pode ser veiculada. Nesse contexto, o acesso internet abriria o canal de circulao para um contingente des-comunal de imagens, em crescimen-to contnuo, dando incio saturao

    de informaes visuais que caracte-riza a sociedade contempornea. Colocando em xeque o es-tatuto vigente, o ambiente da web grande colagem por exceln-cia acaba com as distines ante-riores, dando visibilidade a toda e qualquer imagem, desconsiderando critrios como qualidade artstica, valor comercial, relevncia temti-ca, ineditismo ou autoria. Igualmen-te acessveis, uma foto caseira pode despertar mais interesse que outra produzida por um grande fotgra-fo, ganhando maior divulgao que a ltima por meio de uma ao inin-terrupta de cpia e reproduo em outros sites ou troca entre usurios via e-mail ou programas de compar-tilhamento de arquivos. Por um trajeto paralelo, todo o conjunto de imagens produzido em outras mdias, em qualquer mo-mento da histria, torna-se passvel de digitalizao. Convertidos em pi-xels, um montante da produo vi-sual fora de circulao novamente posto em fluxo; com uma busca r-

    pida, possvel obter reprodues de raridades e materiais antigos ou pouco conhecidos. Depsito comum de toda informao produzida em qualquer poca ou localizao geogrfica , a in-ternet apresenta um repertrio visual indito a cada novo acesso.

    Ultrapassando o ambiente vir-tual, as operaes que permitem inte-ragir com esse mundo de imagens de forma apropriada acabaram por definir novas formas de pensar e agir na so-ciedade contempornea. O processo potico que chega nas pinturas aqui mostradas, acredito, apresenta uma tentativa de resposta s particularida-des dessa nova condio.

  • 23

    Collage feeds off the

    polution of visual culture1

    If surrealist collage aspired to emulate a product of

    our subconscious, contemporary collage aspires to be a

    product of, and a participant in, the real-time discourse

    that our consciousness perceives as constituting our

    real-world circumstances.2

    ENCONTROO mtodo de apropriao que se torna parte integrante da pesqui-sa pictrica no momento em que meu arquivo de imagens da internet se transformou em base para as pin-turas trazia implcito outro ante-rior, igualmente significativo. Aqui, a seleo se dava sobre um conjunto j formado, onde todas as imagens me eram, por algum motivo, interessan-tes. As horas conectado internet, coletando em cada pgina percorri-da material potencialmente expres-sivo (ainda que, no momento, sem nenhuma inteno clara), j tinham posto o processo em andamento; o trabalho parte de um encontro.

    No contexto em que a co-lagem se desenvolve como tcnica

    expressiva, a circulao dos bens materiais disponveis passa obri-gatoriamente pela rua. Encontrar os elementos industrializados que compem os primeiros papier col-lers implicava circular por um am-biente urbano, seja para comprar um jornal ou recolher do cho um impresso descartado. O fluxo da ci-dade delineia o campo de ao des-ses encontros. Para depositar a rea-lidade material do mundo na obra, era preciso sair para busc-la. Um possvel dilogo que mi-nha pesquisa estabelece com esse processo, no entanto, deve reconsi-derar os significados das operaes de busca e de apropriao, me-dida que a imagem digital se torna matria-prima.

    1 Richard Flood, Tear Me Apart, One Letter at a Time in Collage: The Unmonumental Picture, p.101 Idem, op. cit. p.11

  • 24

  • 25

    Embora a internet oferea um mundo de imagens sem que eu preci-se me locomover para acess-lo, encontrar em meio infinidade de infor-mao disponvel algo que esteja adequado s minhas intenes exige, tambm, um percurso. No basta estar conectado; preciso circular de modo apropriado. Como, no incio, coletava imagens sem uma finalidade efetiva em relao ao trabalho plstico, traava itinerrios aleatrios, como um flneur virtual. Contudo, a reorientao conceitual da potica que ala minha cole-o de souvenirs categoria de readymades altera o propsito e a confi-gurao desses percursos. Voltando cidade como termo de comparao, o espao saturado da web oferece no s um nmero infinitamente maior de destinos, vias e atalhos, mas uma velocidade de modificao extremamente mais rpida, de modo que, retornar a um ponto de interesse pode ser bas-tante complicado e, mesmo no caso de sucesso, no dada a garantia de que esse ainda estar l (no, ao menos, como visto da ltima vez). Em auxlio aos navegadores virtuais destitudos de bssola ou es-trela-do-norte, a interface dos browsers oferece algumas ferramentas, que, naturalmente, acabei incorporando ao processo. Assim, coleo de ima-gens somou-se outra, de bookmarks (ou favoritos), demarcando no trajeto anteriormente disperso estaes que ofereciam outros destinos (links) de contedo semelhante, logo, mais favorveis a encontros proveitosos.

    By the end of the twentieth century, the problem became no longer how to create a new media object such as an image; the new problem was how to find the object which already exists somewhere. (MANOVICH, 1999:55)

  • 26

    O termo coleo aqui utilizado seja em relao internet ou a meu prprio arquivo de imagens, demanda dois fatores de grande importncia na estrutura virtual: capacidade de armazenamento e um sistema eficiente de indexao. Com relao minha pesquisa, o primeiro fator tem impli-caes mais objetivas; alm da memria do computador, um HD externo simples pode guardar uma infinidade de imagens, ocupando um espao fsico consideravelmente menor que qualquer pilha de impressos. Ainda, a prpria rede oferece espaos de armazenamento virtuais cada vez maiores, e muitas vezes sem custo, acessveis de qualquer computador conectado. Para se tornar funcional, contudo, esse acmulo crescente de informao precisa obedecer a uma organizao sistemtica que permita ao usurio encontrar os dados procurados. Mais significativo no processo, esse segundo fator opera em dois nveis. Na primeira etapa, de obteno de material, os recursos de sites de busca bsicos como o Google executam a partir de uma palavra dada uma pesquisa instantnea pelo contedo da rede, apresentando uma listagem de textos, imagens e vdeos com teor semelhante. Ainda, a disposio desse resultado na tela, pode ser filtrada por critrios como, tipo e tamanho do arquivo, data de postagem, cor da imagem ou durao (no caso de vdeos). Um mecanismo semelhante opera, na etapa seguinte, sobre o arqui-vo constitudo. Como no costumo renomear as imagens coletadas, que por

    Pelo Multicolor (http://labs.ideeinc.com/multicolr/) possvel buscar imagens utilizando como parmetro combinaes cromti-cas. Como resultado, o oferece imagens postadas por usurios do Flickr (website gratuito de hospedagem e partilha de imagens).

  • 27

    isso ficam gravadas com nomes genricos, a opo de busca a partir de uma palavra-chave pouco eficaz. Em contrapartida, os vrios modos de visua-lizao proporcionados pela interface do sistema operacional adquirem um papel interessante. Alterando os parmetros de exibio (por nome, data de modificao ou criao), imagens oriundas de contextos totalmente distin-tos formam, por justaposio ou ordem sequencial, diferentes composies na tela, sugerindo relaes imprevistas.

    Ugo Mulas James Rosenquist, New York 1964

    O sistema de visualizao de dados nas interfaces grficas ( esquerda), possibilita encontrar rapidamen-te qualquer dado armazenado no computador. Ainda, o trabalho com imagens digitais no s permite um acmulo muito maior de material, sem dispndio de espao fsico (a ba-guna do ateli do pintor James Ro-senquist, na foto abaixo, ilustra essa diferena), como mantm uma cpia da imagem incorporada ao trabalho-que pode ser usada integralmente em outros contextos.

  • 28

    O fim incrvel, 2009leo e acrlica s/ tela.100cm x 100cm

  • 29

    Nesses termos, talvez, 2009leo s/ tela. 100cm x 100cm

  • 30

    Integrar essas imagens digitais pesquisa potica como readymades, implica alguns ajustes conceituais, devido tanto suas caractersticas peculiares, quanto ao modo como a lgica digital afeta o sentido da apropriao. Produto material de uma so-ciedade regida pela lgica capitalista, a imagem impressa, de qualquer or-dem, traz consigo um histrico rela-tivo a seu suporte, mtodo de fabri-cao e finalidade, que determina a variao de seu valor a dado contexto. Se, por um lado, sua incorporao a um trabalho de arte lhe confere uma nova funo, esta, todavia, no apaga seu sentido original. Desse modo, a imagem ativa uma relao de mo-du-pla, j que na mesma medida em que gera novos significados sua presena fsica confere obra um conjunto de outras interpretaes. Ainda quanto materialidade, paradoxalmente, cada exemplar impresso, cpia de uma matriz por definio, , ao mesmo tempo nico; uma vez convertido em

    obra de arte retirado permanente-mente de circulao. A era digital, por outro lado, estabelece uma condio distinta de vnculo com o suporte; conjunto de informaes numricas, a imagem digital transita pelos dispositivos f-sicos, mas no constitui no encontro com estes, uma unidade autnoma. Quando abro uma fotografia em um site qualquer da web, por exemplo, acesso, na verdade, uma sequncia de nmeros gravada em um servidor, cuja traduo visual a mquina me exibe na tela. Ao copiar essa imagem, transfiro esses dados para o meu computador sem, contudo, alterar o arquivo de origem que permanece disponvel. Mesmo duplicada no pr-prio HD, transferida para um CD ou DVD ou devolvida rede em outro contexto, minha verso da imagem assim como essas possveis cpias continuar idntica primeira. Dessa premissa, convm pon-tuar algumas questes. Qualquer objeto produzido por um dispositi-vo digital pode ser imediatamente transferido para a rede, numa re-

    .APROPRIAO

    For me collage is not about the succesfull application of an idea or strategy but, rather, is a way of living with available images by a process of making them ones own. 1John Stezaker

    1Entrevista a David Lillington in Collage Assembling Contemporary Art, p. 22

  • 31

    produo que, quanto aos elemen-tos constitutivos, em nada difere da verso original. Me apropriar de um objeto que se enquadra nesse grupo seja uma foto, um vdeo, uma pea de design ou propaganda, ou mesmo uma obra artstica significa ter em mos o objeto em si. J a produo analgica posteriormente digitaliza-da delimita um conjunto distinto; no caso de uma fotografia tradicional, por exemplo, acesso uma interpreta-o numrica da reproduo de um original (logo, uma outra imagem). Conceitualmente significativa, a va-

    lidade dessa distino, na prtica, acaba sendo relativizada no ambiente da web e, por extenso, na consti-tuio do trabalho. Em um aspecto, independente do contedo, todas as imagens que utilizo so fundamen-talmente um conjunto de pixels, igualmente acessveis e passveis s mesmas operaes nesses termos, todas so equivalentes. No obstante, parte os casos em que as imagens so acessadas em seu domnio origi-nal acompanhadas de informaes como autoria, tcnica de produo, data, etc. de modo geral, o senti-

    Where a news photograph might, in the past, have been published as part of a limited number of stories, its electronic counterpart may be appropri-ated endlessly into new information sequences. It is a condition that Marcel Duchamp surely would have relished: digital images are the ultimate ready-mades manufactured objects of little intrinsic value that are given meaning through appropriation and contextualization rather than inherit meaning from the expressive craft with wich they are fashioned. (W.M. p. 85)

    do primeiro da imagem desvanece no fluxo irrestrito de apropriao e recontextualizao, criando formas vazias; massa de informao visual intercambivel, cujo sentido se d no encontro.

    Ralf Christensen e Andreas JohnsenGood Copy Bad Copy, 2007.documentrio. 59min.

  • 32

    MESA DE OPERAES

    Como antes enfatizado, a histria da colagem se desenro-la em estrita relao com as transformaes da paisagem urbana e a solidificao de uma indstria cultural. Tais mudanas, evidentemente, tornaram necessria uma atu-alizao das nossas estruturas perceptivas, cuja dimenso podemos entrever com uma simples comparao de trs imagens: a Paris de Atget, em 1906, momento um pouco anterior aos primeiros papier colls; a Times Square na d-cada de 1960, contempornea s combine paintings, e a mesma Times Square em sua forma atual. No me parece exagero sugerir, pela comparao, que a configurao do espao das grandes metrpoles se aproxima muito de uma grande colagem. A modernidade demonstrou como fragmenta-o, hibridizao, apropriao e simultaneidade vieram a ser percebidas como analogias mais relevantes para a experincia humana do que a imagem ilusria, singular e coerente 1. Um aprofundamento na relao entre a interven-o tecnolgica na vida cotidiana e a progressiva mudan-a em nossa sensibilidade, principalmente nos dias atuais, parece-me necessrio para elucidar mais alguns pontos pertinentes s poticas contemporneas. Procurando oferecer outros caminhos de interpretao para alm das proposies formalistas de Clement Greenberg, o crtico

    Eugne Atget. Rue Saint-Jacques, 1906

  • 33

    Leo Steinberg, em 1972, empresta das artes grficas do termo flatbed numa tentativa de conceituar uma vertente da produo artstica da dcada de 1960 que propunha uma ruptura com a pintura americana vigente. Define em Outros Critrios:

    O plano flatbed da pintura faz aluso simblica a superfcies duras como tampos de mesa, pisos

    de ateli, diagramas ou quadros de aviso qualquer superfcie receptora em que objetos so esp-alhados, so introduzidos, em que informaes podem ser recebidas, impressas, estampadas seja de maneira coerente ou confusa. As pinturas dos ltimos quinze a vinte anos insistem numa ori-entao radicalmente nova, em que a superfcie pintada o anlogo no mais de uma experincia

    visual da natureza, mas de processos operacionais2.

    No ano seguinte publicao do trecho acima na revista ArtForum, os pesquisadores da Xerox PARC lan-avam o Xerox Alto, que seria considerado o primeiro computador pessoal (Personal Computer Milestones). Refina-mento de pesquisas anteriores, o Alto substitua em parte as linhas de comando do sistema operacional por uma in-terface grfica, precursora da maioria das interfaces de hoje. Evocando metaforicamente um tampo de uma mesa, a interface grfica3 permitia distribuir sobre a rea de traba-lho janelas de informao, menus, caixas de opo/seleo e cones, que eram manipulados pelo usurio atravs de um cursor que correspondia na tela aos movimentos de sua mo no mouse. Sobre essa superfcie virtual, informaes heterogneas imagens, textos, grficos, tabelas de cl-culo funcionavam de modo simultneo e independente,

    Times Square 60s.Times Square 00s.

  • 34

    permitindo ao usurio mover, justapor ou sobrepor in-formaes conforme seu interesse. Em ltima instncia, o que se v na tela so os resultados de operaes dos comandos executados pelo usurio e, num plano estru-tural, dos cdigos que operam o programa , operaes matemticas, por fim. Por mais distintas que sejam as intenes dos artis-tas analisados pelo crtico frente aos engenheiros da Xe-rox, ambos parecem em sintonia com uma reorientao coletiva no que se refere ao consumo de informaes e, mais especificamente, das informaes visuais, no con-texto das grandes metrpoles. bastante significativa, portanto, a analogia, em ambos os casos, com a mesa de trabalho (desktop) ao definir esse espao destinado a pro-cessos operacionais (a planaridade da pintura no seria doravante um problema maior que a planaridade de uma

    1. Cf. OREILLY, S. et. al.Collage Assembling Contemporary Art.Londres: Black Dog Publishing, 2008, p. 11.2. Cf. STEINGERG, L. Outros critrios. SoPaulo: CosacNaify, 2008, p. 201.3. No ingls, GUI - Graphical User Interface.4. Cf. STEINBERG, L. Op. cit., p. 205.

    Computador Xerox Alto e deta-lhe da interface grfica do sistema

    (The Digibarn Computer Museum - www.digibarn.com

  • 35

    escrivaninha em desordem). Steinberg se mostra atento influncia da tecnologia na formao de uma sensibilidade moderna e de seu consequente impacto no universo da arte ao concluir:

    o que ele [Rauschenberg] inventou, acima de tudo foi, penso eu, uma superfcie pictrica aberta novamente ao mundo. No o mun-do do homem do Renascimento, que buscava decifrar os fenmenos atmosfricos olhando pela janela, mas o mundo do homem que gira botes para ouvir uma mensagem gravada [...] transmitida eletronicamente de uma cabine sem janelas. O plano da pintura de Rauschenberg para a conscincia imersa no crebro da cidade 4.

    Do lanamento no mercado do primeiro Macin-tosh, em 1984, aos dias atuais, a tecnologia da informtica se desenvolveu e se popularizou de modo extremamente rpido e contnuo, tornando-se ferramenta indispensvel no funcionamento da sociedade contempornea. Se essa onipresena dos computadores alterou em grande medi-da os processos cotidianos, no que concerne produo e ao consumo de imagens, a transformao se mostra ainda mais expressiva.

    Robert Rauschenberg. Almanac, 1962

    leo, acrlica e serigrafia sobre tela.

  • 36

  • 37

    As we work with software and use the operations embedded in it, these operations become part of how we understand ourselves, others and the world. The strategies of working with computer data becomes our general cognitive strategies. At the same time, the design of software and the human-computer interface reflects a larger social

    logic, ideology, and imaginary of contemporary society. (MANOVICH, 199:116)

    REMIX

    Dois aspectos distintos, porm em dilogo contnuo, devem ser considerados aos abor-darmos a colagem na era digital: a disponi-bilidade de novas ferramentas, portanto, seu aspecto tcnico, e as operaes conceituais decorrentes do uso desses novos processos. Trabalhar no plano virtual possibilita operaes que as leis fsicas do mundo real limitam. As analogias que fundamentam e nomeiam muitos dos comandos da rea de trabalho do computador os tornam familiares a processos cotidianos; seus resultados, con-tudo, atualizam o efeito de seus anlogos num espao regido por outras leis.

    Assim, recortar e colar, as aes que esto na origem da colagem, adquirem outros signifi-cados operativos. No se trata mais de tirar de um lugar e acrescentar em outro, modi-ficando ambos; desmaterializada em cdigo, a imagem digital permite uma infinidade de modificaes simultneas e, mais importan-te, reversveis. A esse copy/paste elementar em qualquer interface atual, soma-se uma ex-tensa gama de operaes pr-programadas readymade neste sentido adaptadas de outras esferas, como a fotografia, o cinema, o vdeo e mesmo a pintura (cujos efeitos so comu-mente emulados em softwares grficos).

    Christian MarclayRecycled Records, 1983

    25.5cm

    Enquanto as lies aprendidas vo pelo ralo, 2010leo sobre tela. 200cm x 130cm

  • 38

    To summarize: the practice of putting to-gether a media object from already existing and commercially distributed media ele-ments already existed with old media, but new media technology further standardizes it and makes it much easier to perform. (MANOVICH, 199:125)

    A trivialidade desses proces-sos no computador, contudo, traz im-plcita uma importante mudana de termos: aqui confundem-se os limites entre consumo e produo. Ao abrir qualquer software grfico, o usurio tem disposio, alm dos comandos organizados em menus, bibliotecas com objetos e efeitos j prontos que pode simplesmente aplicar no trabalho; cria, assim, novas formas a partir da modificao dessas. Tambm no am-biente da rede, um usurio pode criar seu prprio site escolhendo templates disponveis na rede e juntando neles contedos de qualquer outro site; na mesma medida em que consome, filtra e devolve rede a sua nova verso do que foi consumido.

    Ralf Christensen e Andreas JohnsenGood Copy Bad Copy, 2007.

    documentrio. 59min.

  • 39

    a tecnologizao dos interiores [...] transforma a rela-o com os sons e as imagens, levando o indivduo a se tornar uma mesa de montagem ou de mixagem, o pro-gramador de um home movie, o habitante de uma zona de rodagem flmica permanente, a qual no seno sua prpria existncia 1.

    O produto final dessas no-vas formas merece tambm algumas consideraes. Enquanto na cmera automtica analgica o usurio tinha muito pouco controle sobre a ima-gem, uma cmera digital bsica ofe-rece, hoje, muitos recursos de ajus-te acionados por comandos simples, tendo ainda a opo de aprimor-los em um programa de tratamento de imagens no computador, podendo chegar a uma qualidade de imagem bastante satisfatria. Em contrapar-tida, objetos produzidos com formas prontas chegam a sua origem casei-ra. Um usurio que combina trechos de filmes comerciais em um software de edio de vdeo, por exemplo, im-pe outro sentido sobre as imagens, mas a qualidade dessas continua den-tro dos padres profissionais.

    Adaptadas a essa realidade, as poti-cas que se filiam colagem agregam novos termos ao processo, operan-do numa esfera que, a meu ver, em muito se aproxima das formulaes do crtico Nicolas Bourriaud sobre a ps-produo. Assim define: Ps-produo: termo tcnico usado no mundo da televiso, do cinema e do vdeo. Designa o conjunto de trata-mentos dados a um material registrado: a montagem, o acrscimo de outras fontes visuais ou sonoras, as legendas, as vozes off, os efeitos especiais. Como conjuntode atividades ligadas ao mundo dos ser-vios e da reciclagem, a psproduo faz parte do setor tercirio em oposio ao setor industrial ou agrcola, que lida com a produo de matrias primas.2

    Sinal dos tempos: da mesa de dissecao do Conde de Lau-tramont ao tampo da mesa dos escritrios, chegamos mesa de mixagem. Atualizando as analogias, Bourriaud, assim como outros te-

  • 40

    ricos3, encontra na figura do DJ, ou do programador, um modo de operao que acredita consoante com o papel do artista contemporneo. Tal processo, esvaziando as noes de originalidade e criao, consistiria em selecionar ob-jetos culturais e inseri-los em contex-tos definidos. A busca por uma forma autnoma e original , portanto, subs-tituda pela incurso em uma rede de formas j produzidas, conferindo ao artista a funo de operador de signos e significados: A prtica do DJ, a ativi-dade do internauta, a atuao dos artis-tas da ps-produo supem uma mes-ma figura do saber, que se caracteriza pela inveno de itinerrios por entre a cultura. Os trs so semionautas que produzem, antes de mais nada, percur-sos originais entre os signos 4.

    Com acesso fcil e gratuito a canes de qualquer poca ainda que muitas ve-zes sem direitos autorais e softwares de edio de udio instalados no computador (tambm disponveis na rede), vrios lbuns foram criados por jovens que talvez nem soubessem o significado da palavra partitu-ra. Exemplo mximo dessa nova esttica, o produtor Gregg Gillis com seu projeto Girl Talk, lana em 2008 o lbum Feed the Animals. Compostas inteiramente de frag-mentos de outras msicas recombinados (s vezes mais de 30 canes diferentes), as faixas, cujos ttulos tambm provinham de algum trecho presente na letra das canes, costuram uma histria da msica pop, das obscuridades aos hits, conferindo um senti-do atual ao do it yourself do punk.

    1. Cf. BOURRIAUD, N. Ps-produo.So Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 62.2. Ibidem, p.73. Cf. Lev Manovich em The Language of New Media e Elie Du-ring em Appropriations: deaths of the author in electronic music, tambm evocam a figura do Dj como operador de signos.4. Cf. BOURRIAUD, N. Op. cit. p.14

  • 41

  • 42

    JANELAS

    De certa forma, comear qualquer trabalho digital implica em abrir uma janela. Contudo, se o retngulo que delimita o espao de ao persistiu como paradigma nos quase 600 anos que se interpem entre a metfora de Alberti e o O.S. 10.6.4 do meu Macintosh, sua funo simblica foi pro-gressivamente redefinida, em sintonia com as transformaes da realidade figurada no quadro. A estrutura singular da construo perspectiva que estrutura o mun-do enquadrado pela janela de Alberti, abalada com as mudanas do sculo XIX, se rompe efetivamente nos fragmentos do Cubismo. A insero de uma outra realidade sobre o plano da imagem, com os papier collers, significaria, por fim, o rompimento no s da imagem, mas da integridade do prprio quadro, num caminho que levaria superfcie desordenada das flatbed pain-tings. A janela que representava uma realidade fechada se transforma no anteparo onde universos distintos so vistos simultaneamente. Nesse senti-do, a aproximao entre o plano flatbed proposto por Steinberg e a interface grfica dos computadores atuais me parece coerente.

    Contudo, em meu processo de construo da imagem e na esttica digital, de modo amplo o uso do software acrescenta a essa condio uma nova varivel, que habilita outros efeitos visuais e relaes de significado.

    Let me tell you what I do when I am painting. First of all, on the surface on which I am going to paint, I draw a rectangle of

    whatever size I want, which I regard as an open window through which the subject to be painted is seen

    Leon Battista Alberti em De pictura (1435), seo I.19in FRIEDBERG p. 2006: 27

  • 43

    The borders between different worlds do not have to be erased; the different spaces do not have to be matched in perspective, scale and lightining; t he individual layers can retain their separate identity rather than being merged into a single space; the different worlds can clash semantically rather than form a single universe. (MANOVICH, 1999: XI)

    Na tcnica da colagem de modo geral, a materialidade dos fragmen-tos restringe as possibilidades de operao. Embora algumas caractersticas do objeto apropriado possam ser modificadas, no que confere opacida-de, dificilmente existe transformao. Em decorrncia disso, ao sobrepor elementos opacos na obra, no s o suporte como os elementos colocados abaixo sero parcialmente encobertos. No caso de materiais translcidos, seu grau de transparncia ser igualmente determinante sobre os elemen-tos anteriores. De modo anlogo, ao simular superfcies slidas, as janelas das interfaces atuais se ocultam quando sobrepostas, apesar de continua-rem a operar de modo simultneo, mesmo invisveis. Em sua contraparte virtual, contudo, a opacidade das diferentes camadas da colagem pode ser facilmente alterada, aumentando a densi-dade de informao do quadro uma vez que os elementos sobrepostos so simultanemente visualisados. Como complemento modificao bsica dos valores de opacidade/transparncia, o software permite ainda aplicar outras variveis na inter-relao entre as camadas, como a utilizao do canal al-pha ou mscaras. Evocando tanto as fotomontagens feitas com vrias expo-sies, no caso mais simples, como os processos de compositing da esttica do vdeo, as camadas (at oito mil, no Adobe Photoshop) em jogo nesse tipo de composio no entram em dilogo pelo choque sobre o suporte, mas por um processo de fuso na prpria espessura da imagem.

  • 44

    (acima)James Rosenquist: estudos em colagem para as pinturas The Swimmer in the Econo-mist, 1977 e President Elect, 196061/1964

    (pgina oposta)Jeff Koons: processo de colagem digital para a pintura Olive Oyl, 2003

  • 45

  • 46

    Retornando janela, acredito que a interpretao da metfora na obra de artistas como Duchamp e Mondrian, por exemplo, sejam mais per-tinentes ao modo como o ambiente virtual figura em minha pintura. Entre a janela aberta para um mundo ordenado pela perspectiva e a janela transfor-mada em anteparo para o acmulo desordenado de fragmentos, a imagem da janela fechada, interpondo seus vetores ortogonais entre o olhar e o que quer que se estenda do outro lado, oferece um caminho alternativo. No caso da minha pesquisa, especificamente, tanto as imagens quanto as ferramen-tas em uso, tm no pixel (quadrado) sua unidade constitutiva fundamental (ao menos, enquanto traduo visual do cdigo numrico). Ordenados em justaposio regular, esses pixels, de valor tonal definido, criam a partir das relaes com seu vizinho novos sentidos, que somados, definem a imagem. Nesse aspecto, portanto, um grid ortogonal subjaz ao trabalho. Em decorrncia dessa estrutura intrnseca, a rea de todas as ima-gens que utilizo no processo quadrada ou retangular; assim, sua utilizao de forma integral, por justaposio ou sobreposio, estabelece no plano um tipo de montagem sequencial ainda que sem hierarquia determinada , posto que a borda retangular, correspondente orientao do grid, cria a delimitao entre esses mdulos distintos.

    (acima)Marcel Duchamp

    Fresh Widow, 1920janela francesa em

    miniatura, moldura de madeira pintada, e

    oito vidraas cobertas com couro preto.

    (lateral)Ampliaes da obra com ferramenta de zoom do software Adobe Photoshop.

  • 47

    Um ltimo aspecto dessa relao janela/enquadramento/mdulo precisa ser destacado em meu processo. Ao comear uma composio no Photoshop, crio uma janela vazia que servir como plano de operao. Cada uma das imagens previamente recolhidas, quando selecionada, aberta pelo software em outra janela autnoma, que a exibe de modo integral, como aparecia no contexto de origem. Mesmo sendo possvel alterar muitos aspectos dessa imagem, uma parte de sua estrutura definitiva; como a frustrao do soldado de Godard comprova, uma mulher filmada de deter-minado ngulo nunca revelar na imagem o resto de seus atributos. Como recurso, sobre o enquadramento impassvel, posso estabelecer outras mar-gens, criando mdulos a partir de reas selecionadas da imagem, em escala ou valorizando detalhes com o zoom. Se o enquadramento dado determina um sentido imagem, cada novo enquadramento sugere um novo significa-do, que se estende no momento em que se inter-relaciona na composio.

    Um novo significado da idia de informao construiu-se em torno da

    imagem fotogrfica. A foto uma fina fatia de espao bem como de tempo.

    Num mundo regido por imagens fotogrficas, todas as margens (enquadra-mento) parecem arbitrrias. Tudo pode ser separado, pode ser desconexo. (inversamente, tudo pode ser adjacente a qualquer coisa.) (SONTAG, 2004:33)

    Jean-Luc GodardTempo de Guerra, 1963. 85min.

  • 48

    Mash-Up, 2010(http://www.deshortsnasiberia.com.br/randomizador/)

    Este trabalho cujo ttulo faz refe-rncia ao modo de produo musical baseado na juno de trechos j existentes foi desenvolvido como um exerccio de aula. Criado com a ajuda de um programador, o site oferece uma nova imagem a cada clique do mouse, de forma rand-mica vrios tipos de informaes visuais recolhidas da internet. Restritas a uma rea definida, as composies se formam a partir de novos enquadramentos estabele-cidos pela variao (tambm alea-tria) da altura das cinco faixas. Se

    no forem copiadas, essas formas se perdem, uma vez que o site, pro-positalmente, no oferece a opo voltar.Tendo como banco de dados meu arquivo de imagens apropriadas filtradas, portanto, segundo meus prprios critrios de interesse visual essas composies algortmicas muitas vezes exibiam resultados com potencial pictrico. Como experin-cia, utilizei algumas dessas formas readymade na srie de pinturas Passagens Areas para Destinos Romnticos.

  • 49

    SriePassagens areas para destinos rom, 2010leo sobre tela. 70cm x 70cm

  • 50

    Erros melhores para amanh, 2009leo s/ tela. 225cm x 200cm

  • 51

  • 52

    COR

    Posto que a pesquisa potica aqui apresentada diz respeito a uma prtica pictrica tradicional em seus materiais, ou seja, tinta sobre tela, a cor tem um papel eminente no processo, que deve ser aqui considerado. Se ne-nhum ponto da paisagem observada corresponde de modo fiel sua repre-sentao na tela, nesse contexto, nenhum pixel transcrito de modo exato em minha pintura. Enquanto interpretao visual de um cdigo numrico definido, cada pixel da imagem tem um valor tonal fechado, que, no sendo delibera-damente alterado, faz com que a imagem ou qualquer cpia desta te-nha exatamente a mesma cor, em qualquer dispositivo digital em que seja visualizada. Todavia, no uso corrente, essa assero no se mostra plena-mente vlida. A garantia que o suporte de gravao assegura integridade do cdigo no se estende ao dispositivo de exibio. Na grande maioria dos casos, em cada monitor, a imagem exibe um tipo de distoro cromtica (uma calibragem correta do monitor segundo perfis internacionalmente convencionados, em geral s feita em ambientes profissionais e, mesmo nesses casos, para funcionar corretamente, o mtodo precisa ser executa-do periodicamente).

    E isso no fazia a menor diferena, 2010leo sobre tela. 130cm x 200cm

  • 53

    Learning how to use Photoshop helped enor-mously, I started swinging the colors on so they

    almost separated from the image. In a photogra-phic sense, they didnt work, but as a possibility

    for painting, with these constrasting bleeding colors, they sunddenly become really exciting.

    Jenny Saville

    Como trabalho com de imagens digitais tiradas da internet, minhas compo-sies se pautam, portanto, em relaes cromticas readymade. Transpos-tas para uma prtica artstica, essas imagens tm seu contedo e funo utilitria original relativizados, de modo que qualquer alterao cromtica que eu venha a executar sobre elas (por meio dos recursos do software) determinada por uma inteno pictrica. Destituda de qualquer obrigao de semelhana com o original (quase sempre desconhecido), a imagem s tem suas cores modificadas na medida em esse processo a torne mais ade-quada composio muitas vezes a utilizao dos filtros e efeitos dispo-nveis gera variaes drsticas que, apesar de descaracterizarem a imagem base, apresentam maior interesse visual. Por fim, imprimo o resultado dessa composio digital em papel fotogrfico, com uma impressora jato de tinta bsica. Da converso da imagem RGB (cor luz) da tela para uma verso impressa, o dispositivo me apresenta um novo conjunto de cores, determinado pelas possibilidades da impressora, qualidade da tinta (e condies de uso do cartucho) e tipo de papel. Me permito uma certa falta de cuidado com as variveis desse processo que numa esfera profissional j teria me rendido uma demisso em parte pela ausncia de qualquer critrio objetivo dessa reproduo (nenhuma cpia melhor ou pior, pois no existe um original que sirva como parmetro), em parte pelos efeitos (positivamente) inesperados que essa margem de variao pode criar (caso a cpia realmente no me sirva, posso alterar a configurao consertando o problema). Em relao cor, quando saio da mquina para a tela, no tenho em mos uma cartela de cores que deve ser fielmente reproduzida, mas sugestes cromticas a serem reinterpretadas.

    (Entrevista com Simon Schamain Jenny Saville catlogo, Gagosian Gallery. New York ,

    Rizzoli International Publications: 2005. p.125).

    Reverse, 2002-3 (detalhe)leo sobre tela. 213cm x 244cm

  • 54

    Conheci e aprendi com os japoneses apenas em reprodues, essas reimpresses vagabundas compradas s portas dos vendedores de gravuras na rua de Seine. Bonnard me disse a mesma coi-sa e acrescentou que, quando viu os originais, ficou um pouco decepcio-nado. Isso se explica pela ptina e certo descolorido das velhas tiragens.Talvez, se tivssemos apenas os originais para olhar, no ficssemos to impressionados como ficamos com as cpias

    ( Henri Matisse, em carta a Rouveyre, 22 de fevereiro de 1948 in. FOURCADE, D., Matisse Escritos e reflexes sobre arte. So Paulo: Cosac Naify, 2007 p.82)

  • 55

  • 56

  • 57

    Souvenirs de tempos melhores, 2009leo s/ tela.200cm x 150cm

  • 58

    As consideraes tericas referentes tecnologia digital que compem o corpo deste trabalho tiveram nos processos de colagem e apropriao o ponto de contato com o universo da arte. Historicamente, no entanto, as duas prticas se desenvolvem como alternativas tradio da pintura as motivaes que determinam essa escolha variam na potica de cada artis-ta, como respostas particulares ao contexto da poca. Tomando o pressu-posto de que na cultura dos computadores, de modo primordial, a criao de novas formas se d pela combinao de elementos j existentes, posso justificar a escolha desse ponto de tangncia entre arte e tecnologia. A justi-ficativa, contudo, infere que a pintura no se enquadra lgica digital. Assim, conjugar a colagem (que traz implcita a apropriao) e a tecnologia da informtica em uma prtica pictrica significaria deslocar o sentido dos dois termos a favor de um resultado estranho a ambos. Se por um lado, a lgica e os recursos da mquina me levam a criar a construo de uma imagem atravs de um mtodo de colagem, esse processo regi-do por um pensamento pictrico. Em contrapartida, tento ativar na tela um tipo de operao caracterstica do ambiente digital; nesse momento, a apropriao passa a ter outro sentido, mas a pintura, de certa forma, achata a colagem.

    CAIXA DE TINTAS

  • 59

    A utilizao do computador para qualquer propsito aciona um processo de seleo. No momento em que as interfaces grficas se tornam paradigma dos dispositivos digitais, o conjunto de operaes permitidas pela mquina disponibilizado visualmente na tela, bastando um clique para coloc-las em funcionamento. Seja para mandar um simples e-mail ou projetar uma casa em softwares 3D, o usurio precisa escolher em um menu de coman-dos pr-programados a ao que lhe convm.

    Posto que parte do meu processo artstico se d no computador, esse aspecto da esttica digital automaticamente incorporado. Propondo, contudo, uma acepo mais ampla, entendo que minha potica se forma a partir dessa lgica da seleo. Sugeri que meu trabalho digital regido por um pensamento pict-rico. Usando a internet, de modo elementar, seleciono no menu do browser os comandos que me permitem acessar e copiar imagens; em outro nvel, por meio desses comandos, seleciono no extenso repertrio de formas prontas da rede aquelas que me servem. O filtro ativado nessa seleo, con-tudo, a prpria histria da arte ou, de modo mais especfico, a histria da pintura. Seria possvel dizer que, ao produzir uma imagem, ainda que sem nada vista, temos outras imagens em mente. Ao deslocar a imagem para o processo pictrico, essa passa a se relacionar, invariavelmente, com toda a

    SELEO

    New media objects are rarely created complete-ly from scratch; usually they are assembled from ready-made parts. Put differently, in computer culture authentic creation has been replaced by selection from a menu. (MANOVICH, 1999:120)

    Everything made since Duchamp has been a readymade, even when hand-painted Gerhad Richter. Notas, 1982 (OBRIST, 1998:101)

  • 60

    tradio. Uma Marilyn encontrada espontaneamente em um site de cinema evoca Warhol antes da atriz. Esse mesmo filtro, na sequncia, determinante no modo como utilizo o software, convertendo a funo utilitria originalmente proposta para as ferramentas do programa em fins expressivos. Diferente do fo-tgrafo e do designer, comprometidos com questes tcnicas que garan-tam qualidade na reproduo da imagem, o papel transitrio das minhas composies dentro do processo me permite trabalhar de modo mais livre. Altero as imagens, portanto, considerando seu potencial pictrico, tanto em seus aspectos formais, quanto em suas possibilidades de significao no plano da tela.

    At esse ponto, as formas prontas da web e os menus do software constituem os materiais e as ferramentas de trabalho com os quais cons-truo uma colagem digital formas e operaes readymade reunidas em um novo objeto. Porm, finalizada e impressa, essa composio (que, no arqui-vo digital, conserva seu sentido de colagem) achatada no suporte, que lhe confere unidade material. Uma reproduo em papel de um processo de colagem digital. Para dar continuidade colagem, no sentido que esta tem no plano material e na tradio da pintura, seria necessrio colar a impresso na tela. Portanto, por um caminho diverso, ao reproduzir a composio na pintura, aponto um sentido de apropriao que subentende essa imagem como readymade. Em um nvel, tenho uma imagem pronta (a composio), em outro, tenho a verso impressa de um conjunto de formas prontas (as imagens tiradas da internet).

    Poderia ter sido uma carreira brilhante,2008 (fragmentos)leo s/ tela. 150cm x 200cm.

  • 61

    Pintar uma imagem produzida pelo computador no implica neces-sariamente trazer a lgica digital para a pintura. Logo, minha tentativa de transpor para a tela o modo como trabalho no software de grande rele-vncia na constituio da potica. Essa continuidade, acredito, se d por um desdobramento do conceito de seleo. Na medida em que a apropriao visando outros fins altera o obje-to no plano conceitual (mesmo no havendo qualquer interveno em sua forma), a transferncia da imagem de um suporte a outro (alterando suas caractersticas formais) provoca uma transformao tanto no significado quanto no contedo desta. Na tela, no tenho uma verso em tinta da ima-gem impressa (ou digital), mas uma outra imagem, que, ainda que mante-nha com essa certo grau de semelhana, passa a estabelecer relaes de outra ordem.

    Im not trying to imitate a photograph, Im trying to make one. And if I desregard the assumption that a photograph is a piece of paper exposed to light, then I am practising pho-tography by other means: Im not producing paintings that remind you of a photograph but producing photographs Gerhard Richter, em entrevista a Rolf Schn, 1972. (OBRIST, 1998:73)

    Quem sabe o seu aniversrio, 2010leo e acrlica s/ tela.

    150cm x 100cm

  • 62

    Eric FischlThe Old Mans Boat and the Old Mans Dog, 1982.213.4cm x 213.4cm

    David HockneyMr. and Mrs. Clark and Percy, 1970-71.213.4cm x 304.8cm

    Gerhard RichterReading, 1994.72.4cm x 102.2cm

    Como pintar uma imagem j existente? Esse questionamento que permeia toda a vertente da pintura que problematiza a imagem fotogrfica, iniciada na dcada de 60, permite vislumbrar a complexidade intrnseca proposio. Partindo do mesmo objeto (a foto convencional), a produo desses pintores fornece interpre-taes mltiplas e resultados significativamente contrastantes (ainda que restritos ao leo sobre tela), tensionando o estatuto da pintura e da foto-grafia vigente no mbito do discurso artstico de cada poca.

    No meu caso, a heterogeneidade de formas presentes na composi-o que tenho como base para a pintura sugere, simultaneamente, vrios caminhos. Posto que as propriedades de cada imagem apontam uma direo, preservar o carter heterogneo do conjunto original demanda diferentes tipos de pintura na mesma superfcie. Assim, me aproximando da forma contempornea do remix, en-tendo na histria da pintura um repertrio de solues pictricas dispo-nveis, que podem ser igualmente coordenadas no trabalho. A seleo de um efeito no menu do software substituda pela seleo de um estilo no amplo catlogo da arte.

    Marlene DumasFeather Stola, 200100cm x 56cm

    Wilhelm SasnalGirl Smoking (Dominika)2001. 33cm x 33cm

    Robert Bechtle61 Pontiac, 1968-69153.7cm x 215.9cm

    Martin KippenbergerDear Painter, Paint Me 1977. 50cm x 60cm

    Luc TuymansPortrait 2000. 57cm x 30cm

  • 63

    [] a esttica modernista , de certo modo, organicamente ligada concepo de um eu nico e de uma identidade particular, de uma personalidade singular e de uma individualidade, da qual se espera que gere sua viso prpria e singular do mundo e que construa o seu prprio estilo, singular e inconfundvel. (JAMESON, 2006:24)

    O sentido com que proponho a histria da pintura como catlogo, em meu processo de criao, exige algumas observaes, uma vez que tanto o uso comercial do termo quanto a aproximao entre cultura e mercadoria, decorrente deste, podem levar a interpretaes rasas ou a certo cinismo, que no intenciono em nenhum momento do trabalho. Antes de tudo, portanto, selecionar formas prontas na tradio da arte no significa emular superficialmente um tipo de pintura, aplicando efeitos visuais de modo banal, decorativo. Em igual medida, desconsidero um sentido de pardia ou qualquer tipo de ironia frente s obras considera-das na pesquisa. Ao selecionar um tipo de recurso pictrico (proposto por determi-nado artista) para trabalhar uma imagem na pintura, seleciono, de modo crtico, uma possibilidade de abordar seu contedo. Dessa maneira, o filtro que a reproduo manual automaticamente estabelece entre o impresso e a tela ajustado a cada seleo, resultando em imagens diferentes. No se trata, portanto, de pintar maneira de determinado artista posto, claro, que esta manifesta intenes particulares e responde a um

    Robert Bechtle61 Pontiac, 1968-69153.7cm x 215.9cm

  • 64

  • 65

    Tarde demais para morrer jovem, 2010.leo e acrlica s/ tela. 200cm x 450cm. (polptico)

  • 66

    determinado contexto , mas investigar o sentido de pintar de tal modo e os significados que esse pode legar a uma imagem de outra ordem. Por fim, conjugadas em um mesmo plano, essas diferentes abordagens se interrela-cionam, instituindo outro nvel de significao ao primeiro, mais imediato, da iconografia. No s o que est representado, mas como est representa-do. O sentido das imagens dado pela pintura. Operar dessa forma, melhor definida por construo do que cria-o de uma pintura, permite maior liberdade, na medida em que me isenta da imposio romntica de autenticidade e inovao como pressuposto para produzir. Quando me aproximo da obra de um artista, no procuro uma influncia para formar um estilo prprio, mas interlocutores cujas questes se aproximem das minhas. No pretendo, contudo, ao optar por esse mto-do de trabalho, qualquer grau de impessoalidade. Ainda que a inteno no seja construir meu prprio estilo, singular e inconfundvel, acredito que a sequncia de selees feitas no decorrer do processo reflita minha viso prpria e singular do mundo.

    Se a produo de qualquer artista reflete uma subjetividade ainda que Warhol afirme pintar como uma mquina e Richter, como uma cmera fotogrfica! , tal entendimento singular do mundo no compe obrigatoria-mente um enunciado. No trabalho artstico, tento dar forma minha viso do mundo e no ilustrar minhas ideias sobre ele.

    Merz significa criar relaes, de preferncia entre todas as coisas do mundo.1Kurt Schwitters

    Kurt Schwitterspara Ernst, 1947.Colagem, papel e carto sobre carto. 16.9cm x 13.9cm

  • 67

    Rosenquist has often said that he intended to make pictures, not statements 2

    No seleciono imagens pensando no papel que elas possam desem-penhar, mas nas relaes que elas possam estabelecer com outras imagens, em um contexto diverso. A despeito da leitura sequencial que a montagem dos elementos possa provocar, no defino uma narrativa; mesmo que essa seja induzida, seu sentido no se completa. Embora o contedo figurativo das pinturas, por vezes, as aproxime de uma esttica pop, presumo que a identificao com os artistas ligados a essa proposta seja apenas parcial. O impacto da arte pop, no se d, sim-plesmente, em suas proposies formais, mas no contraponto que essas oferecem a um paradigma artstico institudo (e, fora do mbito da arte, no modo como problematiza as transformaes econmicas e polticas dos EUA ps-guerra). O ponto comum possvel, no que confere apropriao de imagens, tambm se mostra relativo. O hibridismo das formas digitais e as particularidades que a internet imps aos modos de produzir e distribuir informao tornam ainda mais complexas as distines entre alta cultura e cultura de massa, celebridade e anonimato. No verdadeiro mundo das aparncias da rede, toda imagem j reproduo; sem valor monetrio, igualmente (des)importantes. Recolhendo imagens digitais na internet, portanto, no opero na esfe-ra do consumo ou da mdia, mas no ponto de relao entre todas as coisas [ou imagens] do mundo.

    1 . Cf. Kurt Schwitters O Artista Merz, p. 192 . Cf. Judith Goldman, Swimming in the Mist in James Rosenquist: The Swimmer in the Eco-nomist, p. 27)

  • 68

    Creio que seja importante enfatizar que as reflexes sobre a tecnologia digi-tal aqui desenvolvidas no intencionam qualquer comparao valorativa ou sugesto de superao das novas mdias sobre os suportes tradicionais. Na mesma medida, no infere uma atualizao da pintura, que validaria sua continuidade.

    Em consonncia com propostas artsticas ligadas s novas tecnolo-gias, que tm na estrutura da mquina (e do cdigo que a rege) seu campo de pesquisa, minha investigao se restringe ao uso convencional do com-putador, que o prprio nvel em que estabeleo todas as relaes cotidia-nas mediadas pela lgica digital. O que incorporo nesse processo potico, portanto, a tecnologia vivenciada no dia a dia e os filtros que ela estabe-lece em meu modo de perceber e interagir com a realidade. Ainda que meu embate com a pintura preceda esse encontro com o computador, o impacto da era digital j estava presente tanto nos aspectos do mundo que me inte-ressavam, quanto em meu modo de perceb-los. Nesse sentido, se, ao utili-zar a mquina no processo, me sujeito a suas operaes, essas, no entanto, potencializam intenes pictricas anteriores. O ambiente digital ofereceu um contraponto saturao da cidade que eu procurava apreender; ao mesmo tempo, me muniu de ferramentas para operar sobre ela.

    Seria ingenuidade hoje, a qualquer artista, desconsiderar as transformaes decorrentes da presena dos computadores no mundo. Contudo, no acre-dito que a aproximao com a tecnologia seja uma soluo ou caminho obrigatrio para a pintura, entendendo minha proposta como uma entre vrias possibilidades igualmente vlidas.

    DESLIGAR X REINICIAR

  • 69

    A lgica digital, aparentemente distante da lgica da pintura, pode ter com essa maiores afinidades, a partir de outras origens da tradio: Num primeiro aspecto, em relao fotografia, em que a imagem como um todo se d no mesmo instante, pintura e formas digitais apresen-tam um tempo mais prximo, posto que suas partes constituintes so produtos de aes executadas em momentos distintos (na imagem digital, cada layer corresponde a um momento diferente). O remix como prtica caracterstica das mdias digitais esbarra no mito da originalidade legado pela arte moderna. Antes de pretender a vi-so de mundo inconfundvel, de um indivduo singular, contudo, a produo visual de vrias civilizaes se pautou na representao de elementos reco-nhecveis da cultura comum (personagens, narrativas, padres), operando, de certo modo, a recombinao de formas prontas.

  • 70

  • 71

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ARGAN, G. C., Arte Moderna. So Paulo: Companhia das Letras, 1992 AUMONT, J. O Olho Interminvel [cinema e pintura]. So Paulo: Cosac & Naify, 2004.BARTES, R. A Cmara Clara Nota Sobre a Fotografia. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S. A., 1984BAUDELAIRE, C. Sobre a Modernidade. 3 edio. So Paulo: Paz e Terra, 2002.BOURRIAUD, N. Ps-produo. So Paulo: Martins, 2009COUCHOT, E. A Tecnologia na Arte: da Fotografia Realidade Virtual. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003.CROW, T. Modern Art in the Common Culture. London: Yale University Press, 1998DE DUVE, T. et al. Jeff Wall. London: Phaidon Press, 2003.DUBOIS, P. Cinema, vdeo, Godard. So Paulo: Cosac & Naify, 2004.FABBRINI, R. N. A Arte depois das vanguardas. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002.FRIEDBERG, A. The Virtual Window From Alberti to Microsoft. Cambridge: MIT Press, 2006.GREENBERG, C. et. al. - Clement Greenberg e o Debate Crtico. org. Ferreira G. e Cotrim, C. d Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.JAMESON, F. A Virada Cultural Reflexes Sobre o Ps-Modernismo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006KOSSOY, B. Fotografia e Histria. 2 edio. So Paulo: Ateli Editorial, 2001.KRAUSS, R. O Fotogrfico. Barcelona: Gustavo Gili S.A., 2002.MANOVICH, L. The Language of New Media, 1999. (Verso em projeto, disponvel em http://manovich.net/download/)MITCHELL, W. J. The Reconfigured Eye: Visual Truth in the Post-Photographic Era. Cambridge: MIT Press,1992MULLINS, C. Painting People. New York: Thames & Hudson, 2008 OBRIST, H.U. [org]. Gerhard Richter The Daily Pratice of Painting. Cambridg: MIT Press, 1998.

    OREILLY, S. et. al. Collage - Assembling Contemporary Art. London: Black Dog Publishing, 2008.OSBORNE, P. Painting Negation: Gerhard Richters Negatives. In October, vol. 62. MIT Press, 1992SONTAG, S. Sobre Fotografia. So Paulo: Companhia das Letras, 2004.SOULAGES, F. A revoluo paradigmtica da fotografia numrica in Revista Ars n7, 2007.SYLVESTER, D. Sobre Arte Moderna. So Paulo: Cosac & Naify, 2007. ROSENBLUM, R. Cubism as Pop Art. TASSINARI, A. O espao Moderno. So Paulo: Cosac & Naify, 2001.TAYLOR, B. Collage - The Making of Modern Art. New York: Thames & Hudson, 2006.

    ______________peridicos.

    KELSEY, J. Collage and Program - Revista Parkett vol. 79. Jun/2007.SOULAGES, F. A revoluo paradigmtica da fotografia numrica in Revista Ars n7, 2007.______________catlogos.

    Antes de Ayer y Pasado Maana - O Lo que Puede Ser La Pintura Hoy. Catlogo da exposio. Museo de Arte Contemporaneo Unin Fenosa, 2009.Collage: The Unmonumental Picture. Catlogo da exposio Unmonumental. New Museum of Contemporary Art, NY, 2007 James Rosenquist: The Swimmer in the Eco-nomist. Catlogo da exposio. Deutsche Guggenheim Berlin, 1998Kurt Schwitters O Artista Merz. Catlogo da exposio. Pinacoteca do Estado de So Paulo, 2007.Sonic Process. A New Geography of Sounds - Catlogo da exposio. Museu dArt Contamporani de Barcelona (MACBA), 2002.Super Vision. Catlogo da exposio. Institute of Contemporary Art, Boston, 2006.The Painting of Modern Life. Catlogo da exposio. The Hayward, Londres, 2007.