o movimento feminista brasileiro na virada do século xxi: reflexões sobre sujeitos políticos......

21
Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 392, setembro-dezembro/2011 661 Copyright © 2011 by Revista Estudos Feministas. Karla Galvão Adrião Universidade Federal de Pernambuco Maria Juracy Filgueiras Toneli Universidade Federal de Santa Catarina Sônia Weidner Maluf Universidade Federal de Santa Catarina Artigos Artigos Artigos Artigos Artigos O movimento feminista brasileiro O movimento feminista brasileiro O movimento feminista brasileiro O movimento feminista brasileiro O movimento feminista brasileiro na virada do século XX: reflexões na virada do século XX: reflexões na virada do século XX: reflexões na virada do século XX: reflexões na virada do século XX: reflexões sobre sujeitos políticos na sobre sujeitos políticos na sobre sujeitos políticos na sobre sujeitos políticos na sobre sujeitos políticos na inter inter inter inter interface com as noções de face com as noções de face com as noções de face com as noções de face com as noções de democracia e autonomia democracia e autonomia democracia e autonomia democracia e autonomia democracia e autonomia Resumo Resumo Resumo Resumo Resumo: Este texto discute as tensões em torno da legitimidade dos sujeitos políticos feministas brasileiros, na interface com as noções de democracia e autonomia. Para tanto, realiza sua análise em consonância com dados da etnografia do 10º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em 2005, em São Paulo. Esse espaço é tido como importante seara de constituição dos pensamentos e ações do movimento feminista no Brasil e na América Latina. Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave: feminismo; sujeitos políticos; democracia; estudos de gênero. Este artigo discute o sujeito político do feminismo na interface com as noções de democracia e autonomia, a partir da etnografia do 10º Encontro Feminista Latino- Americano e do Caribe, realizado no ano de 2005, em São Paulo, importante seara de constituição dos pensamentos e ações do movimento feminista no Brasil e na América Latina. São questões do movimento aqui trabalhadas: a) o que une e o que separa as mulheres em torno de um movimento – pluralidade, diversidade e busca de uma linguagem e de uma identidade que agregue os diversos interesses; e b)

Upload: osmundopinho

Post on 29-Jul-2015

390 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Este texto discute as tensões em torno da legitimidade dos sujeitos políticos feministasbrasileiros, na interface com as noções de democracia e autonomia. Para tanto, realiza suaanálise em consonância com dados da etnografia do 10º Encontro Feminista Latino-Americanoe do Caribe, realizado em 2005, em São Paulo. Esse espaço é tido como importante seara deconstituição dos pensamentos e ações do movimento feminista no Brasil e na América Latina.

TRANSCRIPT

Page 1: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 392, setembro-dezembro/2011 661

Copyright © 2011 by RevistaEstudos Feministas.

Karla Galvão AdriãoUniversidade Federal de Pernambuco

Maria Juracy Filgueiras ToneliUniversidade Federal de Santa Catarina

Sônia Weidner MalufUniversidade Federal de Santa Catarina

ArtigosArtigosArtigosArtigosArtigos

O movimento feminista brasileiroO movimento feminista brasileiroO movimento feminista brasileiroO movimento feminista brasileiroO movimento feminista brasileirona virada do século XX: reflexõesna virada do século XX: reflexõesna virada do século XX: reflexõesna virada do século XX: reflexõesna virada do século XX: reflexões

sobre sujeitos políticos nasobre sujeitos políticos nasobre sujeitos políticos nasobre sujeitos políticos nasobre sujeitos políticos nainterinterinterinterinterface com as noções deface com as noções deface com as noções deface com as noções deface com as noções de

democracia e autonomiademocracia e autonomiademocracia e autonomiademocracia e autonomiademocracia e autonomia

ResumoResumoResumoResumoResumo: Este texto discute as tensões em torno da legitimidade dos sujeitos políticos feministasbrasileiros, na interface com as noções de democracia e autonomia. Para tanto, realiza suaanálise em consonância com dados da etnografia do 10º Encontro Feminista Latino-Americanoe do Caribe, realizado em 2005, em São Paulo. Esse espaço é tido como importante seara deconstituição dos pensamentos e ações do movimento feminista no Brasil e na América Latina.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: feminismo; sujeitos políticos; democracia; estudos de gênero.

Este artigo discute o sujeito político do feminismo nainterface com as noções de democracia e autonomia, apartir da etnografia do 10º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado no ano de 2005, em SãoPaulo, importante seara de constituição dos pensamentos eações do movimento feminista no Brasil e na América Latina.São questões do movimento aqui trabalhadas: a) o queune e o que separa as mulheres em torno de um movimento– pluralidade, diversidade e busca de uma linguagem ede uma identidade que agregue os diversos interesses; e b)

Page 2: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

KARLA GALVÃO ADRIÃO, MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI E SÔNIA WEIDNER MALUF

662 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011

como se dá a busca por legitimidade e inclusão dentrodessa esfera.

Nesse percurso, importantes noções podem atuarcomo “pistas” analíticas, dentre elas, igualdade, diferença,pluralidade e diversidade. As duas primeiras acompanhamos dilemas históricos, os quais o movimento percorreu e aindapercorre rumo à equidade nas relações de gênero. As demaisfazem parte da ampliação do espaço interno do movimentocom relação às identidades de sujeito político e àagregação de outras desigualdades, como as de raça eetnia, geração, sexualidade.

Alguns dos argumentos aqui apresentados levam emconsideração que os encontros feministas são importantesespaços políticos, que atuam como momentosparadigmáticos das tensões que acontecem no campo.1

Os percursos dos encontros feministasOs percursos dos encontros feministasOs percursos dos encontros feministasOs percursos dos encontros feministasOs percursos dos encontros feministascomo espaço de formalização ecomo espaço de formalização ecomo espaço de formalização ecomo espaço de formalização ecomo espaço de formalização econsolidação do movimentoconsolidação do movimentoconsolidação do movimentoconsolidação do movimentoconsolidação do movimento

A partir da década de 1970 até os dias atuais, umfato que contribuiu enormemente para o desenvolvimentointerno2 do movimento feminista no Brasil foi a realização deencontros de mulheres e feministas. Esses eventos surgem,inicialmente, a partir de grupos e organizações de mulheres,ainda na década de 1970, e de ONGs nos anos 1980, evão se destacando como espaços de unificação e vivênciade um “fazer feminista” dos diversos grupos, no que se refereao desenvolvimento de redes e trabalhos em conjunto, emtorno de uma mesma agenda.3

Os encontros feministas, nacionais e latino-americanos, caracterizaram-se, desde o início, comoespaços de fortalecimento e discussão interna dos passosfeministas, agendas e formulações. Porém, mais que isso,esses espaços se conformaram, na percepção das diversasmulheres que os compõem, como lugares de exercício deum modo de ser feminista e de fazer feminismo.4

Estar em um encontro é marca de participação, écrédito, cartão de iniciação e fortalecimento de uma (oumuitas) identidade(s) feminista(s). Portanto, organizar eparticipar desses momentos conformou-se como locus denecessidade e importância para todas aquelas que fazemo(s) feminismo(s) no Brasil, na América Latina e no Caribe.5

Vale ressaltar que esses momentos também indicama existência eficaz da tendência atual em trabalhar earticular as ações e agendas através de redes e encontros.Os movimentos sociais contemporâneos vêm construindonovas narrativas para a compreensão da complexidadena sociedade globalizada e da informação, onde a

1 Karla ADRIÃO, 2008.

2 Como espaço de construção econsolidação de um ethosfeminista.

3 Ana Alice COSTA, 1981.

4 ADRIÃO, 2008 (Diários deCampo, 2004 e 2005); e COSTA,1981.

5 Sonia ALVAREZ et alii, 2003.

Page 3: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011 663

O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SÉCULO XX

transformação, por vezes, surge como resultado daarticulação discursiva e da prática de variados atorescoletivos.6

Através da análise dos encontros é possívelcompreender os caminhos que os feminismos no sul dasAméricas vêm trilhando.7 Mais que isso, cada encontroenfatiza questões ou problemas específicos do país-sedeque podem ser compreendidos na interface entreespecificidades locais e debates globais.8 Mesmo queancorados na solidariedade política entre mulheres, osencontros e os “desencontros” têm propiciado debatesprodutivos e reconfigurado alianças e coalizões entre asfeministas da região.9

Enquanto os feminismos na região latino-americanasurgiram de uma grande diversidade de lutas políticas elocalidades sociais, os encontros permitiram que as militantespudessem compartilhar/confrontar suas diferentesperspectivas e construir significados políticos e culturaisalternativos. Além disso, “Os encontros provaram ser arenastransnacionais fundamentais onde identidades e estratégiasespecificamente latino-americanas têm sido constituídas econtestadas”.10

O foco da reflexão, a partir deste momento, é o 10º eúltimo Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe,considerado como momento paradigmático das ações esentidos produzidos pelas feministas sobre o campo feministano Brasil, por meio de análise do trabalho de campo deuma das autoras.

O objetivo aqui é realizar uma reflexão, a partir daetnografia do evento na qual focamos sobretudo as pautaspolíticas e perspectivas internas e externas, sobre o(s) sujeito(s)político(s) do feminismo na interface com noções dedemocracia e autonomia, inclusão e expansão domovimento.

Em sua décima versão, em 2005, esse encontro contoucom a participação de mais de 700 brasileiras e deaproximadamente 700 mulheres da América Latina e doCaribe. Além dessas, algumas mulheres espanholas, norte-americanas, inglesas e belgas também compareceram,justificando-se pela “importância de se estar presente emum momento de análise e fortalecimento do movimento apartir de uma reflexão sobre suas práticas e teorias”.11 Amaioria das mulheres presentes fazia parte de alguma ONG,grupo de mulheres, fórum de mulheres ou redes feministasnacionais e latino-americanas. Além delas, poucasparticipantes identificaram-se como integrantes de redes enúcleos de pesquisa acadêmica e ainda de órgãos gestoresdos governos federal, estadual e municipal (principalmentecoordenadorias ou secretarias da mulher).

11 ADRIÃO, 2008 (Diários deCampo, 2004 e 2005).

6 Chantal MOUFFE, 1996.

7 ALVAREZ et alii, 2003, p. 543.

8 Apoiadas nesse fato é quetratamos dos dois encontrosocorridos no Brasil como campode análise. O 3º Encontro, de1985, por meio de relatos e fontessecundárias oficiais do evento; eo 10º Encontro, de 2005, pormeio de pesquisa etnográfica.9 ALVAREZ et alii, 2003, p. 543.

10 Até a presente data, ocorreramdez encontros, sendo que, dentreeles, apenas o Brasil sediou pormais de uma vez os EncontrosFeministas Latino-Americanos.

Page 4: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

KARLA GALVÃO ADRIÃO, MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI E SÔNIA WEIDNER MALUF

664 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011

Para ingressar no encontro feminista, segundo suapágina na Internet,12 foi preciso preencher uma ficha deinscrição que tinha duas perguntas de acesso. Eranecessário 1) ser mulher, e 2) ser feminista, enquantoautodefinição, para que se pudesse estar nesse espaço dediscussão, assim como nos encontros anteriores. Portanto,uma verdadeira “cidade das mulheres” foi recriada a cadaversão do encontro. Cidade onde mulheres dos movimentoslésbico, negro, indígena, de partidos políticos, de gestãopública, de redes feministas nacionais e internacionais, definanciadoras, de núcleos acadêmicos, de movimentospopulares e, agora, de jovens feministas encontraram-se ebuscaram discutir agendas de aproximação ou não. Tensõese reconfigurações são construídas e reconstruídas nessesespaços concretos.

Os espaços dos encontros e das conferênciascolocam-se como lugares de tensionamento e recriação doque vem sendo agendado como pauta política dofeminismo contemporâneo. Compreender esses espaços ecomo eles se configuram trata-se de algo da ordem do dia,visto que neles os processos do campo ganham visibilidade,formam-se e se conformam. Isso se faz a partir de umaagenda largamente negociada pelos diversos segmentosde mulheres feministas e por correntes políticas dentro dofeminismo.

As temáticas feministas colocam-se em torno de umabusca de transformação social – no sentido amplo do termo– além de procurarem erradicar as desigualdades sofridaspelas mulheres, acarretadas por sua condição desubordinação. Essas chamadas são conhecidas de todase todos aqueles que estudam ou militam em torno dasquestões de gênero e feminismo. Além dessa perspectivageral, negociações internas vêm sendo feitas no sentido dedefinir o que é específico da agenda feminista, no Brasilpós-década de 1990, seja nos fóruns políticos, seja nos fórunsacadêmicos. As I Conferências (Governamentais) Estaduaise a Nacional de Políticas para as Mulheres,13 que ocorreramem 2004, traziam propostas que, por sua vez, também járefletiam as discussões iniciadas no processo deorganização da plataforma política feminista (encontroorganizado pela rede do movimento feminista nacionalAMB), em 2002.14

A seguir, destacamos momentos do 10º Encontro queservirão como frames15 para algumas das questões quepretendemos discutir aqui. Classificamos os momentosanalisados em a) o sujeito político – em um campo analítico-teórico e empírico; e b) as relações entre democracia,autonomia e sujeitos políticos.

13 As Conferências de Políticaspara Mulheres Brasileiras (organi-zadas pelo governo federal,através da Secretaria Especial dePolíticas para as Mulheres) surgema partir da constituição dos novoscampos de ação feminista,resultantes da compreensão doscontextos históricos, envolvendoas décadas de 1970, 1980 e1990.14 A primeira Plataforma PolíticaFeminista foi organizada por umgrupo de entidades do movimen-to de mulheres nacional, tendo aArticulação de Mulheres Brasileiras(AMB) como a grande impulsio-nadora nos estados brasileiros. Em2002, ano de eleições presiden-ciais, essa articulação promoveuconferências municipais e esta-duais em todo o território nacio-nal, com o intuito de construir umaplataforma norteadora das açõesque as mulheres deseja-vamimplementar via governos(COMISSÃO ORGANIZADORA...,2003).15 A noção de frames é empres-tada da Linguística de Textos e daLinguística Cognitiva, ambasáreas teórico-conceituais dosestudos macrolinguísticos, queconsideram a língua em suainteração com o contexto socio-cultural. Dessa forma, os frames,ou enquadramentos, são mo-mentos “recortados” da realidadesociocultural que se apresentacomo um todo, para efeitos deanálise de um momento discursivoou sociolinguístico. Tomamos osframes para configurar momen-tos emblemáticos dentro docontexto geral do 10º Encontro,de forma a discutir sobre arealidade macro a partir de umaanálise de momentos específicos,ou micro. Fontes: Gil lesFAUCONNIER, 1997; e RobertBEAUGRAND, 1997.

12 Página na Internet:<www.10feminista.org.br>. Últimavisita em 7 de janeiro de 2008.

Page 5: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011 665

O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SÉCULO XX

a) O sujeito políticoa) O sujeito políticoa) O sujeito políticoa) O sujeito políticoa) O sujeito político

A perspectiva de constituição de um sujeito políticoorienta e unifica os movimentos sociais, dando-lhes “umacara própria” que, por sua vez, indica quais são asdesigualdades sofridas e quais as reivindicaçõesalmejadas.16 Por muitos anos, pelo menos desde o séculoXVIII, as ações do movimento feminista orientaram-se a partirda unidade de todas as mulheres em torno do significante“mulher”. As ações galgadas, entretanto, oscilavam, emdiferentes momentos históricos, entre estratégias que seutilizavam de argumentos pautados na noção de igualdadeou na de diferença.17

Além disso, essas estratégias tinham em comum oponto de partida de que havia uma diferença sexual paraa qual se colocavam distinções, a saber, entre os homens –que possuíam o acesso ao mundo público e à cidadania –e aos demais sujeitos que se encontravam à margem dosprocessos decisórios.18 Às feministas restava utilizar-se desseargumento – o da diferença sexual – como portal dechegada e de partida. Essa escolha é chamada por JoanScott19 de paradoxal, já que as feministas usam da noçãoque as restringe – a de que há uma diferença entre homense mulheres – como possibilidade de alcance de cidadania.

Percebe-se aqui que a diferença sexual apoiaestratégias paradoxais de igualdade e de diferença emrelação ao outro sujeito político que tem livre acesso aosdiretos do Estado-nação. Uma segunda forma de uso dessemesmo significante “mulher” é descrito por Judith Butler.20

Aqui, a autora problematiza a igualdade e a diferença emrelação ao que une e o que separa todas as mulheres emtorno do movimento feminista e de mulheres. É ressaltada aimportância do sujeito “mulher” como unidade do todo – asmulheres do movimento. Entretanto, ao se deparar com achegada das mulheres situadas em segmentos específicos,percebe-se que esse sujeito “mulher” sofre rupturas quantoao seu conteúdo uno. Argumentaremos que essas duasperspectivas são usadas, sendo uma voltada para fora, narelação do movimento de busca de igualdade de direitos,enquanto a outra é utilizada internamente, na tensão entrediferença de segmentos e unidade do movimento.

Scott21 discute sobre a relação da igualdadealmejada por segmentos marginais, através de doiscaminhos: o dos grupos e o do indivíduo. Na sociedademoderna contemporânea as leis se organizam em torno dosdireitos dos indivíduos, entretanto, os movimentos sociaisbuscam agregar a noção de grupo para acessar diferençasque aparecem como da ordem cultural e, portanto, queultrapassam os direitos individuais. A autora coloca que há

21 SCOTT, 2005.

20 BUTLER, 2003.

19 SCOTT, 2002.

18 SCOTT, 2005.

16 Nancy FRASER, 2007; e IlseSCHERER-WARREN, 1987.

17 Joan SCOTT, 2002.

Page 6: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

KARLA GALVÃO ADRIÃO, MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI E SÔNIA WEIDNER MALUF

666 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011

uma tensão presente na constituição de uma identidadede grupo sobre a qual a discriminação está baseada. Nessesentido, as demandas por igualdade evocam e repudiamas diferenças que, em um primeiro momento, não permitirama igualdade.

Em outras palavras, a visibilidade do sujeito “mulher”é acionada através de uma “identidade de grupo”22 sem,no entanto, agregar todas as diferenças no interior dessesignificante. Há uma busca por igualdade do grupo e dosindivíduos baseada na diferença que exclui. E essaidentidade unifica-se em torno de um termo: “a mulher”.

Importa-nos, neste momento, compreender essasrelações internas e externas das quais o movimento feministalança mão, tendo como foco a relação entre constituiçãode sujeitos políticos feministas e estratégias de igualdade ediferença, a partir dessas visões teóricas confrontadas coma realidade do 10º Encontro.

As estratégias que pretendemos discutir forampercebidas em dois segmentos que buscavam legitimar seusdiscursos e serem vistos como mais um grupo dentro docampo feminista. Um deles, o das jovens feministas,23 apontapara as relações no interior do movimento, enquanto o outro,o das transgêneros, deflagra externamente as tensões dofeminismo, em dois movimentos distintos, um centrípeto e ooutro centrífugo, tal qual apontado por Sônia Maluf.24

O discurso oficial do movimento feminista no 10ºEncontro traz a “pluralidade” como termo agregador daspolíticas internas e das estratégias externas e internas deconstituição de pautas, de diferentes segmentos. Dessaforma, pretende assegurar direitos para cada um dos distintosgrupos e, ao mesmo tempo, deflagra as dificuldadesinerentes a essa proposição, porque convivem no mesmoespaço os segmentos já existentes, que buscam consolidar-se internamente, e, concomitantemente, “novos segmentos”com “novas demandas”.

Apresentamos informações da plenária final do 10ºEncontro, onde em torno de 1.400 mulheres reuniram-se paraleitura de moções e debate de pontos políticos, demarcandoo encerramento do evento. Dessa reunião, trazemos duasimagens: a leitura da moção das jovens feministas e adiscussão – que culminou em votação – sobre aparticipação de transgêneros no próximo encontro. A essesmomentos será dado destaque, na medida em quecondensam e dão visibilidade às tensões em torno de quaissão os sujeitos políticos reconhecidos e legitimados pelomovimento feminista. Acompanhemos:

No primeiro destes, a plenária aplaudiu sem parar adesobediência das jovens feministas (categoria pela

22 SCOTT, 2005.

23 As jovens feministasorganizaram, a partir de suasações durante o 10º EncontroFeminista Latino-Americano e doCaribe, em 2005, umaarticulação nacional. No ano de2007, durante a II ConferênciaNacional de Políticas para asMulheres, fortaleceram a rede econstruíram o I Encontro Nacionalde Jovens Feministas que ocorreuna cidade de Fortaleza, Ceará. Oencontro tinha como objetivoprincipal consolidar a criação daArticulação Brasileira de JovensFeministas, e fortalecer a agendapolítica para as mulheres jovens.24 MALUF, 2006.

Page 7: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011 667

O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SÉCULO XX

qual se autodefinem) que tomaram a área central daplenária, onde se situava a mesa de coordenaçãodos trabalhos, e iniciaram em conjunto a leitura desua carta de reivindicações. A regra a ser cumpridaera a de que apenas uma representante de cadasegmento iria ao centro e leria sua carta moção. Emsua maioria, as cartas moções tinham uma página nomáximo, onde se reivindicava maior visibilidade e/ouparticipação daquele segmento ali representado(foram lidas cartas das deficientes, das lésbicas, dasindígenas e das jovens feministas). Voltando à leiturada carta das jovens feministas, rapidamente fez-seuma meia lua, composta por mais de 30 jovensmulheres da América Latina e do Caribe. Ovacionadaspor sua iniciativa em desobedecer, as jovens feministasiniciaram a leitura de uma carta que trazia para ofoco as especificidades destas enquanto feministas.Ao meu lado, nas cadeiras ao redor, ouvia as mulheresfeministas comentando, com entusiasmo, quegostariam de saber mesmo quais eram asespecificidades das jovens e o que elas queriam. Oclima era de festa e de receptividade àquelas novasque vinham trazer gás e força às lutas das mulheres,conforme comentado a minha volta. Pela primeiravez na História do Feminismo Latino ouve-se falar, deforma consolidada, em um grupo de jovens quereivindicam especificidades.

O segundo momento da plenária final tratava dealgo que vinha sendo comentado arduamente por váriasmulheres, nos espaços informais do encontro, e antes destese iniciar, através de cartas do movimento de transexuais,veiculadas na internet. A questão se colocava da seguintemaneira: poderiam participar do encontro as transgênerosque se autodefiniam como mulheres feministas? A plenáriafoi aberta através da possibilidade de fala e exposição deargumentos pró e contra a entrada destas. Depois de muitosembates, ouvia-se um grande burburinho e finalmente osargumentos foram se consolidando em torno das seguintesafirmações: quem se posicionava a favor, colocava quetransgêneros já participavam dos encontros feministas desdesempre e que não se podia medir o tamanho das convicçõesfeministas e sim, acreditar umas nas outras. Ou seja, se ocritério para ida ao encontro era de autodefinição (deveriase marcar, como já exposto, um questionário onde duasperguntas eram feitas “é mulher?” e “é feminista?”), entãodeveríamos respeitar estas companheiras que se definiamcomo mulheres, embora não tivessem nascido com o corpobiológico feminino.

A posição contrária era defendida em sua maioriapor mulheres feministas lésbicas radicais

Page 8: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

KARLA GALVÃO ADRIÃO, MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI E SÔNIA WEIDNER MALUF

668 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011

(autodefinição) e feministas da União Brasileira deMulheres (UBM), as quais diziam que isto significava umretorno ao patriarcado e uma entrega dos espaçosde poder, mais uma vez, aos homens. Ao final, amaioria presente ergueu os braços e votou a favor.Entretanto, nos espaços informais, na saída doencontro, comentários continuaram sendo feitos.Deixo aqui um destes: “os homens agora devem estarrindo de nós, após esta votação”.25

Dois segmentos distintos evocam a mesma estratégiade utilização do espaço da plenária final para colocaremsuas reivindicações. A plenária final dos encontros feministastem o caráter de agregar o fechamento dos trabalhosproduzidos durante o processo, ao mesmo tempo que secoloca como espaço para apresentação de moções oucartas que tragam comentários, propostas, moções ourepúdios a situações específicas. Ao ocuparem esse espaço,tanto as jovens quanto aquelas que trouxeram areivindicação das transgêneros26 sabiam que dispunhamda possibilidade de serem ouvidas por todas, podendo,dessa forma, lançar alguma proposta de seu segmento.Entretanto, o espaço da plenária não comporta votações;apenas a aclamação do que é lido pode ser tida comoaprovada por todas e alocada nas atas oficiais dosencontros.

As jovens leram sua carta que foi aclamada por todasas participantes do 10º Encontro. As transgêneros, emcontrapartida, não estavam presentes (por não poderemparticipar do evento), mas, apesar disso, sua reivindicaçãofoi colocada em votação pela mesa coordenadora, nãohavendo consenso,27 mas sendo tomada a decisão do quefoi acatado pela maioria.

Além disso, outras características distinguem eaproximam esses dois segmentos que buscavamvisibilidade. A eles nos detemos adiante.

a.1) Incursões em torno de um “novo”a.1) Incursões em torno de um “novo”a.1) Incursões em torno de um “novo”a.1) Incursões em torno de um “novo”a.1) Incursões em torno de um “novo”2828282828

lugar no feminismo: as jovens feministaslugar no feminismo: as jovens feministaslugar no feminismo: as jovens feministaslugar no feminismo: as jovens feministaslugar no feminismo: as jovens feministas

O encontro entre Ana e uma das autoras29 deste artigose deu numa manhã de segunda-feira, em São Paulo, nasede da União de Mulheres, cinco dias após o 10º EncontroFeminista. Ana é uma das lideranças jovens do movimentofeminista no Brasil, embora ela mesma não tenha se referidoa si própria dessa forma. Branca, de estatura média, com 25anos e formada em Letras, Ana atua no movimento desde1996, quando iniciou um curso de jovens lideranças naONG União de Mulheres, em São Paulo. Desde então, vemmilitando e se identificando como feminista. Porém, como

25 ADRIÃO, 2008 (citaçõesretiradas do Diário de Campo).26 A definição de transgênero, deacordo com nossas interlocutorasfeministas, era o de que este eraum termo genérico para designarhomens que “agem socialmentecomo se fossem mulheres. Algunsdestes chegam a realizar cirurgiasexual, mudando de sexobiológico, outros não. O que maisimporta é que estes se sentemcomo mulheres e, portanto,querem ser identificados comotal” (ADRIÃO, 2008 – Diário deCampo, 2005, e diálogos pelaInternet, anteriores à realizaçãodo 10º Encontro, sobre apolêmica da participação ou nãodas trans).27 O consenso é uma estratégialargamente almejada pelasfeministas, nos momentos deembate político interno, emreuniões dos fóruns de mulherese em outras redes do mesmo tipo.Busca-se chegar a uma ideiahomogênea, se não unitária, queconduza às ações. Isso se fazatravés de larga negociação, emdebates acirrados. A decisão derealizar uma votação, maiscaracterística de outro tipo defórum ou encontro, como asconferências de políticas públicas– as quais necessitam de umadecisão sobre uma diretriz comteor futuro de lei –, foi tomada,pela primeira vez, em umaplenária final, na história dosEncontros Feministas Latino-Americanos (ADRIÃO, 2008 –Diários de Campo, 2004 e 2005).28 ALVAREZ et alii, 2003, trazemcomentários históricos sobre oprimeiro aparecimento das jovensfeministas, no final da década de1990, em Juan Dolio, naRepública Dominicana (1999), no8º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe. Naquelemomento, as questões eram asmesmas que as atuais,evidenciando que esse segmentocontinua causando“estranhamento” nas demaisfeministas participantes desseseventos.29 Karla Galvão Adrião.

Page 9: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011 669

O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SÉCULO XX

feminista jovem, ou jovem feminista, quando esta jornadase iniciou?

Há alguns anos mulheres jovens feministasparticiparam de um curso de capacitação em feminismo ejuventude, organizado pela Rede Latino-Americana eCaribenha de Jovens pelos Direitos Sexuais e Reprodutivos(REDLAC). Após essa capacitação, formou-se o grupo JovensFeministas de São Paulo, do qual Ana faz parte. Desseprocesso, ela e mais algumas jovens de seu grupoparticiparam ativamente traduzindo e adaptando o manualdesse curso, em espanhol,30 para a realidade brasileira.Outros grupos, em todo o Brasil, apropriaram-se dessametodologia, através da participação em instânciasfeministas como fóruns de mulheres estaduais e ONGsfeministas, ao mesmo tempo que novos grupos de jovensfeministas iam se formando e/ou se consolidando. Ana citajovens dos estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte,Bahia e Acre.

Quais especificidades as jovens feministas trazem emseus discursos? Para além da discussão sobre hierarquiadentro do movimento, onde feministas mais experientesteriam mais poder e visibilidade, essas jovens se preocupamem se colocar em espaços de discussão não apenas comoobservadoras ou coadjuvantes dos processos. Antes, elasquerem discutir e ter acesso aos debates, assim como outrasparcelas e segmentos dentro dos movimentos. Mas será quehá uma especificidade ou várias especificidades quecoloquem as jovens feministas como mais um segmentodentro do movimento feminista?

Ana diz que não tem clareza quanto a isso. Ao serquestionada se existiam especificidades na carta de moçãona tomada do centro da plenária, no último dia do 10ºEncontro, quando mais de 30 jovens a leram, Ana diz queesse momento retrata algo de novo, sim, mas que este novonão é produto final, constituindo um processo. Ela direcionaentão a discussão sobre os dois nomes/conceitos queidentificam esse segmento: jovens e feministas. Por que“jovens” antes de “feministas”? As jovens com quemdialogaram nos dias do encontro, vindas, principalmente,da Nicarágua, do Chile e do Peru, autodenominavam-se“feministas jovens”, porque eram feministas, em primeirolugar. Mas Ana, assim como as demais jovens brasileiras,também é “feminista em primeiro lugar”. Entretanto, diz maisuma vez Ana que colocar o nome “jovem” antes do nomefeminista revela uma demarcação de visibilidade. “Ou seja,somos jovens feministas, sim, e, mesmo com toda aambiguidade que esse discurso traz em si, colocamo-nosenquanto segmento dentro do movimento feminista maisamplo”.

30 MANUAL..., 2002.

Page 10: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

KARLA GALVÃO ADRIÃO, MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI E SÔNIA WEIDNER MALUF

670 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011

No 10º Encontro, as jovens feministas organizaramuma oficina de diálogo e compartilhamento de experiênciasentre “as jovens e as velhas” feministas.31 A atividade, quenão estava inscrita, foi impulsionada “por um desejo dasmulheres jovens que estiveram no Fórum de Mulheres Jovens[Feministas], no dia 10 de outubro, durante o 10º Encontro,com o objetivo de troca entre as gerações e de sereconhecer e construir ações comuns”.32 Nesse momento,duas a duas, as mulheres de gerações distintas seencontravam para dividir suas experiências de militância,sua entrada no movimento, suas demandas eespecificidades. Essa foi uma tentativa de promover odiálogo entre as jovens e as velhas feministas e lançar naagenda do movimento o debate geracional.

O Fórum de Mulheres Jovens Feministas contou commais de cem jovens de toda a América Latina e do Caribe.O momento, considerado de articulação, foi importanteporque ali se discutiram as demandas, especificidades eestratégias das jovens feministas. Entre as demandas, asjovens destacaram:

Ser necessário não construir espaços adultocêntricose verticais, garantir que as mais diversas jovensexpressem suas necessidades e apreensões dentrodo processo, além de se trabalhar conjuntamentenos movimentos de juventudes e feministas, sem deixarde pensar, considerando as inter-relações com asdemais identidades, raça/etnia, classe social,condições sócio-geográficas, culturais e orientaçõessexuais.33

Outro momento que se destaca é a conversa entre asocióloga feminista Sonia Alvarez e jovens feministas vindasda cidade de Natal, Rio Grande do Norte. Em pé, no meiodo pátio central do 10º Encontro, antes de seguirem paramais uma oficina, conversavam sobre a especificidade deser jovem e feminista. Um dos argumentos trazidos era o doestranhamento da acadêmica com relação a essacategoria, não nova, mas que se reconfigurava de forma talque pedia por discursos de especificidade enquantocategoria identitária dentro do movimento feminista comoum todo.

É importante situar a inclusão dos lugares deimposição de agendas e discussões sociais, tomando aconformação de movimentos de jovens e redes dejuventudes nesse locus. Nas duas últimas décadas o queassistimos é a conformação e segmentação de identidadespolíticas e, nesses espaços, os movimentos de jovens têm setornado cada vez mais participantes no cenário geral. Veja-se, por exemplo, o contexto dos Fóruns Sociais Mundiais, em

31 Miriam Grossi destacou arelação entre jovens e velhasfeministas em seu texto “Velhas enovas feministas no Brasil”(GROSSI, 1998).

32 Fernanda Grigolin, jovemfeminista, página do 10º Encontrona Internet.

33 Fernanda Grigolin, jovemfeminista, página do 10º Encontrona Internet.

Page 11: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011 671

O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SÉCULO XX

que o acampamento da juventude é um dos espaçospolíticos de grande impacto internamente e, também, juntoà mídia e ao que é veiculado e percebido pela populaçãoem geral. Assim, o encontro de mais esse movimento, dejovens, vem se agregar de maneira distinta das vivênciasdas feministas jovens das décadas de 1980 e 1990, noBrasil. Existiam, sim, feministas jovens, entretanto, nestemomento, o que parece se conformar é um espaço onde“ser jovem” tem um valor/peso de ordem semelhante a “serfeminista”, afirmam as jovens feministas. Questionamos essaafirmação, visto que consideramos que o debate não seconcentra no ato de “medir uma dupla participação” e simno peso que a imbricação de dois significantes, orientadoresde dois segmentos específicos – movimento da juventude emovimento feminista –, tem quando aparecem juntos.

A importância da participação das jovens éinegável. Trazem à tona a existência de uma hierarquiainterna do movimento, na qual quem tem mais tempo ali, ouseja, as “históricas”, têm mais poder (aqui estão envolvidoso estabelecimento da agenda, a distribuição dofinanciamento, o assento em órgãos importantes como osConselhos etc.). A constatação dessa evidência,aparentemente óbvia, fundamenta parte das reivindicaçõesdas jovens e faz emergir as formas pelas quais as relaçõesde poder se fundamentam. Além disso, vem questionar onível de participação, a igualdade de participação e depoder decisório quanto a pautas, já que leva à proposiçãode temas de debate que nem sempre estão na ordem dodia para o movimento, como a preocupação com aconcepção e contracepção do ponto de vista da idadefértil e do direito de ter filhos, creches e licença de gestaçãopara estudantes de pós-graduação, por exemplo; e aparticipação “igual” para jovens e “históricas”.34 As jovensfeministas também levantam a questão da participaçãomasculina no movimento, concordando em alguns casoscom a presença dos homens nas suas reuniões.

Elas desestruturam a ordem, ao mesmo tempo quepedem licença às “mais velhas” para participarem,exaltando o que já foi conquistado e levando emconsideração as lutas travadas anteriormente. Ou seja,reconhecem o passado histórico, sem abrir mão dealterações no presente, de maneira que não apenas sejamouvidas, mas também tenham acesso aos espaçosdecisórios. De certa forma, isso já vem acontecendo, vistoque uma das jovens feministas estava presente na comissãoorganizadora do 10º Encontro e que o debate sobre asjovens feministas fez parte da programação oficial do evento,havendo uma jovem feminista em cada mesa de debatedos diálogos complexos.

34 Termo êmico.

Page 12: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

KARLA GALVÃO ADRIÃO, MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI E SÔNIA WEIDNER MALUF

672 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011

As jovens feministas utilizam estratégias de busca deigualdade dentro do movimento ressaltando suas“diferenças específicas”. Ou seja, movimentam internamenteo feminismo com a inserção de demandas situadas econtextualizadas como “de um movimento jovem”. Aomesmo tempo, percorrem caminhos que outras mulheres deoutros segmentos já percorreram, como foi o caso das negras,indígenas e lésbicas. Trazem a reflexão de volta para aquestão interna do movimento feminista acerca da suaunidade, traduzida em termos de questões da mulher.Levantam o paradoxo em dois sentidos: um deles reforçandoa existência da diferença sexual,35 a partir da afirmação deque são feministas e mulheres, unindo-se, dessa forma, aotodo do movimento; e o outro afirmando a diferença no interiordo movimento, ao trazer mais uma desigualdade que seencontrava na margem, a de geração, portanto situada eespecífica para o todo do movimento feminista. Os percursosdesse “novo” segmento auxiliam a compreender asdinâmicas discursivas pelas quais se produzem sujeitoslegítimos, com demandas aceitas dentro do contextofeminista.

a.2) Abrindo frestas? A possibilidade dasa.2) Abrindo frestas? A possibilidade dasa.2) Abrindo frestas? A possibilidade dasa.2) Abrindo frestas? A possibilidade dasa.2) Abrindo frestas? A possibilidade dastransgêneros participarem nos encontrostransgêneros participarem nos encontrostransgêneros participarem nos encontrostransgêneros participarem nos encontrostransgêneros participarem nos encontrosfeministasfeministasfeministasfeministasfeministas

Na plenária inicial, durante a abertura do 10ºEncontro, a fala da comissão organizadora mesclou-se entredemarcar historicamente o lugar desse encontro, emdestacar os objetivos e dar as boas-vindas às participantes.Porém, uma fala a mais foi introduzida, a de uma dasorganizadoras que vinha, em público, justificar a tomadade posições da comissão em não aceitar que transexuais etransgêneros participassem e se inscrevessem no 10ºEncontro. O texto argumentava, dentre outras coisas, quenão era da alçada da comissão deliberar por todas asmulheres feministas sobre essa questão. Portanto, seguindoo critério democrático que marca as decisões feministas,estavam delegando o espaço da plenária final para adecisão sobre a participação das trans no 11º Encontro.

Essa fala se constitui em torno de um processo que seiniciou por e-mail, pelo menos um mês antes da realizaçãodo encontro. Nos e-mails conformou-se uma espécie defórum informal, em que se discutia sobre a possibilidade ounão da inclusão das trans, impulsionada por uma cartadestas, na qual pediam que as feministas abrissem apossibilidade para sua participação no 10º Encontro. Essese-mails circularam por redes informais e foram sendorepassados de forma tal que não foi possível ter a real

35 SCOTT, 2002.

Page 13: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011 673

O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SÉCULO XX

dimensão de quantas mulheres efetivamente tiveram acessoà discussão. Porém, ao chegar à “cidade das mulheres”, deuma forma ou de outra se recebia, nas conversas informais,informações sobre a existência da polêmica, fato esseexplicitado na fala de abertura da organização, conformeexposto no parágrafo anterior.

Durante o processo do 10º Encontro, pelo menos umaoficina foi realizada com o objetivo direto de discutir a inclusãodas trans. Nessa oficina, intitulada “Cuerpos Feministas”,36

discutia-se, a partir da experiência vivencial, “o que nosconstitui enquanto mulheres”, tomando característicascorpóreas e simbólicas da ordem do discurso até chegar aoargumento de que as transexuais “também se constituemcomo mulheres”, logo, podem se autodefinir como feministas,se assim o desejarem, e, consecutivamente, participarem do10º Encontro. As participantes da oficina debateram essaquestão colocando-se a favor ou contra o argumento.

Nos diversos espaços de discussão – formais einformais – quem apresentava argumentos favoráveis àentrada das transgêneros nos encontros feministas alegava,dentre outros aspectos, que a utopia feminista de busca deigualdades teria possibilitado fissuras nos modelosheterossexuais. Ou seja, que a possibilidade de trabalharos direitos sexuais e a politização do espaço privado iriaimpulsionar novos estilos de vida. Dentre estes, apossibilidade de uma pessoa que nascesse com o sexobiológico de um homem ter acesso a uma nova definiçãoidentitária. Da mesma maneira, foram citadas as mulhereslésbicas como porta-vozes feministas da livre expressão deviver a sexualidade e o amor por alguém do mesmo sexo.

Nessa mesma linha argumentativa, o feminismo “sedepara com as dimensões [que se abriram] a partir da utopiade uma vida sem desigualdades, de transformação socialpara todas e todos e, portanto, também para astransgêneros”.37 Ser feminista diz, portanto, de um lugar depossibilidades para pessoas que se autodefinam comopartidárias de princípios comuns a essa forma de ver epensar o mundo. Então, o que dizer daquelas pessoas quese autodefinem como feministas e também como mulheres?Estariam as transgêneros sendo porta-vozes de um caminhara partir de um olhar de gênero – em que femininos emasculinos transitam em corpos de homens e de mulheres –em contrapartida a uma visão essencializada de comodeveriam ser as mulheres e, portanto, as mulheres feministas?

Gostaríamos de resgatar mais um momento registradono Diário de Campo de Karla Adrião, por evidenciar commais detalhes a tensão a partir das formas discursivasempregadas durante as argumentações a favor e contra aparticipação das transgêneros nos encontros subsequentes:

36 Oficina organizada por Aireana,Grupo por los Derechos de lasLesbianas; Asociación de Luchapor la Identidad Travesti Transexual(ALITT); Centro de Documentaciony Estudios (Área Mujer-CDE);Comision Internacional deDerechos Humanos de Gays yLesbianas (IGLHRC). Objetivosexpostos no caderno daprogramação oficial do evento:“Taller participativo donde sereflexionará sobre el feminismocomo corriente de pensamientomás Allá de los cuerpos. Preguntasy críticas” (CADERNO..., 2005).

37 ADRIÃO, 2008 (Diário deCampo, 2005).

Page 14: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

KARLA GALVÃO ADRIÃO, MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI E SÔNIA WEIDNER MALUF

674 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011

As falas na plenária final indicavam quem era a favore contra a entrada de transexuais nos próximosencontros feministas. Uma partícula/artigo definido eraevidenciador do argumento contra ou a favor: artigodefinido masculino “O” ou artigo definido feminino “A”.Ou seja, a frase que se iniciava com “O transexual”era contrária à inserção destes nos encontros. Oinverso, ou seja, a definição “As transexuais” dava-lhesacesso ao “mundo feminista”. Estes argumentos eramcolocados no centro da plenária, ao microfone.Porém, mais alto que esses, vozes em coroquestionavam o artigo feminino ou masculino, ora emacordo, ora em desacordo, fato este que me chamoubastante atenção. Algumas mulheres tendiam a corrigiro termo “O transexual”, enfatizando que este deveriaser chamado no feminino, o que vinha a atordoar, emalguns momentos, aquelas que estavamargumentando contra a sua entrada e participaçãonos encontros.38

Esses momentos apontados acima mostram que,aqui, a unidade se faz através do termo “mulher”, o qualagrega todas aquelas que são mulheres, distintamente do“outro” que são os homens, ao mesmo tempo que lança aambiguidade que o termo atravessa, a partir da pergunta:mas, afinal, o que é ser mulher?

As transgêneros podem participar dos Encontrosdesde que atestem que são mulheres, em relação a um dosargumentos lançados. Nestes termos, é importante utilizar oartigo masculino “O”, de forma a evidenciar que elas nãosão mulheres. Há também o receio de que transgênerosrepresentem a fala dos homens no movimento, restringindo,portanto, os direitos e as estratégias feministas.

Ao mesmo tempo, a outra parte do movimentofeminista, favorável à presença das transgêneros, vinhaorganizando encontros estaduais de debates39 – atravésde parcerias locais entre fóruns de mulheres, articulaçõesde mulheres e ONGs feministas – sobre a fluidez dassubjetividades e dos corpos, na perspectiva teórica dosestudos de gênero.40 Esses debates incitavam anecessidade de agregar todas aquelas que se dissessemfeministas, tendo ou não “corpos prioritariamentefemininos”.41

Há uma necessidade do próprio campo de açãomilitante de definir características identitárias fixas, ouainda, “estratégias essencialistas” que aproximem as lutase as buscas por direitos legais.42 As dicotomias se dão entremulheres feministas que buscam seu espaço de direitos, oqual se concentra em uma unidade interna que as constituanessa luta. Ou seja, debater sobre o que une e o que separatodas as mulheres, levando em conta, ao mesmo tempo,

38ADRIÃO, 2008 (Diário deCampo, 2005).

39 Esses encontros aconteceramem algumas cidades do país eforam relatados por interlocutoras,depois do 10º Encontro, em suascidades, a saber, São Paulo, Recifee João Pessoa (ADRIÃO, 2008).40 BUTLER, 2003 e 2004; MarilynSTRATHERN, 1988; DonnaHARAWAY, 1995, dentre outras.41 Entrevista com participante darede de Mulheres em Articulaçãoda Paraíba e integrante de ONGfeminista lésbica, em janeiro de2006 (ADRIÃO, 2008).42 Diane ELAM, 1997; e RosiBRAIDOTTI, 1989.

Page 15: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011 675

O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SÉCULO XX

que as mulheres são diferentes entre si quanto a váriosaspectos: sexualidade, raça/etnia, geração e classe social.

Nesse exemplo de demanda por inclusão de umsegmento como sujeito político do feminismo, o quepercebemos em termos de estratégias é que a relação entreigualdade e diferença percorre um caminho mais ousadoque o anterior (das jovens feministas), no sentido de quebusca igualdade na afirmação de uma diferençaaparentemente “biológica”, o sexo masculino, portanto, aidentidade masculina em oposição à feminina, através dainclusão de uma igualdade discursiva que afirma “se mesinto feminista, então posso ser uma”. O paradoxo dadiferença sexual aqui é utilizado ao revés, ou seja, ao invésde afirmar a diferença sexual, fortalece a possibilidade detrânsito dos lugares instituídos pelos/nos corpos comomasculino e feminino. Donna Haraway comenta essacondição de fluidez, a partir da metáfora do ciborgue:

Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbridode máquina e organismo, uma criatura de realidadesocial, bem como uma criatura de ficção.Socialreality is lived social relations, our most importantpolitical construction, a world-changing fiction. Arealidade social é vivida nas relações sociais, a nossamais importante construção de um mundo emmudança ficcional e política.The international women’smovements have constructed ‘women’s experience’,as well as uncovered or discovered this crucialcollective object. O movimento internacional demulheres tem construído “a experiência da mulher”,bem como descobriu este crucial objeto coletivo.Thisexperience is a fiction and fact of the most crucial,political kind. Esta experiência é uma ficção erealidade das mais cruciais [...] o ciborgue é umassunto de ficção e experiência vivida que muda oque conta como as experiências das mulheres emfinais do século XX.This is a struggle over life and death,but the boundary between science fiction and socialreality is an optical illusion. Esta é uma luta sobre a vidae a morte, mas a fronteira entre a ficção científica e arealidade social é uma ilusão óptica [...] as reflexõesdos outros – a relação entre o organismo e a máquina– têm sido uma guerra fronteiriça na tradição utópicade imaginar um mundo sem sexo, que é talvez ummundo sem gênese, mas talvez também um mundosem fim [The cyborg incarnation is outside salvationh...] o ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero.43

A autora afirma ainda que o aprofundamento dosdualismos mente e corpo, animal e máquina, podem serrefutados através da imagem do ciborgue que, por sua vez,

43 HARAWAY, 1991, p. 149, 150 e152. Tradução nossa.

Page 16: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

KARLA GALVÃO ADRIÃO, MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI E SÔNIA WEIDNER MALUF

676 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011

auxilia no argumento de que a produção de um universal éum erro, pois leva a uma análise parcial da realidade. Emcontraposição, através da imagem do ciborgue, assim comocom a perspectiva de inclusão das transgêneros, a visãosituada e específica de um segmento trans é reconhecidaatravés da possibilidade de fluidez de significantesmasculinos e femininos em corpos sexuados. Essaperspectiva se ancora nos estudos de gênero44 e no estatutode sujeito descentrado.45 Porém, diferentemente do ciborgue,o segmento das trans pode invocar a dualidade mais umavez, marcando também um retorno à biologização doscorpos e da diferença de sexo.46 Isso pode acontecer setomarmos o fato de que algumas das transgêneros sãosujeitos que passaram por processos de alteração de seuscorpos biológicos através da tecnologia e da ciência,adaptando esse corpo à sua identificação sexual subjetiva.Ou seja, as trans possuíam um corpo biológico de homemcom o qual não se adaptavam e precisaram fazer umaalteração concreta em seu órgão sexual masculino, de formaque seu sexo biológico se adequasse à sua “identidadefeminina”.

Essa tensão entre utilização de argumentos pautadosou na biologia ou na construção cultural acompanha ahistória dos movimentos LGBTTT,47 apontando polarizações,e está longe de ter chegado a um consenso. No movimentofeminista, ao se situarem as diferenças das mulheres em“corpos sexuados femininos”, há uma escolha política quetambém vem a reboque dessa noção e que separa homens(corpos) de mulheres (corpos), marcando a desigualdadede gênero em “mulheres concretas” e perpetuando a lógicabinária já tão criticada pelas teorias feministas. Ao permitira participação das trans nos encontros, esse argumento sofreuma ruptura, visto que as trans desconstroem a ideia deunidade baseada na diferença sexual e aproximam asmulheres dos homens ao proporem que os corpos – e abiologia e a natureza – podem ser alterados.

b) Relacionando sujeitos polít icos,b) Relacionando sujeitos polít icos,b) Relacionando sujeitos polít icos,b) Relacionando sujeitos polít icos,b) Relacionando sujeitos polít icos,autonomia e democraciaautonomia e democraciaautonomia e democraciaautonomia e democraciaautonomia e democracia

No tocante às questões políticas centrais para asfeministas no 10º Encontro, destacamos a dos sujeitospolíticos. Neste momento, buscamos relacionar tais questõescom as noções de democracia e de autonomia, tendo emvista complexificar o debate em torno de sujeitos políticos edas políticas e suas estratégias de ação.

Nancy Fraser, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe48

apontaram a importância das estratégias políticas de“redistribuição” e “reconhecimento” na democracia. Fraser49

48 Nancy FRASER, 2007; e ErnestoLACLAU e Chantal MOUFFE, 1985.49 FRASER, 2007.

44 BUTLER, 2003 e 2004; eSTRATHERN, 1988.45 Stuart HALL, 2000; Bruno LATOUR,2005; Michel FOUCAULT, 2002;Jacques DERRIDA, 2005, dentreoutros.46 Thomas LAQUEUR, 2001.

47A visibilidade desse segmentovem a reboque dos avanços dosestudos sobre sexualidade e daorganização dos movimentos deLésbicas, Gays, Travestis, Transe-xuais e Transgêneros (LGBTTT).Regina FACCHINI, 2005, discuteo movimento homossexualorganizado, no Brasil, associando-o à construção daquilo que aautora chama de “identidadescoletivas”. Além disso, dentre asconquistas atuais das trans noespaço das políticas públicas, estáa garantia de que não serão maisassociadas a prostitutas, além daspropostas de diversidade sexualnas escolas e dos trabalhos dogoverno federal sobre o Brasil semhomofobia.

Page 17: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011 677

O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SÉCULO XX

apresentou uma análise de como o movimento feministalidou com essas estratégias. Segundo a autora, durante asegunda onda feminista, pode-se identificar três momentosno tocante à escolha por estratégias de ação política: oprimeiro, o de políticas de redistribuição; o segundo, o depolíticas de identidade; e o terceiro, o atual, aquele no qualse busca uma conjunção dos dois momentos anterioresaliados a políticas de representação. Laclau e Mouffe50

também defendem a união dos dois momentos daredistribuição e do reconhecimento, como forma deradicalizar a democracia.

No Brasil, as estratégias de redistribuição foramprincipalmente utilizadas no período de estruturação dosnovos movimentos sociais, quando as feministas atuavamjuntamente com a esquerda brasileira. Uma das tensõesentre esses dois sujeitos políticos dava-se no tocante àrelação entre classe e gênero nas estratégias utilizadas.51

Fraser afirma que os feminismos expuseram oandrocentrismo da sociedade capitalista, “politizando ‘opessoal’, expandiram as fronteiras de contestação paraalém da redistribuição sócio-econômica – para incluir otrabalho doméstico, a sexualidade e a reprodução”.52

Percebemos o segundo momento, das estratégias dereconhecimento no Brasil, através das ações, pós-décadade 1980, de demandas de segmentos específicos, como asnegras e lésbicas. Esse momento se prolonga até os diasatuais, com a tensão entre sujeitos políticos autorizados e asdemandas de novos sujeitos como as trans e as jovensfeministas. Fraser aponta que nos Estados Unidos,principalmente, mas também na Europa, este segundomomento colocou sua ênfase nas políticas de identidade,de sujeitos específicos, retirando a centralidade da classepara a cultura. “O resultado foi uma grande mudança noimaginário feminista: enquanto a geração anterior buscavaum ideal de eqüidade social expandido, esta investia suasenergias nas mudanças culturais.”53

Os proponentes da virada cultural esperavam que apolítica feminista de identidade e diferença criasse umasinergia com as lutas pela igualdade social. Mas o queaconteceu foi que, no contexto da virada do século, autilização do reconhecimento acomodou-se confortavelmenteao neoliberalismo hegemônico que, por sua vez, esperavareprimir a memória do igualitarismo social.

O resultado foi uma trágica ironia histórica. Ao invésde chegar a um paradigma maior e mais rico queincluísse tanto a redistribuição quanto oreconhecimento, nós efetivamente trocamos umparadigma truncado por outro, um economicismotruncado por um culturalismo truncado.54

53 FRASER, 2007, p. 5.

51Tatau GODINHO, 1998; SolangeJUREMA, 2005; e Amelinha TELES,1999.

50 LACLAU e MOUFFE, 1985.

52 FRASER, 2007, p. 4.

54 FRASER, 2007, p. 6.

Page 18: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

KARLA GALVÃO ADRIÃO, MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI E SÔNIA WEIDNER MALUF

678 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011

O debate por políticas de identidade no movimentofeminista no Brasil apresenta a dupla conformação deacionar políticas agregadoras – em torno do significante“mulher” – sem perder de vista as disputas internas dasdiversas mulheres negras, lésbicas, jovens, rurais, dentreoutras. Longe de simplificar as demandas, apresentanuances características da fragmentação e da pluralidadede sujeitos contemporâneos. Acreditamos que o movimentofeminista no Brasil se encontre, sobretudo, nesta fase depolíticas de reconhecimento, mas relacionada com aterceira fase mencionada por Fraser,55 caracterizada porpolíticas transnacionais que indicariam alternativas àsimpossibilidades dos períodos anteriores.

O feminismo brasileiro tem participado ativamentedas ações transnacionais que indicam políticas globaispara os Estados-nação, através dos espaços das grandesconferências da ONU, dos Fóruns Sociais Mundiais, encontroslatinos etc. Com relação a isso, Fraser56 propõe que aalternativa atual para as ações feministas deve se comporde uma tríade: junção de políticas de redistribuição e dereconhecimento, acopladas a uma outra estratégia, a derepresentação57 – relacionada a ações globalizadas etransnacionais.

Laclau e Mouffe58 já apontavam a importância denão perder de vista as duas primeiras estratégias. Além disso,os dados de campo do 10º Encontro mostraram apreocupação com a autonomia na interface com as políticasglobalizadas ou transnacionais. Não gostaríamos de perderde vista essa questão, já que, se por um lado há questõesmacroeconômicas que desestabilizam a democracia e osdireitos das mulheres – fruto das políticas neoliberais e doajuste estrutural dos Estados-nação – indicando anecessidade de ações globalizadas por parte dasfeministas,59 por outro não deixa de ser necessário cuidardas microdemandas, situadas e contextuais. A crítica àautonomia, no tocante às políticas locais, tem suaimportância, uma vez que questiona a própria globalização.Nesse sentido, Haraway60 propõe uma interpretação daobjetividade científica61 em termos de “conhecimentossituados”, ou seja, que a perspectiva parcial deve serlegitimada cada vez mais, tendo em vista a necessidadede evidenciação dos saberes localizados.

A democracia plural e radical, discutida pelasfeministas do 10º Encontro, e ressaltada pelos teóricos ErnestoLaclau e Chantal Mouffe,62 apresenta-se em suacomplexidade e em meio a forças em choque e a tensões econflitos por hierarquias dentro do movimento, por espaçosidentitários e políticos, mas não necessariamente emoposição a sujeitos políticos, na busca por autonomia e por

55 FRASER, 2007.56 FRASER, 2007.57 Fraser conceitua representaçãoda seguinte forma: “como aentendo, representação não éapenas uma questão de assegurarvoz política igual a mulheres emcomunidades políticas jáconstituídas. Ao lado disso, énecessário reenquadrar asdisputas sobre justiça que nãopodem ser propriamente contidasnos regimes estabelecidos”(FRASER, 2007, p. 11).58 LACLAU e MOUFFE, 1985.59 Atualmente as feministasbuscam conectar cada vez maisas políticas de redistribuição ereconhecimento através deações transnacionalizadas, indoalém das economias nacionais.Na Europa, por exemplo,feministas atuam diante daspolíticas e estruturas econômicasda União Europeia, unindo-se aosque protestam contra aOrganização Mundial doComércio (OMC), desafiando asestruturas de governabilidade naeconomia global. Além disso,com o slogan “os direitos dasmulheres são direitos humanos”,feministas ao redor do mundoestão conectando as lutas contraas desigualdades de gênerolocais a campanhas parareformar o direito internacional.O espaço dos Fóruns SociaisMundiais tem servido, de formaanáloga, ao encontro de muitosdebates, ações e campanhas(FRASER, 2007; e ALVAREZ et alii,2003).60 HARAWAY, 1995.61 A autora está desenvolvendoum diálogo com as epistemologiasfeministas e o próprio modelo deciência positiva. Esse debate éapresentado aqui para discutir aespecificidade das necessidadese dos saberes locais, os quaismuitas vezes são, tanto no campoda ciência quanto no das políticas,ofuscados em função dasnecessidades e saberes globais.Para mais detalhes, ver ADRIÃO(2008).62 LACLAU e MOUFFE, 1985.

Page 19: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011 679

O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SÉCULO XX

espaços que reflitam os anseios e demandas dos diversossegmentos. Como bem atestam Laclau e Mouffe,63 a inclusãono contexto democrático não se faz sem exclusãoconcomitante. Não há, portanto, consenso real, e anecessidade do conflito e da pluralidade de oposições,além de demonstrar as dificuldades do jogo de disputas noqual se faz um movimento, fortalece o próprio conflito, comocondição sine qua non da democracia radical que asfeministas almejam.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ADRIÃO, Karla Galvão. Encontros do feminismo. Uma análisedo campo feminista brasileiro a partir das esferas domovimento, do governo e da academia. 2008. Tese(Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas) –Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

ALVAREZ, Sonia E.; FRIEDMAN, Elisabeth Jay; BECKMAN, Ericka;BLACKWELL, Maylei; CHINCHILLA, Norma Stoltz; LEBON,Nathalie; NAVARRO, Marysa; RÍOS TOBAR, Marcela.“Encontrando os feminismos latino-americanos ecaribenhos”. Revista Estudos Feministas, v. 11, n. 2, p.541-575, 2003.

BEAUGRANDE, Robert de. New Foundations for a Science of aText and Discourse: Cognition, Communication, and theFreedom of Access to Knowledge and Society. New Jersey:Ablex, 1997. v. LXI.

BRAIDOTTI, Rosi. “A política da diferença ontológica”. In:BRENNAN, Teresa (Org.). Para além do falo: uma crítica aLacan do ponto de vista da mulher. Rio de Janeiro:Record/Rosa dos Tempos, 1989. p. 171-186.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversãoda identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004.CADERNO de Programação do 10º Encontro Feminista Latino-

Americano e do Caribe. Serra Negra, São Paulo, out. 2005.COMISSÃO ORGANIZADORA DA CONFERÊNCIA NACIONAL DE

MULHERES BRASILEIRAS. Plataforma Política Feminista –PPF. Brasília, 2002.

COSTA, Ana Alice. Avances y definiciones del movimientofeminista en Brasil. 1981. Tesis (Maestria en Sociología) –Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, México.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo:Perspectiva, 2005.

ELAM, Diane. “Hacia una solidaridad sin fundamento”.Revista Feminaria, Argentina, n. 20, p. 1-14, 1997.

FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas? Movimentohomossexual e produção de identidades coletivas nosanos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

63 LACLAU e MOUFFE, 1985.

Page 20: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

KARLA GALVÃO ADRIÃO, MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI E SÔNIA WEIDNER MALUF

680 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011

FAUCONNIER, Gilles. Mappings in Thought and Language.New York: Cambridge University Press, 1997.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: MartinsFontes, 2002[1985].

FRASER, Nancy. “Mapeando a imaginação feminista: daredistribuição ao reconhecimento e à representação”.Revista Estudos Feministas, v. 15, n. 2, p. 291-308, 2007.

GODINHO, Tatau. “O PT e o feminismo”. In: BORBA, Ângela;FARIA, Nalu; GODINHO, Tatau (Orgs.). Mulher e política.Gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores. SãoPaulo: Fundação Perseu Abramo, 1998. p. 15-32.

GROSSI, Miriam Pillar. “Velhas e novas feministas no Brasil”.Antropologia em Primeira Mão, n. 28, 1998.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Riode Janeiro: DP&A Editora, 2000.

HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs and Women. TheReinvention of Nature. New York: Routledge, 1991.

______. “Saberes localizados: a questão da ciência para ofeminismo e o privilégio da perspectiva parcial”.Cadernos Pagu, n. 5, p. 7-42, 1995.

JUREMA, Solange Bentes. “As mulheres na política: eleiçõesde 2004 em Alagoas”. In: CASA DA MULHER DO NORDESTE.As eleições de 2004 e a representação política dasmulheres no Nordeste. Recife: Casa da Mulher doNordeste, 2005. p. 161-178. (Cadernos feministas deeconomia e política, n. 2).

LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia y estrategiasocialista. Hacia uma radicalizacion de la democracia.México: Fondo de Cultura Económica, 1985.

LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gênero dosgregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Ed.34, 2005.

MALUF, Sônia. “Políticas e teorias do sujeito no feminismocontemporâneo”. In: FAZENDO GÊNERO, 7., 2006,Florianópolis. GT Sujeitos do feminismo. Florianópolis:UFSC. 2006.

MANUAL de Capacitação em Direitos Humanos das MulheresJovens e a Aplicação da CEDAW. Publicação organizadapela Rede Latino-Americana e Caribenha de Jovenspelos Direitos Sexuais e Reprodutivos (REDLAC), peloPrograma Mulher, Justiça e Gênero, e pelo Instituto Latio-Americano das Nações Unidas (ILANUD), 2002. [EdiçãoBrasileira, 2004].

MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Lisboa: Gradiva,1996[1993].

SCHERER-WARREN, Ilse. “O caráter dos novos movimentossociais”. In: SCHERER-WARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo(Orgs.). Uma revolução no cotidiano. Os novos

Page 21: O Movimento Feminista Brasileiro na Virada do Século XXI: reflexões sobre sujeitos políticos... Adrião, Tonelli e Maluf

Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 661-681, setembro-dezembro/2011 681

O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SÉCULO XX

movimentos sociais na América do Sul. São Paulo:Brasiliense, 1987. p. 311-354.

SCOTT, Joan. A cidadã paradoxal. As feministas francesas eos direitos do homem. Florianópolis: Ed Mulheres. 2002.

______. “O enigma da igualdade”. Revista Estudos Feministas,v. 13, n. 1, p. 11-30, 2005.

STRATHERN, Marilyn. “A Place in the Feminist Debate.” In:SATRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift. Problemswith Women and Problems with Society in Melanesia.Berkeley: University of California Press. 1988. p. 22-40.

TELES, Amelinha. Breve História do feminismo no Brasil. SãoPaulo: Brasiliense. 1999.

[Recebido em 15 de maio de 2010 e aceito para publicação em 27 de setembro de 2010]

The Brazilian FThe Brazilian FThe Brazilian FThe Brazilian FThe Brazilian Feminist Movement at the Teminist Movement at the Teminist Movement at the Teminist Movement at the Teminist Movement at the Turn of the 20th Centururn of the 20th Centururn of the 20th Centururn of the 20th Centururn of the 20th Century: Ry: Ry: Ry: Ry: Reflections oneflections oneflections oneflections oneflections onPolitical Subjects in the Interface with the Concepts of Democracy and AutonomyPolitical Subjects in the Interface with the Concepts of Democracy and AutonomyPolitical Subjects in the Interface with the Concepts of Democracy and AutonomyPolitical Subjects in the Interface with the Concepts of Democracy and AutonomyPolitical Subjects in the Interface with the Concepts of Democracy and AutonomyAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This article discusses the tensions surrounding the legitimacy of the Brazilian feministpolitical subjects in the interface with the concepts of democracy and autonomy. The studyadopts an ethnography perspective to analyze the 10th Latin American and Caribbean FeministMeeting, held in São Paulo in 2005, an important space for the constitution of the thoughts andactions of the feminist movement in Brazil and Latin America.Key WordsKey WordsKey WordsKey WordsKey Words: Feminism; Political Subjects; Democracy; Gender Studies.