o mito de hermes na pós-modernidade

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Livro escrito a partir de inúmeros artigos produzidos entre os anos de 2001 e 2003, apresentando Hermes como o mito diretor ou arquétipo da pós-modernidade.

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Page 1: O mito de Hermes na pós-modernidade
Page 2: O mito de Hermes na pós-modernidade

“De todas as coisas que nos

oferece a sabedoria para a felicidade de

toda a vida, a maior é a aquisição da

felicidade.”

Epicuro

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Page 3: O mito de Hermes na pós-modernidade

ÍNDICE

Apresentação ................................................................................................................ p. 04

As chaves mythodológicas dos jogos cooperativos: o dilaceramento de Dioniso e os vínculos hermesianos (re)envolvendo o sapiens .......................................................... p. 06 A dimensão hermesiana da cooperação ...................................................................... p. 08 Hermes e o ambientalismo ........................................................................................... p. 11 Fórum Mundial Social: evocando Hermes .................................................................... p. 15 O que é animação cultural? .......................................................................................... p. 17 Turismo fático: o prazer de estar junto ......................................................................... p. 19 O direito ao son(h)o: abraçando a cidadania neg-ativa ................................................ p. 25 Hermes e a participação mística da cooperação .......................................................... p. 28 O imaginário hermesiano da cooperação ..................................................................... p. 30 As sombras do trabalho voluntário ............................................................................... p. 33 A horizontalidade da cooperação ................................................................................. p. 37 Cooperando com Hermes: para além do patriarcado e do matriarcado ....................... p. 40 Tempo livre e imaginário: os mitos na formação de recursos humanos para o lazer ... p. 42 Ação cultural na terceira idade: introdução à sociagogia do (re)envolvimento ............. p. 47 Mapeando os novos templos de Hermes: .................................................................... p. 50 Mostra do redescobrimento: um passeio arquetípico ................................................... p. 52 Bibliografia básica ......................................................................................................... p. 56 O autor .......................................................................................................................... p. 58

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Page 4: O mito de Hermes na pós-modernidade

APRESENTAÇÃO

Este livro reúne uma série de artigos escritos entre os anos de 2001 e 2003.

Alguns, nem sempre os melhores, foram publicados em revistas de circulação restrita e

também no Jornal Primeira Página, de São Carlos. Outros alçaram vôos maiores e foram

publicados em revistas de alcance nacional. E por fim, há artigos que ganharam um teor

“acadêmico”, sendo apresentados em eventos científicos e publicados em anais.

Porém, o que os une é o sentimento hermesiano. É o desejo de abandonar a luta

prometéica pelo (des)envolvimento e pelo heroísmo sacrificante para abraçar uma outra

causa: o (re)envolvimento humano e a cooperação.

Em suma, Hermes não parece ser um mito que faz questão de "marcar posição",

conquistar os territórios do "inimigo" ou assumir novas missões. Ao contrário, é um mito

que serve incondicionalmente, que aceitou a de-missão ou a de-posição das armas para

acolher o outro, o diferente e o estranho. Enfim, re-ligar o céu e a terra.

Se Prometeu, o mito da modernidade estressada, representa o sacrifício

egocêntrico, Hermes, o condutor das almas, representa o sacro-ofício da alteridade.

Os artigos aqui publicados são como as hermas. Indicam caminhos. Mas não são

caminhos de espinhos ou de pedras, ao contrário, são caminhos numinosos que nos

levam suavemente para os castelos da anima-ação cultural, onde encontraremos os

jardins do (re)envolvimento humano, em temas tão díspares como os Jogos Cooperativos,

o Turismo, o Ócio, o Corpo, a Espiritualidade etc.

Os mitos de Apolo e Prometeu reinaram praticamente durante toda a

modernidade, estimulando nos homens a necessidade de “progredir”, de se

“(des)envolver” de seus instintos básicos. Estes mitos, portanto, estimulam o desejo de

lutar contra as forças da natureza e promovem nos homens uma visão belicosa do

mundo.

Curiosamente, no momento que tais mitos parecem entrar em crise na alma

humana, sobretudo após duas guerras mundiais (cujo cenário foi o continente “civilizado”)

e da tensão planetária promovida pela Guerra Fria entre os EUA e a ex-União Soviética, o

Dioniso profano, junto a Narciso e Adonis, aproveitaram-se desta brecha para ocupar a

alma dos mortais. Felizes, promovem o “irracionalismo” da mídia, expresso em nádegas

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Page 5: O mito de Hermes na pós-modernidade

flamejantes ou no prazer em consumir desenfreadamente. Encontram-se, ainda,

instituindo a corpolatria nas academias de ginástica e são frementes no reino das drogas

e da moda.

Felizmente, estes não reinam sozinhos. De forma gradual, Hermes também se

manifesta no mundo de hoje. Ele é o mito daquelas pessoas que valorizam a criação de

vínculos e de (re)envolvimento com a natureza; está também nas organizações

alternativas e nos cientistas que buscam criar tecnologias de baixo impacto, ou seja,

menos agressivas à natureza e ao meio ambiente. Está também naqueles que

redescobrem a espiritualidade ou o religare, pois Hermes é um deus psicopompo

(condutor das almas).

Assim é Hermes, um mito fraternal, brincalhão e meio infantil. Mas como já disse

WINNICOTT (1975), o brincar não é uma “regressão defensiva” como pensava a

psicanálise patriarcal e heróica, mas sim uma relação criativa e inventiva com o mundo

criado por Deus. Portanto, Hermes não é autoritário e fascinado pelo poder como Apolo e

Prometeu, nem belicoso ou determinado como Ares e Héracles, mas, nem por isso,

adepto do “irracionalismo” narcisista.

Hermes é o mito que nos acompanha nas páginas seguintes, mostrando-nos um

terceiro caminho entre o oferecido pelos mitos heróicos (predominantes em quase todas

as esferas da vida cotidiana) e aquele dos mitos irracionais e presenteístas. Hermes nos

apresenta o caminho do relacionamento, do estar-junto, da confraternização. Em suma, o

caminho da anima-ação cultural, ou seja, da ação cultural voltada para o aprimoramento

da alma (anima) através dos pequenos gestos do dia-a-dia.

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Page 6: O mito de Hermes na pós-modernidade

As chaves mythodológicas dos Jogos Cooperativos:

O dilaceramento de Dioniso e os vínculos hermesianos (re)envolvendo o sapiens1

Esta comunicação visa o estudo do movimento Jogos Cooperativos enquanto uma

práxis sócio-educativa (sociagogia) que, para ser compreendida e praticada, necessita ser

pensada a partir de uma nova bacia semântica. Os Jogos Cooperativos valorizam o

envolvimento humano, em suma, as características da polaridade "yin" do imaginário, o

"regime noturno de imagens" de Gilbert Durand.

Ao contrário dos jogos competitivos que se estruturam a partir das raízes

imaginárias e arquetípicas do imaginário diurno, portanto, que apontam para o

(des)envolvimento humano, os jogos cooperativos se apresentam como uma nova forma

de organizacionalidade dialógica e neg-entrópica na qual a disjunção e o isolamento -

fenômenos característicos do processo de (des)envolvimento - são substituídos pelo

acolhimento do diferente e do "estranho" - em outras palavras, pela alteridade vivida no

processo de (re)envolvimento humano.

Esta sutura nos leva, no plano arquetipológico, para novos mythos diretores, entre

eles Dioniso e Hermes. O arquétipo Dioniso, como sugeriu James Hillman (1997),

corresponde à consciência arquetípica do corpo e do vivido - que só pode ocorrer quando

a razão "solta as amarras". Em relação ao espaço, uma nova "consciência" se expande e

aquele deixa de ser apenas o espaço organizado ou produzido racionalmente para se

transformar em espaço vivido onde os contatos dos corpos, da sensibilidade, das

contradições se manifestam.

O dionisíaco costuma ser interpretado como algo inferior, efeminado, perigoso etc.

Esta é uma explicação unilateral que ganhou destaque com a dicotomia proposta por

Nietzsche entre as forças apolíneas e as dionisíacas. Porém, ela é a dimensão do estar-

junto ou da espontaneidade vital, importante para se criar vínculos comunitários, cooperar

e porque não, iniciar um processo de (re)envolvimento, após séculos de

(des)envolvimento e isolamento humano.

1 Comunicação apresentada no II Festival de Jogos Cooperativos (SESC Taubaté - 04 a 09 de

setembro/2001).

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Page 7: O mito de Hermes na pós-modernidade

Por sua vez, Hermes, o deus da Comunicação entre o Céu e a Terra, possui

complexos atributos, entre eles o de facilitar as trocas e os relacionamentos. A vivência

arquetípica de Hermes se dá quando aceitamos dividir nosso conhecimento com os

demais, quando aprendemos a ouvir o que pensam os outros e, com eles, também

aprender.

A abertura ao outro é o que nos permite uma vivência dialógica capaz de resolver

os constantes desentendimentos e contrariedades que enfrentamos na vida cotidiana.

Não é à toa que o dialogar é uma arte. Assim, a vivência arquetípica de Hermes nos

possibilita expandir nossa versatilidade e capacidade de adaptação ao mundo fenomênico

com mais tolerância. Em outras palavras, ao incorporar as imagens noturnas hermesianas

em nossas vidas, os nossos interesses sociais aumentam, assim como o desejo de

encontrar pessoas e de participar do que ocorre no mundo.

Estas são algumas das características desse mytho versátil, inteligente, polêmico

e inquieto que, em suma, são valorizados quando jogamos cooperativamente.

Assim, se Apolo, Hércules, Prometeu, entre outros mythos heróicos do regime

diurno de imagens, são os responsáveis pelo (des)envolvimento e pela competição, a

vivência da cooperação exige outros mythos, entre eles os de Hermes - que além de deus

da comunicação, é um criador de "vínculos" - e também o de Dioniso, cuja expressão

arquetípica é a descoberta do corpo e o dilaceramento do ego (individualismo) para a

necessária integração da pessoa em um plano maior ou comunitário.

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Page 8: O mito de Hermes na pós-modernidade

A dimensão hermesiana da cooperação2

Ao falarmos em cooperação, pensamos logo nas cooperativas de trabalho. Os

"progressistas" defendem as cooperativas como forma alternativa de gerar empregos ou

produzir, enquanto os "conservadores" as defendem como um meio para fugir das leis e

obrigações trabalhistas mais rígidas. Ambas as visões são compreensíveis, pois o

trabalho domina nossas mentes e corações há séculos.

Quem se lembra do radicalismo panfletário de Lafargue ao defender, no século

XIX, o direito ao ócio, criticando os sindicatos trabalhistas que reivindicavam apenas o

"direito ao trabalho"?

Mas, antes mesmo de Lafargue, Goethe, em "os sofrimentos do jovem Werther"

escrevia: "é uma coisa bastante uniforme a espécie humana. Boa parte dela passa seus

dias trabalhando para viver, e o poucochinho de tempo livre que lhe resta pesa-lhe tanto

que busca todos os meios possíveis para livrar-se dele."

Um desses meios é, sem dúvida, o Lazer. O sociólogo Jofre Dumazedier chegou

inclusive a escrever que o Lazer é uma forma de negar o Ócio. Portanto, dentro desse

raciocínio, podemos concluir que o Lazer é um neg-ócio. E isso a indústria do

entretenimento e do turismo soube e sabe muito bem como explorar para que possamos

nos livrar do "tempo livre".

Voltando, porém, ao tema da cooperação, podemos dizer que ela também possui

uma dimensão mais suave que transcende os planos materiais, abarcando metas mais

sublimes. A cooperação permite, por exemplo, o despertar de uma luz espiritual, ou seja,

manifestar o numinoso que se revela aos homens como dádiva suprema, pois, quando

alicerçada no mundo interior, a cooperação permite realinhar nossas vidas para metas

mais profundas.

Quando isso ocorre, a exterioridade da cooperação (sua manifestação

fenomênica) passa a ser obra de uma força cósmica, sobretudo, devocional, que se

manifesta na persistência e na tenacidade inerentes aos que trilham o caminho

hermesiano entre o céu e a terra, sem exageros ou fanatismos.

2 Artigo inédito, escrito em São Carlos no dia 15 de setembro de 2002.

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Page 9: O mito de Hermes na pós-modernidade

A cooperação, quando transcende a ótica economicista e materialista, se faz

perceptível através de uma vibração sagrada que permeia todo o nosso ser. E isso

acontece porque além dos grupos externos e visíveis, passa a existir também os grupos

invisíveis com os quais também cooperamos.

Assim, quando a cooperação com o mundo invisível (numinoso) se torna a base

de nossa existência, e uma vibração toma conta de nosso ser e se torna realidade em

todas as dimensões possíveis, podemos sentir a presença de Hermes tornando-se

efetiva/afetiva, irradiando-se de dentro de nós para o mundo exterior.

A energia de Hermes se manifesta também através de um cultivo e de um

desabrochar da disponibilidade de servir ao benefício de algo maior, um Todo que não

conseguimos mensurar, mas que o sentimos presente. Mas esse servir corre um certo

risco se não seguir uma outra lei: a do dar e receber, que falaremos mais adiante.

Quando a cooperação se processa através dessa energia suprafísica, podemos

perceber que nossas tarefas fluem com mais facilidade, como se tivéssemos adquirido

mais habilidade e disposição. É como se todo o Universo conspirasse para se atingir um

único objetivo. E, de certa forma, é o que ocorre. Não é ao acaso que cada planta ou

mineral se encontra em um determinado lugar. Eles estão dispostos através de um

arranjo cósmico que os faz irradiar uma vibração própria para o ambiente e deste

recebem novos impulsos, ou seja, se estabelece uma interação onde todos transformam e

são transformados.

Quando o principal objetivo da cooperação deixa de ser a obtenção de bens

materiais para se tornar o meio de contato com realidades mais profundas, a cooperação

pode se tornar uma forma de acender a centelha do divino na vida cotidiana. Mas essa

cooperação necessita de um tempo livre, especificamente de um ócio que permita a

interiorização e o contato com os mundos mais profundos.

Vou chamar esse ócio, provisoriamente, de sacerdÓcio. Esse ócio recolhedor que

permite uma comunhão com a realidade inefável, com o sentimento do sagrado que se

manifesta em nosso íntimo e que nos permite a harmonia que transcende aquela vivida

apenas pela via do trabalho e do materialismo ativo. É a libertação pelo silêncio.

Mas como o trabalho cooperativo pressupõe o grupo, temos que afirmar que este

também possui uma fonte interior que o sustenta. E é através da dimensão hermesiana

da cooperação que cada indivíduo (como elo importante, pois sem sua existência

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Page 10: O mito de Hermes na pós-modernidade

individual a corrente se parte) entrará em sintonia com o centro do grupo, despertando o

sentido de unidade do grupo e a capacidade de inter-ação de seus membros.

E aqui entra a lei do dar e receber que salientei anteriormente. O dar e o receber

pressupõem a troca, um saudável intercâmbio de energia. Porém, alguém poderia

perguntar: Hermes não é um mito servil? Sim. Ele é um mito que serve de forma

desinteressada. Outra pergunta: mas se ele serve de forma desinteressada, onde está a

troca?

A resposta está na sublime frase da oração de São Francisco: “... é dando que se

recebe”. A caridade, ou seja, o amor incondicional, é uma prática essencialmente

hermesiana que não podemos compreender por uma ótica materialista. De um ponto de

vista mais amplo, iremos nos aperceber que esse princípio numinoso possui uma

ressonância no qual, o dar e o receber, formam um só corpo.

Ao mesmo tempo em que estamos servindo de forma desinteressada, estamos

recebendo algo em troca, muitas vezes em dobro e, sem o saber, encontramo-nos

imersos na dimensão hermesiana da cooperação.

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Hermes e o ambientalismo3

N a edição nº 72 de Ecologia e Desenvolvimento, publicou-se um instigante artigo,

intitulado "Prometeu, um mito ecológico?", apresentando Prometeu como o mito dos

ecologistas. Apesar de muito bem argumentado, o artigo de Jorge Ferreira vem de

encontro às interpretações mitológicas dos mais representativos estudiosos do assunto,

como Joseph Campbell, C.G. Jung, Gaston Bachelard, Karl Kerényi e Gilbert Durand,

atualmente um dos mais respeitados estudiosos do imaginário e o criador da mitocrítica,

um método para o estudo e levantamento de mitos pessoais que, juntamente com a

mitanálise, um método para o estudo do mito de uma determinada sociedade, em um

determinado contexto histórico, formam as principais ferramentas de sua abordagem

mitodológica.

Em linhas gerais, todos esses autores pensam Prometeu como uma figura

mitológica que deve ser associada ao racionalismo exacerbado, ao gigantismo, à

imposição de valores e normas (as verdades absolutas). É sim um mito laborioso, mas

para explorar a natureza, para a criação de gigantescos complexos industriais etc. Nesse

sentido, é correto relacioná-lo à Modernidade, ao Iluminismo e ao Positivismo. Podemos

até identificá-lo em certas correntes marxistas, mas entre os ecologistas parece muito

difícil.

Nesse artigo, vou defender a idéia de que Hermes é quem mais se manifesta na

alma dos ecologistas. Apesar de ser mais conhecido como o mensageiro de Zeus e deus

dos ladrões e dos comerciantes, é um mito muito mais complexo e cheio de atributos,

como demonstrou Kerényi em um de seus profundos estudos sobre o mito. Um dos

atributos de Hermes e que para os ecologistas é fundamental, é o de criador de vínculos.

Podemos dizer que Prometeu é um mito (des)envolvimentista, aqui no sentido literal da

palavra, ou seja, que rompe, que separa ou dissocia o homem de tudo aquilo que o

envolve: a natureza, as emoções, a família, em suma, os elementos que compõem a

polaridade yin ou feminina da filosofia taoísta.

Hermes, além de ser filho de Zeus, é o pai de Pã (o todo, ou o símbolo da

natureza indomada e fértil, que costuma ser invocado pelos ecologistas quando dizem

3 Artigo publicado na revista Ecologia e Desenvolvimento, número 96.

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Page 12: O mito de Hermes na pós-modernidade

emocionadamente "é preciso pensar no todo, pensar holisticamente"). É curioso notar que

ao mesmo tempo em que o cristianismo nascia na Judéia, Plutarco escrevia sobre a

morte do grande Pã e, na modernidade, enquanto o pensamento analítico cartesiano

(des)envolvia a ciência da religião e da filosofia, a obra de Plutarco era resgatada pela

cultura humanista. Assim, não seria similar o movimento de contracultura da década de

1960, no qual o ambientalismo foi germinado? Não estaríamos diante do renascimento

contemporâneo de Pã, o filho de Hermes?

Em minha opinião, ao contrário de Prometeu, Hermes é um mito que envolve.

Lembremos que os primeiros locais de culto ao deus da comunicação foram nas

encruzilhadas onde eram colocadas as hermas, pilhas de pedras para indicar onde o

viajante estava e saber qual o caminho a seguir. Em suma, Hermes é o criador de

vínculos afetuais (ou religiosos, se pensarmos na expressão latina re-ligare) com os

lugares. Ele estimula a afeição pelo espaço vivido, a topofilia da poética do espaço de

Gaston Bachelard, aprofundada nos estudos fenomenológicos do geógrafo chinês Yi-Fu

Tuan.

É de Hermes também que vem a expressão hermenêutica, ou teoria da

interpretação, que dá nome a uma das correntes filosóficas valorizadas por vários

ecologistas para rebater a noção de verdade e os valores absolutos do Iluminismo. Outro

atributo importante de Hermes nos vem da tradição alquímica. Na infância, dizem,

Hermes teria reanimado um dragão morto e lhe dado asas. Se associarmos, na linha

sugerida por James Hillman, o dragão como um importante símbolo da imaginação,

podemos dizer que Hermes é o deus que dá asas à imaginação. Em relação à alquimia,

podemos dizer também que é um tipo de conhecimento diferente do cartesiano: além de

se colocar como um conhecimento de síntese, preocupa-se com a transformação integral,

coincidindo com os ecologistas na concepção da educação ambiental.

Mas é necessário não esquecer que um dos mais significativos "laboratórios"

alquímicos contemporâneos é a cozinha, e não conheço um ecologista que não aprecie

uma boa e saudável refeição, preparada a partir de legumes, ervas e outros produtos

cultivados de forma "ecológica". Na mitologia, Hermes costumava preparar banquetes

para os demais deuses. Essa aptidão para servir e recepcionar, relacionada ao elemento

Terra de Empédocles, é um forte atributo hermesiano.

E em relação à cor? É no mito de Hermes que iremos encontrar o predomínio da

cor verde, normalmente associada ao equilíbrio, como na teoria dos chakras, uma vez

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Page 13: O mito de Hermes na pós-modernidade

que é a cor do chakra 4, ou o chakra do coração para os tibetanos e budistas. Para os

adeptos da cromoterapia, o verde é uma cor relacionada à cura e não é por acaso que os

médicos adotaram o caduceu de Hermes como emblema, apesar de o mito estar muito

mais próximo das medicinas alternativas – ou complementares como se diz hoje em dia.

Aliás, há quem diga que o mito pessoal de Jesus Cristo, Buda, São Francisco de Assis,

entre outras figuras religiosas que mantiveram uma relação de equilíbrio com a natureza,

com as plantas e os animais foi Hermes. Em suma, podemos dizer que o mensageiro de

Zeus e amigo dos mortais é um mito fraternal, por isso preserva uma relação saudável

com a natureza e com a diversidade cultural.

Assim, não é um mito autoritário ou vingativo como Apolo, seu irmão. E também

não é um mito apologista do progresso a qualquer custo como o titã Prometeu. Podemos

dizer que Hermes é o mito daqueles que seguem a hermesiana frase de Schumacher:

"small is beautiful", ou "o negócio é ser pequeno" como foi traduzido em português.

Mas além do elemento Terra, Hermes está relacionado também ao elemento Ar,

por isso ele voa levemente e assim podemos afirmar que é um mito inventivo também, e

estará sempre se manifestando naqueles engenheiros que conseguem criar em escala

humana, projetando equipamentos e tecnologias de baixo impacto ambiental, que

consomem pouca energia, que utilizam material reciclável, que não poluem os rios etc.

Mas alguém pode me questionar sobre a mentira e o roubo, pois Hermes também

ficou conhecido como o deus dos mentirosos e dos ladrões. É verdade, mas essa é uma

faceta do Hermes infantil ou pueril, que, se pensarmos em termos psicológicos e no

processo de individuação junguiano, é algo que precisa realmente ser metamorfoseado

para a pessoa se adaptar, ou melhor, na linguagem acadêmica contemporânea, ser

incluída na sociedade; mas não precisa ser necessariamente superada, ela pode ser

canalizada para a criação artística e literária, onde ser um grande "mentiroso" torna-se

uma virtude. É por isso que normalmente as pessoas imaginativas em algum momento da

vida foram também grandes mentirosas. Um escritor que não saiba mentir saberá criar

narrativas e dramas maravilhosos?

Para encerrar, acredito que Prometeu é um mito que se encontra na UTI depois de

alimentar a imaginação do homem ocidental por tantos séculos, mas, no fundo, quem

mais orienta os passos e o coração daqueles que se envolvem com os quatro elementos

e com os segredos da natureza e da cultura, felizmente, é Hermes.

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Page 14: O mito de Hermes na pós-modernidade

Os atributos hermesianos podem ser encontrados em diferentes culturas, por

exemplo, nas figuras mitológicas de Mercúrio entre os romanos; de Merlin, na

mentalidade medieval; de Thot e de Osíris, entre os egípcios, e, por que não, em nosso

brincalhão e fecundador Boto, já levado às telas de forma tão encantadora.

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Page 15: O mito de Hermes na pós-modernidade

Fórum Mundial Social: evocando Hermes4

Quando leio e ouço críticas ou apologias à globalização lembro-me imediatamente

de Tifon, o monstro mitológico que tirava o sossego dos deuses. Tífon era poderoso,

gigantesco e horrendo. Seus pés eram bem cravados na terra, dando-lhe sustentação. Ao

mesmo tempo, seu corpo era tão grande que sua cabeça tocava o céu. Quando Tífon

abria os braços, eles alcançavam os extremos Leste e Oeste da Terra. Assim, acredito

que, arquetipicamente, quando procuramos analisar a Globalização, estamos também

manifestando nosso pavor ou cultivo de Tífon em nossa alma.

Neste artigo vou ficar ao lado do "Bem" e pensar Tífon como o "Mal" que deve ser

combatido. Assim, nesse contexto, os adversários de Tífon, todos os deuses do Olimpo

reunidos (já que Zeus não era capaz de enfrentá-lo sozinho) encarnam o "Bem".

Existem várias versões do conflito, mas, em todas, as descrições são terríveis.

Nestas narrativas a primeira batalha é apenas entre Tífon e Zeus, que, sozinho, tenta

dominar o enorme monstro. Zeus é derrotado e o monstro corta-lhe os nervos dos braços

e das pernas. Imobilizado e sem forças, Zeus é carregado para uma caverna. A

conseqüência dessa derrota é a desordem completa em todo o universo. Porém, para

resgatar Zeus e a ordem do Universo, alguns atributos foram essenciais: a astúcia, a

artimanha, a mentira, o engodo e a inteligência.

Esses atributos aparecem em vários deuses, mas, Hermes, o filho mais inventivo

de Zeus e que este escolheu para ser o seu mensageiro junto aos mortais (justamente por

ser o deus mais fratriarcal), é aquele que parece reuni-los contraditoriamente em si. E é

justamente Hermes quem consegue iludir o monstro e salvar Zeus, recuperando os

nervos do pai.

Vernant faz uma interessante análise política dessa narrativa mítica,

demonstrando que a crise de uma soberania estabelecida pode ser superada quando

"personagens secundários", aqueles que parecem não meter medo em ninguém, são

justamente os que detém as chaves e as "armas" para recuperar o "trono" perdido.

No Fórum Mundial Social, várias facetas do contraditório Hermes estavam

manifestas e, de certa forma, integradas: a do transgressor, a do criador de vínculos, a do

mentiroso e ladrão, a do comunicador, a do brincalhão, a do condutor das almas, a do

embusteiro, a do esotérico etc. Todas essas facetas de Hermes se abraçavam em Porto

4 Texto inédito, escrito no encerramento do II Fórum Mundial Social, na cidade de Porto Alegre.

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Page 16: O mito de Hermes na pós-modernidade

Alegre com um único objetivo: encontrar formas e caminhos diversificados, porém,

entrecruzados, para ludibriar o monstro poderoso que se apoderou da Terra e re-construir

a ordem, com mais solidariedade e cooperação.

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Page 17: O mito de Hermes na pós-modernidade

O que é Animação cultural?5

para Wagner Luques de Oliveira

Entre os "fantasmas" estudados pelo psicanalista Eugène Enriquez, acho que me

identifico mais o "transgressor". Talvez por isso, as regras - principalmente aquelas

criadas por mim - são freqüentemente transgredidas. Digo isso porque eu havia prometido

outros artigos na edição anterior da revista, mas resolvi de última hora mudar a minha

pauta e escrever sobre um outro assunto: "o que é animação cultural?", questão de um e-

mail que recebi no último dia 21 de junho.

Essa mudança de rumo, porém, tem uma forte "razão sensível" de ser. Ao ler a

mensagem, lembrei-me que, dois meses antes, no dia 21 de abril, durante o enterro de

meu pai no cemitério da Vila Alpina, em São Paulo, um primo que mora em Tupã/SP me

fez a mesma pergunta. Eu acho que não nos víamos havia 4 anos pelo menos.

Ao lhe dizer que estava lecionando no curso de "animação cultural" do Senac, ele

quis logo saber o que era isso. Quando eu lhe falei que animador cultural é o nome que

se dá para a pessoa que trabalha com grupos humanos, desde crianças a idosos,

organizando atividades sócio-culturais, espetáculos de teatro, exposições, shows,

gincanas e festas, entre outras, ele me disse com espanto: "então eu sou um animador

cultural?"

Ele está certíssimo. Desde que me conheço por gente, eu o via envolvido com

seus amigos imaginários fazendo caricaturas e quadrinhos, montando exposições (de

borboletas e outros bichos) dentro de sua casa; alguns anos depois, (des)envolvendo-se

na escola oficial, ele ainda organizava suas mostras de quadrinhos, torneios e outros

projetos que deixavam todos de cabelo em pé. Mais alguns anos se passaram e ele

conseguiu entrar no tão esperado e competitivo ensino superior. Além dos

importantíssimos trabalhos escolares, ele organizava toda a programação cultural e

recreativa de vários clubes na cidade, inclusive de clubes rivais.

Como Hermes, o deus da comunicação, ele conseguia fazer no âmbito da cultura

que houvesse diálogo entre os diferentes atores sociais. Atualmente ele continua fazendo

mil coisas ao mesmo tempo. Como o mensageiro dos Deuses, dificilmente encontra-se

parado: ou está voando no céu (imaginando sua próxima arte) ou correndo na terra 5 Artigo publicado originalmente na revista do Sarau, Julho de 2001.

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Page 18: O mito de Hermes na pós-modernidade

(concretizando seus devaneios). Assim, cria, trabalha e se diverte ao mesmo tempo.

Semelhante a um sábio zen, não sabe e não pretende distinguir Trabalho e Tempo Livre.

Em suma, a sua vida é o alimento de seu daimon que está relacionado com a missão de

fazer a comunicação e a cultura circularem aqui na terra.

Voltando, porém, ao dia 21 de abril, ele ainda me disse: "...mas eu nunca precisei

fazer um curso, eu sempre fui assim, você se lembra..."

E se me lembro! Eu acho que ele estava com 10 anos de idade (e eu com 6 ou 7)

na fase em que um não saía da casa do outro. Minha casa era como os jardins de

Epicuro, abertos para o prazer e a amizade. Assim, quando ele passava alguns dias em

casa, nós inventávamos jogos para lá de criativos. A sala de casa era uma bagunça

tremenda. No quintal que meu pai tinha no fundo do terreno, fazíamos cabanas em cima

de árvores ou armadilhas para gatos, entre outras maluquices que apenas as crianças

são capazes de imaginar. Por isso, como não se lembrar...

Mas como Cronos é impiedoso e os fios das Moiras foram tecidos para que nos

(des)envolvessemos em cidades diferentes, os nossos laços só foram reatados em um

momento de dor, em um momento que, por hábito, pede silêncio e introspecção. Mas

assim é a vida...

Acho que já falei demais e está na hora de responder a pergunta, não é mesmo?

Em suma, minha amiga, há pessoas que já nascem com o Dom do envolvimento e já são,

espontaneamente, animadoras culturais. É o chamado de seu daimon e não há como

fugir. É claro que um curso pode ajudar, e muito, a dominar os meandros burocráticos, já

que até o ócio hoje em dia é um campo para negócios, tanto que cresce

assustadoramente o número de "produtores culturais" atrás de patrocínio.

Para encerrar, vou dar uma dica para você que quer ser uma animadora cultural:

em primeiro lugar, nunca perca a espontaneidade que já nasceu com você. Se isso um

dia acontecer, o máximo que conseguirá ser é uma agenciadora de cultura e você ficará o

dia inteiro, 40 horas por semana, atrás de uma mesa cheia de papeis, contratos e projetos

ligando para grupos de teatro ou para produtores de shows musicais agendando data e

horário para um espetáculo.

Infelizmente, isso é muito pouco para quem pretende ser animador(a) cultural.

Você não acha?

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Page 19: O mito de Hermes na pós-modernidade

Turismo Fático: o prazer de estar junto6

Esta comunicação relata o resultado de uma pesquisa que visou compreender a

importância do "estar-junto" à toa (o fático) e o afetual na vivência do Tempo Livre,

sobretudo nos chamados "passeios de um dia", uma modalidade de turismo social muito

apreciada por pessoas idosas.

A revelação do fenômeno da "desimportância" dos lugares no turismo fático surgiu

a partir de uma entrevista com um idoso que freqüentava o Clube da Terceira Idade do

SESC, em São José do Rio Preto. A partir da descoberta do fenômeno, procurei a partir

da observação participante interpretar esta dimensão fática do Tempo Livre,

acompanhando diversas "excursões" organizadas pelo SESC.

É patente nesse tipo de passeio a importância que os grupos de amigos dão para

o encontro em si, deixando o local a ser visitado em segundo plano.

Tal constatação se assemelha às reuniões que os membros das tribos estudadas

por Malinowski costumavam fazer. Segundo este antropólogo, o grupo se reunia sem que

um compromisso pré-estabelecido ou uma missão importante fosse necessária. Era o

estar-junto o que importava. Esse fenômeno foi denominado por ele como uma

"comunhão fática".

Fazendo uma pequena homologia, podemos dizer que na sociedade

contemporânea uma das formas desta comunhão se manifestar está no "Turismo Fático".

Aqui, não são as atrações locais o que motiva o grupo, mas o simples prazer de estar-

junto. Nesse sentido, o retorno a um determinado lugar depende, sobretudo, se a

hospitalidade e o tratamento recebido criam laços de amizade.

Normalmente, locais cujo tratamento é muito "frio" e "racional" não costumam

agradar este tipo de turista. Em um depoimento, ouvi de um senhor que "já tinha perdido a

conta de quantas vezes visitou a colônia de férias do SESC" que viajava não para "ver o

que estava lá fora", mas para manter os "laços construídos lá com o decorrer dos anos."

A noção de fático

6 Comunicação apresentada no I Workshop de Turismo Urbano, no Departamento de Geografia da

USP, em maio de 2001.

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Page 20: O mito de Hermes na pós-modernidade

Para maior compreensão do que estou chamando de fático, vou apresentar duas

pequenas histórias. A primeira eu a ouvi na década de 1980 e, desde então, eu não parei

de reproduzi-la. A segunda foi fruto de uma conversa entre uma mãe e sua filha que eu

tive a sorte de escutar e de me encantar.

A primeira (que eu nunca tive o interesse em verificar se é verdadeira ou se é

"folclórica", pois são as suas imagens que me interessa), diz mais ou menos o seguinte

sobre uma eventual fábrica da Goodyear criada na região norte do país: quando a

empresa foi produzir pneus na região amazônica havia uma grande preocupação para se

empregar a mão-de-obra local.

O primeiro mês de funcionamento da fábrica foi maravilhoso. Aliás, ela funcionou

muito mais do que se esperava e, por isso, o gerente da unidade resolveu convocar todos

os seus subordinados do setor administrativo para discutir uma premiação para os

operários.

Depois de várias horas de discussão optou-se em dar um aumento salarial para

todos eles. Contas foram feitas e decidiu-se que seria um aumento de 100 % para os

"peões".

É claro que os trabalhadores festejaram e os diretores da empresa ficaram

também satisfeitos. Mas o melhor da estória vem a seguir. No segundo mês de

funcionamento, tudo correu maravilhosamente bem, dentro da rotina prevista, durante as

duas primeiras semanas. Neste período, nenhum incidente aconteceu; nenhum

funcionário faltou; todos estavam trabalhando satisfeitos e felizes.

Porém, ao começar a segunda quinzena, tudo se transformou. Naquele fatídico dia

nenhum funcionário apareceu para trabalhar, apenas o alto escalão da empresa,

recrutado entre os mais cogitados executivos da região sudeste.

Estes ficaram surpresos tentando compreender o que estava acontecendo. E logo

alguém teve a idéia de convocar para uma reunião o líder que havia sido eleito pelos

demais trabalhadores para representá-los. Na empresa criou-se um clima de curiosidade

e indignação entre os executivos. Todos ansiosos para saber a razão daquela paralisação

tão bem "organizada".

Na hora marcada para a reunião, o líder dos trabalhadores chegou e,

cordialmente, foi esclarecer o que estava acontecendo. Na reunião com os patrões, falou

com a sua voz mansa e pausada: "sabe o que é que houve...vocês vieram até aqui,

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Page 21: O mito de Hermes na pós-modernidade

montaram essa fabricona, deram emprego para todos nós. Isso tudo foi muito bom, sabe.

Depois vocês ainda deram um aumento de 100% para a peãozada e ficou melhor ainda

porque o primeiro salário já era muito bom para a gente tocar a vida. Por isso, quando

veio o aumento, nós pensamos o seguinte... veja bem... para ganhar o mesmo que antes,

agora a gente só vai precisar trabalhar quinze dias no mês e vai sobrar tempo para a

gente nadar, pescar, ficar com a família, brincar com os filhos ..."

É preciso esclarecer que a pessoa que originalmente me contou esta estória tinha

outro interesse, ou uma outra interpretação para a mesma. Ela queria demonstrar como o

brasileiro era um tipo "preguiçoso", "desinteressado", "hedonista" etc. e que não adiantava

investir no país porque com este tipo de gente nada "iria para frente". Eu, ao contrário,

sempre que a narro é para valorizar essa alma meio dionisíaca e meio hermesiana

brasileira, que não vive para o trabalho, ao contrário, trabalha para viver. E, aliás, que

trabalha demais e ganha muito mal, conforme demonstram várias pesquisas.

Um outra história muito elucidativa, e está é real, foi vivida por uma menina de sete

anos, na cidade de São Paulo. Filha de uma família de classe média, a menina ia para a

escola todas as manhãs e, no período da tarde, tinha a hora certa para a aula de inglês,

para a natação, para o balé etc. Um dia ela se virou para a mãe e falou: "mãe! quando eu

vou ter tempo para brincar?"

Com esses dois exemplos eu gostaria de manifestar essa necessidade do sapiens

para o estar-junto à toa, para a atividade "desinteressada". Ou seja, para a dimensão

fática do Tempo Livre.

Porém, o "fático" nem sempre foi pensado de forma positiva. O lingüista Roman

Jakobson, por exemplo, denominava com um ar jocoso a conversa sobre banalidades que

acontece, por exemplo, entre o motorista de taxi e o seu passageiro durante o percurso

da corrida como um exemplo de "comunicação fática". Habermas, um dos pais da Teoria

Crítica, escreveu um livro para discutir a necessidade de superação do fático para a

construção de uma "consciência crítica".

Nesta comunicação eu pretendo ressaltar a conotação não pejorativa do termo e

que aparece na obra do antropólogo Malinowski. Como já foi salientado, este antropólogo

classificava a reunião de membros de uma determinada tribo sem que um compromisso

pré-estabelecido ou uma missão importante fosse necessária de "comunhão fática".

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Page 22: O mito de Hermes na pós-modernidade

Este último sentido aparece também na filosofia de Nietzsche e de Heidegger,

como os encontros motivados pelo prazer de estar-junto. O fático, assim, caracteriza a

reunião, o agrupamento que independe da necessidade de discutir um assunto pré-

determinado ou sério, ou mesmo a necessidade de resolver um problema profissional

e/ou escolar.

Em suma, o fático representa os encontros livres da necessidade de produzir, de

transformar, de lutar etc., pois, o que motiva o estar-junto à toa, é a amizade entre as

pessoas. Ou seja, o afetual que cria o "cimento social" do grupo em questão.

Dentro dessa perspectiva, é que vou pensar, então, o turismo fático. E sua

vivência pode ser pensada em três dimensões singulares que podem ou não aparecer

relacionadas durante um passeio turístico: a motivação, os locais freqüentados e a

organização de alguns equipamentos para lazer.

Vou me deter nesta comunicação em sua primeira dimensão (a motivação). Esta é

facilmente percebida no âmbito do turismo social e na modalidade de viagens chamadas,

atualmente, de "passeios de um dia". Tais passeios são organizados por empresas,

clubes, associações de classe ou grupos religiosos.

A maior parte destes passeios possui uma dimensão fática bem caracterizada,

pois, normalmente, são grupos de amigos, particularmente de idosos, que viajam pelo

prazer de estar-junto. É o grupo reunido no final de semana o que realmente importa. O

resto será sempre lucro: visitar cavernas, centros históricos, áreas verdes, passear de

"Maria Fumaça" etc.

Até por esta dimensão fática ser importante, é comum em viagens de Turismo

Social o grupo visitar freqüentemente os mesmos locais. Assim, a viagem pode ser para

as "Serras Gaúchas", para a praia, para as "Cidades Históricas" ou para qualquer outro

local escolhido pelo agente de viagens ou pelo animador cultural.

Como já salientei, o que me despertou para este fenômeno da "desimportância"

dos lugares no turismo fático foi a conversa que tive certa vez com um idoso que

freqüentava um dos clubes da Terceira Idade do SESC, no estado de São Paulo. Eu

fiquei curioso para saber porque ele não se cansava de ver sempre as mesmas coisas, a

mesma cidade, as mesmas pessoas... mas, com a sua resposta, fui descobrindo que no

turismo fático o mais importante não é o que está lá fora, mas o que está ali bem ao lado:

os laços que o grupo constituiu com o passar dos anos.

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Page 23: O mito de Hermes na pós-modernidade

É preciso aqui fazer um pequeno esclarecimento. Não é minha intenção defender

que os profissionais do Turismo receptivo não devem se preocupar com o que vão

oferecer aos turistas. É claro que mesmo aquele que faz um turismo fático está também

disposto a observar os pássaros "mais bonitos do Brasil", passear nas "cavernas mais

maravilhosas" do estado, visitar o museu "mais antigo do país", tomar o "melhor chopp da

região", visitar e sentir a ambiência do local "onde a primeira missa foi rezada", entre as

miríades de atrações e simulacros que podem ser descobertos, inventados e vendidos

como "o acontecimento" que não pode deixar de ser visto em nossa curta existência e

passagem por aquele local.

O que apenas quero salientar é que nada disso substitui o valor da amizade para

quem faz turismo fático. Conheço histórias de pessoas que viajaram para o exterior

sozinhas e passaram praticamente toda a temporada de férias dentro do hotel onde se

hospedaram, apesar de saberem que "lá fora havia lugares maravilhosos" para se

conhecer. Mas faltava o essencial: o grupo de amigos capaz de motivar o passeio para

fora do "refúgio" em que se transformava o hotel.

Uma questão que me incomodava antes e que já me perguntaram diversas vezes

quando apresento este tema é a seguinte: por que, então, viajar? O grupo não poderia se

reunir ou se socializar em sua própria cidade?

A resposta é óbvia também. É claro que sim, e normalmente estes grupos também

se reúnem com freqüência na cidade onde residem. Mas, no caso particular de grupos de

idosos, o Tempo Livre proporcionado pela aposentadoria, eventualmente viver uma

situação sócio-econômica mais estável, entre outros fatores, permite ao grupo fazer estas

pequenas viagens com poucos pernoites ou os "passeios de um dia".

Uma outra questão que parece incomodar as pessoas é a seguinte: e por que

visitar a mesma localidade várias vezes? Falta de opção?

A resposta desta vez é não! E o segredo é o seguinte: como não são as atrações

locais o que motiva o grupo, mas o prazer de estar-junto, passa a valer muito a

hospitalidade, a forma como eles são tratados e recebidos na cidade. Ou seja, se no hotel

ou pousada onde os turistas "fáticos" ficarão hospedados e se na cidade visitada houver

uma ambiência afetual e fraterna, se eles forem tratados com respeito e dignidade, como

amigos e não como potenciais consumidores de quinquilharias, com certeza aquele lugar

ficará marcado no coração do grupo e novas viagens para lá eles farão. Caso o

tratamento seja frio, racionalista e o grupo perceber que todos ali estão apenas querendo

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Page 24: O mito de Hermes na pós-modernidade

sugar seus reais, então, podem esquecer. Não será lá que o grupo irá se reunir

novamente para comemorar o aniversário de um dos membros, o casamento do outro, o

namoro de "fulano" e "ciclana" e outros motivos, aparentemente banais, que escolhem

para enriquecer a viagem e apertar os laços de amizade ou os vínculos dentro do grupo,

sempre sob a benção de Hermes, o Deus amigo dos mortais.

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Page 25: O mito de Hermes na pós-modernidade

O direito ao son(h)o: abraçando a cidadania neg-ativa7

para Irene Cotrim, Fabio Brotto e Maria Angélica

Um poema asteco, cujo autor se desconhece, diz o seguinte: "que vimos a esta

terra para viver é uma inverdade: nós vimos apenas para dormir, para sonhar..." Por sua

vez, o respeitado mitólogo J. Campbell falava que "o sonho é uma pequena ponte

escondida nos recantos mais íntimos e secretos da alma(...) toda consciência separa,

mas, nos sonhos, assumimos a aparência daquele homem universal, mais verdadeiro e

mais eterno, que vive na escuridão da noite primordial. Lá, ele ainda é o todo, e o todo

está nele, indistinguível da natureza e despido de toda condição do ego".

Porém, no mundo contemporâneo não temos mais o direito de sonhar. Vivemos

apenas para a ditadura da vigília e do des-envolvimento e, em países como o Brasil, onde

as necessidades ainda se encontram no "chakra básico", precisamos "lutar" por uma

"cidadania ativa".

Como bem nos lembra o saudoso Betinho:

"cidadão é o indivíduo que tem consciência de seus direitos e deveres e

participa ativamente de todas as questões da sociedade. Tudo o que

acontece no mundo, acontece comigo. Então eu preciso participar das

decisões que interferem na minha vida. Um cidadão com um sentimento ético

forte e consciência da cidadania não deixa passar nada, não abre mão desse

poder de participação. [...] A idéia de cidadania ativa é ser alguém que cobra, propõe e pressiona o tempo todo. O cidadão precisa ter consciência

de seu poder."

A "cidadania ativa" exaltada na frase acima e defendida prometeicamente com

unhas e dentes por vários intelectuais, ONGs e por setores da mídia exige que o ser

humano se transforme em um super-herói. Ele precisa estar em vigília absoluta e nunca

pode relaxar, pois algo pode ser tramado em um momento de descuido. O cidadão ativo

necessita estar em alerta 24 horas por dia e, de forma paranóica, deve passar o tempo

procurando pêlo em ovo. E isso tem um preço: o cidadão ativo não pode sonhar, não

pode se libertar da ditadura da vigília, seja ele de "direita" ou de "esquerda".

7 Artigo divulgado em várias listas de discussão na internet em 2002.

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Page 26: O mito de Hermes na pós-modernidade

Eu, particularmente, como apreciador da obra de Gaston Bachelard, acredito que a

nossa duração (ou a nossa vida corporal, do nascimento à morte) não é feita apenas pela

vigília. Em seu clássico estudo, "A dialética da duração", Bachelard tece com a sua

elegância poética uma apologia do repouso e da descontinuidade (os momentos de

vazios). Eu acrescentaria também o devaneio, o lazer desinteressado e o ócio como

importantes em nossa vivência fenomênica e como direito do "cidadão", pois, para mim,

cidadania é importante quando está relacionada com qualidade de vida e eu não consigo

rimá-la com o estresse e com a paranóia.

A cidadania ativa é adequada para discurso político ou acadêmico, ou melhor,

para representações teatrais. Imaginem um espetáculo de teatro de rua, no centro da

cidade de São Paulo, e um ator com uma voz potente e dramática reproduzindo a frase

do Betinho. Deve ser emocionante ouvi-la. Mas é preciso conviver com a realidade, ou

seja, esta frase não pode ser levada ao pé-da-letra na vida cotidiana, a não ser por

poucos Hércules acostumados com a super-ação da condição humana.

Assim, apesar do respeito pelo trabalho realizado por Betinho e pelas campanhas

que organizou, gostaria de exercer o meu direito de discordar de sua noção de cidadania

ativa e propor uma outra para o debate: a de cidadania neg-ativa (leia-se negueativa) que

abraça o ócio, o sonho e a contemplação também como um direito essencial. E vou

pensar essa questão a partir do mito de Prometeu.

Quando Prometeu tentou enganar Zeus pela primeira vez, ardilosamente preparou

dois pacotes: no primeiro, envolveu os ossos descarnados de um bovídeo com uma fina

camada de gordura branca; no segundo, embrulhou as carnes no estômago do bicho,

formando um pacote asqueroso.

Zeus teve que escolher qual seria a parte destinada aos deuses e qual as partes

destinadas aos homens (criados a partir do barro por Prometeu e animados por Atena).

Sem saber o que continha os pacotes, Zeus escolheu o primeiro, ou seja, o mais bonito

na aparência, mas que apenas continha ossos. Resumindo a história, a parte destinada

aos homens passou a indicar que eles são mortais, que a sua vitalidade em suma, é

diferente daquela dos deuses, é uma sub-vitalidade como afirmou Vernant, pois precisa

sempre ser re-alimentada. Ao contrário dos ossos, que não se decompõem, a carne é

putrescível e assim, o caráter do homem, após essa divisão, é o de ser mortal e de se

esgotar após fazer esforços, sejam eles físicos ou mentais. A história de Prometeu, o

previdente, é mais complexa, mas para a nossa discussão podemos parar por aqui.

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Page 27: O mito de Hermes na pós-modernidade

Felizmente ou infelizmente, não somos como os deuses e nem como os heróis,

normalmente filhos de deuses com alguma mortal. Nós também não tomamos o leite de

Hera, como Hércules. Assim, não nos resta outra opção a não ser aceitar o ócio, o

repouso, e a desconcentração como fenômenos importantes e necessários para o homem

poder viver. Se a escolha de Zeus fosse outra, talvez a história seria diferente e, aí sim,

poderíamos mergulhar fundo na cidadania ativa.

Em suma, a cidadania ativa é fruto do "regime diurno de imagens" e está

relacionada com a mentalidade da luta, da transformação, do progresso, do futuro e,

portanto, aos mitos heróicos como Prometeu, Apolo, Hércules, entre outros. Paul Diel já

demostrou a importância e o caráter ético desses mitos, porém, em minha opinião, vividos

de forma unilateral, sem integração com as imagens do regime noturno (apaziguamento,

natureza, conforto etc.), ou seja, aos mitos de Dioniso, Hermes, Afrodite, Orfeu etc., não

resta dúvida que a única porta que se abrirá é a da esquizofrenia e da paranóia,

responsáveis, por exemplo, por criar tipos políticos como Hitler e Stalin, e também a

megalomania dos norte-americanos ou a organização e execução do ato terrorista do

último dia 11 de setembro de 2001, em Nova York.

Por isso, sem a cidadania neg-ativa jamais permitiremos que os elementos

essenciais que cultivam no sapiens o gosto pela festa, pela confraternização, pela

brincadeira e pelo envolvimento venham à tona, ou seja, a alegria de viver e a aceitação

incondicional do outro, com suas falhas e pré-conceitos, bem ao gosto de Hermes.

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Page 28: O mito de Hermes na pós-modernidade

“HERMES E A “PARTICIPAÇÃO MÍSTICA” DA COOPERAÇÃO8

Para Irene Cotrim e Suzana Menezes

"A sinfonia depois de explicada poderá ser uma sinfonia bem compreendida, mas de algum modo a música nunca mais parece a mesma."

Peter Lemesurier

Uma das questões que intrigaram os antropólogos por muito tempo foi a

adaptação das tribos primitivas às circunstâncias ambientais. Sem precisarem, por

exemplo, de livros, autoridades universitárias, escolas burocratizadas ou alta tecnologia

médica, os "primitivos" enfrentavam as doenças e a morte, encontravam alimentos,

abrigos e sobreviveram por milhões de anos. E, pelo que tudo indica, a chave dessa

habilidade para enfrentar a vida estava nos seus estranhos padrões de consciência que,

para o homem moderno, são praticamente incompreensíveis.

O filósofo e etnólogo Lévy-Bruhl conseguiu estabelecer algum parâmetro para

compreendermos estes padrões quando elaborou a noção de "participação mística", ou

seja, a forma de perceber a realidade sem divisões. Assim, começamos a compreender

que, para os "primitivos", o que era válido para o mundo da natureza, era válido também

para o mundo dos homens. Ou, então, que cada pessoa também trazia dentro de si seus

irmãos e irmãs. A partir dessa concepção é fácil entendermos o porquê da união tribal ser

a condição fundamental para a existência de cada um de seus membros.

Esse "paradigma" primitivo, felizmente, nunca se perdeu. Pode ser que foi jogado

para o fundo de algum baú pelo pensamento analítico ou pela progressão da consciência

humana, que des-envolveu o mundo interior e o exterior. Porém, associações simbólicas

que nos remetem ao mundo da participação mística podem ser encontradas no mundo

contemporâneo. E a cooperação é justamente uma delas, talvez a principal.

Assim, quando interiorizamos a cooperação como um sentimento, é como se

juntássemos alguns dos destroços da psique comunal. A cooperação, dessa forma, é um

símbolo da mente consciente que nos permite restaurar parte de nossa antiga unidade.

8 Artigo composto em 03 de março de 2002, na cidade de São Carlos/SP e difundido pela internet.

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Page 29: O mito de Hermes na pós-modernidade

Ou seja, a cooperação é como uma sinfonia explicada que nos ajuda a compreendê-la,

mas a música que dela resulta não é mais a música original. É por isso que ainda

precisamos escrever, pensar e viver muito a cooperação, apesar de sabermos que toda

tentativa de explicação destrói aquilo que se pretende explicar.

Mas, no dia em que a cooperação se transformar em participação mística, teremos

finalmente escrito um livro em branco, já que as palavras - incluindo a própria palavra

cooperação - deixarão de ser importantes ou necessárias. A participação mística

manifesta-se de forma espontânea e inconsciente, como se os sentidos e também os

ruídos da razão fossem desligados.

Da mesma forma que as doenças não passam de símbolos (a febre, por exemplo,

comunica-nos que chegou a hora de descansar enquanto os distúrbios na garganta nos

dizem que há algo que não conseguimos engolir), a cooperação nos comunica que o

pensamento analítico apolíneo precisa ser refreado para que possamos reencontrar

Hermes dentro de nós, ou seja, o nosso caminho para a participação mística.

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Page 30: O mito de Hermes na pós-modernidade

O imaginário hermesiano da cooperação9

"um estado mental sempre precede a ação"

R.C. Barker

O antropólogo francês Gilbert Durand, atualmente uma das principais referências

quando o assunto é o "imaginário", identificou no sapiens três forças dinâmicas que

formam as bases arquetípicas de todo o pensamento e de toda a ação no mundo

fenomênico. Se isso já não fosse suficiente para o imaginário ganhar status acadêmico,

Durand ressalta que é através do imaginário que o sapiens encontra uma equilibração

antropológica para enfrentar ou diluir a angústia em relação ao tempo que passa e em

relação à consciência da própria morte. Em suma, nossa forma de pensar, sentir e agir

manifesta essencialmente nosso relacionamento com a lâmina da foice de Cronos que,

mais cedo ou mais tarde, todos iremos sentir o sabor.

Essas três bases arquetípicas, portanto, universais e encontradas em todos os

povos ou culturas, receberam de Durand as seguintes denominações: estrutura heróica,

estrutura mística e estrutura dramática.

A estrutura heróica do imaginário é aquela que se caracteriza, sobretudo, pelo

combate, pela dissociação, pelo enfrentamento. É a estrutura da discriminação, tanto

positiva como negativa. Essa estrutura parece ser a predominante no mundo moderno e

contemporâneo, sobretudo no Ocidente, influenciando significativamente nossa

linguagem, banal ou acadêmica. O conflito ou a separação aparece freqüentemente nas

palavras-chave da modernidade (por exemplo, na expressão desenvolvimento que, ao pé

da letra, significa “sem envolvimento”), e também nas expressões dos militantes políticos

(lutar, combater etc.) ou dos esportistas (adversário, meta, defesa, ataque etc.).

Não é à toa que a hipertrofia da estrutura heróica em nossa psique leva a uma

militarização do mundo e, como apontam vários psicólogos de linha junguiana, para uma

naturalização da esquizofrenia como norma de comportamento, uma vez que a

dissociação é sua força motriz. Podemos encontrar também a estrutura heróica do

imaginário manifestando-se fortemente através do chamado paradigma cartesiano, cuja

9 Publicado originalmente na Revista Trans, editada pelo Departamento de Educação da UEBA em 2002 e, em seguida, no Jornal Primeira Página, de São Carlos/SP.

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Page 31: O mito de Hermes na pós-modernidade

característica é a separação dos objetos em diferentes reinos ou dicotomias (corpo e

mente, natureza e cultura, entre outras).

O ativismo desenfreado e pouco imaginativo do Ocidente ou sua obsessão pela

grandeza (vide o W.T.C.) é interpretado por James Hillman, um psicólogo norte-

americano junguiano, como uma forma de enfrentamento e não aceitação da morte, das

emoções e da natureza.

Por outro lado, a estrutura mística do imaginário é aquela que se caracteriza pela

união, pela mistura, pelo envolvimento. Não é à toa também que essa estrutura do

imaginário predomina nas culturas orientais de onde surgem expressões como Yoga

(palavra do idioma sanscrito que significa integração), Reiki (expressão japonesa que

significa união da energia cósmica com a vital) e outras que procuram considerar não

mais a existência de dicotomias, mas a de polaridades dentro de uma única realidade.

Essa estrutura do imaginário também tende a predominar nas culturas não-modernas e foi

fortemente presente nas sociedades matriarcais.

No plano lingüístico encontramos, portanto, outras metáforas se manifestando: é o

tecer, o abraçar, o envolver que costumam ser expressos com mais ênfase quando há o

predomínio dessa estrutura. Segundo Yves Durand, psicólogo francês que criou um teste

projetivo denominado AT-9, depois da meia idade a estrutura mística do imaginário

começa a se manifestar com mais intensidade, tomando o lugar da estrutura heróica

marcante na primeira parte de nossas vidas.

Jung, por sua vez, já salientava que a segunda etapa do processo de individuação

não deixa de ser uma preparação para a morte. Essa mudança de sensibilidade foi

denominada com o nome de metanóia. Experiências de quase morte, segundo alguns

pesquisadores, também costumam provocar uma metanóia. Quando isso ocorre, a

natureza, a fragilidade humana, entre outros assuntos, passam a ser aceitos e vividos

pela pessoa que, com a mudança de sensibilidade, passa a cultivar uma relação mais

compreensiva com o outro e também com o sagrado.

No plano científico, essa estrutura do imaginário se manifesta com mais

profundidade naqueles que evocam o chamado paradigma holístico.

E a estrutura dramática? Esta, segundo Durand, é a mais difícil de ser observada,

pois não seria uma simples síntese das duas anteriores, mas a estrutura que possibilitaria

re-ligar as duas descritas anteriormente. Este re-ligamento, no plano científico, já havia

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Page 32: O mito de Hermes na pós-modernidade

sido assinalado por Edgar Morin e outros pensadores aos discutirem o chamado

paradigma holonômico, no qual a Parte é revalorizada por também conter o Todo.

Uma metáfora que poderia ilustrar a diferença entre essas três estruturas é a da

relação entre as árvores e a floresta. A estrutura heróica, que fundamenta nossa visão

militarista, ativa, desenvolvimentista, cartesiana etc., é aquela que, quando polarizada,

nos faz enxergar apenas as árvores isoladamente. Por sua vez, a estrutura mística do

imaginário, fundamentando uma mentalidade holística, quando polarizada nos leva a ver a

floresta ou as relações entre as árvores, porém, desaparecendo com toda a singularidade

de cada espécie. É o que Morin chamou de "redução pelo Todo".

Por fim, a estrutura dramática, uma estrutura "hermesiana" por excelência ou

contraditória (oximorônica segundo os pré-socráticos), é aquela que nos permite valorizar,

simultaneamente, as árvores e a floresta.

Dito isso, podemos pensar qual é a estrutura do imaginário que estimula a

cooperação e, de forma recursiva, compreender qual a estrutura do imaginário que é

valorizada ou expandida quando cooperamos.

Em minha opinião a cooperação está relacionada diretamente com a estrutura

dramática do imaginário. É fácil identificar, através da apresentação resumida acima, que

a competição é uma manifestação fenomênica essencialmente "heróica", pois valoriza a

luta, a destruição ou a derrota do concorrente, do adversário etc. Mas qual seria a

manifestação da outra polaridade, cultivada a partir da estrutura mística do imaginário? A

cooperação? Não acredito, pois, se assim fosse, seria necessário uma não aceitação da

individualidade como acontece nas sociedades tradicionais e estaríamos diante de uma

outra forma de reducionismo, a da redução pelo Todo, como já salientamos.

É claro que é possível notar aqui uma espécie de solidariedade, de vivência

comunitária, mas que parece funcionar muito mais na base da "cooptação" do indivíduo

pelo sistema instituído do que pela cooperação voluntária e involuntária pelo bem comum.

Assim, a cooperação, como um sentimento interiorizado e não apenas como

estratégia econômica, parece ser uma forma de expressão criativa da estrutura dramática

do imaginário e, portanto, uma forma hermesiana de ver, sentir e agir no mundo capaz de

cultivar uma formosa e densa floresta onde se é possível também se deslumbrar com a

beleza singular de cada árvore envolvida em sua trama.

.

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Page 33: O mito de Hermes na pós-modernidade

As sombras do trabalho voluntário10

Estamos terminando o Ano Internacional do Voluntariado e todos os meios de

comunicação demonstram que o mesmo foi um sucesso. Nunca se viu tantas pessoas se

solidarizando e ajudando o próximo. Isso me deixa mais tranqüilo para expor as idéias

que defendo nesse artigo, sem me sentir "culpado" ou um cruel e insensível crítico da

“solidariedade” que tomou conta do país.

O desejo de escrever esse artigo surgiu após participar de um evento acadêmico

em uma das mais importantes escolas particulares da cidade de São Paulo, em setembro

de 2001, mas, somente hoje, encontrei a "inspiração" necessária para tecê-lo.

Naquele evento acadêmico, enquanto aguardava para apresentar a minha

comunicação, fiquei interessado por um dos painéis que apresentava o trabalho voluntário

que os professores e alunos da escola sede do evento realizavam em uma favela do

bairro do Morumbi. O trabalho consistia em doar roupas, brinquedos e alimentos para os

favelados.

Em um primeiro momento, imaginei que aquilo era uma forma tradicional de

assistencialismo e também de evitar problemas futuros (assaltos, seqüestros etc.). Porém,

o que me chamou a atenção foi uma frase utilizada pela responsável do projeto, ao

encerrar sua fala: "solidariedade é terapia." E apresentava um neologismo: a

“volunterapia”.

Nesse momento, percebi que havia uma dimensão mais profunda por trás daquele

projeto. A impressão que ficou em mim após ler o painel era de que a noção de

volunterapia não seria muito saudável, nem para quem se solidariza, nem para quem

recebe a ajuda.

Como eu não tinha mais dados para continuar minhas reflexões, resolvi deixar o

tema de lado até que, hoje, dia 25 de dezembro, deparei-me novamente com este

assunto na matéria "Trabalho Voluntário cresce em Ribeirão", publicada no jornal A Folha

de São Paulo, em seu caderno regional distribuído na região de Ribeirão Preto.

10 Texto inédito, escrito no dia 25 de dezembro de 2001 (revisado em 3 de fevereiro de 2002).

33

Page 34: O mito de Hermes na pós-modernidade

Após ler a matéria, ficou evidente para mim que, em alguns casos, há muitas

sombras no trabalho voluntário. Vejamos alguns trechos que ilustram o que quero dizer:

"A maioria dos voluntários, que de alguma forma ajudam as entidades, dizem

acreditar que na maioria das vezes quem acaba sendo ajudado são eles e não as

pessoas atendidas pelos programas assistenciais."

"O maior retorno é o olhar de agradecimento das pessoas atendidas e a

oportunidade de estar mais tempo com a filha."

"A maioria dos voluntários entrevistados pela FOLHA começou a se dedicar ao

trabalho de apoio ao próximo depois de ter vivido dramas pessoais".

"A dificuldade de aceitar a trágica perda do filho e, posteriormente, a morte do

marido, a impulsionaram a realizar o trabalho voluntário".

"Ela diz acreditar que o retorno do trabalho na entidade serve como conforto".

"Acredito que o retorno que recebo pelo trabalho é maior do que a minha

dedicação."

Essas frases pinceladas no artigo trazem novas pistas para entendermos o que

significa a expressão volunterapia, praticada atualmente, e como ela não tem conexão

com a prática da caridade em seu sentido mais profundo e cristão.

Vamos procurar compreender essas duas práticas através de seus componentes

míticos. A volunterapia possui, nitidamente, um atributo prometéico. Ela é egoísta, ou

melhor, reforça o ego. Não há aqui sinal de ajuda desinteressada. Não é a benevolência,

a indulgência ou o perdão que motiva o ato, mas aliviar o próprio sofrimento.

No trabalho realizado pela escola particular paulistana, está patente a necessidade

de exercitar o poder e de manter um controle sobre o outro (os favelados), mantendo-o

longe e pacificado.

Nas entrelinhas do projeto nota-se o desejo de “doar coisas” ou “favorecer

pessoas” materialmente com o objetivo de proporcionar ao doador, temporariamente, uma

sensação de bem-estar, de poder ou até de vaidade pessoal. A pessoa que criou o termo

volunterapia foi muito feliz. Pois o que descrevemos acima não pode ser considerado

caridade (amor incondicional ou Ágape, entre os gregos). A caridade não consiste, em

34

Page 35: O mito de Hermes na pós-modernidade

primeiro lugar, em assumir e comandar sentimentos, decisões, bem-estar, problemas e

destino das pessoas.

Apesar de sua formação positivista, o sociólogo E. Durkheim formulou duas

noções que me parecem importantes para se pensar o que acontece no meio do trabalho

voluntário: a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. A volunterapia, no

sentido apresentado acima, demonstra que a abertura ao outro está ainda muito presa à

dimensão do ego e à necessidade de encontrar "conforto" ou de se curar de alguma dor,

sobretudo emocional.

Essa volunterapia vem de encontro com a filosofia de algumas escolas orientais na

qual a abertura e doação ao outro devem ser realizadas somente quando a pessoa está

se sentindo bem. E, ao contrário de esperar um agradecimento, essas filosofias de vida

defendem o contrário: é aquele que faz a doação quem deve agradecer pelo outro se

mostrar receptivo à sua ajuda, feita de forma desinteressada. Em minha concepção, isso

seria caritas.

Eu tenho a impressão que na volunterapia a abertura para o outro só ocorre

quando a pessoa se encontra em uma situação de vazio existencial e que, por isso, ou

precisa ser reconhecida ou necessita de algum retorno afetivo.

Isso me faz crer que, a solidariedade orgânica que Durkheim enxergava nas

sociedades não-modernas e que me parece mais saudável, é uma espécie de “trabalho

involuntário”, uma vez que a cooperação entre os seus membros acontece de forma

desinteressada e sem alarde. A lógica não é mais egocêntrica e, sim, ecocêntrica.

Por ser involuntária, ela também pode se manifestar de forma inconsciente, pois o

sentimento de respeito e amor ao outro está tão interiorizado dentro da pessoa que,

ajudar um outro membro da comunidade, é uma atitude natural e típica de pessoas

saudáveis, portanto, sem a necessidade de se exigir algo em troca, a não ser o bem-estar

de todo o grupo. Em suma, uma percepção sócio-espiritual muito mais próxima das

filosofias orientais que refletem, no plano arquetipológico, o mito de Hermes.

Enfim, se atualmente a solidariedade mecânica ou terapêutica é mais comum que

a solidariedade orgânica, isso deve ser um indício de que a modernidade como um todo

está doente, pois sua obsessão em des-envolver as pessoas, ou seja, em separá-las,

hierarquizá-las, oprimi-las faz com que a cura para a solidão moderna seja, de fato,

através do trabalho voluntário.

35

Page 36: O mito de Hermes na pós-modernidade

É claro que é melhor essa forma de solidariedade mecânica do que nada, mas não

é possível deixar de enxergar que ela contém um lado de sombra que precisa ser

"iluminado" por outros meios se quisermos, num futuro breve, viver relações de

solidariedade saudáveis, orgânicas e involuntárias, similares ao processo de respiração e

de funcionamento de nossos corações.

36

Page 37: O mito de Hermes na pós-modernidade

A horizontalidade da cooperação11

Boa parte dos meus artigos nasce dos insights que tenho na hora de responder

aos e-mails que recebo. Acho que isso é o que Buber chamou de vida dialógica, esse

confronto estimulante preferível ao silêncio reconfortante do monólogo.

A idéia que vou discutir nesse artigo surgiu a partir da troca de e-mails com uma

pessoa especializada em Jogos Cooperativos que, coincidentemente, também é

graduada em Geografia. Convivemos durante três anos na mesma faculdade

(1990/1992), mas, como os cursos da USP são muito des-envolvidos, fomos nos

conhecer - virtualmente - apenas agora, na segunda quinzena do mês de setembro de

2001.

Eu vou procurar aprofundar a minha noção de cooperação com base nessa troca

dialógica virtual. Quando eu fiz uma crítica à solidariedade (vide artigo anterior nesse

livro) eu não estava a descartando totalmente, mas tentando demonstrar que ela

apresentava uma face negativa e uma positiva. A primeira é sua relação com a

"caridade", uma forma de ajudar que pode ser resumida no famoso pensamento taoista:

"dar o peixe ao invés de ensinar a pescar". Muitas vezes o que se chama de solidariedade

são práticas que podem gerar, em alguns casos, dependência entre as partes, não se

estimulando a autonomia daquele que recebe a ajuda.

É claro que também não a descarto totalmente, pois há inúmeros casos de

pessoas que realmente não conseguiriam viver se não fosse através dessa forma de

ajuda e colaboração. Mas, na maioria das vezes, o que se percebe é o conformismo

predominando. Para exemplificar meu ponto de vista, lembro-me da época em que

lecionava em uma Faculdade particular em S.J. Rio Preto e orientava o trabalho de duas

alunas que queriam estudar como os moradores de uma favela imaginavam um projeto de

desfavelamento proposto pela prefeitura local. E elas conseguiram depoimentos

interessantes sobre a estigmatização vivida pelos moradores da favela, mas, em outros

depoimentos, ficava patente o desejo de continuar naquela situação para que a ajuda que

recebiam de diversas igrejas e de outros moradores não terminasse.

11 Artigo escrito no dia 29 de setembro de 2001 e enviado para a lista de discussão Jogos Cooperativos.

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Page 38: O mito de Hermes na pós-modernidade

Quem conhece meus artigos sabe que não sou a favor da máxima cristã "comer o

pão com o suor do trabalho". Não é isso o que defendo. Eu acredito que já seria possível

cada cidadão receber uma renda mínima, independentemente de trabalhar ou não, e

gastar seu dinheiro da forma que bem entender. Nossos antepassados (ou melhor, nós

mesmos, se pensarmos em termos de reencarnação) já trabalharam bastante por nós.

Por isso, o que estou criticando é a situação de dependência que esse tipo de “caridade”

é capaz de gerar.

Por sua vez, em um mundo tão des-envolvido como é o nosso, é claro que é

positivo acolher o outro e dar, mesmo por alguns instantes, algum conforto, ajuda

material, emocional, espiritual etc. para alguém que sofre e precisa de calor humano. Por

isso, eu coloquei, em outro artigo, que a cooperação incorpora a solidariedade, mas vai

além.

A cooperação, em minha opinião, pressupõe um componente político de

transformação social, não necessariamente via partidos políticos ou através da luta

armada, mas essa dimensão não pode ser esquecida. Sua utopia é a auto-gestão de

todas as esferas de poder, do micro-cosmos ao macro-cosmos, do corpo à gestão do

planeta.

Porém, houve um importante ponto de acordo entre nós: a horizontalidade que

caracteriza a cooperação. O que isso quer dizer? Na solidariedade ou no trabalho

voluntário, predomina uma relação vertical entre o que "dá" a ajuda e o que a "recebe". O

primeiro está sempre em uma posição superior, seja ela econômica, espiritual ou uma

outra qualquer. E esta ajuda pode ser legitimada através da busca da redenção com Deus

após a morte (faz-se caridade na terra hoje para se conseguir um bom lugar no paraíso

no futuro) ou para demonstrar que sua condição sócio-econômica é privilegiada etc. Não

importa qual seja a forma de legitimação, ela será sempre verticalizada.

Por outro lado, a cooperação, dentro de uma ótica libertária, será sempre

horizontal. Ambos ajudam e são ajudados. Ambos ensinam e aprendem. É claro que essa

troca não precisa ser necessariamente igual, mas a relação é sempre dialógica e des-

inter-essada, na linha sugerida por Levinas.

Mas este processo só é interiorizado na prática, no contato com o outro, des-

cobrindo suas riquezas ocultas. Este meu amigo virtual já cursou duas graduações e

trabalhou com lixeiros em Praia Grande sem que, em nenhum momento, precisasse se

colocar acima destes ou assumir egocentricamente que tinha uma "missão" a cumprir

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Page 39: O mito de Hermes na pós-modernidade

como se fosse um super-herói que vai emancipar os pobres "alienados" e "sofredores".

Para se cooperar não é necessário estar "iluminado", "armado" ou "lutar", mas agir des-

inter-essadamente.

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Page 40: O mito de Hermes na pós-modernidade

Cooperando com Hermes: para além do patriarcado e do matriarcado12

O insight para este artigo surgiu aqui, em Taubaté, no momento em que me

apercebi que ainda trago dentro de mim a velha polaridade Competição/Cooperação

como se a primeira representasse o nosso lado "yang" e, a segunda, a "yin". Participando

de diferentes dinâmicas, discutindo em grupos etc. comecei a me dar conta de que a

cooperação é, em suma, o "terceiro excluído" ou a síntese dinâmica entre a polaridade

yang e a yin. Ou, usando os termos do analista junguiano Carlos Byington, entre o ciclo

arquetípico patriarcal e o matriarcal.

Em minha opinião a visão de mundo patriarcal é, realmente, a grande propulsora

da competição. A vontade de impor a verdade para os demais, definir o que cada um

deve fazer e quando, estimular a competição para que vença o melhor e que apenas os

eleitos consigam superar os limites etc., são atributos típicos da mentalidade patriarcal.

Porém, notei que por cooperação muitas vezes eu estava entendendo a total

renúncia do eu para se dedicar exclusivamente ao outro, ou então, cooperar passava a

ser sinônimo de proteger o outro, sobretudo os mais indefesos. Essa visão realmente se

parece com o mito da grande mãe que protege seus filhotes. Ou seja, achando que estes

serão sempre frágeis e indefesos, ela se coloca no papel de protegê-los e assim faz tudo

por eles, tornando-os mimados e, de fato, dependentes. É o famoso não "sair da saia da

mãe".

Esta é uma leitura muito comum em setores da "esquerda" que resolvem fazer

tudo para salvar os oprimidos (atualmente, os excluídos), esquecendo-se muitas vezes de

perguntar aos "oprimidos" e "excluídos" se é realmente isso o que eles querem. Um caso

curioso aconteceu recentemente em uma cidade do interior do estado administrada por

um partido de esquerda onde a prefeitura fez um bonito projeto de transporte para

portadores de deficiência física sem consultar os maiores interessados. Como resultado,

no dia da entrega do serviço, os "deficientes" fizeram um protesto, pois o que a prefeitura

havia feito com tanta boa intenção, não interessava e não servia para eles.

Voltando ao festival, penso que a cooperação deve estar relacionada muito mais a

uma espécie de vivência andrógina para além do patriarcado e do matriarcado. Assim

como é o mito de Hermes. Foi interessante fazer essa discussão em um grupo que estava

12 Artigo escrito durante o II festival de Jogos Cooperativos, no SESC Taubaté, no ano de 2001.

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Page 41: O mito de Hermes na pós-modernidade

sentido o mesmo incomodo com a predominante visão matriarcal presente em diferentes

falas durante o evento.

Hoje eu penso que a cooperação se realiza no âmbito do "fratriarcal" e pressupõe

trocar, aprender com o outro. A cooperação deixa de existir quando os indivíduos se

anulam ou se tornam dependentes. E, dentro dessa perspectiva, ao cooperarmos,

estaríamos valorizando e ajudando a ser cultivado em nossa psique aquilo que Gilbert

Durand chamou de "imaginário dramático" e vivendo, arquetipicamente, o seu principal

mito diretor: Hermes, o mensageiro dos deuses e o re-ligador do Céu e da Terra.

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Page 42: O mito de Hermes na pós-modernidade

Tempo Livre e imaginário:

os mitos na formação de recursos humanos para o lazer13

Este painel apresenta os principais resultados de uma pesquisa realizada com o

objetivo de levantar as imagens simbólicas e arquetípicas manifestas nas "diretrizes para

a definição dos objetivos e missão do curso de Turismo", de várias faculdades e centros

universitários que oferecem este curso na região dos Grandes Lagos, no interior do

estado de São Paulo. Para a realização deste levantamento mitográfico, as bases teórica

e metodológica foram as contribuições antropológicas formuladas pela "Escola de

Grenoble", utilizando como principal heurística a mitocrítica proposta por Gilbert Durand, a

partir do levantamento e interpretação dos mitemas e dos ideologemas presentes nestes

documentos pretensamente racionais.

Até três ou quatro décadas atrás era uma grande heresia falar em ócio ou em

tempo livre. Os integrados e os apocalípticos, conforme definiu Umberto Eco (1998), só

conseguiam enxergar no trabalho a “esfera produtiva” e/ou a dimensão histórica

importante para a “emancipação da humanidade”. E nem é necessário citarmos a Bíblia,

muitas vezes utilizada para classificar o ócio e a preguiça como pecados no mundo

ocidental. Porém, como em um passe de mágica, a sociedade pós-industrial descobriu

que o ócio poderia, na verdade, ser um grande negócio. Ou seja, uma importante fonte

para acumulação de renda, criando, assim, a indústria do entretenimento.

Dessa forma vão surgindo, ano após ano, parques temáticos, resorts, clusters e

outras alternativas de “enriquecimento” do tempo livre da maioria e, simultaneamente, do

bolso da minoria. Este processo, porém, ajuda a inverter o significado mito-simbólico do

tempo livre e do ócio. Ou seja, o ócio sempre foi o território onde reinavam absolutos

Dioniso, Hermes e Orfeu, entre outros deuses menores. Era o êxtase do deus do vinho

que arregimentava multidões para festivais religiosos e/ou artísticos, para a vivência

“libertária” de praças, parques, montanhas e mares não civilizados; ou então, tínhamos o

deus da comunicação (e que também dá asas ao dragão da imaginação) “encarnando” a

alma dos organizadores de festivais de teatro amador, de música e eventos ecológicos

voltados para a criação de vínculos comunitários e, enfim, Orfeu, capaz de sensibilizar

até os animais extremamente ferozes, intumescia seus dedos em sua cítara e trazia um

13 Painel apresentado na UNICAMP, durante o simpósio Políticas Publicas de Lazer, em 2001.

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Page 43: O mito de Hermes na pós-modernidade

novo brilho à alma dos “animadores culturais” espontâneos que, no meio da massa

urbana, nos bairros, nos centros comunitários, nas igrejas, procuravam (en)cantar a vida

cotidiana local.

Hoje, porém, o ócio virou negócio, e não há mais espaço para amadores - ou seja,

para quem faz com amor. Até a “animação cultural” que até recentemente era muito mais

um “estado de espírito”, uma vivência, uma militância que emergia a partir da alma, hoje

se tornou área apenas para o especialista em entretenimento. Dessa forma, a

espontaneidade de Hermes, Orfeu e Dioniso tende a ser substituída pela aura iluminada,

porém burocrática, vingativa e autoritária do deus-solar Apolo.

Lembremos que na mitologia grega, todas as ilhas temiam que fosse sobre elas

que sua mãe Leto viesse a dar à luz o novo deus. Foi preciso muito esforço para

convencer a pobre ilha de Delfos que Apolo não a destruiria e que, ao contrário, iria

enchê-la de riquezas assim que nascesse. A ilha aceitou, mas sem muita convicção.

Outra narrativa nos conta que, no mesmo dia em que nasceu, Apolo matou a serpente-

dragão Píton (símbolo da imaginação, do inconsciente, do irracionalismo).

Para adentrar no domínio arquetípico das políticas de recursos humanos para o

lazer, enfatizando no momento os cursos superiores de Turismo, procurei fazer um

levantamento preliminar de quais seriam os mitos diretores manifestados em diferentes

documentos, sobretudo nas “diretrizes para a definição dos objetivos e missão do curso

de turismo”, elaborados por diferentes faculdades e centros universitários no interior do

estado de São Paulo, a partir das teorias antropológicas do imaginário formuladas pela

“escola de Grenoble” e utilizando como heurística a mitocrítica durandiana.

A mitocrítica, de forma bastante resumida, consiste em identificar e interpretar os

mitemas (ou seja, a menor unidade significante em um discurso narrativo ou ponto forte e

repetitivo do mesmo) e os ideologemas (unidades significativas mobilizadoras de energias

semânticas em textos “racionais” e que podem ser interpretadas em seus traços míticos).

Neste sentido, procurei realizar uma leitura mitocrítica destes documentos

pretensamente racionais, escavando sua dimensão simbólica, e a conclusão que se pode

chegar é que a sociedade pós-industrial além de sua capacidade em transformar o ócio –

um fenômeno “improdutivo” e execrado por todos os lados – em um grande negócio,

possui novos mitos diretores.

Ouso afirmar que a mitologia, felizmente, nunca é superada. O que normalmente

se verifica no mundo da racionalidade é a formalização do discurso mítico em um discurso

lógico, mas todos os ingredientes (os atributos mythicos) permanecem e traem este

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Page 44: O mito de Hermes na pós-modernidade

discurso. Dentro dessa perspectiva, podemos notar que a preocupação contemporânea

em formar “recursos humanos” para o lazer não deixa de manifestar o desejo heróico de

super-ação contra o caráter dionisíaco e órfico que sempre permeou o ócio. Em suma, os

planos dos cursos superiores de Turismo foram pensados com o objetivo de destronar

Dioniso e Orfeu, para que Apolo e Hércules possam, respectivamente organizar o caos e

transformar em competidores os novos súditos do Tempo Livre, gerando não mais uma

“anima-ação cultural” (a ação cultural fruto da alma sensível), mas uma nova modalidade:

a “animus-ação cultural” (a ação cultural realizada sobretudo com a vontade e o

pensamento heróicos).

Domenico de Masi e seus colaboradores no célebre estudo “A sociedade pós-

industrial”, apresentam diferentes leituras sobre a sociedade contemporânea, porém,

alguns atributos dela são quase consenso entre os pesquisadores: ela exerce um poder

tutelar “absoluto”, “minucioso”, “metódico” e “previdente”. Em suma, podemos dizer que

estes quatro atributos da sociedade pós-industrial também são todos atributos do deus-

solar Apolo. Portanto, estamos vivendo ou caminhando (no caso dos países em

“desenvolvimento”) para uma sociedade cuja organização é tipicamente apolínea.

E estes autores vão além. Esta sociedade, como afirmam, estimula nos indivíduos

o “instinto de combatividade” e a “competição”. Ou seja, também atributos apolíneos, mas

que também podem ser encontrados em Ares (o deus da guerra) e em Hércules, o herói

determinado. Hércules é famoso por vencer na base da força e da coragem os enormes

desafios propostos por Euristeus, mas, por ser pouco sensível e atordoado por sua

descomunal força, mata sem querer um grande amigo e fere com uma flecha envenenada

o seu pedagogo Quíron. E, em um acesso de loucura, mata também seus filhos.

È importante lembrarmos também que Hércules, em um momento crucial de sua

“individuação” precisou optar entre ouvir a voz de Hedoné e a de Areté, ou seja, entre o

prazer e a virtude. Hércules, como os “heróis”, escolheu o caminho da virtude. Não estaria

nesse caminho de mão única, ou unilateral o seu problema?

E o que isto tem a ver com o nosso assunto. Em primeiro lugar, com a

sensibilização órfica e o ócio extático de Dioniso (comum na alma dos animadores

culturais formados espontaneamente e que não passaram por cursos de especialização)

desaparecendo na medida em que a instrumentalização racionalizante do Tempo Livre se

expande a passos largos e o “perfil desejado do profissional do turismo e do lazer”

assemelha-se aos atributos de Apolo – o deus solar – e de Hércules – o herói

determinado, o prazer e o fático deixam de ser as chaves da animação cultural.

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Page 45: O mito de Hermes na pós-modernidade

Felizmente a resistência a este imaginário excessivamente luminoso ainda existe e

deve ser valorizado em minha opinião, pois foi o que me levou a fazer este estudo

mitocrítico. Não são poucos os professores que transformam os alunos em bodes

expiatórios, os culpados pelo fracasso dos cursos. Ouvindo suas angústias, eu me

perguntava: isso é uma ação ou uma reação? Por que eles (os alunos) se comportam

dessa forma? Não vou nem entrar no mérito da didática do ensino superior, pois os

projetos pedagógicos e as “diretrizes para os objetivos e missão” dos cursos de Turismo

já são mais do que suficientes para obter as respostas que necessitamos.

Vejamos um pouco da dimensão mito-simbólica destes documentos. Em primeiro

lugar é o “imaginário da ordem” e os mitos racionalistas e determinados que são

valorizados. Os objetivos normalmente estão direcionados apenas para a “dimensão

cognitiva” dos alunos. Estes documentos são recheados por imagens diurnas do

imaginário tais como: “capacidade de pensar”, “expressar-se claramente”, “resolver

problemas”, “tomar decisões” etc. São objetivos dignos, se não fossem impostos a

pessoas que na maioria das vezes ainda nem completaram 17 ou 18 anos de idade.

Nestes documentos não se nota uma abertura à dimensão afetiva ou à

sensibilidade. Enfatiza-se sempre e de forma angustiada uma preparação para a

competição e à vida excessivamente vigilante, justamente o oposto do que as pessoas

normais pretendem fazer no Tempo Livre.

Em minha opinião, o comportamento inadequado dos alunos não deixa de

representar também uma resposta com forte carga simbólica e afetiva a este imaginário

solar que nem nos chamados cursos tradicionais é aceito integralmente. O aluno que

procura um curso de Turismo, normalmente é alguém com um intenso espírito de

aventura e envolvimento, que dão valor ao estar-junto e ao prazer hedonista, que mantém

ainda vivos em si as chamas da alma dionisíaca e órfica que aludimos anteriormente.

Como dizem alguns professores, pejorativamente, “o aluno de Turismo vem para a

faculdade para fazer Turismo”. Isso é verdade e é esta a chama que não pode ser

apagada nunca para que, no final do curso, ele possa ser um profissional-amador, ou

seja, alguém que faz Turismo com competência (Apolo), mas também com prazer

(Dioniso).

Vejamos agora o perfil desejado do profissional do turismo que estes documentos

pretendem formar. Podemos observar que são apenas os atributos heróicos de Apolo e

de Hércules que são importantes: “competência”, “eficiência”, “iniciativa”, “determinação”,

“liderança” e “persistência”.

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Page 46: O mito de Hermes na pós-modernidade

Em nenhum momento temos uma preocupação com a alteridade, com a

compreensão e respeito à diversidade cultural. Nestes documentos não há espaço para o

uso da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do próprio corpo para a aquisição de

conhecimento; não se estimula a tolerância, a cooperação e a solidariedade. Não seria

talvez isso o que os alunos reivindicam com sua transgressão em sala de aula?

O sociólogo do lazer e do turismo, Jost Krippendorf, aponta outros valores nos

jovens típicos da sociedade pós-industrial. Como diz, estes se orientam para o “tempo

livre, para a “experiência”, para o “prazer”, para o “presente”, para a “natureza e meio

ambiente”. Em suma, desejam uma “vida em que se tenha tempo de viver e também uma

vida mais humana”. Outros atributos que o autor apresenta em sua esperançosa crença

na juventude são: “criatividade”, “espontaneidade”, “fantasia e desabrochar pessoal”,

“espírito aberto ao imprevisto e à novidade”, “contatos humanos e espírito comunitário”,

“relações intensas com a família, amigos e conhecidos”, “experiência de grupos”,

“descontração e bem-estar”, “liberação de todas as coerções, capacidade de ficar

despreocupado”, “prazer e gozo em vida em vez de tédio e coerção da produção” etc. Em

suma, todos atributos que podemos associar a Dioniso, a Hermes e a Orfeu. Este último,

apenas por curiosidade, também seguiu os argonautas, mas para encantar e tornar

menos penosa aquela missão heróica, nunca para lutar.

A impressão que eu tenho ao interpretar estes planos é que se busca formar

jovens executivos e carreiristas ambiciosos para explorar o Tempo Livre, ou seja,

enriquecer no campo do ócio como negócio. É claro que existem muitos jovens com tal

mentalidade, mas não parece ser a da maioria que se inscreve nestes cursos.

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Page 47: O mito de Hermes na pós-modernidade

Ação cultural na terceira idade: Introdução à sociagogia do (re)envolvimento14

Este relato de experiência contextualiza um projeto de ação cultural realizado na

cidade de São José do Rio Preto, no ano de 1997, com o grupo da Terceira Idade do

SESC Rio Preto. O projeto teve por objetivo permitir ao grupo a manifestação do

sentimento topofílico (afeição pelo local) em relação ao município, construído através das

dores e sabores provenientes da experiência de vida.

Reservando parte do Tempo Livre proporcionado pela aposentadoria, o grupo

reuniu-se durante 5 meses e, no final do período, montou uma exposição fotográfica

contrastando imagens da cidade em 1927 e em 1997 que ficou a disposição do público

durante 30 dias, nas dependências do SESC Rio Preto.

Este projeto se transformou entre os anos de 1999 e 2003 em uma Tese de

doutorado, defendida junto à Faculdade de Educação da USP, em que, além da descrição

do projeto, foi realizada uma interpretação mitográfica das imagens expostas, buscando,

assim, a compreensão da dimensão arquetípica e simbólica que permeou o processo de

criação, a seleção de imagens e a montagem final da exposição. A base teórica para a

realização do trabalho e sua interpretação partiu da abordagem estética de Kant,

passando pelos pensadores neo-kanteanos como E. Cassirer e M. Eliade, por “pós-

modernos” como J. F. Lyotard e, também, por pensadores da Escola de Grenoble,

sobretudo, G. Durand e M. Maffesoli.

Sobre a exposição montada pelos idosos, tivemos, de um lado, fotografias

realizadas em 1927, publicadas no livro “Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto e

região” e, de outro, fotografias realizadas pelo fotógrafo rio-pretense Paulo Berton, em

1997.

O grupo de idoso foi formado por pessoas que iam ao SESC para preencher o

"tempo livre" de uma forma criativa, lúdica e alegre. Mas uma coisa era patente no grupo:

ninguém aceitava ser rejeitado, parcial ou totalmente. O grupo, apesar de heterogêneo do

ponto de vista sócio-cultural, com pessoas que apenas haviam feito o primário e outros

com curso superior, era muito coeso.

14 Comunicação apresentada no simpósio de educação de adultos. UFSCAR, novembro/2003.

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Page 48: O mito de Hermes na pós-modernidade

Confesso que, de certa forma, isso foi uma agradável surpresa para mim. Eu

imaginava encontrar pessoas mórbidas, pessimistas, fragilizadas e que passariam boa

parte do tempo narrando os acontecimentos trágicos de suas vidas. Possivelmente, o

trabalho social que o SESC realiza com os idosos (viagens, interação social e cultural,

participação em atividades esportivas e recreativas) ajuda, e muito, a criar o perfil de

idoso que encontrei em Rio Preto.

Nos meses em que trabalhei com o grupo, foi possível se aperceber das relações

de poder e de decisão nas resoluções internas para a montagem da exposição. Notei que

nunca houve a necessidade de se estabelecer um poder hierarquizado. As relações foram

sempre horizontais e interpessoais e o prazer em conviver de uma forma criativa e

interativa parecia ser mais importante do que as decisões que dali sairiam.

Em suma, poderia se dizer que tal processo de criação, colorido e sensual, em

outras palavras, capaz de permitir uma ludicidade espontânea ou fática, permitiu, através

da alegria e do prazer de compartilhar, uma verdadeira e real sensação de estar vivo e de

participar de um "grupo". O projeto conseguiu fazer com que todos os participantes

aumentassem sua capacidade de vazão e criação de novos rios de idéias e sentimentos,

os escoadouros do verdadeiro poder criativo e do imaginário.

Na tentativa de interpretar as imagens escolhidas pelo grupo para fazer parte da

exposição (foram escolhidas 24 fotos entre as centenas publicadas no livro), acredito ter

chegado à figura mítica de Hermes, uma vez que, este Deus, representa:

As trocas nas relações; a troca de conhecimento; a nossa capacidade de ouvir o

que pensam os outros e, com eles, aprender um pouco mais etc. Em suma, Hermes

simboliza o diálogo, o instrumento capaz de por fim aos desentendimentos e

contrariedades. Hermes nos lembra que falar e escutar são uma arte e que a versatilidade

e a capacidade de adaptação nos tornam mais leves e tolerantes. Com Hermes

aprendemos a multiplicar nossos interesses, criando uma série de oportunidades na vida,

encontrando pessoas, participando do que ocorre no mundo. Este Deus nos possibilita

integrar a luz e a sombra. E dessa polaridade surgem imagens que surpreendem e

encantam. Viver o mito de Hermes nos torna mais versáteis, polêmicos e inquietos. De

certa forma, o convívio com o grupo ajudou-me na expansão do Hermes que se escondia

dentro de mim, sobretudo, pelo caráter "irresponsável" do mesmo, mais interessado em

jogar e brincar com a vida.

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Page 49: O mito de Hermes na pós-modernidade

Trabalhar com a Terceira Idade exige uma mentalidade não-cartesiana, não

apolínea por parte do animador/agente cultural.

Hoje compreendo que o grupo, ao fazer de cada encontro semanal uma vivência

extremamente lúdica, afetiva e criativa, ajudou a dissolver a mente lúcida, efetiva e

crítica deste que agora escreve.

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Page 50: O mito de Hermes na pós-modernidade

Mapeando os novos templos de Hermes: Um estudo Mythodológico do Lazer15

Esta comunicação é fruto de um projeto de pesquisa e extensão realizado na

cidade de São José do Rio Preto (entre os anos de 1999 e 2000) e em São Carlos(2001),

que visava mapear bares e espaços culturais alternativos que apresentassem

características que remetessem aos atributos de Hermes, o deus da comunicação. O

objetivo era encontrar lugares que fugissem do padrão fast food, com refeições

pasteurizadas e ambientes artificiais.

Para a sua realização, procuramos inspiração na mithodologia de Gilbert Durand e

na psicologia arquetípica de James Hillman e a heurística utilizada foi a observação

participante. O trabalho realizado em Rio Preto envolveu alguns alunos de Graduação dos

cursos de Arquitetura e de Turismo da UNIRP (Centro Universitário de Rio Preto).

Em nosso levantamento constatou-se que a maior parte dos proprietários dos

estabelecimentos hermesianos não fez curso superior ou qualquer curso técnico de

gastronomia e/ou marketing. Tal constatação é um ponto importante para a discussão,

pois, possivelmente, é essa “carência” na formação de seus proprietários que permitiu

que tais estabelecimentos adquirissem características singulares, pois a intuição e a

imaginação de seus proprietários aparecem como as maiores aliadas e não a

racionalidade técnica dominante nos fast food, por exemplo.

Outra característica desses locais é a vontade de atender o “cliente” como um

amigo ou como “alguém da família” e, normalmente, essa foi uma das razões da criação

do estabelecimento. Como exemplo, citarei dois bares com tais características na cidade:

o “Bar do Gordo” e o “Bar do Aquiles”. Ambos possuem uma organização nada ortodoxa e

servem pratos característicos inventados por seus proprietários. O primeiro, localiza-se no

bairro Bela Vista, um dos mais tradicionais da cidade e foi criado por uma pessoa que

estudou até o segundo grau. Neste estabelecimento o cliente não pede bebida. Ele se

dirige até o fundo do bar onde encontra as geladeiras com cervejas, sucos e refrigerantes

– as únicas bebidas servidas no local. O cliente pega o que deseja, abre e a leva até sua

mesa. No final diz o que consumiu, paga e vai embora. Há uma relação de confiança

15 Comunicação apresentada no I Workshop de Turismo urbano organizado pelo Departamento de Geografia da USP, em 2001.

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Page 51: O mito de Hermes na pós-modernidade

mútua entre proprietário e clientes que desestimula qualquer tentativa de transgressão de

suas regras básicas.

Um outro local com características fáticas e hermesianas foi criado por um

aposentado, fã de pescaria, na garagem de sua casa. Seu Aquiles, o dono do

estabelecimento, tinha por hobby pescar nos finais de semana e preparar os seus peixes

para a família. Após se aposentar resolveu investir em sua paixão e montou o seu bar.

Na cidade de São Carlos, no interior de uma fazenda, existe um restaurante bem

hermesiano. O proprietário costuma ser visto preparando a carne em uma gigantesca

churrasqueira ou andando pelas mesas com seu famoso livro de "enigmas". Ele adora

fazer apostas com os clientes. Estes escolhem um tipo de assunto (geografia, história,

literatura etc.) e respondem algumas das quase 1200 questões de seu caderno. O cliente

quase sempre ganha, no final, uma garrafa de pinga fabricada no local.

Os estabelecimentos hermesianos exalam uma ambiência fratriarcal e, ao

contrário da alma apolínea que normalmente os cursos superiores de turismo e hotelaria

pretendem formar, favorecem a alma “renunciadora”. Ou seja, se associarmos a

nomenclatura do antropólogo Roberto DaMatta para os seus “tipos sociais”: o Caxias, o

Malandro e o Renunciador, com alguns atributos mitológicos podemos dizer que, o

primeiro (o Caxias) representa os adeptos da lei e da ordem, da organização burocrática,

do sacrifício pelo trabalho etc. (ou seja, um legítimo representante do mito de Apolo); o

segundo (o Malandro) é o oposto, ou seja, aquela pessoa que não quer “saber de nada”,

a não ser um bom futebol, cerveja, carnaval e folia (uma encarnação de Dioniso?) e,

finalmente, o terceiro (o Renunciador), que não se encaixa em nenhum dos extremos,

sendo um tipo social híbrido ou paradoxal, que não cultua a ordem estabelecida, mas cria

suas próprias regras, que gosta de viver bem, mas não nega o trabalho etc. (ou seja,

encarna um mito hermesiano).

Assim, temos em Hermes também um híbrido entre o “trabalhador” e o

“aventureiro” que Sérgio Buarque de Holanda apresentou em seu livro clássico “Raízes do

Brasil”.

Esta alma hermesiana presente nos três proprietários apresentados acima pode

ser percebida a partir dos seguintes traços que apresentam fortes indícios de serem

atributos de Hermes:

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Page 52: O mito de Hermes na pós-modernidade

• forte disposição para aceitar e introduzir mudanças, desde que a rotina de

tranqüilidade e apaziguamento não seja destruída ou alterada;

• manifestam em seus estabelecimentos, simples e nada sofisticados, um culto

às raízes e muita afeição pelo lugar onde se encontram (lembremos das

Hermas, os primeiros locais de culto ao deus da comunicação e que serviam

para criar vínculos);

• a valorização dos laços de amizade, um dos maiores atributos de Hermes.

É importante salientar que as pessoas que freqüentam tais “templos” hermesianos

em pouco tempo respiram esta ambiência e se encantam. Assim, dificilmente estão lá

para cultuar Apolo, ou melhor, demonstrar que possuem poder - seja ele político,

econômico ou jurídico; também não vão para cultuar Dioniso ou Narciso. Vão em busca,

justamente, desta ambiência fratriarcal e fática. Por isso é interessante notar a presença

de famílias inteiras e de pessoas que buscam espaços “alternativos”. Assim, não são

locais para se discutir assuntos importantes e nem para “galeras” que vão se exibir, mas

para se (re)envolver e se misturar.

É interessante notar que entre os atributos de Hermes esta a sua fama de

organizador de banquetes para os demais deuses. E esse atributo hermesiano também

pode ser notado nestes estabelecimentos, pois servir de forma afetual e sagrada é como

uma missão para quem possui Hermes como mito diretor.

Outra questão curiosa é a paixão de Hermes pela alquimia. E o que há de mais

alquímico no mundo de hoje senão o prazer em preparar e servir saborosos pratos? A

seleção do melhor tempero, o cuidado em escolher e cortar a carne e legumes, entre

outros rituais realizados sem a pressa e a correria dos fast food são as marcas de quem

possui uma alma hermesiana. Nos dois estabelecimentos que citei acima, o cliente não

pode ter pressa, pois a comida demora muito para ser servida. A refeição é preparada

lentamente, o dono (que é também o cozinheiro) conversa com os clientes, conta estórias

etc.

Abrir um estabelecimento com tais características exige um Dom que parece

nascer com a pessoa, e isto não se aprende em nenhum curso superior de turismo ou

hotelaria.

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Page 53: O mito de Hermes na pós-modernidade

Mostra do Redescobrimento: Um passeio arquetípico16

Na exposição sobre o Barroco da Mostra do Redescobrimento, uma exposição que

conseguiu mexer profundamente com a alma dos visitantes e que levou os críticos de arte

a discuti-la por várias semanas sem chegar a um acordo, podemos perceber que foi uma

das poucas exposições que conseguiu escavar nossa superfície e atingir nossos padrões

arquetípicos e nossos schèmes. Assim, para aqueles (público em geral e críticos de arte)

cujos schèmes de “ascensão” e de “separação” predominam na alma, em suma, as

características simbólicas do elemento Ar e Fogo, a exposição foi um horror. Porém, para

quem os schèmes da “descida” e da “mistura” são os predominantes, ou seja, que

correspondem à simbologia do elemento Terra e da Água, a exposição foi fruída com

êxtase.

Vou comentar alguns aspectos que me chamaram a atenção no dia em que fui

exatamente com o objetivo de observar e analisar o comportamento do público. Notei que

várias pessoas assim que chegavam na entrada da exposição e percebiam que teriam

que descer uma rampa em uma forte penumbra e rodeada por flores roxas, logo diziam:

“eu não vou entrar aí não!”. Nas palavras em itálico temos vários elementos tipicamente

noturnos: a descida, a penumbra e a cor roxa, considerada a cor do luto e também da

alma.

Outras enfrentavam o desafio da descida, mas lá no meio da exposição chegavam

a desmaiar e eram retiradas pelos seguranças locais. Em excursões escolares, vários

alunos depois de um tempo de visitação falavam: “quero sair daqui, não sei porquê, mas

não agüento mais ficar aqui dentro”. O contrário também pode ser observado. Pessoas

que assim que viam a exposição “mergulhavam fundo” em seu interior. Ficavam

encantadas com as “descidas” e “misturas”.

O que estava acontecendo? Por que reações tão díspares? A primeira vez que fui

visitar a exposição tive nitidamente a impressão de que estava entrando em um “labirinto”

ou em um grande “intestino”. Sobre a simbologia do labirinto, CHEVALIER (1997) nos diz

que representa um entrecruzamento de caminhos, muitos sem saída. Sua essência está

em retardar o viajante para que não chegue tão rápido ao seu destino (ao centro que

16 Artigo publicado no site sombras inefáveis, em 2001.

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Page 54: O mito de Hermes na pós-modernidade

deseja atingir). Penetrá-lo é como percorrer uma viagem iniciática, daí sua relação

também com a mandala.

Em algumas doutrinas místicas o labirinto tem a função de fazer com que o

iniciado concentre-se em si mesmo, em meio aos rumos das sensações, das emoções e

das idéias para voltar à luz sem se prender nos desvios das veredas. Ir e voltar do

labirinto simbolizaria a morte e a ressurreição espiritual.

A simbologia do intestino é similar. CHEVALIER (op. cit.) nos lembra que no antigo

Egito, nas cerimônias de embalsamento, as vísceras eram retiradas cuidadosamente e

encerradas em uma urna, enquanto os demônios e monstros tentavam se apoderar da

urna e dos poderes mágicos nela encerrada: os excrementos (ou a potência biológica

sagrada que residiria no homem e que mesmo depois de evacuada, poderia ser

aproveitada).

Este valor paradoxal do excremento, ou seja, de algo que pela aparência é

desvalorizado, mas que encerra muito valor, está presente na simbologia do intestino, que

tudo mistura produzindo a partir do excremento uma síntese daquele que come e daquilo

que é por ele comido. Em suma, contém e é contido pelas forças profundas e ocultas do

universo.

Percebe-se na simbologia do labirinto e do intestino e conseqüentemente também

na dos excrementos, uma valorização das imagens noturnas ou, em outras palavras, dos

schèmes da “descida” e da “mistura”, na linguagem de DURAND (1997), ou seja, da força

energética dos elementos Água e Terra. É bem provável que as pessoas que viveram um

certo sentimento de harmonia e encantamento diante das imagens vividas no interior da

exposição expandiram muito mais suas essências noturnas. E o contrário também pode

ser dito em relação às pessoas que sentiram asco e vertigem.

Para exemplificar a presença dessas forças energéticas na produção intelectual,

podemos citar, em relação ao tema dessa Tese, duas passagens reproduzidas do livro “O

futuro do trabalho”, de Domenico de MASI, nas quais os schèmes da separação e o da

mistura definem duas posições antagônicas em relação ao trabalho e o tempo livre. A

primeira citação, de cunho estritamente heróico e no qual o schème da separação é

nítido, é do empresário H. FORD:

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Page 55: O mito de Hermes na pós-modernidade

Quando trabalhamos, devemos trabalhar. Quando nos

divertimos, devemos nos divertir. De nada serve procurar misturar as

duas coisas. O único objetivo deve ser aquele de executar o trabalho

e ser pago por tê-lo executado. Quando o trabalho termina, então

pode vir a diversão, não antes.

A segunda citação é de um pensamento Zen. Neste, o schème da mistura é

valorizado:

Quem é mestre na arte de viver distingue pouco entre o trabalho

e o seu tempo livre, entre a sua mente e o seu corpo, a sua educação e

a sua recreação, o seu amor e a sua religião. Dificilmente sabe o que

cada coisa vem a ser. Persegue simplesmente a sua visão de

excelência em qualquer coisa que faça, deixando aos outros decidir se

está trabalhando ou se divertindo. Ele pensa sempre em fazer ambas as

coisas juntas.

A força e o papel dos schèmes (os elementos energéticos) em nossa psique, além

de unirem as dominantes reflexas às imagens (DURAND, 1997), por serem universais se

tornarão mais robustos e imponentes conforme os rumos de nossa bio-história, valores

culturais da sociedade onde nascemos e até, porque não, de influências cósmicas

relacionadas ao nosso mapa astral, já que temos os signos ativos (ou yang) e signos

passivos (ou yin), relacionados aos elementos Ar, Fogo, Terra e Água (os dois primeiros

como elementos simbólicos diurnos e, os dois últimos, noturnos).

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Page 56: O mito de Hermes na pós-modernidade

Bibliografia básica:

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_______________. Mito e sociedade. A mitanálise e a sociologia das profundezas.

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HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,

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MORAIS, Régis. Espiritualidade e educação. Campinas: CEAK, 2002.

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Page 58: O mito de Hermes na pós-modernidade

O autor:

Adilson Marques nasceu em São Paulo, capital, em maio de 1966. Taurino (terra) com

ascendência no signo de Aquário (ar), parece viver imerso nas relações antagônicas,

concorrenciais e complementares entre os enigmas do céu e as provações da terra.

Espiritualista, acredita na necessidade de buscar, diariamente, se aprimorar moralmente,

mas sem o sacrifício do corpo físico. Nesse sentido, sente-se mais à vontade diante da

religiosidade oriental do que das tradições religiosas do ocidente, no qual o corpo físico é

sinônimo de pecado e corrupção da alma.

Formado em Geografia pela USP, fez seu mestrado e doutorado em Educação, pela

mesma Universidade, especializando-se em Antropologia das Organizações e do

Imaginário. Trabalhou no SESC, em várias unidades da capital e do interior, além de ter

prestado assessoria para algumas entidades do terceiro setor na área da educação

comunitária e popular. Lecionou em faculdades particulares do interior. Foi professor da

disciplina Lazer e Território, no curso de pós-graduação em Lazer e Animação sócio-

cultural, no SENAC.

No momento é professor da UATI, Universidade Aberta da Terceira Idade, na cidade de

São Carlos, foi um dos sócios-fundadores da ONG Círculo de São Francisco – Instituto de

Animagogia, organização voltada para o estudo, pesquisa e prestação de serviços sociais

e terapêuticos, a partir de um enfoque transpessoal e holístico.

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