o mistério das proteínas

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O MISTÉRIO DA DAS PROTEÍNAS Chama-se folding de proteínas ao processo espon- tâneo a partir do qual uma cadeia linear de amino- ácidos adquire uma estrutura tridimensional biolo- gicamente activa. A compreensão deste fenómeno, considerada por muitos um dos problemas mais importantes da ciência actual, terá um grande impacto não só ao nível da saúde e do bem-estar humanos como também ao nível da ciência fundamental, na aprendizagem e aquisição de novas leis e conceitos da física dos sistemas complexos. Tendo surgido no contexto da biologia molecular, este problema é hoje claramente interdisciplinar, necessitando de ferra- mentas de várias áreas do conhecimento, e para o qual o contributo da física tem sido determinante. O objectivo deste artigo e mostrar como a utilização de metodologias da física, incluindo o recurso à simulação computacional de modelos simples, permitiu criar uma estrutura conceptual (a chamada “paisagem de ener- gia”) sobre a qual uma sinergia exemplar entre a teoria e a experiência tem gerado avanços muito significativos. PATRÍCIA F.N. FAÍSCA Centro de Física Teórica e Computacional da Universidade de Lisboa Av. Prof. Gama Pinto 2, 1649-003 Lisboa [email protected] http://alf1.cii.fc.ul.pt/~patnev Experiências in vitro: a hipótese termodinâmica As proteínas são robôs celulares, máquinas moleculares cons- truídas à escala do nanometro, capazes de executar de uma forma espontânea e programada todas as tarefas essenciais à manutenção da vida. Por exemplo, as enzimas aceleram reacções químicas que de outro modo seriam demasiado lentas, os anticorpos são moléculas responsáveis pela iden- tificação e eliminação de agentes invasores e as hormonas asseguram a transmissão de informação entre as células. Para que possa funcionar correctamente, cada proteína deve exibir uma estrutura tridimensional única que deter- mina a sua função biológica. É a chamada estrutura nativa, que emerge como produto final de um processo complexo envolvendo o enrolamento e a dobragem (folding, em inglês) da cadeia de aminoácidos que compõe a proteína, designada por estrutura primária. Christian Anfinsen foi Fig. 1 - Como determinar a estrutura nativa de uma proteína a partir do conhecimento da sua estrutura primária?

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  • O MISTRIO DA FORMA DAS PROTENAS

    Chama-se folding de protenas ao processo espon-

    tneo a partir do qual uma cadeia linear de amino-

    cidos adquire uma estrutura tridimensional biolo-

    gicamente activa. A compreenso deste fenmeno,

    considerada por muitos um dos problemas mais

    importantes da cincia actual, ter um grande impacto

    no s ao nvel da sade e do bem-estar humanos

    como tambm ao nvel da cincia fundamental, na

    aprendizagem e aquisio de novas leis e conceitos

    da fsica dos sistemas complexos. Tendo surgido no

    contexto da biologia molecular, este problema

    hoje claramente interdisciplinar, necessitando de ferra-

    mentas de vrias reas do conhecimento, e para o

    qual o contributo da fsica tem sido determinante. O

    objectivo deste artigo e mostrar como a utilizao de

    metodologias da fsica, incluindo o recurso simulao

    computacional de modelos simples, permitiu criar uma

    estrutura conceptual (a chamada paisagem de ener-

    gia) sobre a qual uma sinergia exemplar entre a teoria

    e a experincia tem gerado avanos muito significativos.

    PATRCIA F.N. FASCA

    Centro de Fsica Terica e Computacional da

    Universidade de Lisboa

    Av. Prof. Gama Pinto 2,

    1649-003 Lisboa

    [email protected]

    http://alf1.cii.fc.ul.pt/~patnev

    Experincias in vitro: a hiptese termodinmica

    As protenas so robs celulares, mquinas moleculares cons-trudas escala do nanometro, capazes de executar de uma forma espontnea e programada todas as tarefas essenciais manuteno da vida. Por exemplo, as enzimas aceleram reaces qumicas que de outro modo seriam demasiado lentas, os anticorpos so molculas responsveis pela iden-tificao e eliminao de agentes invasores e as hormonas asseguram a transmisso de informao entre as clulas.

    Para que possa funcionar correctamente, cada protena deve exibir uma estrutura tridimensional nica que deter-mina a sua funo biolgica. a chamada estrutura nativa, que emerge como produto final de um processo complexo envolvendo o enrolamento e a dobragem (folding, em ingls) da cadeia de aminocidos que compe a protena, designada por estrutura primria. Christian Anfinsen foi

    Fig. 1 - Como determinar a estrutura nativa de uma protena a partir

    do conhecimento da sua estrutura primria?

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    dos primeiros cientistas a interessar-se pela compreenso dos princpios fsicos envolvidos no processo de folding de protenas. Por que razo se dobra a protena para a estrutu-ra nativa? Por que nica essa estrutura? Estas foram duas das questes fundamentais para as quais procurou resposta durante toda a dcada de 1950. Com a ajuda dos seus alunos de ps doutoramento Fred White e Michael Sela, Anfinsen dirigiu uma srie de experincias que culminaram com a elaborao da chamada hiptese termodinmica (HT), trabalho que foi galardoado com o Prmio Nobel da Qumica de 1972. A HT baseada na observao de que o processo de folding ocorre de uma forma espontnea conduzindo, por isso, a um estado o estado nativo que o mais estvel (de mais baixa energia) do ponto de vista termodinmico. Por outro lado, Anfinsen tambm concluu que a estrutura nativa tem necessariamente de ser determinada pela sequncia de aminocidos (ou mais rigorosamente, pela totalidade de interaces entre os aminocidos que compem a protena) j que, para alm da prpria protena, no necessria a participao de nenhuma outra molcula no processo.

    Os resultados das experincias de Anfinsen foram o ponto de partida para um novo problema, para o qual ainda hoje procuramos uma soluo: como determinar a estrutura tridimensional de uma protena partindo apenas do conhe-cimento da sequncia de aminocidos que constitui a estrutura primria? claro que este problema (conhecido como protein folding problem) pode ser tomado como corol-rio da questo fundamental que consiste em compreender os mecanismos envolvidos neste importante processo biolgico.

    Folding de protenas: um problema importante

    A vida depende largamente da existncia e do funciona-mento correcto de uma quantidade enorme de protenas. s vezes, muitos dos processos celulares de controlo e regulao em que essas protenas esto envolvidas falham, ou porque o organismo no de todo capaz de as produzir, ou porque so fabricadas com defeito. Como a funo da protena depende estritamente da sua estrutura nativa, basta que esta ltima exiba uma pequena falha para que a protena passe a no funcionar correctamente. Patologias comuns, como a diabetes de tipo I e a hemofi-lia, ocorrem porque o organismo incapaz de produzir a insulina e o factor VIII, respectivamente. J certos tipos de cancro resultam da produo defeituosa de uma protena que participa na regulao da diviso celular, o factor p21Ras. Outras patologias, como as encefalopatias espon-giformes, entre as quais a BSE ou doena das vacas loucas, esto na origem de um processo de folding defeituoso do qual resultam protenas (na realidade, agentes infeccio-sos chamados pries) que, tendo uma grande afinidade entre si, se agregam para formar uma espcie de fibras. Estas fibras actuam sobre o tecido neuronal do sistema nervoso central e o desfecho pode ser dramtico. Estas patologias tm sido denominadas doenas dos tempos modernos porque resultam em parte da existncia de condies completamente novas, criadas pelas actividades desenvolvidas pelo homem, que so capazes de desafiar e pr em risco a homeostase (ou controlo) dos processos bioqumicos normais. A soluo para problemas deste tipo passa por sermos capazes de fornecer a protena em falta ao organismo, de uma forma artificial, ou por inactivar a protena infecciosa, atravs da administrao de uma droga para a qual a primeira tenha uma grande afinidade, quer de um ponto de vista estrutural quer energtico. Encon-trar uma droga que se encaixe numa certa protena da melhor forma possvel o um problema tpico no design de drogas. claro que se compreendermos a relao sequn-cia-estrutura, poderemos desenhar qualquer protena (ou qualquer outra droga que seja especfica para uma certa protena). Mas, para que isto seja possvel, precisamos primeiro de compreender a questo fundamental de como se processa o folding de protenas. frente veremos como que a fsica e o recurso simulao computacional tm tido um papel fundamental na elucidao deste processo.

    O paradoxo de Levinthal e os caminhos de folding

    Em 1968, Cyrus Levinthal, um fsico de formao que se converteu ao estudo da biologia molecular, levantou uma sria objeco ideia de que a procura do estado nativo possa ser feita de forma aleatria, tal como era sugerido pela HT. O argumento de Levinthal, simples e eficaz, baseava-se na seguinte experincia conceptual (gedanken

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    experiment). Consideremos uma pequena protena com 100 aminocidos e suponhamos que cada aminocido s pode estar num de dois estados possveis (por exemplo, s pode tomar duas orientaes diferentes). Nestas condies, a protena tem acesso a um total de 2100 1030 conforma-es, total esse que inclui obviamente a estrutura nativa. Como a molcula no pode passar de uma conformao para a outra em menos de 1 picossegundo (ps), que o tempo de uma vibrao trmica, seriam precisos 2100 ps, ou seja, 3,9 1010 anos, no mnimo, para explorar exaus-tivamente todo o espao conformacional e encontrar a conformao (que apenas uma!) correspondente ao estado nativo. Ora, acontece que esta escala de tempo da ordem de grandeza da idade do Universo, estimada em 1,4 x 1010 anos. Estamos assim perante um problema, j que o folding de protenas deste tamanho leva no mximo alguns segundos, e tipicamente ocorre na escala temporal do nanossegundo ou do segundo. A concluso que daqui se tira que a HT no consegue explicar a escala de tempo caracterstica do processo de folding de protenas.

    Por razes bvias, este problema ficou conhecido como o paradoxo de Levinthal e foi o prprio Levinthal o primeiro a sugerir uma soluo. Levinthal teorizou a existncia de um caminho de folding especfico (folding pathway), composto por vrios estados intermedirios um pouco semelhana do que se passa numa reaco qumica vulgar no fim do qual se encontra o estado nativo. No entanto, e ao con-trrio do sugerido pela HT, o estado nativo na proposta de Levinthal no corresponde necessariamente ao mnimo global da energia, no tem que ser o estado termodinami-camente mais estvel. Corresponde, isso sim, ao estado de energia mnima mais acessvel de um ponto de vista cintico.

    Como consequncia da proposta de Levinthal, a investigao experimental em folding de protenas at ao incio da dcada de 1990 foi em grande parte dominada pela procura de produtos intermedirios de folding suficientemente estveis para que pudessem ser isolados e devidamente caracterizados. No entanto, a descoberta em 1991 de uma pequena prote-na, com cerca de 100 aminocidos, que se dobra rapida-mente sem passar por quaisquer intermedirios, mostrou que a existncia de intermedirios estveis no de todo um requisito essencial para a rapidez do processo.

    A perspectiva clssica do folding de protenas baseia-se na dicotomia termodinmica versus cintica e na abordagem tradicional da bioqumica, que considera cada molcula um sistema nico, sendo por isso necessria uma descrio detalhada, escala atmica, do seu caminho de folding. Como veremos adiante, uma das contribuies mais impor-tantes da fsica para a compreenso deste fenmeno foi precisamente a de reconciliar as perspectivas de Anfinsen e Levinthal no quadro de uma teoria unificada, que se baseia na natureza estatstica do processo.

    Folding in silico 1: dinmica molecular

    De acordo com Christian Anfinsen, se conhecermos a totalidade das interaces que se estabelecem entre os tomos de uma protena, devemos, em princpio, poder prever qual ser a estrutura tridimensional adoptada pela cadeia de aminocidos que contm esses tomos. Mas ser fcil essa tarefa? De uma forma simplificada, podemos dizer que as interaces entre os tomos so de natureza electrosttica e quntica. claro que, dentro das interaces electrostticas, temos que distinguir vrias categorias (interaces de Lennard-Jones, de van der Waals, pontes de hidrognio, de solvatao com as molculas de gua, etc.). Uma protena como a hemoglobina, que transporta o oxignio aos alvolos pulmonares, contm cerca de 4000 tomos que podem, em princpio, interagir durante o processo de folding. Para todos os pares de interaco possveis ento preciso saber quanto valem os parme-tros de interaco correspondentes. O clculo rigoroso destas quantidades requer um tratamento quntico e no de todo trivial. Para alm disso, h que ter em conta que o resultado do clculo depende no s do tipo de tomo mas tambm do ambiente qumico em que se encontram os tomos participantes na interaco, o que gera compli-caes adicionais. Geralmente, este tipo de clculo faz-se no contexto das simulaes por dinmica molecular (DM). Trata-se de simulaes deterministas que modelam a protena como sendo um sistema newtoniano de N tomos ligados por molas. Para alm das interaces electrostticas entre os tomos, h ainda a considerar o clculo dos par-metros relativos s energias de alongamento, de toro e de dobragem da ligao qumica. Tudo isto implica o clculo de um nmero extraordinariamente grande de parmetros, que devem ser testados e refinados atravs de simulaes que reproduzam a dinmica do folding. Se o conjunto de parmetros for bom, a molcula, que na simulao lana-da numa conformao inicial arbitrria, dever ser capaz de encontrar a sua estrutura nativa ao fim de um certo tempo.

    As simulaes por DM so extremamente exigentes do ponto de vista computacional. Se pensarmos que precisa-mos de um dia de CPU para simular um nanossegundo do processo de folding, o que uma estimativa razovel tendo em conta as capacidades de clculo dos compu-tadores de que dispomos actualmente, se uma protena consumir 104 nanossegundos para encontrar o seu estado nativo, ento precisaramos de 104 dias de CPU, ou seja cerca de 30 anos, para simular o processo de folding na totalidade. Isto obviamente muito tempo para se esperar por apenas um resultado! claro que existem super-com-putadores capazes de simular mais do que um nanosse-gundo por dia e foi a eles que os dois cientistas americanos Yong Duan e Peter Kollman recorreram, em 1998, para fa-zerem a simulao por DM que ainda hoje considerada o estado da arte nesta rea. Estes investigadores simularam,

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    ainda que apenas parcialmente, o processo de folding de uma pequena protena com 36 resduos e doze mil tomos, na presena de gua, durante 1000 ns, o que correspondeu, na prtica, utilizao de quatro meses de clculo de CPU.

    Folding in silico 2: modelos de rede e o conceito de paisagem de energia

    Do que foi exposto anteriormente fica claro que se uma simulao por DM for bem sucedida, conduzindo a protena para o estado nativo, ento ficamos a conhecer a relao sequncia-estrutura para aquela protena especfica. Para qualquer outra protena, teremos que fazer um estudo semelhante se quisermos modelar as interaces reais entre os tomos que a compem. Apesar de ser importante, este tipo de estudo tem a desvantagem de no permitir identificar os princpios gerais (universais) envolvidos no folding de protenas, para alm de ser muito exigente do ponto de vista computacional. Para tal devemos recorrer a modelos muito mais simples do que os usados em DM, os chamados modelos de rede. Nestes modelos, a protena representada apenas pela cadeia principal de aminocidos e cada um destes por uma esfera que o identifica do ponto de vista qumico. As esferas ocupam os nodos de uma rede e as ligaes covalentes entre os aminocidos, ao longo da cadeia, dispem-se segundo as arestas desta rede (Fig. 2).

    Dentro da classe dos modelos de rede, o modelo H-P (em ingls, Hydrophobic-Polar), que um dos mais simples, tem como objectivo principal explorar o papel das interaces entre os aminocidos e as molculas de gua durante o processo de folding. Os aminocidos podem ser classi-ficados, de acordo com a sua afinidade para a gua, em hidrofbicos que no gostam de gua ou polares que gostam de gua. No que se segue, veremos que, at mesmo sem fazer qualquer simulao computacional, conseguimos perceber alguns aspectos importantes do problema do folding recorrendo a este modelo numa rede bidimensional. Uma diferena fundamental em relao aos modelos e simulaes por DM que neste caso no esta-mos interessados no detalhe escala atmica; a protena

    modelada simplesmente como uma cadeia de esferas de diferentes cores conforme a sua espcie qumica. No caso do modelo H-P, essas esferas so de apenas duas cores dife-rentes. Na Fig. 2 os aminocidos hidrofbicos so represen-tados a branco e os polares a preto. A energia de interaco, , entre aminocidos igual a zero, excepto entre pares de aminocidos hidrofbicos, para os quais vale -1. Alm disso, e como as ligaes entre os aminocidos ao longo da cadeia no se quebram nunca durante o folding, apenas as interaces ditas de contacto (a tracejado na Fig. 2) contam para a energia total de uma certa conformao, ou seja, de um certo arranjo geomtrico da cadeia de amino-cidos sobre a rede. A energia total de uma conformao assim a soma das energias de todos os pares de contacto que a conformao contm.

    Na Fig. 3 esto representadas cinco conformaes diferen-tes e as respectivas energias. Conformaes diferentes podem ter energias diferentes (como o caso de 1, 2, 3) mas tambm podem ter a mesma energia, por exemplo, 4 e 5. Quando duas conformaes diferentes apresentam a mesma energia dizem-se degeneradas.

    Para alm da degenerescncia, estes exemplos servem para ilustrar um fenmeno ainda mais interessante, o fen-meno da frustrao. Consideremos os aminocidos 5 e 7 e os seus vizinhos, nas conformaes 4 e 5, respecti-vamente. Em 4, o aminocido 5, que hidrofbico, est em contacto com o aminocido 8 da mesma espcie, numa interaco que favorvel a ambos, j que se trata de uma interaco que estvel do ponto de vista ener-gtico. J os aminocidos 6 e 7 no estabelecem qualquer interaco de contacto, e o aminocido 4 estabelece uma interaco de contacto neutra (com energia igual a zero) com o aminocido 1. Por outro lado, na conformao 5, de certa forma os papis invertem-se, e o aminocido 7 que passa a interagir favoravelmente com o aminocido 4, passando os aminocidos 5 e 8 a estar desestabilizados. Diz-se que existe frustrao, porque ao competirem entre si pelas posies que minimizam a energia de interaco com os seus vizinhos, os aminocidos no conseguem ficar todos igualmente estabilizados - no ficam igual-

    Fig. 2 Conformao de uma pequena

    protena (pptido) e parmetros de inte-

    raco no modelo H-P . Apenas as interac-

    es representadas a tracejado na figura

    do meio, contribuem para a energia total E

    da conformao representada, que E=-3.

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    mente satisfeitos com os seus parceiros de interaco - em conformaes que tm a mesma energia total. Ou seja, sem fazermos qualquer conta analtica ou simulao computacional o modelo H-P mostra que a degenerescn-cia e a frustrao so dois ingredientes fundamentais da energtica do folding [2,3].

    Chama-se paisagem de energia dependncia da energia na conformao, E=E(). Conformaes de baixa energia, ou mnimos locais, encontram-se separadas umas das ou-tras por barreiras de energia. A topografia desta paisagem de energia ser tanto mais acidentada quanto maior for a frustrao exibida pela protena.

    Um argumento simples mostra que, para uma protena com N aminocidos na rede quadrada, qualquer confor-mao fica completamente descrita por (N-2) graus de liberdade (que so os vectores que fixam a posio dos ami-nocidos) e que o nmero total de conformaes acessveis 3(N-2) [1]. Por exemplo, o peptdeo de 10 aminocidos representado na Fig. 3 pode apresentar-se em 38=6651 conformaes possveis (das quais apenas 5 esto represen-tados na figura), o que quer dizer que a sua paisagem de energia contm 6651 pontos. Mas esse nmero sobe para 398~6 1046 conformaes, se considerarmos uma protena com N=100. Se, em vez da rede, estivermos no espao contnuo tridimensional, que onde vivem as protenas reais, os graus de liberdade necessrios para descrever uma conformao - que neste caso passam a ser os compri-mentos e os ngulos de ligao - deixam de tomar apenas valores discretos para passar a variar de uma forma cont-

    nua. Daqui resulta que, mesmo para protenas pequenas, o nmero de conformaes a priori infinito e a funo E() toma valores num espao cuja dimenso ainda da ordem do nmero de aminocidos da protena. Todos os pontos desse espao, em vez de apenas um nmero grande mas finito, correspondem, em princpio, a conformaes possveis. Apesar desta diferena, tambm neste caso temos degenerescncia e frustrao, sendo os mecanismos que as explicam os mesmos que os do modelo discreto.

    Folding de protenas: a perspectiva moderna

    Resultados de estudos analticos e de simulaes computa-cionais com modelos de rede mostraram que as escalas de tempo biolgicas so apenas compatveis com frustrao mnima e que a topografia global da paisagem de energia deve ser em forma de funil. A largura do topo do funil reflecte o conjunto de todas as conformaes acessveis a uma protena no incio do folding. Estas so as conformaes menos estveis - de maior energia. possvel atingir o es-tado nativo partindo de qualquer uma dessas conformaes iniciais e percorrendo um dos muitos caminhos de folding alternativos. Cada um desses caminhos corresponde a um conjunto de conformaes diferentes, pelas quais a prote-na passa at chegar conformao nativa. medida que o folding progride, no s a energia das conformaes vai diminuindo, at atingir o mnimo global na conformao nativa, como tambm o prprio nmero de conformaes acessveis vai diminuindo at ser apenas um. Na realidade, a partir de certa altura, todas as trajectrias coalescem num

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    Fig. 3 Exemplo de cinco conformaes diferentes e respectivas energias.

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    caminho de folding nico, no final do qual se encontra o estado nativo (Fig. 4, esquerda).

    Na Fig. 4 (direita) mostra-se a paisagem de energia de uma protena real que foi determinada experimentalmente. Note-se que, neste caso, a protena dispe de trs caminhos de folding alternativos que conduzem todos ao estado nati-vo de forma diferente. A trajectria cinzenta a trajectria ideal; a que conduz mais rapidamente ao estado nativo. J a trajectria branca envolve a transposio da maior barreira de energia desta paisagem, o que consome mais tempo e conduz a um folding mais lento. Se seguir pela trajectria preta, a protena ver-se- a certa altura forada a voltar atrs, passando por uma conformao que est mais longe da conformao nativa, para s depois apanhar o caminho rpido, ou seja a trajectria cinzenta.

    Os conceitos de paisagem de energia e de funil de folding conduziram quilo a que se costuma chamar a nova pers-pectiva do folding de protenas, em oposio perspectiva clssica que, como vimos, opunha Anfinsen (e a termodi-nmica) a Levinthal (e a cintica). Na realidade, esta nova perspectiva reconcilia os pontos de vista daqueles dois cien-tistas. O estado nativo realmente o estado termodinmico mais estvel - o mnimo global da paisagem de energia - e a procura desse estado no aleatria, embora no exista apenas um nico caminho, como props Levinthal, mas sim vrios, muitos caminhos de folding possveis.

    A utilizao de modelos de rede simples e a nova perspecti-va do folding de protenas, que resultou largamente da aplicao destes modelos, foram sem dvida ideias que, nos ltimos dez anos, revolucionaram a nossa maneira de pensar no mecanismo do folding. Esta nova perspectiva, para alm de conduzir a interpretaes alternativas dos re-sultados experimentais clssicos, estimulou tambm, o que talvez mais importante, o desenho de novas estratgias experimentais que tm permitido, a pouco e pouco, des-

    vendar os detalhes destes complexos processos biolgicos. Na realidade hoje em dia j sabemos muita coisa (os mais optimistas diriam at que se calhar j sabemos quase tudo) sobre o mecanismo do folding de protenas pequenas [4]. O mecanismo do folding de protenas grandes, esse, ainda permanece um grande mistrio...

    Agradecimentos

    Este trabalho foi financiado pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia no mbito dos projectos SFRH/BPD/21492/2005 e POCI/QUI/58482/2004.

    Fig. 4 Ilustrao do conceito de paisagem

    de energia (esquerda) e paisagem de

    energia determinada experimentalmente

    (direita).

    BIBLIOGRAFIA

    1. P. F. N. Fasca, O mistrio da forma das protenas, O Cdigo Secreto: Descoberta dos padres da Natureza, Coordenao de Margarida Telo da Gama, Guilherme Valente, Ed., Gradiva, 2005, pp. 301-326.

    2. Hue S. Chan e Ken A. Dill, The protein folding problem, Physics Today 46, 1993, pp. 24-32.

    3. Hans Frauenfelder e Peter G. Wolynes, Biomole-cules: Where the physics of simplicity and complexity meet, Physics Today 47, 1994, pp. 58-64.

    4. P. F. N. Fasca e M. M. Telo da Gama, Folding of small proteins: a matter of geometry?, Molec. Phys. 103, 2005, pp. 2903-2910.