o melhor do mundo não são as crianças

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Nova, Livraria Almedina, n of Time in Portuguese», Universidade de Lisboa. rnitive Science, l, pp. 216- versity Press, Idiaca, Nova i P. Tedeschi e A. Zaenen çct, Academic Press, Nova O MELHOR DO MUNDO NÃO SÁO AS CRIANÇAS Luís PRISTA [O autor] morto, uma caligrafia quase ilegível, e eis-nos perante um problema permanente: será que não houve engano na decifração desta ou daquela palavra? E se o autor propôs várias for- mas, qual devemos escolher? Quando referências a pessoas, lo- cais, acontecimentos como interpretar com segurança? Serão sig- nificativos os erros, as evidentes trocas de um termo? Devemos mante-los ou corrigi-los? Torna-se assim necessário conhecer, «estar por dentro» do estilo do autor, mas também do contexto cultural e político da época, da ortografia utilizada, quase diríamos, do modo de produzir literatura. MARIA HELENA MIRA MATEUS Na epígrafe a forma entre parênteses rectos é generalização minha, que o parágrafo explicitava o caso de Eça de Queirós, quando — era 1981 todos tinham presente a polémica em torno da edição da Tragédia da Rua das Flores2. O exemplo de Eça abria o artigo, introduzindo as dificuldades 1 «Problemas linguísticos do texto literário», Palavras. Revista da Associação dos Profes- sores de Português, 2/3, 1981, pp. 49-53, p. 49. 2 Quem quiser lembrá-la pode guiar-se pela revisão em Ernesto Rodrigues, «A Tragé- dia da Rua das Flores: confrontos», Cultura literária oitocentista, Porto, Lello, 1999, pp. 267- -276.

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Page 1: O melhor do mundo não são as crianças

Nova, Livraria Almedina,

n of Time in Portuguese»,Universidade de Lisboa.

rnitive Science, l, pp. 216-

versity Press, Idiaca, Nova

i P. Tedeschi e A. Zaenençct, Academic Press, Nova

O MELHOR DO MUNDONÃO SÁO AS CRIANÇAS

Luís PRISTA

[O autor] já morto, uma caligrafia quase ilegível, e eis-nosperante um problema permanente: será que não houve engano nadecifração desta ou daquela palavra? E se o autor propôs várias for-mas, qual devemos escolher? Quando há referências a pessoas, lo-cais, acontecimentos — como interpretar com segurança? Serão sig-nificativos os erros, as evidentes trocas de um termo? Devemosmante-los ou corrigi-los? Torna-se assim necessário conhecer, «estarpor dentro» do estilo do autor, mas também do contexto cultural epolítico da época, da ortografia utilizada, quase diríamos, do modode produzir literatura.

MARIA HELENA MIRA MATEUS

Na epígrafe a forma entre parênteses rectos é generalização minha, queo parágrafo explicitava o caso de Eça de Queirós, quando — era 1981 —todos tinham presente a polémica em torno da edição da Tragédia da Ruadas Flores2. O exemplo de Eça abria o artigo, introduzindo as dificuldades

1 «Problemas linguísticos do texto literário», Palavras. Revista da Associação dos Profes-

sores de Português, 2/3, 1981, pp. 49-53, p. 49.2 Quem quiser lembrá-la pode guiar-se pela revisão em Ernesto Rodrigues, «A Tragé-

dia da Rua das Flores: confrontos», Cultura literária oitocentista, Porto, Lello, 1999, pp. 267--276.

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da fixação nas situações típicas da crítica textual moderna, para logo se real-çarem os problemas postos à edição de textos antigos. Após este enqua-dramento, apresentava-se um trecho da Vida e Feitos de Júlio César, com quedepois se ilustrariam os «problemas linguísticos do texto literário». Nessa lei-tura de passo da tradução portuguesa quatrocentista 3, Maria Helena MiraMateus não só explicava as decisões tomadas quanto à actualização da orto-grafia, salientando o que deveria escapar à modernização gráfica por repre-sentar a pronúncia à época, como desenhava um claro retrato dos traçosprincipais do português do século xv.

Assumida a troca do romancista por termo genérico, tentarei eu escrutinara citação. Segui-la-ei pergunta a pergunta, até confirmar o período finalassertivo, e para isso recorrerei a um poema dos mais conhecidos de Pessoa,«Liberdade».

Por ele começo, apresentando-o como o fixei em edição crítica recente(Poemas de Fernando Pessoa. 1934-1935, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa daMoeda, 2000) e pondo em rodapé as diferenças notadas na tradição impres-sa essencial (SN= «Um inédito de Fernando Pessoa», Seara Nova, n.° 526,11 de Setembro de 1937, p. 427; At. = Fernando Pessoa, Poesias, nota expli-cativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor, Lisboa, Ática, 1942, pp.246-247 [em expoente fica a menção da 2.a edição, de 1943, pp. 246-247,quando a lição discorde, nessa e nas seguintes, do primeiro texto da Ática];Ag. = Fernando Pessoa, Obra Poética, organização, introdução e notas de MariaAliete Dores Galhoz, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1960 4), sem marcar asdivergências por normalização da grafia.

3 Como se sabe, a tradução portuguesa do texto francês com a biografia de JúlioCésar foi objecto de edição crítica por Maria Helena Mira Mateus (Vida e Feitos de JúlioCésar. Edição crítica da tradução portuguesa quatrocentista de «Li fet dês romains», Lisboa,Fundação Calouste Gulbenkian, 1970, 2 vols.). O trecho que na revista Palavras exemplificavaos constrangimentos linguísticos da edição de textos antigos, do capítulo xv da terceiraparte, foi retirado de antologia organizada para a colecção «Textos literários» (Vida e feitosde Júlio César. Tradução anónima quatrocentista da obra francesa do séc. xin, Li fet dês romains,apresentação crítica, selecção, glossário e notas de Maria Helena Mira Mateus, Lisboa, Sea-ra Nova/Comunicação, 1980), com ortografia modernizada, «de modo a tornar a sua leitu-ra fácil a não especialistas, sem no entanto introduzir alterações que pudessem modificar oque se considera que deveria ser a pronúncia da época» («Apresentação crítica», pp. 15-48,p. 42).

4 Outras edições da (José) Aguilar ou Nova Aguilar que verifiquei foram a 2.a (1965)e a 8.a (Nova Aguilar, 1981), as que Maria Aliete Galhoz considera também reais edições(«A fortuna editorial pessoana e seus problemas: o caso da poesia», Fernando Pessoa, Men-

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O MELHOR DO MUNDO

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LIBERDADE

Ai que prazerNão cumprir um dever,Ter um livro para lerE não o fazer!Ler é maçada,Estudar é nada.O sol douraSem literatura.O rio corre, bem ou mal,Sem edição original.E a brisa, essa,

De tam naturalmente matinal,Como tem tempo não tem pressa.

Livros são papeis pintados com tinta.15 Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando ha bruma,Esperar por D. Sebastião,Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...Mas o melhor do mundo são crianças,Flores, musica, o luar, e o sol, que pecaSó quando, em vez de criar, seca.

O mais do que istoÉ Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finançasNem consta que tivesse biblioteca...

epígrafe: om.] (falta uma citação de Séneca) SN, At.2 (Falta uma citação de Sêneca)7: doura] doira At., Ag.

13: pressa.] pressa... At., Ag.

21: são crianças,] são as crianças, At., Ag.

sagem. Poemas esotéricos, edição crítica coordenada por José Augusto Seabra, Madrid, Archivos/

CSIC, 1993, pp. 216-225, p. 220). No que diz respeito ao poema «Liberdade», as 2.a e8.a edições em tudo coincidem com a primeira.

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E eis-nos perante um problema permanente: será que não houve enga-no na decifração desta ou daquela palavra?

Apesar do aparato crítico sob o poema, é útil agora percorrer uma auma essas variantes da tradição, poucas mas importantes.

As edições anteriores trazem uma epígrafe — falta uma citação de Séne-ca—, entre parênteses e em itálico (na Aguilar, em redondo e com maiús-cula). Neste caso idêntica à nossa foi a l.a edição da Ática, que também nãofixou a epígrafe, ao contrário do que depois ficaria nas edições da mesmacasa a partir de 1943. Quando nos detivermos na génese do poema, voltare-mos ao assunto, mas adivinha-se que a frase constituía nota para posteriorsubstituição pela verdadeira epígrafe, alguma frase de Séneca que o poeta viessea lançar ainda, afigurando-se despropositado manter essa indicação no textocrítico. Outro ponto que interessa reter, a variação entre primeira e posterio-res edições da Ática.

No corpo do poema há três divergências, ou duas divergências e meia,todas opondo lições da Ática e da Aguilar às nossa e da revista. Temos apontuação final do v. 13 (reticências contra o nosso ponto final) e, sobretu-do, o memorável verso 21 — «Mas o melhor do mundo são as crianças»(assim o fixam as anteriores edições em volume; e assim todos o recitam oulembram avulsamente) —, que na nossa edição sai sem o determinante— Mas o melhor do mundo são crianças —, como ficou na Seara Nova e, ver--se-á, como sempre Pessoa o escreveu.

(Chamo a atenção para a sintaxe do verso seguinte, 22, um verso sema mesma fortuna de citações e que se porventura acompanhasse o outrosempre invocado o tornaria menos liminar e, arrisco, menos popular. Trata--se da continuação do sujeito composto começado em «crianças», série quemitigaria o superlativo que todos temos atribuído às crianças. Esse esba-timento da prevalência das crianças é ainda potenciado por não haver afi-nal artigo: crianças, \ musica, o luar, e o sol, que peca \ó quando, emvez de criar, seca. Não é forçar a interpretação considerar que as criançasficam niveladas por flores, música, e perdem até para, esses com artigo, oluar e o sol.)

Falta a terceira divergência, que anunciei como meia divergência porquehaverá quem a considere abrangida pela normalização gráfica: doirar em vezdo dourar primitivo. Não é porém a minha opinião, pois que a moderniza-ção da grafia não implicaria tal troca. O original dactiloscrito já usava orto-grafia das menos antiquadas, ou arcaizantes, que há em Pessoa: «biblioteca»,«Cristo», «indistinta», «literatura», «crianças» — não bibliotheca, Christo, in-

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distincta, litteratura, creanças— e, sobretudo, «coisa», contra o costumadocousa 5. E, como se sabe, dourar é forma pelo menos não menos convencionadado que doirar è.

Desta tradição impressa mínima, a que alega ou admite leitura de origi-nais — entenda-se, decisões de fixação que não relevem, secundariamenteportanto, de outras edições —, podíamos ainda retirar a edição Aguilar, queparece ter-se limitado à leitura de Atiça. Pela Ática se guiaram também todasas publicações do poema, quando não já pelo derivado da Aguilar ou porfonte terciária. De resto, o texto é dos mais convocados para manuais esco-lares ou antologias de divulgação 7. Relanceando amostra destas publicaçõesescolares e para-escolares, vê-se que incluem a epígrafe, e por isso concluoque seguem uma das edições pós-1943, por certo às vezes em segunda mão.

Cumpre analisar à parte uma publicação que tem particularidades darama de derivados da Atiça, via Aguilar ou não, porém conjugadas com va-riantes que não se vêem na restante tradição impressa. O livro em causa, queadopta como título precisamente o verso famoso, apresenta ambiguidades deordem paratextual que o insinuam como fundado em fonte privilegiada, even-tualmente em testemunhos do próprio poeta. Reporto-me a O melhor domundo são as crianças. Antologia de poemas e textos (Lisboa, Assírio & Alvim,1998), de Manuela Nogueira, onde o poema «Liberdade» ocupa uma páginapreliminar e tem funções de epígrafe. Na sua primeira parte o volume reúnecatorze textos do poeta considerados de temática infantil 8. Segue-se uma

5 Ver-se-á que há diferenças de ortografia entre os dois testemunhos no espólio, sen-do mais moderna a do testemunho seguido na fixação. De qualquer modo, é doura queestá em ambos os testemunhos.

6 Cingimo-nos à ortografia, não estando em causa a questão da alternância ouloi napronúncia.

7 Na sua tese de mestrado, A antologia escolar no ensino do Português (Braga, Univer-sidade do Minho, 1987), Maria Sousa Tavares elenca os textos frequentes em antologias do7.° ano de escolaridade e do antigo 3.° ano liceal, de 1905 a 1979, e com relance depoisaté 1985. Num dos cânones que colige, relativo aos períodos posteriores ao 25 de Abril de74, «Liberdade» é o poema de Fernando Pessoa que os manuais mais seleccionam, e o 21.°entre os textos de todos os autores (em publicação parcial: «A transmissão escolar dos valo-res literários. Os textos consagrados», Fátima Sequeira, Rui Vieira de Castro, Maria deLourdes Sousa (orgs.), O ensino-aprendizagem do português. Teorias e práticas, Braga, Univer-sidade do Minho, 1989, pp. 91-124, a p. 118). Tenha-se em conta que os programas do7.° ano de escolaridade, ao contrário do que acontece em outros níveis de ensino, nemobrigam à leitura de textos de Pessoa.

8 Esta secção, pp. 9-29, sem nunca a citar usa bastante uma colectânea brasileira dedez poemas «que Fernando Pessoa escreveu pensando nas crianças»: João Alves das Neves

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distincta, litteratura, creanças — e, sobretudo, «coisa», contra o costumadocousa 5. E, como se sabe, dourar é forma pelo menos não menos convencionadado que doirar^.

Desta tradição impressa mínima, a que alega ou admite leitura de origi-nais — entenda-se, decisões de fixação que não relevem, secundariamenteportanto, de outras edições —, podíamos ainda retirar a edição Aguilar, queparece ter-se limitado à leitura de Ática. Pela Ática se guiaram também todasas publicações do poema, quando não já pelo derivado da Aguilar ou porfonte terciária. De resto, o texto é dos mais convocados para manuais esco-lares ou antologias de divulgação 7. Relanceando amostra destas publicaçõesescolares e para-escolares, vê-se que incluem a epígrafe, e por isso concluoque seguem uma das edições pós-1943, por certo às vezes em segunda mão.

Cumpre analisar à parte uma publicação que tem particularidades darama de derivados da Ática, via Aguilar ou não, porém conjugadas com va-riantes que não se vêem na restante tradição impressa. O livro em causa, queadopta como título precisamente o verso famoso, apresenta ambiguidades deordem paratextual que o insinuam como fundado em fonte privilegiada, even-tualmente em testemunhos do próprio poeta. Reporto-me a O melhor domundo são as crianças. Antologia de poemas e textos (Lisboa, Assírio & Alvim,1998), de Manuela Nogueira, onde o poema «Liberdade» ocupa uma páginapreliminar e tem funções de epígrafe. Na sua primeira parte o volume reúnecatorze textos do poeta considerados de temática infantil 8. Segue-se uma

5 Ver-se-á que há diferenças de ortografia entre os dois testemunhos no espólio, sen-do mais moderna a do testemunho seguido na fixação. De qualquer modo, é doura queestá em ambos os testemunhos.

6 Cingimo-nos à ortografia, não estando em causa a questão da alternância ouloi napronúncia.

7 Na sua tese de mestrado, A antologia escolar no ensino do Português (Braga, Univer-sidade do Minho, 1987), Maria Sousa Tavares elenca os textos frequentes em antologias do7.° ano de escolaridade e do antigo 3.° ano liceal, de 1905 a 1979, e com relance depoisaté 1985. Num dos cânones que colige, relativo aos períodos posteriores ao 25 de Abril de74, «Liberdade» é o poema de Fernando Pessoa que os manuais mais seleccionam, e o 21.°entre os textos de todos os autores (em publicação parcial: «A transmissão escolar dos valo-res literários. Os textos consagrados», Fátima Sequeira, Rui Vieira de Castro, Maria deLourdes Sousa (orgs.), O ensino-aprendizagem do português. Teorias e práticas, Braga, Univer-sidade do Minho, 1989, pp. 91-124, a p. 118). Tenha-se em conta que os programas do7.° ano de escolaridade, ao contrário do que acontece em outros níveis de ensino, nemobrigam à leitura de textos de Pessoa.

8 Esta secção, pp. 9-29, sem nunca a citar usa bastante uma colectânea brasileira dedez poemas «que Fernando Pessoa escreveu pensando nas crianças»; João Alves das Neves

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secção intitulada «O melhor do mundo...», explicitamente subscrita porManuela Nogueira, sobrinha do poeta, com memórias que a autora conservado tio, incluindo-se nos limites desta parte reproduções de alguns dos autó-grafos dos textos na antologia e mais iconografia. «Liberdade» está no rostoda folha a seguir ao frontispício, a p. 7, e todo em itálico. Há pouco nãoincluí no rodapé do poema as variantes desta edição Assírio & Alvim:

5: maçada,] maçada.7: doura] doira8-9: faz espaço interestrófico

9: corre, bem ou mal,] corre bem ou mal,13: pressa.] pressa...21: são crianças,] são as crianças,

22: o luar, e o sol,] o luar e o sol,

Ou seja, não publica a falsa epígrafe e incorre nas restantes lições variantesde Ática (w. 7, 13, 21), o que faria supor derivar da edição de 1942. Tenha-seporém em conta as outras quatro variantes (w. 5, 8-9, 9, 22).

As três variantes de pontuação são lições que correspondem às dodactiloscrito BN E3/118-54, testemunho A, que à frente descreveremos masque antecipo já ser anterior ao testemunho por que fixámos nós o texto, otestemunho B. Indiciariam essas divergências que Manuela Nogueira consul-tou autógrafo no mesmo estado desse testemunho A; também a ausência danota-epígrafe concorda com isso. Mas entretanto nem em todos os lugares

(org.), Comboio, saudades, caracóis, desenhos de Cláudia Scatamacchia, São Paulo, FTD,1988. (As informações a Alves das Neves as terá dado em grande parte Manuela Nogueira,como a própria alega — «O Melhor do Mundo são as Crianças. Entrevista com ManuelaNogueira», Extra Persona, 3, Nov/Dez de 1999, pp. 22-23, p. 22 — e, em matéria locali-zada, podemos nós perceber nas notas em Comboio. Ao aproveitarem-se as notas de Nevesem O melhor do mundo, a edição da Assírio usou de escrúpulo escolar ao fazer corresponderao discurso reportado do original brasileiro afirmações na l.a pessoa. Houve portanto auto--plágio, se assumirmos que os dados eram carreados pela sobrinha do poeta, acrescido deum hetero-plágio, o da própria estruturação a que o entrevistador obrigara a entrevistada.)Dez poemas transitam do livrinho de Alves das Neves: «À minha querida mamã» (Neves,p. 5; Nogueira, p. 16); «Havia um menino» (p. 7; p. 17); «A íbis» (p. 9; p. 18); «O carrode pau» (p. 11; p. 19); «Levava eu um jarrinho» (p. 13; p. 11); «Pia, pia, pia» (p. 15;p. 12); «No comboio descendente» (p. 17; p. 13); «O soba de Bica» (p. 19; p. 20); «PoemaPiai» (p. 20; p. 21); «Saudades» (p. 23; p. 28). A esta dezena juntaram-se «Eros e Psique»(p. 14), «Os Ratos» (p. 23), «A Fada das Crianças» (p. 25) e o único texto de prosa, «Erauma vez um elfo» (p. 26; «texto inédito e inacabado que estava na posse da família»).

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escrita porrã conserva; dos autó-:á no rostopouco nãodvim:

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dem às dosremos mas; o texto, oeira cônsul-ausência das os lugares

Paulo, FTD,xela Nogueira,com Manuelamatéria locali-otas de Nevesr corresponder

portanto auto-i, acrescido dei entrevistada.)namã» (Neves,18); «O carro

i, pia» (p. 15;). 20); «PoemaEros e Psique»de prosa, «Erafamília»).

de variação entre os testemunhos A e B o texto da Assírio & Alvim segue A— prefere lições de B nos w. 2,3, 19 (para não referir a assinatura, inexistenteem A) —, situação a que se ajustaria o uso de um autógrafo que incorporas-se algumas das modificações sofridas por A mas ainda anterior a B. (Pareceartificioso considerar que as três divergências de pontuação Ática-Assírioindependem da genealogia, explicando-se como erros introduzidos ou inter-venções de editor: no verso 22 estaríamos perante uma lectio facilior — ter--se-ia estranhado a vírgula após a copulativa — e as diferenças nos w. 5 e 9seriam lapsos de cópia que nem destoavam da má revisão de que padecetodo o livro.) Quanto ao espaço interestrófico discrepante inserido entre w.8 e 9, não é possível justificá-lo com algum autógrafo. Tomo-o antes comoindício de que se leu por exemplar da Aguilar, já que nesta edição o v. 8coincide com o final da página, o que a leitores menos avisados se afigurariafecho da estrofe.

Enfim, o texto na Assírio. & Alvim seguirá documento posterior aodactiloscrito A e anterior a B, mas a sua lição foi contaminada por consultade exemplar da Aguilar. Este cruzamento com o texto da casa fluminenseexplicaria o espaço interestrófico a mais, bem como as variantes comuns aÁtica (w. 7, 13, 21). Implica isto admitir, por exemplo, um contexto derevisão de provas em que, não se dispondo do testemunho até aí seguido, setomasse para guia a edição Aguilar. Não deixa de ser estranho que então sóse acolhesse parte da sugestão do novo original — o artigo antes de «crian-ças»; as reticências no v. 13; o falso espaço w. 8-9; a nova grafia para «dou-ra» — e não se corrigissem as outras diferenças. Sem grande confiança, arris-co que as lições que o revisor acolhe, e as que mantém, talvez representemem cada caso a solução mais «popular», mais comercial. Cenário que estaestranheza ajuda a recuperar, mas que também não nos satisfaz: O melhor domundo são as crianças teria seguido apenas Aguilar e as três variantes que sãocomuns ao testemunho A (w. 5, 9, 22) dever-se-iam ao acaso, vindas desimples lapsos ou lectiones faciliores da Assírio & Alvim; a ausência damnemónica da citação de Séneca seria também intervenção, por sorte boa(mas imposta pelo layout conveniente a uma página-epígrafe).

O autor j ã morto

Por pouco «Liberdade» não foi publicado antumamente. Ainda que es-crito já no último ano de vida de Pessoa, fora o poema entregue para publi-cação na Seara Nova, a qual se supõe aconteceria ainda antes do 30 de No-

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vembro de 35 se uma circunstância imponderada não tivesse sobrevindo.A peripécia foi explicada por Pedro da Silveira, logo depois do 25 de Abril,quando na Seara se publicaram quatro poemas de Pessoa anti-salazaristas(«Sim, é o Estado Novo, e o povo», «António de Oliveira Salazar», «Estesenhor Salazar», «Coitadinho» 9):

Hoje, é finalmente possível revelar-se a esse respeito o que antes de25 de Abril era de todo impossível. I I Pelo menos desde 1932, um dosjovens amigos de café de F. Pessoa era Manuel Mendes. Foi a ele que opoeta entregou o poema «Liberdade», acabado de passar à máquina, paraque, se assim o entendesse, e na Seara o quisessem, lá saísse. Quiseram;mas o lápis do censor, ante a última estância (O mais do que isto l EJesus Cristo, l Que não sabia nada de finanças l Nem consta que tivessebiblioteca...), embirrou com o terceiro verso dela: «... não sabia nada definanças». Entenderia o tropa que manejava o lápis que era uma alusãoa... Salazar. Só dois anos corridos outro censor deixou passar. 1 1 É esta ahistória, sem dúvida edificante, de Fernando Pessoa ter sido um «sea-reiro»... póstumo («Nota adicional» a Jorge de Sena, «Quatro poemasanti-salazaristas de Fernando Pessoa», Seara Nova, n.° 1545, Julho de1974, p. 20) 10.

Não o informa Pedro da Silveira na nota da Seara, mas sabe-se que nosarquivos da revista viu então a prova de granel do poema cortado pela Cen-sura n

Subscrevendo o poema, tanto a publicação em 37 na Seara Nova comoos testemunhos dactiloscritos trazem a data de «Liberdade»: 16-3-1935. Noentanto, a restante tradição impressa não informa desta data 12. Depois de

9 Nomeio-os conforme ficaram editados em Poemas de Fernando Pessoa. 1934-1935,onde são os textos n.° 308 (p. 221), 290 (p. 195), 291 (p. 196), 292 (p. 196).

10 A «nota adicional» não vem assinada, mas sabe-se ser de Pedro da Silveira; c£, porexemplo, José Blanco, Fernando Pessoa. Esboço de uma bibliografia, Lisboa, Imprensa Nacio-nal-Casa da Moeda/Centro de Estudos Pessoanos, 1983, p. 434.

11 João Rui de Sousa, «Fernando Pessoa e o Estado Novo», JL, jornal de letras, artese ideias, n.° 310, 14-6-1988, pp. 10-13, p. 13, n. 32, depreendendo-se a informação tersido prestada oralmente. Neste artigo já se transcrevia a «Nota adicional».

12 Na Ática não se anota no índice — e não vem sob o texto porque de qualquermodo essa era regra estabelecida pelos organizadores — a data do original, o que não cor-responde exactamente ao critério anunciado na nota explicativa de João Gaspar Simões eLuiz de Montalvor: «Quási todas as poesias inéditas são datadas. As demais, à falta de dataprópria, receberam a data da publicação onde viram a luz. Apenas porque nos pareceu

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O MELHOR DO MUNDO 225

sobrevindo.25 de Abril,ti-salazaristasilazar», «Este

i que antes de1932, um dosoi a ele que onáquina, parase. Quiseram;o que isto l Eisto. que tivessesabia nada derã uma alusãosar. II É esta asido um «sea-'uatro poemas>45, Julho de

e-se que nosdo pela Cen-

^ Nova como.-3-1935. No2. Depois de

wa. 1934-1935,196).

Silveira; cf., pormprensa Nacio-

il de letras, artesinformação ter

[ue de qualquero que não cor-

íaspar Simões e, à falta de dataue nos pareceu

escrita, passaram dois anos e meio quase exactos até que a poesia saísse naSeara de 11 de Setembro de 1937 13.

Os quatro poemas anti-salazaristas são também do último ano de Pes-soa: de 29 de Março, a normalmente referenciada como «sequência» ou «tri-plo poema» («António de Oliveira Salazar», «Este senhor Salazar», «Coitadi-nho»), e de rigorosos quatro meses depois, 29-7-1935, «Sim, é o Estado Novo,e o povo». Pelo menos um deles, «António de Oliveira Salazar», teve vogaclandestina antes de, muito mais tarde do que «Liberdade», os quatro textosconhecerem os prelos, ou as rotativas, em 1960 e no Brasil, a «tripla sequên-cia», em Portugal e em 1974, todos l4.

graficamente recomendável, retirámos as datas do texto do livro, reservando-as para o índi-ce» (p. 16). Se não pudéssemos acolher certo desvio ao que era estipulado na nota, ficariaassim estabelecido que Ática usou como original algum autógrafo em que não houvessedata sob o poema, como está nos testemunhos dactiloscritos que conhecemos. Além de quena própria página da Seara Nova figura sob o poema a data de redacção.

13 Não a 2 de Setembro, como regista a Aguilar, p. 709, talvez por ler como roma-nos os números árabes da data do periódico.

14 A história da sua divulgação é contada na mesma nota: «[Quanto a 'António deOliveira Salazar'] ter circulado, em cópias dactilografadas, primeiro anonimamente, depoisjá com a indicação de ser da autoria de Fernando Pessoa, não há a menor dúvida. Acon-teceu do primeiro modo logo a partir de 1935, embora talvez quase só em Lisboa, e dosegundo pelo menos desde o período da campanha eleitoral de Humberto Delgado, em1958. II A versão 'clandestina' é ligeiramente diferente da publicada agora por Jorge deSena: ou porque o poema teve de facto duas (ou mais) versões, ou então porque, copiadoe recopiado, foi sendo deturpado. O verso 5, nela, é assim: 'Salazar é apelido.'; o verso 6diz: 'Até aqui está bem.'; entre este e o seguinte intercala-se outro: 'Tudo isto faz sentido.'II Porque é a que se encontra no espólio de Pessoa, obviamente a editada por Jorge de Senaé a que deve merecer maior fé. Contudo, não será que o verso a mais da outra não parecerealmente a mais, nem francamente apócrifo? II Acrescente-se que dois dos maiores amigosde F. Pessoa nos últimos anos da sua vida, Gil Vaz e Rui Santos, guardaram de cor avariante — versão clandestina — de que ora damos notícia. Passada a escrito pelo primeiro,ela foi publicada, cerca de 1960, num semanário português de Caracas» ([Pedro da Silveira],«Nota adicional» a Jorge de Sena, «Quatro poemas anti-salazaristas de Fernando Pessoa»,Seara Nova, n.° 1545, Julho de 1974, p. 20). Também Alfredo Margarido testemunha aprévia divulgação oral dos poemas «António de Oliveira Salazar», «Este senhor Salazar» e«Coitadinho» nos círculos literários lisboetas: «Lembro-me de os ter ouvido — em anos jádistantes, mas provavelmente antes de 1954—, fosse na boca de Ruy Santos, fosse na dePedro da Silveira ou até na de Edmundo de Bettencourt» (introdução a: Fernando Pessoa,Santo António, São João, São Pedro, Lisboa, A Regra do Jogo, 1986, pp. 9-90, p. 22). Em«Fernando Pessoa e Jorge de Sena» (Persona, 5, Centro de Estudos Pessoanos, Porto, Abrilde 1981), Arnaldo Saraiva esmiuça episódios da divulgação do «triplo poema anti-salazarista»

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226 RAZÕES E EMOÇÃO

Quando há referências a pessoas, locais, acontecimentos — como in-terpretar com segurança?

Aqueles quatro poemas é que serão propriamente anti-salazaristas, nosentido de terem como referente sem dúvida Salazar ou o Estado Novo. Em«Liberdade», a identificação do mesmo tópico não é clara. Pedro da Silveira,assim se deduz das reticências antes de «Salazar», não parece acreditar noescopo anti-salazarista para o nosso texto. Mas o mesmo Pedro da Silveiranarra como Manuel Mendes recordava os ditérios de Pessoa sobre o ditador,orais também: «Manuel Mendes, que não viveu o bastante para pensar emescrever um livro de memórias, falava de vez em quando das suas relaçõescom Fernando Pessoa. Não faltará quem se lembre muito bem dos ditos dopoeta sobre o ditador, que ele fixara e repetia» (p. 20). E, quanto ao próprio«Liberdade», João Rui de Sousa, embora comece por admitir a ausência de«mensagem política imediata ou visivelmente expressa», julga significativostítulo e «conteúdo anarquizante, de contracultura e abertamente hedonista —sentidos demasiado revulsivos numa época em que imperava [o] preconceitoda ordem» e acaba por considerar o poema «um texto de ataque directo àditadura de Salazar e da União Nacional» 15.

(Para bitola de interpretações correntes do poema, sirvam os dois arti-gos que a bibliografia de José Blanco aponta como consagrados à análise de«Liberdade» l6. José Fernandes Fafe lê que Pessoa opõe «ao mundo da cultu-ra, que subestima [...], o da natureza, que valoriza»; «o melhor: o 'natural'— flores, luar, sol — e o que mais próximo está do 'natural' — as crianças,

bem como de «Sim, é o Estado Novo, e o povo». Em resumo: Jorge de Sena terá encon-trado o manuscrito dos poemas no dia 4 de Junho de 1954. Revelou o «triplo poema»,sem porém assinar essa edição, em O Estado de São Paulo de 20-8-1960; e já antes correriaele clandestinamente. O triplo poema foi reproduzido em Nouvelles Etudes Luso-Brésiliennes(10, Rennes, Université de Haute-Bretagne, 1973) e no Diário Popular de 6-6-1974 (edepois em outros periódicos: A Província de Angola, 17-7-1974; Correio da Horta, 20-7--1974; Seara Nova, Julho de 1974). Entretanto, tendo sido o poema reproduzido no Co-mércio do Porto de 28-5-1974, por Joaquim Montezuma de Carvalho mas na ignorância deque fora Sena que estivera na origem da publicação no Estado de São Paulo, Jorge de Senafez sair no Comércio de 19-7-1974 uma nota, intitulada «Os poemas de Fernando Pessoacontra Salazar». O poema «Sim, é o Estado Novo, e o povo» Sena só o publicaria pelaprimeira vez no Diário Popular, de 30-5-1974, pouco antes de no mesmo jornal repetir adivulgação dos outros três poemas.

15 «Fernando Pessoa e o Estado Novo», pp. 12-13.16 Fernando Pessoa. Esboço de uma bibliografia, p. 351.

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foi — como in-

-salazaristas, no:ado Novo. Em:dro da Silveira,cê acreditar no:dro da Silveira;obre o ditador,para pensar emas suas relaçõesm dos ditos doanto ao próprior a ausência de*a significativosite hedonista —i [o] preconceitoitaque directo à

im os dois arti-dos à análise delundo da cultu-Ihor: o 'natural'i' — as crianças,

e Sena terá encon-o «triplo poema»,

; e já antes correriadês Luso-Brésiliennes'ar de 6-6-1974 (e•io da Horta, 20-7-eproduzido no Cô-as na ignorância deaulo, Jorge de Senalê Fernando Pessoaó o publicaria pelamo jornal repetir a

O MELHOR DO MUNDO 227

ainda não completamente pervertidas pela cultura, e a música, talvez por sera menos conceptual das artes»; segundo Fafe, porém, há «o reconhecimentoda ambiguidade da natureza, que tanto cria como mata»; por fim, cita aúltima estrofe e interpreta que o natural é suplantado pelo sobrenatural, «queomnisciente não precisa de cultura (livresca ou não) para nada», concluindotratar-se de poema anticultura e, ao mesmo tempo, «culto rendido ao 'natu-ral' e a Jesus» 17. José Enes começa por se deter nos w. 1-6, que, assimisolados, «não são apenas plebeus e prosaicos; são a expressão chata da atitu-de preguiçosa de um estudante cábula»; contudo, logo a partir do v. 7, otexto adquire «poeticidade por meio da significação metafórica, por meio doparadoxo e da evasão onírica, por meio da sobreposição de planos de signi-ficação, que projectam para dimensões transcendentes o sentido do poema,por meio da ironia metafísica que põe entre parêntesis a realidade do queafirma, por meio da progressiva intensificação emocional que se esquiva dointeresse de interferir no andamento das relações humanas, e finalmente pormeio do arranjo musical e sintático da frase»; conclui-se que «é possível,portanto, fazer poesia lírica com prosaísmos»; recusa-se também a intençãode sátira: «a atitude é de expressão intimista, pesarosa na tragicidade dos li-mites e embevecida na feitura» 18. Em nenhum dos artigos se alude ao esco-po anti-salazarista.)

Lembro outros poemas de Pessoa com explícita menção de Salazar oude aparente oposição ao regime, datados ou datáveis de 1935, provavelmentetodos a partir da mesmo mês de Março de «Liberdade»: a quadra Salazar émealheiro — l Raparigas vinde vel-o — l Por fora barro vidrado, \ dentrocoiro e cabelo, datável de Março de 1935 19; a sextilha Mata os piolhos maio-

17 José Fernandes Fafe, «Prazer e dever», Diário de Lisboa, n.° 16875, 12-12-1969,suplemento ('Mesa Redonda'), pp. 1-10, p. 1. [À margem, para benefício de repertórios dabibliografia de Maria Helena Mira Mateus: ladeia o artigo sobre «Liberdade» uma mesa--redonda, «Problemas actuais da linguística e da Universidade em França e no Mundo», emque intervêm, além do entrevistado Georges Mounin, José Fernandes Fafe, Urbano TavaresRodrigues, José António Meireles e Maria Helena Mateus; o texto ocupa as pp. 6-9, estáilustrado com fotografias de entrevistado e entrevistadores e continua nos números seguin-tes do suplemento, em 19-12-1969, pp. 5 e 10-11, e em 26-12-1969, pp. 9-11.]

18 José Enes, «Poetização dos prosaísmos», Rumo. Revista de problemas actuais, ano 6,n.° 72, Fevereiro de 1963, pp. 132-134, p. 134.

19 Fernando Pessoa, Quadras, edição de Luís Prista, Lisboa, Imprensa Nacional-Casada Moeda, 1997, texto n.° 359, p. 168. Os poemas em folhas de bloco Malhas César têmdatas sempre da segunda década de Março: 11, 17 e 18 de Março (Quadras, pp. 53 e 309;1934-1935, p. 15).

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228 RAZÕES E EMOÇÃO

rés \ droga que tu dizes. \ inda ha bichos peares. \ lã se arranjasveneno \u grande ou médio e pequeno) \ matar directrizes — em que«directrizes» alude ao discurso que Salazar proferira a 21 de Fevereiro, naocasião da cerimónia dos prémios literários do Secretariado da PropagandaNacional —, datada de 4-4-1935 20; as três quintilhas «Á Emissora Nacio-nal» — cujo assunto é a «'Salazar disse' Emissora», a que se recrimina estarao serviço do «chatazar» —, poema não datado mas se presume seja de1935 21; um poema contra a aprovação da lei das associações secretas— Solemnemente \ \ approvado \ toda a gente \é, um a um, animal, l Na assembleia nacional \ projecto do José Cabral é aprimeira estrofe; na estrofe seguinte há referência ao pulha austero e raro \ em virtude de muito estudo, \ de outras feias coisas mais, \ hoje presi-

dente do conselho, terminando-se com o dístico Olhem, vão p'ra o Salazar \e é a puta que os pariu—, posterior a 5-4-1935 22; os nove versos de

Dizem que o Jardim Zoológico \ sido mais concorrido \ prolongadaassistência \ a cada animal. \ isso que é senão lógico \ acabou \ concorrência \ fechou \ Assembleia Nacional?, de 18-8-1935 23; o

também curto «Eu fallei no 'mar salgado'», sete versos cujo dístico final, narima, sugere o ditador — Faz-me sempre mal o sal \ ando sobretudo comazar—, datável de 1935, e provavelmente do segundo semestre2^; os cincoquartetos de «Meu pobre Portugal» — de que a terceira estrofe talvez seja amais crítica: Meu pobre e magro povo l A quem deram, ás peças, \m fato emestado novo \ que o não pareças!—, de 8-11-1935 25; o longo «Poema de

20 Poemas de Fernando Pessoa. 1934-1935, texto n.° 293, p. 197.21 1934-1935, n.° 296, p. 198. A Emissora Nacional, criada em 29 de Julho de

1933 e com emissões experimentais em 34, teve os seus estúdios oficialmente inauguradosem 4 de Agosto de 1935; data de finais de 34 o primeiro discurso de Salazar transmitido.

22 1934-1935, n.° 297, p. 199. Foi a 5 de Abril de 1935 que a Assembleia Nacionalaprovou o projecto de lei das associações secretas, o que justifica a datação que se propõe.

23 1934-1935, n.° 315, p. 228.24 1934-1935, n.° 329, p. 244. O poema é datável de 1935 por serem deste ano, do

segundo semestre, todos os textos datados na agenda em que se encontra. Por outro lado,o epigrama parece determinado por acusação de que na conhecida passagem do mar salga-do em Mar Português Pessoa teria plagiado António Correia de Oliveira — este episódioalegado não o consigo situar mas seria posterior à saída de Mensagem — embora as duasestrofes de Mar Portuguez tivessem já saído, e junto de outros poemas depois também in-tegrados em Mensagem, logo em 1922, na Contemporânea, 2 (4), de Outubro, e em 1933,na Revolução, 2 (386), 16 de Junho.

25 1934-1935, n.° 333, p. 246.

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O MELHOR DO MUNDO 229

ê lã se arranjasizes — em que: Fevereiro, nada Propagandamissora Nacio-recrimina estaresume seja deiações secretas'a a. gente l QueJosé Cabral é aaustero e raro \ \ hoje presi-

")'ra o Salazar lnove versos dePor prolongada

10 \ acabou l8-8-1935 23; oiístico final, na^ sobretudo com;tre 24; os cinco)fe talvez seja as, l Um fato emngo «Poema de

i 29 de Julho denente inauguradosalazar transmitido.;sembleia Nacional;áo que se propõe.

:rem deste ano, do•a. Por outro lado,gem do mar salga-•a — este episódio— embora as duasdepois também in-tubro, e em 1933,

amor em estado novo» — doze quintilhas com investidas sobre várias insti-tuições e emblemas do Estado Novo, terminando com a confissão irónicaEstou seguindo as directrizes \o Professor Salazar—, de 8/9-11-1935 26.

Como se sabe e este relance a poemas também inculca, a revolta de Pes-soa contra o Estado Novo radica em pelo menos um motivo — não se diz quenão houvesse outros —, o Projecto de Lei das associações secretas, que ilegalizavaa Maçonaria, apresentado pelo deputado José Cabral a 15 de Janeiro de 1935e aprovado na Assembleia Nacional, por unanimidade, a 5 de Abril 27. A dis-cussão nos jornais começou a 4 de Fevereiro com artigo de Pessoa no Diáriode Lisboa, «Associações Secretas», que teve logo réplicas nos dias seguintes, che-gando a polémica até 14 de Março, sem que Pessoa nela voltasse a intervir 28.A 21 de Fevereiro fora a sessão de entrega dos prémios literários no Secretari-ado da Propaganda Nacional e o discurso de Salazar com as «directrizes» con-tra que o poeta motejaria em alguns dos poemas 29. Lembre-se que um dos

26 1934-1935, n.° 334, p. 246.27 Para cronologia e bibliografia das peças da polémica em torno da lei das associações

secretas: José Blanco, «Fernando Pessoa e as 'Associações Secretas' (o Artigo, a Polémica e osFolhetos)», Gilda Santos, Jorge Fernandes da Silveira, Teresa Cristina Cerdeira da Silva (orgs.),Cleonice, clara, em sua geração, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1995, pp. 305-317.

28 Pessoa descreve assim o seu papel na polémica (em passo já citado por José Blanco,«Fernando Pessoa e as 'Associações Secretas' (o Artigo, a Polémica e os Folhetos)», p. 306):«Pela primeira vez na minha vida fabriquei uma bomba. Cerquei o seu dinamite de verda-de com um envólucro de raciocínio; pus-lhe um rastilho de humorismo. Feita, atirei-a aosopositores da Maçonaria. E o efeito foi não só retumbante mas milagroso. Perderam acabeça sem a ter» (fragmento do manuscrito 129-83-92, Da República (1910-1935), recolhade textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, introdução e organização de JoelSerrão, Lisboa, Ática, 1979, p. 419).

23 Como assinalou João Rui de Sousa, Fernando Pessoa, empregado de escritório, Lis-boa, SITESE, 1985, n. 3, pp. 10-11, também a assinatura do tríptico constituído por «An-tónio de Oliveira Salazar», «Este senhor Salazar», «Coitadinho» — Um sonhador nostálgicodo abatimento e da decadência — retoma ironicamente um trecho do discurso de Salazar: «éimpossível valer socialmente tanto o que edifica como o que destrói, o que educa como oque desmoraliza, os criadores de energias cívicas ou morais e os sonhadores nostálgicos doabatimento e da decadência». Além das alusões implícitas, ao discurso se reportará Pessoa a30 de Outubro, em carta incompleta e não enviada a Adolfo Casais Monteiro: «Desde odiscurso que o Salazar fez em 21 de Fevereiro deste anno, na distribuição de prémios noSecretariado de Propaganda Nacional, ficámos sabendo, todos nós que escrevemos, que es-tava substituída a regra restrictiva da Censura, 'não se pôde dizer isto ou aquillo', pela regrasoviética do Poder, 'tem que se dizer aquillo ou isto'. Em palavras mais claras, tudo quantoescrevermos, não só não tem que contrariar os princípios (cuja natureza ignoro) do EstadoNovo (cuja definição desconheço), mas tem que ser subordinado às directrizes traçadas pelos

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230 RAZÕES E EMOÇÃO

concursos, o Prémio Antero de Quental, distinguira Mensagem, ao lado, oudepois, de Romaria de Vasco Reis, mas Pessoa faltou à cerimónia. (Interessa-ria ponderar o contraste entre a fase, talvez de adesão ao regime, que vai atéinícios de 1935, e as posições contra o Estado Novo a partir de Fevereiro 30.)

Resumo a cronologia 31, que vai mostrando que não eram disparatadasas intuições do censor, «Liberdade» surgindo como primeiro poema, dois dias

orientadores do citado Estado Novo. Isto quere dizer, supponho, que não poderá haverlegitimamente manifestação literária em Portugal que não inclua qualquer referencia aoequilíbrio orçamental, à composição corporativa (também não sei o que seja) da sociedadeportugueza e a outras engrenagens na mesma espécie» (ES/ll^-Só; transcrição de EnricoMartines, Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da presença, Lisboa, INCM, 1998,p. 282). E em outra carta não enviada, para Carmona: «Com efeito, na citada segundaparte do citado Prefácio, parte essa de que o principal e essencial político foi dito ou tidonuma reunião pública, da entrega dos Prémios, no S. de P. N., diz-se aos escritores quetêm eles que obedecer a certas directrizes. Até aqui a Ditadura não tinha tido o impudorde, renegando toda a verdadeira política do espírito — isto é, o de pôr o espirito acima dapolítica — vir intimar quem pensa a que pense pela cabeça do Estado, que a não tem, oude vir intimar quem trabalha a que trabalhe livremente como lhe mandam [variante: a quetrabalhe com a douta animalidade da Câmara Corporativa]» (E3/92M-28-33; transcriçãode Teresa Sobral Cunha, «Fernando Pessoa em 1935. Da ditadura e do ditador em doisdocumentos inéditos», Colóquio-Letras, n.° 100, Novembro-Dezembro de 1987, pp. 123--131, p. 126); mais trechos no mesmo envelope 92M (ff. 43, 82, 81, 41, 42, 80), aparen-temente para a carta a Carmona, foram publicados por Laurinda Bom e Margarida Duarteem Pessoa Inédito (orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Hori-zonte, 1993), pp. 374-376.

30 Alfredo Margarido («Introdução», Santo António, São João, São Pedro) defende que«possivelmente até aos primeiros meses de 1935, Fernando Pessoa foi um adepto convictoda excelência do regime ditatorial, sobretudo após a irrupção do prof. Oliveira Salazar,como Ministro das Finanças primeiro, como Presidente do Conselho de Ministros a partirde 1932» (p. 11); 1934 teria sido «um ano de adesão não só ao salazarismo, mas tambémàs suas propostas estéticas», «a ruptura parece só começar a organizar-se em Fevereiro de1935, a partir da apresentação na Assembleia Nacional do projecto de decreto-lei destinadoa proibir as associações secretas» (14).

31 O enquadramento cronológico do último ano de Pessoa foi traçado antes nos ar-tigos de João Rui de Sousa, Teresa Sobral Cunha, Alfredo Margarido, aqui citados; nocatálogo Fernando Pessoa: o último ano, organização e coordenação de Teresa Sobral Cunhae João Rui de Sousa, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1985; no livro de José Fernandes Tavares,Fernando Pessoa e as estratégias da razão política, Lisboa, Instituto Piaget, 1998, pp. 128--147; por João Medina, «Fernando Pessoa e o 'Tiraninho'. O poeta da Mensagem e o dita-dor António de Oliveira Salazar (1928-1935). Estudo e Antologia», Boca do Inferno. Revistade Cultura e Pensamento, n.° 5, Maio de 2000, pp. 31-76; e por certo em mais trabalhos.Na tábua que se segue a novidade estará apenas na inclusão de textos que só foram publi-cados, ou datados, na edição crítica de 2000.

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isagem, ao lado, ou

rimónia. (Interessa-

regime, que vai até

tir de Fevereiro 30.)

1 eram disparatadas

•o poema, dois dias

]ue não poderá haver|ualquer referencia ao}ue seja) da sociedadetranscrição de EnricoJsboa, INCM, 1998,:o, na citada segundalítico foi dito ou tido-se aos escritores que:inha tido o impudor>r o espirito acima da3, que a não tem, ouidam [variante: a queM-28-33; transcrição

do ditador em doisí de 1987, pp. 123-41, 42, 80), aparen-e Margarida Duarte

Lopes, Lisboa, Hori-

o Pedro) defende queum adepto convictoof. Oliveira Salazar,lê Ministros a partirtrismo, mas também-se em Fevereiro dedecreto-lei destinado

raçado antes nos ar-o, aqui citados; no'eresa Sobral Cunha: Fernandes Tavares,;et, 1998, pp. 128-Mensagem e o dita-

a. do Inferno. Revistaem mais trabalhos.]ue só foram publi-

O MELHOR DO MUNDO231

depois de encerrada a polémica. Seguem-se textos de feição epigramática,

aparecendo no fim do calendário os poemas mais generalizadores e disfóricos.

(Não incluí os dois quartetos de Vae pra o seminário 32, que creio relaciona-

rem-se com a polémica da lei mas a ela se confinam, nem o extenso Elegia

na sombra 33, de 2 de Junho, de clara desilusão com Portugal mas sem quese possa indicar nexos com a situação política.)

19 de Janeiro

4 de Fevereiro

21 de Fevereiro14 de Março

16 de Março

segunda década de Março29 de Março

29 de Março

29 de Março

4 de Abril

5 de Abril

depois de 5 de Abril[1935]

29 de Julho

18 de Agosto

[segundo semestre]

8 de Novembro

8-9 de Novembro

30 de Novembro

E apresentado o projecto de lei das associações secretas

Fernando Pessoa publica o artigo «Associações Secretas»Salazar discursa na sessão dos prémios do SNP

Artigo de Rolão Preto fecha a polémica na imprensaLiberdade

Salazar é mealheiro

António de Oliveira SalazarEste senhor SalazarCoitadinho

Mata os piolhos maiores

Discussão e aprovação do projecto de leiSolemnemente

Á Emissora Nacional

Sim, é o Estado Novo, e o povo

Dizem que o Jardim Zoológico

Eu fallei no «mar salgado»

Meu pobre Portugal

Poema de amor em estado novo

Morre Fernando Pessoa

32 1934-1935, n.° 294, p. 197. Sem data, mas no verso de folha com ensaio de textointegrável no «dossier» da polémica que Pessoa suscitara com o artigo de 4 de Fevereiro; oepigrama é posterior ao rosto porque foi lançado quando a folha já estava dobrada.

33 1934-1935, n.° 300, p. 201. Sobre «Elegia na sombra» diz João Rui de Sousa que«a sua principal característica é o dar-nos da realidade portuguesa de então uma imagemextraordinariamente recessiva em relação a todos os aspectos do nosso ser colectivo» («Fer-nando Pessoa e o Estado Novo», p. 13). Em outro artigo («Sobre o significado de Elegia naSombra— o último longo poema de Fernando Pessoa», Colóquio-Letras, n.° 106, Novembro--Dezembro de 1988, pp. 17-25), explicita que «não deixando de continuar a ser um textode implacável indignação e protesto, pode também legitimamente entender-se como cânticomelancólico [...]» (24), «um dos textos mais acidulados e virulentos emergentes de umaconjuntura pessoal de humilhação e de derrota, a que terão de juntar-se, naturalmente,outras razões incluindo as de saúde, já de si bastante favoráveis ao avolumar do desalento,ao adensar de uma visão mais e mais soturna do real» (22-23).

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232 RAZÕES E EMOÇÃO

E se o autor propôs várias formas, qual devemos escolher?

Temos aludido a testemunhos autógrafos de «Liberdade» sem que osdescrevêssemos. São duas as peças que no espólio de Fernando Pessoa naBiblioteca Nacional (BN E3) contêm o poema: as folhas 118-54 (doravantetestemunho A) e 118-55 (testemunho B). Em ambas o poema está dactilos-crito, no rosto, e com a data a subscrevê-lo.

O testemunho A está dactiloscrito a preto e tem ao canto superior di-reito, a lápis, nota da inventariadora, p. 246-247, que remete para a ediçãoÁtica. O grupo que a partir de finais de 1969 procedeu à inventariação doespólio 34 sempre que possível indicava nas folhas a correspondência aos vo-lumes editados. Sendo 118-54 a primeira das duas peças cotada, foi ela querecebeu a referência das páginas de Poesias, o que não envolve nenhuma iden-tificação do original da Ática e portanto não tem interesse particular para osnossos trabalhos.

O testemunho B está a azul, tendo sido obtido por dactilografia sobpapel de carbono. Ao contrário de A, tem alguns dizeres manuscritos pelopunho de Pessoa, a lápis, todos no verso da folha, lançados quando esta jáestava dobrada em quatro partes: There is no reason l to suppose that I \<w> worse e Quando essa typa t xarope \a a cambalear p 'rã casa, frases ingle-sa e portuguesa em quartos diferentes. Também ao contrário do testemunhoA, a folha 118-55 traz assinatura, sob o poema, igualmente dactiloscrita.

Vale a pena destacar os modos diferentes como as duas folhas foramdactilografadas. A folha A recebeu a tinta directamente da fita da máquina, enão sabemos se quando foi dactilografada tinha sotopostas folhas para dupli-cado (talvez não, pois foi emendada após reajustamento na própria máquinade escrever, operação que resultaria mal em eventuais duplicados). O teste-munho B é uma cópia de carbono, o que implica a existência de mais umexemplar — se calhar, dois — do mesmo tiposcrito. Essa folha dactiloscritaa preto, a cor que se presume teria a fita, pode bem ter sido a entregue àSeara 35. Como a tanto obriga o que se tem dito das versões A e B, não setrata obviamente de textos dactilografados na mesma ocasião.

34 Sobre os trabalhos do grupo inicial e reformulações que este sofreu: Maria LauraNobre dos Santos, Alexandrina Cruz, Rosa Maria Montenegro Matos, Lídia Pimentel,«A inventariação do espólio de Fernando Pessoa: tentativa de reconstituição», Revista daBiblioteca Nacional, série 2, 3 (3), Setembro-Dezembro de 1988, pp. 199-213.

35 «Os poucos exemplos [de originais entregues para publicação] que estão no Espó-lio, e que referem à sua colaboração na presença, indicam que Fernando Pessoa mandava o

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O MELHOR DO MUNDO 233

Folha Textos anti-salazaristas que contém

92U-30

92U-31

118-54

118-55

«Sim, é o Estado Novo, e o povo» (testemunho B)

«António de Oliveira Salazar» (testemunho B);«Este senhor Salazar» (testemunho B)

«Liberdade» (testemunho A)

«Liberdade» (testemunho B) U H IImi

Nem aliás na mesma máquina. Como se vê no quadro a seguir, a formados caracteres mostra que A e B são de diferentes máquinas de escrever.Importava também cotejar os caracteres de outros documentos no espólio,verificando as máquinas das restantes folhas com poemas anti-salazaristas.Tendo analisado além dos testemunhos de «Liberdade» mais dois dactiloscritoscom poemas contra Salazar, constatei que a variedade de máquinas de escre-ver é grande, máxima mesmo na curta amostra 36.

São quatro máquinas diferentes para quatro folhas: 92U-31 distingue-sedas outras três folhas logo pelo <u>; 92U-30 tem <ç> que não é o mesmode 118-54 nem o de 118-55; quanto a 118-54 e 118-55, as folhas de «Li-berdade», podemos contrastá-las pelo <g> ou pelo <t>. Se não soubéssemosque Pessoa utilizava habitualmente várias máquinas de escrever 37, dir-se-iaque o poeta acautelava perseguições policiais e procurava baralhar identifica-ções por reconhecimento da dactilografia (como se fosse verosímil semelhan-te sofisticação das diligências da PVDE).

original dactilografado escrevendo no fundo, também à máquina, o nome do Autor a cujapaternidade atribuía o poema (Fernando Pessoa na poesia ortónima), e guardava para sicópia de carbono» (José Augusto Seabra, Maria Aliete Galhoz, «Nota filológica preliminar»,Mensagem. Poemas esotéricos, pp. XLI-LIII, p. XLIX).

36 Na verdade, a amostra não podia ser muito mais completa. Além dos quatrodactiloscritos analisados, só faltou pôr no quadro 92U-32 (onde estão o testemunho B de«Coitadinho» e os testemunhos C de «António de Oliveira Salazar» e «Este senhor Salazar»),de que não dispúnhamos de imagem com caracteres em condições (os que colhêramos quandoainda não prevíramos este estudo ficaram quase ilegíveis por o dactiloscrito estar ele mesmopouco nítido). Os restantes anti-salazaristas são manuscritos.

37 O que ficou demonstrado a propósito da polémica à volta das memórias naturo--vegetarianistas de Eliezer Kamenezky. Cf. Ivo Castro, João Dionísio, José Nobre da Silveira,Luís Prista, «.Eliezer. Ascensão e queda de um romance pessoano», Revista da BibliotecaNacional, série 2, 7 (1), 1992, pp. 75-136, pp. 78, 79, 89.

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234 RAZÕES E EMOÇÃO

Para concluir a avaliação comparada de A e B, falta dizer que não ofe-rece dúvidas ter A precedido B, porque, sendo em A conspícuo o trabalhode elaboração ou revisão, o testemunho B adopta como ponto de partida oúltimo estado a que se chegara em A. Considerado esse in-put, B apenasintroduz variação em sinais de pontuação e na ortografia, o que plausivel-mente corresponde a substituições no próprio momento da cópia.

A seguir transcrevem-se os versos de A e B onde em algum momentohouve variação relativamente ao texto fixado (isto é, a lição reproduzida noinício do artigo). Para abreviar o cotejo, dá-se a transcrição genética de A enela se marcam os acrescentos pontuais e as variantes ortográficas em B. Senada pusermos relativo a B, deve entender-se que a lição é idêntica à do últi-mo estado de A (mas limpa, como é óbvio, que o testemunho não iria repetiras etapas de revisão ultrapassadas em A). Entre parênteses esquinados ficam ossegmentos riscados (cuja canceladura, também dactilografada, é conseguida porsequência de xx); entre parênteses rectos, os acrescentos e substituições; entre asbarras / \ letras que se sobreponham a outras, e entre angulares estas últimas.

ante l A omite B (falta uma citação de Senecà)2 A Não cumprir um dever! [B dever,]4 A <E esquecer.> E não o fazer. [B fazer!]5 A <Porque> <l>/L\er é maçada[B ,]6 A <E> <e>/E\studar <não> é nada.9 A O rio corre [B ,] bem ou mal [B ,]12 A De tam naturalmente matinal [,]13 A <Tem tam pouca pressa!> Como tem tempo não tem pressa.14 A Livros são papeis pintados com <letras,> tinta.15 A Estudar é uma coisa em que está indistincta<,> [B indistinta]16 A Ã distincção [B distinção] entre nada e cousa nenhuma.19 A Quer venha ou não. [B não!]21 A <O melhor do mundo são crianças> Mas o melhor do mundo

são crianças,22 A Flores, musica, o luar [B ,] e o sol, que pecca [B peca]23 A Só quando, em vez de criar, secca [B seca].25 A É Jesus Christo [B Cristo],26 A Que não sab<o>/i\ nada de finanças27 A Nem consta que tivesse bibliotheca. [B bibli<l>/o\teca...]

Continuando a proceder ao contrário da cronologia, comentemos pri-meiro o testemunho B. Já se foi dizendo que B é um testemunho quase sem

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O MELHOR DO MUNDO 235

trabalho genético. Deve ser a simples passagem a limpo de A acrescida damarca autoral que são os retoques da pontuação. Como se disse, estas poucasmudanças de pontuação, bem como a troca de ortografia, decorreram sememendas na folha, e só as evidencia o confronto do estado final de A com B.Terão sido pensadas, quase espontaneamente lançadas, à medida que o poetaia dactilografando B a partir de A. (Não perderemos tempo com a hipótesede um autógrafo intermédio, uma cópia de carbono de A com emendasmanuscritas, por considerarmos que tal campanha seria sempre insignificante.)

Neste contexto, em que se percebe não ter sido o dactiloscrito B sedede demorada elaboração, mais se inculca o teor meramente funcional e pro-visório daquela «epígrafe» (a qual, repitamo-nos, não aparecia em A). Quan-to ao resto, o testemunho não perde o grau de maturação que lhe confereser o autógrafo mais recente, integrando lições já trabalhadas em outra folha.O termo «autógrafo» tomei-o na acepção arquivística de 'produzido pelo autor'ainda que à máquina, mas vale lembrar que B tem igualmente o atestado daautografia em sentido comum, devido aos dizeres manuscritos por Pessoa noverso da folha. O testemunho B sai também valorado, se admitirmos que asmudanças de grafia visavam conformar o poema ao estilo ortográfico corren-te, assim preparando a sua publicação na Seara Nova.

Antes de vermos o outro testemunho, lembre-se que foi por este teste-munho B que fixámos o texto, excepto no caso da linha ante l, em quepreferimos a lição, não-lição, de A, ou, o que dá no mesmo mas não é omesmo, preterimos uma lição de B por a julgarmos provisória e instrumental.

Para comentarmos agora a elaboração havida sobre o dactiloscrito A,dividiremos os lugares de variação interna segundo correspondem a emendasem «curso de escrita» (as introduzidas sem que o papel tenha sido retiradodo rolo da máquina, o que se vê de coincidirem os espaços de caracteres«riscados» ou sobrepostos) e as que ocorreram por certo já depois de lançadotodo o poema (tendo sido o papel recolocado, como se conclui de os espaçosde letras substituintes apenas se aproximarem da matriz inicial). Desde já sediga que não sabemos quanto tempo mediou entre uma e outra campanha —mas a máquina, desta vez sim, é a mesma e a tinta não parece nem maisforte nem mais fraca.

Ocorreram já na revisão depois de se ter retirado a folha da máquina adesinteressante correcção do saboa para sabia (v. 26); a troca de Tem tampouca pressa! por Como tem tempo não tem pressa, (v. 13) e, requerido por estaalteração, o acrescento da vírgula no v. 12; a supressão da vírgula que che-gou a terminar o v. 15; a substituição de E estudar não é nada por Estudar énada (v. 6), tendo porém ficado esquecida a rectificação da pontuação no

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verso anterior como implicava a nova sintaxe (a vírgula será acrescentada masjá no testemunho B); o cancelamento de Porque (v. 5); a troca de E esquecerpor E não o fazer (v. 4).

Decorreu em curso de escrita o cancelamento de letras (v. 14), aparen-temente preterido por tinta, a que se segue ponto e não a vírgula que seprevira antes da troca. No verso que mais nos importa, v. 21, também semque a folha saísse do rolo se passou de O melhor do mundo são crianças paraMas o melhor do mundo são crianças. Quanto a «crianças», esteve sempre semartigo, como se vê sob os xx que cancelam toda a primeira versão — e note--se que, embora houvesse apenas a conjunção a acrescentar, todo o verso foide novo repetido, e sempre sem artigo. Só no segundo estado se vê a vírgulaapós «crianças», o que significa que a reformulação do verso foi decidida nãosó antes de tirada a folha como logo que acabava de ser escrito (ainda antesda pontuação que o terminaria).

Serão significativos os erros, as evidentes trocas de um termo? Deve-mos mante-los ou corrigi-los?

O caso aqui é de novo a epígrafe ou, assim a temos julgado, a notaerradamente tomada como epígrafe. Atrás vimos como «Liberdade» se inscre-ve na cronologia do Pessoa agastado com Salazar, deputados da AssembleiaNacional, Estado Novo. Hesitou-se então quanto ao teor anti-salazarista de«Liberdade», o texto avaliado como menos a contracorrente do que poemasque se lhe seguem. A epígrafe que nos falta esclarecerá a índole de textoempenhado. E por sua vez um episódio político esclarece a epígrafe.

Lembre-se o discurso de Salazar na entrega dos prémios literários doSecretariado da Propaganda Nacional. Na verdade, quase todo o discursorecuperava «algumas passagens do Prefácio agora escrito para a colecção dosmeus discursos. De entre todas, escrevi aquelas que pudessem exactamenteconvencer de que, neste momento, não devia falar nem ficar calado» 38. Logono primeiro parágrafo se defende a imposição de «certas limitações» «à acti-vidade mental e às produções da inteligência e sensibilidade dos portugueses»

38 Oliveira Salazar, «Palavras pronunciadas pelo sr. Doutor..., em 21 de Fevereiro de1935 na sede do Secretariado da Propaganda Nacional, na primeira festa da distribuiçãodos Prémios Literários criados por este organismo», António Ferro, Prémios literários (1934--1947), Lisboa, Edições SNI, 1950, pp. 9-13, p. 10.

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e se diz conveniente traçar-lhes «algumas directrizes» 39, passo a que Pessoaalude em poemas que citámos e em passagens de outros autógrafos mencio-nados. Creio que se tem reparado menos no parágrafo que fecha o discursode Salazar: «E, se por se generalizar este estado de consciência, se vier a es-crever menos... Mas virá algum mal ao Mundo de se escrever menos, se seescrever e, sobretudo, se se ler melhor? Relembro a frase de Séneca: 'em es-tantes altas até ao tecto, adornam o aposento do preguiçoso todos os arra-zoados e crónicas'» 40.

Adivinha-se que em estantes altas até ao tecto, adornam o aposento do pre-guiçoso todos os arrazoados e crónicas, com o nome de Séneca a subscrevê-la,seria a epígrafe em que pensava Pessoa, e «Liberdade» percebe-se agora comoglosa desse mote, desenvolvido de forma irónica. Por que motivo não che-gou o poeta a dactilografar a citação? Talvez porque buscasse a exacta fraseem latim. Ou, porque quisesse Pessoa brincar com a erudição de Salazar,«falta uma citação de Séneca» assumia a incapacidade de citar clássicos e eraportanto remoque a constar na publicação?

39 Oliveira Salazar, p. 10. Esse primeiro parágrafo do discurso está também copiadopor Pessoa no manuscrito 113P'-62: «'Os princípios morais e patrióticos que estão na basedeste movimento reformador impõem à actividade mental e às produções da <sensi> inte-ligência e sensibilidade dos portugueses certas limitações, e suponho deverem mesmo traçar--Ihes algumas directrizes.' II Oliveira Salazar, Discursos, pp. xx-xxi (trecho lido [pelo próprioao presidir] em 21 de Fevereiro de 1935 <na>[à] sessão de distribuição de Prémios Literá-rios no Secretariado de Propaganda Nacional)»; a seguir, sempre a tinta preta, Pessoa co-piou um dos períodos do penúltimo parágrafo do discurso: «'Neste momento histórico, emque determinados objectivos foram propostos à vontade nacional, não há remédio senãolevar às últimas consequências as bases ideológicas sobre as quais se constró<e>/i\ novoPortugal' (ibid. p. xxiv)». (O autógrafo fora já referido por Teresa Rita Lopes, «Sobre oalcance da obra inédita e deste volume», Pessoa Inédito, pp. 17-71, p. 59.)

40 Oliveira Salazar, pp. 12-13. «Palavras pronunciadas pelo sr. Doutor..., em 21 deFevereiro de 1935 na sede do Secretariado da Propaganda Nacional, na primeira festa dadistribuição dos Prémios Literários criados por este organismo», António Ferro, Prémiosliterários (1934-1947), Lisboa, Edições SNI, 1950, pp. 9-13, pp. 12-13. O texto publicadocomo prefácio nos Discursos tem ligeiras divergências na apresentação da frase de Séneca: «Ese, por se generalizar tal estado de consciência, se vier a escrever menos... ^Mas virá algummal ao mundo de se escrever menos, se se escrever e sobretudo se se ler melhor? Hoje,como na crítica de Séneca, 'em estantes altas até ao tecto, adornam o aposento do pregui-çoso todos os arrazoados e crónicas'» (Oliveira Salazar, «Para servir de prefácio», Discursos.1928-1934, Coimbra, Coimbra editora, 1935, pp. vii-xxxii, p. xxiv). O texto saído a 22 deFevereiro no Diário de Notícias — que vejo conforme é dado por Enrico Martines, p. 283 —também apresenta algumas variantes igualmente irrelevantes.

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Chegaria Pessoa a procurar o trecho latino em livros da sua bibliotecapessoal? Na estante que foi do poeta e está hoje na Casa Fernando Pessoa hátrês volumes com obras de Lúcio Aneu Séneca — os dois tomos de Seneca 'stragedies (with an english translation by Frank Justus Miller, London-New York,William Heinemann-G. P. Putnam's Sons, 1917) e um livro que inclui oopúsculo Apocolocyntosis (with an english translation by W. H. D. Rouse;London-New York, William Heinemann-G. P. Putnam's Sons, 1916; a pri-meira parte do volume é para Petrónio, com tradução de Michael Hesel-tine) —, nenhum com sublinhados ou notas por Pessoa. Também não seriaaí que podia encontrar a frase que interessava, a qual pertence ao diálogo Detranquillitate animi (cap. 9, § 7): «Apud desidiosissimos ergo uidebis quidquidorationum historiarumque est, tecto tenus exstructa loculamenta» 4l.

Acreditando que Pessoa apenas adiava a inscrição da epígrafe — porquelhe faltasse o original latino ou até a precisa versão de Salazar, já que não setrataria de estratégia de esconder da censura a referência mais explícita —,supomos que ainda a iria lançar em provas. E nem sabemos se assim nãoaconteceu efectivamente antes de 30 de Novembro. Bastaria que, quando dapublicação dois anos depois, a revista tivesse retomado o original dactiloscrito,ou a composição tipográfica preliminar, sem o acrescento em provas.

Quanto aos outros erros, não causados pelo poeta mas instalados natransmissão impressa (e, no caso do v. 21, na voz popular), não parece havera mesma dúvida de que se deve corrigi-los. Como, sejam ou não o melhordo mundo, se faz às crianças. A crianças.

41 Agradeço ao Professor Doutor José António Segurado e Campos, a quem devo alocalização do original latino da frase traduzida por Salazar, aparentemente ad hoc traduzida,não mera transcrição de algum impresso. Para o trecho de Séneca o Professor Segurado eCampos propõe a seguinte tradução, o mais literal possível: 'em casa dos (sujeitos) maispreguiçosos poderás ver (encontrar) tudo quanto há de discursos e de histórias (obras his-tóricas) em prateleiras que se erguem até ao tecto'.