o mÁrtir do gÓlgota

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O MÁRTIR DO GÓLGOTA Introdução Devia anunciar-se a sua vinda com grandes e assombrosos acontecimentos, e assim sucedeu. Os ímpios idólatras do Olimpo do Homero, os adoradores sensuais de Venus, a prostituta, e de Mercúrio, o deus dos ladrões, os corrompidos cortezãos do Capitólio, definhavam em languidez nos braços da indolência e do amor. Aquela paz inalterável enchia-os de admiração, e um dia foram ao templo consultar o oráculo de Apolo para saberem quanto tempo ela duraria. O oráculo respondeu-lhes estas palavras: “Até que se dê o caso de uma Virgem dar à luz”. Julgando, segundo a ordem natural, que seria impossível que semelhante vaticínio sucedesse, colocaram esta inscrição na elevada porta: “Templo da paz eterna”. Entretanto, a sibila Cumeia, a poetisa, inspirada, predizia a vida de Cristo na cidade ímpia dos sibaritas. Otávio Augusto fez reunir o conselho e a profetisa foi interrogada. O César queria saber se nasceria outro homem mais Do Oriente chegavam alguns idólatras, que depositavam aos pés de um berço a primeira pedra do cristianismo.

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Page 1: O MÁRTIR DO GÓLGOTA

O MÁRTIR DO GÓLGOTA Introdução

Devia anunciar-se a sua vinda com grandes e assombrosos acontecimentos, e assim sucedeu. Os ímpios idólatras do Olimpo do Homero, os adoradores sensuais de Venus, a prostituta, e de Mercúrio, o deus dos ladrões, os corrompidos cortezãos do Capitólio, definhavam em languidez nos braços da indolência e do amor. Aquela paz inalterável enchia-os de admiração, e um dia foram ao templo consultar o oráculo de Apolo para saberem quanto tempo ela duraria. O oráculo respondeu-lhes estas palavras: “Até que se dê o caso de uma Virgem dar à luz”. Julgando, segundo a ordem natural, que seria impossível que semelhante vaticínio sucedesse, colocaram esta inscrição na elevada porta: “Templo da paz eterna”. Entretanto, a sibila Cumeia, a poetisa, inspirada, predizia a vida de Cristo na cidade ímpia dos sibaritas. Otávio Augusto fez reunir o conselho e a profetisa foi interrogada. O César queria saber se nasceria outro homem mais

Do Oriente chegavam alguns idólatras, que depositavam aos pés de um berço a primeira pedra do cristianismo. A voz do anjo despertou nas suas cabanas os pastores, e êstes achavam-se junto de um leito aos pés do qual ia morrer o mundo pagão.

O escravo, sacudindo os grilhões, lançou um olhar em tôrno de si e permaneceu com o ouvido atendo, até que a

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sua fisionomia se foi animando pouco a pouco, e um sorriso melancólico assomou aos seus lábios. Despontava-lhe no coração a esperança; os grilhões caiam despedaçados aos seus pés, porque estas palavras pronunciadas por Deus: “Todos somos irmãos” haviam chegado aos seus ouvidos. Reuniram-se então os desgraçados em volta de Jesus Cristo, que, qual pastor das almas, atravessava a terra para procurar os aflitos, afim de lhes enxugar as lágrimas, e derramar-lhes no coração angustiado a rica semente da fé cristã. Onde uma creatura gemia, lá estava Cristo para a consolar. Onde se lamentava um enfermo, lá estava o Messias para lhe devolver a saúde.

Sua fama, seus feitos, seus milagres, correram de boca em boca por todos os âmbitos do mundo, até que um dia as palavras “todos somos iguais” chegaram aos ouvidos dos pontífices e pretores de Jerusalém. 1

Sôbre o Capitólio em Roma, onde existia em tempo da vinda de Cristo o palácio de Otávio Augusto, existe hoje o convento de Santa Maria d1Arca-Coeli, d’onde provém a tradição que narramos.

2 envergonhados, murmurando estas palavras

com enleio: “Com êste homem a ciência é impotente. Será o Messias?” Desde então nos seus sonhos, nas suas bacanais, nas suas orgias, viram escritas estas palavras “O que fôr maior entre vós será vosso servo.”

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A raivosa impotência e o cego orgulho dos tiranos fizeram com que se levantasse a Deus um cadafalso! A tragédia divina teve o seu termo. Cristo subiu ao calvário, exalou o último suspiro nos braços do lenho sagrado; foi dali tirado para o sepulcro, e ao terceiro dia elevou-se ao céu em apoteose.

Haviam-se cumprido as profecias. Os apóstolos da fé, os propagadores da nova lei, espalharam-se pela terra e, mão se importando como o martírio, começaram a semear a palavra humanidade até então desconhecida no mundo. O Cristianismo cresceu como uma bola de neve. Os circos de Roma, os tormentos da Índia, não puderam esmagar-lhe a radiante e formosa cabeça.

Os filhos dos pagãos recebiam a água do batismo como maná celeste.

O Cristianismo, salvando a sociedade de uma ruina certa, abrigou no seu seio carinhoso os restos da civilisação e das artes.

Que a julgue todo aquele que a ler, e longe de ter êste livro como uma obra importante, tenha-o só como um grão de areia que colocamos na pirâmide imensa do Cristianismo, elevada pelas santas palavras do Mártir do Gólgota. LIVRO PRIMEIRO Que outra coisa é a Escritura senão uma Carta do Todo Poderoso aos homens? Rogo-te que todos os dias estudes e me-Dites as palavras do teu Creador, aprendendo assim a conhecê-lo, - (GREGÓRIO MAGNO,Livro IV, epist.39) CAPÍTULO I

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3 O POVO ERRANTE Formoso céu da Galiléia: desgraçadamente os meus olhos não admiram ainda as poéticas cambiantes dos teus

corrente. Cume sagrado do Calvário:os meus pés nunca pisaram as tuas caleinadas rochas, que um dia se humedeceram com o sangue do Messias e com as lágrimas da Virgem.

Jamais tive a dita de te admirar, poética e formosa Palestina. Os meus olhos nunca se extasiaram ante a contemplação dos campos de Zabulon, eternamente cobertos de violetas.

A história do teu povo tem sido o meu livro querido desde que a minha língua principiou a ligar as letras do alfabeto.

Deus nasceu entre êles, e o sangue do seu Deus que derramaram pesa-lhes sôbre a cabeça como uma maldição, impelindo-os pelo mundo quais ligeiras arestas que o possante sôpro do vendaval arrasta sem rumo certo.

A hora anunciada pelos profetas soou no incorruptível relógio do tempo; as águias e os corvos, que se aninhavam nas escarpadas rochas do Líbano, submissas aos mandados de Deus, cairam então sôbre o solo da cidade maldita.

Moisés, o intérprete de Jeová, o teu sábio legislador, o teu dogma, já não tornará a guiar-te pelo deserto.

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Aquela batalha, que durou três dias sem se ocultar o sol, só pudeste vencê-la pela vontade de Deus, e Deus amaldiçoou a tua raça. Por isso é que a bandeira dos Macabeus nunca mais tornará a tremular triunfante pela inimiga Samaria, nem os valentes filhos de Matias volverão a erguer as suas tendas sôbre as altas cumiadas do Garizim. Débora já não fará justiça à sombra das palmeiras de Efraim, nem o canto de Jael, a forte mulher, reanimará nos combates o valor dos filhos de Judá. Ester, a formosa, nunca mais tornará a salvar o seu povo do furor dos inimigos; nem Elias, o raio de Deus, fará chover do céu para acender a lenha verde do sacrifício.

o ungido do senhor;4

o amado do Senhor,Tapaste os ouvidos às suas palavras, e fechaste os olhos aos seus milagres; e aquelas palavras e aqueles fatos ainda retumbam, perturbando até o teu nome. Deus quis acolher-te debaixo das suas asas, como a carinhosa galinha aos pintinhos, e tu sacrificaste-o em recompensa do seu amor inexgotável. “Jerusalém, Jerusalém! Em ti não há de ficar pedra sôbre pedra” disse Êle, e a sua promessa cumpriu-se. Jerusalém, Jerusalém! A tua passada glória é um montão de escombros, sôbre os quais ainda adeja a terrível maldição de Deus, repetindo sem descanso: Chora, chora, cidade ingrata!CAPÍTULO II

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SÓ NO MUNDO O céu estava carregado, a noite escura, e frio o ambiente. O solitário mocho, qual sentinela noturna, soltava de vez em quando dos altos ramos das árvores um monótono e prolongado pio, cujo eco lúgubre se ia perder nas profundidades dos barrancos.

O monte Hebal, mais escarpado, mais sombrio e imponente que os seus irmãos, erguia-se no meio daquela cordilheira como um gigante ameaçador, amaldiçoando a impiedade dos rebeldes samaritanos.

O surdo e longíquo trovão começava a ribombar pelo espaço anunciando com a sua voz possante aos filhos de Semer a próxima tempestade que ia estalar sôbre as tuas cabeças. A atmosfera ia-se condensando, e do seu húmido seio começaram a cair grossas gotas de água sôbre a seca terra dos adoradores do bezerro, e à qual os judeus chamaram Terra da iniquidade. Tudo anunciava uma dessas terríveis tempestades, que com tanta frequência turvam o céu da Palestina. Os relâmpagos começaram a suceder-se com rapidez, e o trovão, percorrendo o espaço, fazia redobrar a sua voz potente.

Um relâmpago iluminou momentaneamente o obscuro horizonte, e ao clarão azulado da sua luz viram-se uns homens que deslisavam pela escarpada e resvaladia encosta do monte Hebal, em direção aos barrancos de Garizim.

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Ia entre êles um mancebo, imberbe por assim dizer: vestia uma túnica pardacenta como os nazarenos. Na cabeça trazia um turbante alto com bandas de linho, e uma camisola de lã de camelo servia-lhe de manto.

5 Nem uma só linha se encontrava no seu

semblante que inspirasse o sentimento da repugnância. Podia-se dizer que era quase formoso. Ao vê-lo caminhar no meio, daqueles foragidos de olhar torvo e asquerosamente vestidos, dir-se-ia que era antes um prisioneiro que o chefe de semelhantes homens. O jovem capitão dos bandidos samaritanos chamavam-se Dimas, nome que trinta e dois anos depois devia ser imortalizado no cume de Gólgota pelo Martir da Cruz, o Redentor do homem.

Quando algum defunto era levado pela rua em que vivia Dimas, êle acompanhava o fúnebre préstito até o vale de Josafá, oferecendo-se sempre a ajudar os coveiros a colocar o cadáver no sombrio sepucro.

- Que fazeis em minha casa? – perguntou Dimas com assombro. - Tomo, com autorização da lei e do poder romano, o que teu pai devia, respondeu o velho. - O sôpro da morte emudeceu a bôca a meu pai, porém nosso jurar elo Deus invisível de Abraão, de Isaque e Jacó, que êle nunca me disse nada a respeito da dívida que agora reclamas.

Dimas, aturdido, com o coração traspassado pela dôr e pela surpresa, não encontrava em si palavras com que

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responder àquele velho, que o lançaria na miséria. As testemunhas afirmaram a verdade das palavras do fariseu, e o malsim continuou a confiscar tudo que via, sem se importar com a atitude dolorosa do pobre órfão. - Pois bem; levem o meu erário, todos os meus vestidos, a minha cama, se querem; não me oporei a isso. Sou

- Miserável! bradou Dimas, agarrando nervosamente o velho fariseu pelo pescoço, tu e meu pai descerão ao mesmo tempo à sepultura. As testemunhas arrancavam o fariseu das mãos de Dimas, não sem custo, e duas horas depois o jovem órfão era posto em uma escura masmorra da torre Antônia.

CAPÍTULO III AJUSTE É AJUSTE

6 Tanto a dôr como o prazer tem o seu têrmo, e ambos se dissipam quando o coração se enfastia ou endurece. O pobre órfão acabou por não ter mais lágrimas. Três meses permaneceu, esquecido dos homens em húmida e sombria prisão, sonhando com a anelada hora da xingança.

Cidade NovaDimas desejou comprar um daqueles punhais e com o olhar no mostrador, começou a procurar a arma para

silcos de prata,Dimas examinou-a por um momento; mas, lembrando-se de que não possuia um miserávelób ul o, disse ao vendedor:

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- Queres fiar-me esta navalha? Dar-te-ei por ela vinte onças romanas, e isto antes que a lua nova alumie com os seus raios o alto minarete da terra de Davi. - E quem me responde pela tua palavra? Bem sabes que nunca te vi.

- Se me enganares, peor para ti! disse, entregando-lhe a navalha; se tiveres palavra, então que Jeová te proteja e te salve dos perigos a que a tua vingança te vai expôr.

E, sem esperar resposta, caminhou rua adiante, atravessou a porta das Cabras e foi sentar-se à sombra de um robusto sicômoro, de cuja fruta comeu com apetite, pois bastantes horas havia que não tomava alimento algúm. Em seguida empunhou o cabo da navalha, e vibrou um forte golpe no tronco da nodosa árvore. A folha da arma enterrou-se umas três polegadas. - Oh! Tem boa tempera! disse consigo, nem sequer dobrou a ponta: bem póde entrar toda a folha de um só golpe na garganta ou no coração daquele que atirou com o cadáver de meu pai aos cães da vala dos leprosos.

fragoso dos bosques. De noite abandonava as guaridas incultas para assitar os indefesos caminhantes; porém nunca o infeliz órfão, que aborrecia o sangue por instinto, empregou outras armas além da ameaça para despojar as vítimas.

Era impossível retroceder e via que era indispensável que as suas aventuras fossem em maior escala.

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- Salteador por salteador, disse consigo, busquemos então o ouro. Tanto se arrisca a vida roubando umse sté rc i o1 como um talento2 hebreu. Tanto se perde a honra roubando uma pomba como um boi.

7 Após esta resolução, Dimas levantou-se, e agitando os compridos cabelos com um movimento enérgico de cabeça, lançou um altivo olhar pela solidões que o cercavam e, afagando o cabo tosco da navalha, murmurou: 1moeda de cobre de pouco valor.

- Quando se estima pouco a vida, o homem pode chegar a ser muito. Sim, é preciso que eu seja o rei dos bosques, o terror de Israel.

Os mercadores do Egito, de Damasco, de Tiro, e Sidon, viam-se frequentemente assaltados ao meio dia nas estradas mais concorridas.

Dimas parecia o anjo do mal, quando depois da sua queda se sentou á borda do abismo a contemplar por um instante a horrível mansão, que Deus lhe concedia em castigo da sua louca soberba. CAPÍTULO IV OS BANDIDOS

Esta cinta de flutuante renda, esta manga de pó que parecia brotar da terra, eras as névoas do Jordão que iam subindo para o céu em vaporosas e húmidas emanações.

Dimas, firme no seu propósito, depois de certificar-se de que o punhal permanecia oculto nas dobras da túnica,

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desprendeu do cinto uma larga funda, formada de folhas de palmeira seca, colocou nela uma pedra de três polegadas de

Dimas passou várias vêzes a mão pela fronte e, tirando a comprida navalha, principiou a afiar a ponta do instrumento com que tinha vingado a morte do pai. - Vamos, valor, Dimas! A morte é um instante: a vida é longa e pesada quando se tem fome e se dorme ao relento.Dirigiu-se resolutamente para o castelo, a cuja porta bateu três vêzes com uma pedra que apanhara no chão.Ninguém respondeu. Então, seguro de que o castelo estava abandonado, examinou com atenção o muro que o cercava e,

8 achando um pedaço derruido pelo qual se podia escalar a fortaleza mais fácilmente, começou a trepar pela muralha com o punhal entre os dentes. Se lhe tivesse fraqueado uma das mãos, se se despegasse uma pedra, com certeza sua morte seria inevitável, pois o corpo, rolando no abismo, ter-se-ia desfeito em sanguinolentos pedaços de encontro às salientes arestas da rocha.

De repente ouviu-se um rumor áspero e singular no pavimento como se tivessem corrido um ferrolho ou uma tranca de ferro humedecido. O órfão continuou a comer como se nada tivesse ouvido; só por precaução pegou no punhal.

Os bandidos entreolharam-se com assombro. CAPÍTULO V DIMAS EMPENHA SUA HORA PARA PAGAR O SEU PUNHAL

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Aquele moço imberbe, criança quase, fitava-os com olhar sereno e sorriso nos lábios. Tinha o coração e o espírito tranquilo ante as afiadas lontas dos punhais que lhe ameaçavam a existência. Só um homem ousado podia ter assaltado aquela mansão de horror, que êles habitavam, aquele teatro das suas cenas vandálicas, o espanto dos camponezes samaritanos.

- Ninguém lhe toque! Exclamou um bandido cuja barba branca, gesto altivo e luxuoso trajo diziam claramente que devia ser o capitão.

9 proezas, deseja que o aperfeiçoes com o vosso saber nos segredos da arte. Os bandidos soltaram uma ruidosa gargalhada. - Rides? Atalhou Dimas imitando a hilaridade dos fascinoras. – Estimo, pois vejo que já principiamos a ser amigos. Vou, portanto, pedir-vos um favor. Quereis emprestar-me vinte onças romanas?

- Obrigado, capitão. Dimas te mostrará que não semeaste o benfício em terra infértil. - O meu nome, repôz o velho capitão, é Abadon3 Sou samaritano; não esqueças, pois, o que vou dizer-te: com a mesma facilidade estenderei a mão para proteger-te como para exterminar-te. - Jamais o olvidarei. Agora dá-me licença para partir; antes de quatro dias será a lua cheia, e daqui a Jerusalém há três longas jornadas. 1 Belsebuth ou deus das moscas, adorado pelos filisteus. Chamavá-se assim porque estava sempre coberto de moacas por causa de se achar incessantemente borrifado de sangue. (Lamy, Aparato Bíblico, liv. III, Cap. I)

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2 Ídolo da fortuna 3 Anjo exterminador

Abadon olhou um instante para Dimas: este manteve aquele olhar com tal nobreza e serenidade, que o capitão respondeu: - Não é necessário; fio-me na sua palavra; porém conduze-o pelo caminho comprido.

- Por Jacó! exclamou Dimas, se não me dás a mão para guiar, com certeza vou deixar os miolos em alguma destas rochas que ameaçam cair sôbre as nossas cabeças. Segue-me sem receio; o piso é suave, e a abobada é tão alta que Golia e Saff, se vivessem, poderiam passar sem inclinar a cabeça. E dizendo isto, o bandido estendeu a ponta do seu manto a Dimas. O jovem aventureiro sentia de vez em quando sôbre o rosto um ar fresco, que lhe indicava que alguns buracos

guarida, há de ter bastante trabalho para darem conosco. Dimas compreendeu que tratava com homens prudentes e entendidos no ofício, e isto foi um motivo de jubilo para êle. Por fim o bandido deteve-se, dizendo: - Chegamos. Ajuda-me a erguer esta pedra....Dimas obedeceu, e pouco depois via os raios da lua, que brilhavam como fios de prata sôbre o extenso vale que

apenas tinha fôrça para gitar as folhas das árvores. 10 1 Fogo do céu.

- Tu, que has de ser prático no curso dos astros, sabes a que horas estamos da noite? perguntou Dimas.

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- É cedo; achamo-nos apenas à cabeça de osgelis;1 antes que chegue a hora do cantar do galo poderás encontrar- te em Betel.

- Obrigado; seguirei teu conselho. - Então a paz seja contigo; já chegámos ao lugar em que é preciso separar-nos. Segue êsse atalho que te conduzirá a Betel. A noite está clara e, dormindo nós, a terra de Samaria está mais segura que o palácio do Idomeu.1Antes de nos separar-mos quero fazer-te uma pergunta. Quando eu voltar, por onde devo introduzir-me no castelo?- Pela muralha, como fizeste hoje. Se não estivermos lá, espera.Dimas tomou o atalho que conduzia a Betel, e Uries principiou a subir a encosta do monte em direção à sua guarida. Dimas, enquanto caminhava, dizia a si mesmo, acariciando as moedas de prata, que tão generosamente lhe havia emprestado o velho capitão.

CAPÍTULO VI OS CADÁVERES Dimas seguiu o conselho de Uries. Atravessando os atalhos mais ínvios, chegou à torrente do Cedron três dias depois, e entrando na cidade sacerdotal pela porta judicial, dirigiu-se para a baixa Jerusalém, que era 1 Herodes o grande

- A paz de Deus seja contigo; disse Dimas entrando. - O cutileiro ergueu a cabeça, sem suspender o movimento do pé direito que fazia girar o rebolo, e fixou um

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O tilintar da prata impressionou agradávelmente os ouvidos do judeu, a julgar pelo sorriso que lhe animou o

meu nome, algum dia a saberás. Chamo-me Dimas, não o esqueças. Grava bem na memória as cinco letras de que o meu nome se compõe. - Deus de justiça! Porventura serás o assassino do sacerdote Isaac, d’esse velho avarento e de má condição, que os céus confundam?

11 Sim, assassinei-o, porque assim devia fazê-lo: a navalha que me vendeste foi o instrumento de que me servi. Agradeço-te em nome de meu pai, e em meu nome entrego-te as vinte onças romanas. Dimas, sem esperar resposta, tomou pela rua adiante, deixando o cutileiro absorto e aturdido.

Duas grossas lágrimas assomaram-lhe às palpebras e erguendo os olhos ao céu, murmurou: - Meu pai e senhor, tu foste bom durante a tua vida, e enquanto vivi ao teu lado fiz sempre por imitar a tua honradez. Porque motivo ao veres a angústia de teu filho, não me chamas para que possa dar-te sepultura digna de ti? - Tornou a curvar-se sôbre a terra, e com auxílio da navalha continuou a interrompida e penosa tarefa de remover aquele montão de ossos e corrompidos cadáveres meio insepultos, que os seus pés calçavam. -

-

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- - on oc r ót a l o1 ,--

1

---- -

E Dimas, deixou cair a cabeça com abatimento sôbre as mãos. Assim permaneceu por bastante tempo. A brisa da tarde começou a gemer por entre os ramos das árvores, e êle ainda permanecia imóvel. - O zéfiro noturno suspirou por entre as plantas do campo, e Dimas não se movia do lugar onde estava. -

- -

De repente, um suspiro angustioso e prolongado escapou-se-lhe do de seu peito.

- Quando se achou dentro, dirigiu-se para a cozinha, e achou-a deserta. Estendeu-se no chão e esperou. 1O onocrótalo é o corvo noturno dos hebreus e dos gregos. Têm nas fauces outro estômago qu enche depois de farto para ruminar a carne nosmomentos de fome. O seu pio é triste e horrível; às vezes com o pescoço na água imita o zurrar do onago.

12 Cumpriu a palavra, disse Abadon, dirigindo-se

aos seus. Parece-me que poderemos tirar proveito deste rapaz. CAPÍTULO VII O BATISTMO DE SANGUE

Dimas, medianamente instruido, nas Escrituras sagradas por um rabino, amigo inseparável de seu pai, tinha a

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vantagem de saber ler e escrever o hebreu com bastante correção.

Então os bandidos aconselhavam Dimas abandonar o seu nome que nenhuma significação divina tinha entre os hebreus, e tomar outro que expressasse uma condição celeste ou honrosa para aquele que o usasse. Todos os sentimentos como um filho, gritava um bandido: ponhamo-lhe o nome de Davi2, que é o nome que lhe corresponde. Não, não, dizia outro. Jeová enviou-o para o meio de nós, e portanto deve chamar-se Samuel3. Dimas ouvia com o sorriso nos lábios as contendas dos seus companheiros, e acabava por convencê-los que o nome posto pelo pai era melhor e o único que devia trazer um filho.

Dimas conheceu que para conseguir seu intento era preciso deixar correr o tempo e os acontecimentos, ou rodear-se de nova gente por conseguinte resolveu esperar melhor ocasião. Uma noite os bandidos souberam pelos seus esculcas que uma caravana que conduzia a Jerusalém preciosas mercadorias de Tiro, havia acampado em um barranco das cordilheiras de Jope. Abadon tratou de a assaltar, e saiu da inacessivel guarida, seguido dos seus terríveis companheiros. 1Pe nt ate uc ho, palavra grega que significa cinco volumes e que são: o Gê ne s is, o E xo do ,o Le v ític o ,o s N úme r o se o D e ute r o no mio. É o únicolivro que os samaritanos veneram, tendo-o como divino e como único. 2Ama d o3Posto por Deus

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13 Sem as formosas brisas da noite, sem a viração

perfumada do zéfiro noturno, o mundo seria um árido deserto, um paramo inabitável. Os salteadores deslisavam de rocha em rocha em direção ao ponto indicado pelos esculcas. Seria meia noite quando se detiveram no cume de um outeiro. Uriés, que era o mais conhecedor do terreno, separou-se dos companheiros para explorar as cercanias do outeiro, pois segundo os seus cálculos, a caravana devia achar-se acampada por aqueles sitios.

- Que há? Disse-lhe secamente o capitão ao vê-lo chegar.

- Isso talves seja apreensão tua, atalhou outro bandido. - Tenho bons olhos; já sabes que me engano poucas vêzes... mórmente de noite. - Nada tem de singular, tornou a dizer Abadon, que em alguma cidade dos arredores se tenha reunido um ou

para o nosso capitão como trofeu de vitória, exclamou Dimas cheio de ardor. - Tens razão: desçamos à planície, repôs o velho capitão.

Os romanos não podiam fazer mais que bater-se até morrer, e assim o fizeram. Porém as suas mortes deviam custar caro aos samaritanos.

A lua, sempre clara e formosa, alumiou, com os seus dúbios e poéticos raios aquele combate, aquela cena do sangue em que seis homens haviam exalado o último alento e seis ficado gravamente feridos.

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Já o dia ia bem adiantado quando chegaram ao monte Hebal. A poucos passos da entrada subterrânea os bandidos detiveram-se. - Que devemos fazer aos camelos? Perguntou Uriés dirigindo-se a Dimas, como se êste fosse o chefe da quadrilha. Descarregai-os e, em seguida, voltai-lhes a cabeça para o lado do mar, daí-lhes a voz de marcha e que vão

através do monte, em direção ao oeste. O mancebo era Dimas, que havia seis meses

capitaneava os foragidos, alcançando de dia para dia mais afeto e domínio nos seus corações. Explicado o procedimento do moço bandoleiro, sigamo-lo, apesar da noite tempestuosa e das escabrosidades do terreno. CAPÍTULO VIII UM GOLPE DADO EM FALSO - Com que então, amigo Uries, dizia Dimas a um dos bandidos que caminhavam a seu lado, com que então afirmas que a caravana egípcia, apesar do seu aspecto pobre e miserável, conduz um tesouro?

- Os negociantes egípcios são desconfiados, odeiam os romanos e receiam ser roubados por aqueles mesmos a

- Nada ofereci; foi êle que fez as suas exigências; de maneira que, se nada lhe dermos, não faltaremos à nossa palavra. - Vejo que és astuto e prudente.

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dom de agradar,- És um sábio, Ureis, e os nossos companheiros fazem bem em dar-te duas partes nas prezas.

- Dimas sorriu-se ao ouvir as palavras do bandido, que era tido entre os seus camaradas, como o mais astuto da quadrilha.

de nos fazer dar um passeio por êstes barrancos. - Falai mais baixo, que chegámos, disse Uries, aproximando-se dos camaradas. Por aqui deve passar a caravana

voz baixa. Embrulhai-vos nas vossas capas e cuidado com o sono. Ao primeiro grito de alarma, todos ao meu lado.

Meia hora haveria que os bandidos se achavam acampados no baranco, quando o canto monótono do cuco principiou a ouvir-se. Uries ergueu-se como o chacal que ouve os passos do caçador e os latidos do cão; que deu com o

a Jericó entre duas alas det er ci ar i os romanos. - Por Isaac, explica-te melhor e depressa! Exclamou Dimas com impaciência. - Não sabeis ainda a nova, repôs o espião, que agita o povo de Israel, e faz estremecer o tirano Herodes no seu palácio? - Nas montanhas de Samaria só se ouvem os uivos dos lobos, redarguiu o jovem capitão.

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sofrem revista escrupulosa, e esta sorte coube aos egípcios que esperáveis por êste barranco, pois a estas horas caminham para Jericó, custodiados pelos legionários do rei de Jerusalém.

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- De modo que o tesouro... disse Dimas. - Vai cair em poder de Herodes, atalhou o espião que, ao saber o seu destino, se apressara a remetê-lo para Roma como uma manifestação do respeito, que lhe inspira a cidade ímpia. Dimas encolheu os ombros, e disse com impassível entoação: - A emprêsa malogrou; é preciso resignar-mo-nos a esperar ocasião melhor. No entanto, não deixaria de ser conveniente continuar na pista da caravana. - Sou da mesma opinião, disse Uries. Quem sabe? Herodes pode confiscar o trigo e pô-lo à venda, e nesse caso

- Recebe este cinto: contém dozemi nas hebreias, que te bastarão para comprar o carregamento; porém não

decidira. Ninguém proferiu uma palavra, nem uma queixa; no entanto, os rostos dos bandidos manifestava-se claramente o desgôsto daquele contratempo. Uries e Adão tomaram o caminho de Jericó, e os bandidos dirigiram-se pragueiando para os monte da Samaria. Tinha cessado a chuva; porém a noite continuava escura, ouvindo-se de vez em quando a longínqua e ameaçadora voz do trovão.

Já perto do castelo de Hebal, ao atravessarem um fragoso barranco, ouviram passos.

A criança dormia no regaço materno, e estava cuidadosamente envolvida em uma capa côr de corinto: a mãe chorava em silêncio, e o ancião orava em voz baixa. O trovão continuava a ribombar por cima das cabeças dos pobres viandantes. De repente o ancião parou,

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porque ao dobrar uma curva do barranco viu surgir um homem, que lhe pôs ao peito as afiadas pontas de uma lança,

LIVRO SEGUNDO ESTRELA DO MAR CAPÍTULO I

M A R I A 17

O rócio celeste cai sôbre os teus campos; Jeová sauda-te do seu trono de luz, e os anjos cantam o hino da benvinda, porque as profecias vão cumprir-se.

Pobre e tosco linho lhe cobre os delicados membros; uma choça a alberga e humildes mulheres do povo rodeiam o seu berço e recebem o seu primeiro sorriso.

O seu nome será para os aflitos “mais doce aos lábios que um favo de mel, mais apreciável ao ouvido que um cântico suave, mais delicioso ao coração que a alegria mais pura”2

Porém, não adiantemos os sucessos. Sigamos as sagradas tradições do Oriente, e com elas à vista e a fé na alma, Deus nos dará fôrças para levarmos ao fim a difícil peregrinação que impusemos a nós mesmos. Em Nazaré, pequena cidade da baixa Galiléia, vivia um homem honrado, conhecido pelo nome de Joaquim, da tribo da Judá e da descendência de Davi por Natã. Sua espôsa chamava-se Ana. Ambos eram bons e observavam com a fé no coração os mandamentos de Jeová; porém o Senhor afastava

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deles os olhos, e Ana era estéril depois de vinte anos de casada. Joaquim podia quebrar aqueles infecundos laços, dando a sua mulher a carta de divórcio, que a lei dos fariseus com tanta facilidade concedia. Lei bárbara e desumana, em que as espôsas se convertiam em escravas e os maridos em despóticos senhores.

Passou um lua e outro lua, e por fim em uma manhã do mês de Tirsi3 Ana foi mãe, e Joaquim apresentou aos parentes e amigos uma menina, formosa como um anjo, loira como o ouro em pó dos mercadores do Egito.

Este nome era Mirian (Maria) nome que um língua siríaca significaSobe r a na, e na hebreia Estrela do Mar. E como dar-lhe outro nome que melhor explicasse a alta dignidade da Virgem, que havia de gerar em seu seio o martir do Calvário? S. Bernardo disse: “Maria é com efeito aquela formosa e brilhante estrêla que brilha sempre sôbre o mar vasto e tempestuoso do mundo”. antes de Cristo. A hora do seu nascimento foi ao amanhecer, e a

dia sábado. 18

A mulher hebreia purificava-se solenemente no templo oitenta dias depois do parto, oferecendo no altar sagrado um cordeirinho branco ou duas rolas, sendo pobre, ou uma côroa de ouro, sendo rica.

Ana criou Maria ao peito, porque Judá as mães tinham a obrigação de amamentar os filhos.1

CAPÍTULO II

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A VIRGEM DE SION the phl l i ns4 ,tale t5 em respeito aos anjos do

santuário.1 Em todos os livros da Escritura não se encontram senão três amas: a de Rebeca, a de Mefibosél e a de Joás. Deve notar-se que Rebeca, a espôsa deIsaac, era estrangeira; e os outros princípes

Te phili m, pequeno pedaço de pergaminho, sôbre o qual os fariseus

escreviam com tinta feita de próposito versículos da Escritura,

colocando-odepois no braço direito ou ao meio da testa. Estava isto

muito em voga no tempo de Cristo e era um sinal de distinção.

(Bernage, Hist. dos Judeus,livro VII, cap. VII 5Tale t, manto quadrado que os judeus levavam para fazerem a oração, e com o qual cobriam o rosto.

19 “Os sacerdotes e os levitas, reunidos no último degrau do estrado, receberam das mãos de Joaquim a vítima da prosperidade

e c hane os1c or nos“O resto da vítima, exceto o peito e a espádua direita que pertenciam aos sacrificadores, foi entregue ao esposo de Sant’Ana, que dividiu pelos seus parentes mais próximos, segundo o costume do seu povo. “Os últimos sons das trombetas sacerdotais ecoaram ao longo dos pórticos; e o sacrifício ardia ainda sôbre o altar de bronze quando um ministro do templo desceu ao átrio das mulheres para determinar a cerimônia.

Oh Israel, que o Eterno dirija, sôbre ti a sua luz, e te façaprosperar em tôdas as cousas e te conceda paz. “Um cântico de gôzo e de ação de graças, harmoniosamente acompanhado pelas harpas sacerdotais, terminou a apresentação da Virgem”. Tal foi a cerimônia que teve lugar no templo de Sion nos últimos dias de novembro.

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Zacarias, príncipe dos sacerdotes de Ain e parente de Joaquim e Ana, foi quem recebeu a meiga Virgem dos braços de sua mãe, para depositar ao lado das suas companheiras na casa de Deus.

“Oh Deus!, Que vosso nome seja santificado neste mundo que criastes segundo a vossa vontade: fazei reinar ovosso reino: que a redenção floresça e que o Messias apareça sôbre a terra8.Isto entoavam ao som das melodiosas harpas as virgens do templo, e o povo respondia-lhes com fervor, inclinando as frontes para o chão: “Amém, amém!” Em seguida repetiam os inspirados versículos do belo salmo dos profetas Ageu e Zacarias: “O senhor levanta os que estão caidos, e ama os que são justos.“O senhor protege os estrangeiros: Êle protegerá também a órfã e a viúva, e destruirá o caminho dos pecadores. “O senhor reinará em todos os séculos: o teu Deus, ó Sion, reinará em todas as gerações”. 1Sacrificador ordinário2 Nos quatros cantos do altar dos holocaustos havia quatro pilares pequenos e ocos, por onde se via o sangue das vítimas. Eram estes osc o r no s doaltar em que tanto fala a Sagrada Escritura. ( Hist. dos Judeus) 3Besnage afirma que para o simples sacrifício de um cordeiro empregavam-se dezoito sacrificadores4Os judeus não se serviam nem do sôpro da boca, nem de foles para acenderem o fogo do altar; excitavam a chama derramando óleo sôbre oscarvões acesos. – (Hist. dos Judeus) 5Território de Nauplus (Turquia asiática) único bosque d’onde se tirava a lenha para os sacrifícios. – (Correspondência do Oriente, tomo IV)6Gran sacerdote hebraico e descendente de Sansão, que morreu ao saber que os filisteus se haviam apoderado da Arca santa, no ano de 1112 antes deCristo.

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7Enquanto o pontífice dava a benção, o povo era obrigado a tapar dos olhos com as mãos, afim de não vêr a mão do sacerdote, cousa que não erapermitida. Os judeus imaginavam que Deus estava atrás do sacerdote, e os olhava através das suas mãos estendidas, e não se atreviam a levantar os olhos para êle, porque ninguém pode vêr Deus e viver ao mesmo tempo. (Besnage, liv VII) 8Esta oração é a mais antiga de tôdas as que os judeus conservam; alguns escritores respeitáveis afirmam que estava em uso antes de Cristo, e que osApóstolos a adotaram com preferência na Sinagoga.

20 Maria permaneceu no templo de Salomão até aos quinze anos, sendo modêlo de virtude e santidade entre as suas companheiras.

Fio da Virgem1 formosa até ao deslumbramento, e que a teria adorado como a umDeus, se não soubesse que havia um só. Santo Epifânio, no século IV, descreve-a deste modo: “A sua estatura era mais que mediana; a tez, levementeNa pura e imaculada urna, que encerrava o seu espiríto, haviam-se reunido tôdas as perfeições que o Eterno pode conceder à criatura.

- Cobre a cabeça com o teu manto, e segue-me - Para onde, senhor? - No seu leito de morte está um homem exalando o último suspiro da vida. Jeová o está chamando para a casados vivo3, e antes de deixar os parentes para sempre quer abençoar-te.- É meu pai, exclamou Maria na dôr mais cruel. - Sim, é teu pai, respondeu o sacerdote, com acento religioso. Joaquim morreu, como morrem os justos: rodeado

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da família, e ouvindo em tôrno de si as orações e os soluços dos parentes e amigos.

c ame l ote4- Mulher, perguntou a Virgem, por desgraça morreria a mãe da minha alma? - Não, respondeu a carpideira, ainda vive; porém as minhas lágrimas anunciam, que a sua a última hora está próxima.

- Oh! Jeová! Faça-me a vossa vontade!1Os tecelões franceses da Idade Média, em comemoração de Maria, levavam nas festividades um estandarte com uma Virgem e uma legenda quedizia: Nossa Senhora, a rica.2As azeitonas na Palestina são de um verde azulado.3O sepulcro chama-se entre os judeus a “casa dos vivos”, para mostrar que a alma imortal aind vive depois de se separar da matéria. – (Besnage, livVII, cap. XXIV) 4Túnica de luto de lã de camelo

21 Zacarias, espôso de Isabel e pai de S. João

Batista, o Precursor de Cristo, foi o tutor que Joaquim escolheu para sua filha na hora da morte. CAPÍTULO III O ANEL DE OURO Moisés disse: “Quem não deixar descendência em Israel, será maldito”. Por conseguinte, a lei obrigava Maria a tomar esposo.

Qual deentre os deuses é semelhante a ti, ò Eterno? Estas cousas eram a esperança do povo Israelita desde que os assírios, derrotando-o com suas vencedoras legiões, o levaram cativo para as margens do Eufrates.

Segundo as sagradas tradições, vinte e quatro pretendentes aspiraram à mão da Virgem. Entre êles encontrava-se

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José, o carpinteiro de Nazaré, e Agabuz, o nobre jerosolimitano. José era pobre, humilde e ganhava o sustento com o trabalho das suas mãos. Teria quarenta anos,2 e a sua veneranda cabeça achava-se coberta de cans.

Porém os sacerdotes desprezaram as riquezas, e escolheram o pobre carpinteiro de Nazaré. Deus havia-lhes recordado o vaticínio de Isaias que dizia assim: Sairá uma vara da raiz de José, e da sua raiz uma flor preciosa”.

a nãoser, dizia a lei, que quisessem fazer deles uns salteadores. Por outra parte José, ainda que pobre operário, descendiade David; e nas outras veias, portanto, girava-lhe sangue dos reis. Os esposórios de José e Maria celebraram-se com a poética singeleza dos tempos primitivos. O noivo, na presença dos parentes e dos sacerdotes, ofereceu um anel de ouro liso e de pouco valor à futura espôsa, dizendo-lhe: - Se consentes em ser minha espôsa, aceita esta prenda. 1Este jejum era a abstinência completa de todo e qualquer alimento por espaço de 24 horas.2Alguns escritores atribuem a S. José oitenta anos na época do seu casamento; porém entre os hebreus, a união de um velho com uma jovem eraproibida nos termos mais humilhantes e vergonhosos; por conseguinte, em virtude de todos os pareceres e tendo em conta a lei, fixámos-lhe 40 anos de idade.

22 z uc e s1 ,Neste lugar assinava o marido e as

testemunhas, e em seguida continuava o contrato. “Maria consentiu em ser

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espôsa de José, e de própria vontade, conforme os seus bens, ajuntou à soma anteriormente indicada oitocentosz uc e s2 .Depois desta cerimônia deram-se louvores ao Deus de Israel, sendo no fim abençoados os dois esposos por um sacerdote, que representava o pai de Maria. Decorreram cinco mêses, durante os quais os parentes dos desposados prepararam a segunda cerimônia, que era entre os israelitas a mais importante. Chegou por fim o dia aprazado, que era uma quarta-feira3 do mês de janeiro.

A comitiva rompeu a marcha em direção ao templo. José ia adiante, rodeado dos seus alegres amigos. A dança e os gritos de alegria começaram, e as mulheres, derramando essências sôbre os vestidos da espôsa, e flôres pela terra que pisava, entoaram com tôda as fôrças dos pulmões: - Bendita seja a descendente de Davi!

O pálio recebeu os dois esposos debaixo do seu augusto docel: Maria levava o rosto coberto com um véu, e José ia envolvido no seutale t.- Eis aqui, disse José colocando um segundo anel no dedo médio de Maria, eis aqui o sinal da nossa união; tu és

Depois um parente encheu de vinho uma taça de vidro, aplicou a ela os lábios e deu-a aos esposos para que bebessem também.

Enquanto os convidados se entregavam ao buliçoso encanto da conversação, José disse em voz baixa a sua espôsa:- Tu serás como minha mãe, e hei de respeitar-te como ao mesmo altar de Jeová.

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CAPÍTULO IV O ANJO GABRIEL Nazaré, a flôr da Galiléia, recebeu no seu amante seio os castos esposos. Jesus, a rosa do campo, o lírio do vale, ia ser concebido nas virginais entranhas da Estrêla do Mar. O Patriarca exercia a sua profissão de carpinteiro em uma loja de doze pés de largura e outros tantos decomprimento, afastada da casa de Ana cousa de setenta passos.

tr abal ho 23 fresca com que mitigar a sede, saboroso pão amassado pela Virgem com que matar a fome, um teto hospitaleiro que os livrava dos ardentes raios do sol, e um homem bom e afável que lhes oferecia a sua pobreza com o sorriso nos lábios.

O braço de José era forte, e mais de uma vez o santo operário derrubou a golpes do seu machado as robustas árvores do Carmelo.

Assim decorreram dois meses. O anjo da paz abrigava debaixo das suas niveas asas a modesta morada dos futuros pais do Messias. Um tarde3 José encaminhou-se para o monte. O crepúsculo vespertino só derramava sôbre o mundo essa dúbia e vaga claridade que o sol deixa após si. A noite estava próxima e José não voltara ainda do Carmelo.

- Eu te saúdo, Maria, cheia de graça: o Senhor é contigo: Tu és bendita entre tôdas as mulheres. Maria, com os olhos fitos no chão, não se atrevia a descerrar os lábios.

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, volveu o anjo com doçura, inclinando a fronte,- Como há de ser isso se não conheço varão? – disse Maria singelamente, não sabendo como conciliar o título de mãe com o voto de virgem oferecido junto do altar do Sião. “A virgem não duvida, diz S. Agostinho. Ela deseja instruir-se no modo como deve operar-se o milagre”. - O espírito Santo descerá sôbre Ti, ajuntou o anjo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com o seu nome. Eis porque o Fruto Santo que de ti há de nascer será chamado o filho de Sion. O mensageiro de Jeová quis deixar uma prova da verdade das suas palavras à Virgem escolhida como a urna santa, que devia ser por nove meses a depositária do Verbo Divino; e por conseguinte continou: - Isabel, tua prima, concebeu um filho na senectude, e este é o sexto mês de gravidez daquela que era reputada estéril, porque nada há impossível a Deus. Maria, comovida ante os benefícios de Deus, julgando-se na sua grande modéstia indigna da escolha com o que o Eterno a honrava, inclinou a fronte com humildade dizendo: - Eis aqui a escrava do Senhor; cumpra-se em mim o que a sua palavra ordena.

maometanos para o de Meca, os sabeus par ao meio dia e os magos para o Oriente. – (Orsini)

24 Antes de transpôr os humbrais dos ricos parentes da rosa de Nazaré, diremos duas palavras a respeito do pai de S. João Batista. Ouçamos o que diz Ataulfo da Saxônia, referindo-se ao texto de S. Lucas:

Até aqui! Ataulfo da Saxônia.

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- Eu sou velho, minha espôsa também. Como poderei saber que é verdade o que me dizes? Os olhos do enviado de Jeová despediram um raio de luz celestes, que foi ferir a língua do incrédulo.

Isabel lançou-se nos seus braços dizendo: - O Deus de Jacó ouviu as minhas súplicas. Sou mãe! Sou mãe! Sinto nas minhas entranhas o germen de um

CAPÍTULO V A PAZ SEJA CONTIGO

A jovem e formosa viajeira, montada n’a modesta burrinha e rodeada de algumas boas mulheres, que com ela se dirigiam para as montanhas da Judéa, abandonou em uma manhã a pátria adotiva. 1Segundo o que estabelecera Davi, os sacerdotes judáicos estavam dividios em 24 turnos, cada um dos quais servia no templo uma semana. Cadaturno estava subdividido em sete partes. Zacarias era dos turnos de Abia. – (Prid Hist. dos Judeus)

25 Kar avanse re y via sanguináriaA virgem viu chegar

a nobre anciã com o semblante alegre e cheio de felicidade, e inclinando para o chão a fronte, disse com doçura: - A paz seja contigo!1

Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre!E vendo que Maria conservando a sua humilde atitude não proferia palavras acrescentou:

Isabel, a imortal espôsa de Zacarias, ferida nos olhos da alma pelo sôpro misterioso de Jeová, tinha visto através do ignorado futuro o trono de glória, que o Eterno reservava a sua prima. Porém ouçamos as palavras da Virgem, o cântico poético e sublime do Novo testamento, o mais inspirado, o

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mais harmonioso das Santas Escrituras, dêsse livro que tem sido e será eternamente, o inexgotável manancial da

be he mot h31Esta saudação foi empregado por Cristo muitas vêzes, e hoje é muito comum no Oriente.2Neste vale possuía Zacarias duas casas. A entrevista efetuou-se na primeira, que está mais ao ocidente de Jerusalém, e o nascimento de Batista nasegunda. 3Animal em que fala o livro de Job. Uns julgam que é o hipopótamo, outros o rinoceronte; porém segundo oT al mu d dos judeus é o touro primitivo,o qual consumia todos os dias a herva de dez montanhas, que tornavam a cobrir-se de nova vegetação durante a noite para o alimentar. Êste touro, no dia do juízo, será comido pelos fiéis em um banquete presidido pelo Messias que, segundo êles, deve vir ainda salvá-los.

26 “Então, à imitação do Salmista, a Virgem Santa convidava a natureza inteira a bendizer com Ela o Criador. Nas suas excursões através dos prados comprazia-se na contemplação das flôress, que encontrava ante os seus passos.

par aiz os profeta e mais que profetaO vinho das colinas de Engahdi, que o mordomo do príncipe dos sacerdotes guardava em cubos de pedra, circulava em ricas taças que os criados enchiam com semblante alegre. Maria, tão sóbria no seio da abundância como no da mediania, contentava-se com algumas frutas, um pouco de pão, e um copo de água da fonte deNa pht oa .Assim decorreram três meses, durante os quais Maria foi para a idosa Isabel uma filha terna e solícita. Zacarias, entretanto, mudo e surdo por causa da sua dúvida ante o enviado de Jeová, esperava com santa

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resignação que a bondade do céu descesse sôbre êle, devolvendo-lhe os preciosos sentidos que lhe tinha tirado.

Os parentes reuniram-se, e tratou-se do nome que se devia pôr ao recem-nascido. Todos optaram pelo de Zacarias; porém Isabel disse aos parentes com firme e segura: - Não, meu filho será chamado João Então, o velho sacerdote, a quem por sinais os parentes perguntavam, que nome devia pôr-se definitivamente a seu filho, pediu uma taboinha encerada e um ponteiro, e escreveu estas palavras, com mão firme: “João é o seu nome”.Os circunstantes entreolharam-se com assombro.

Por fim, chegou a hora em que a Virgem Santa devia abandonar a casa dos seus parentes, e depois de abraçar e abençoar o recem-nascido, voltou para Nazaré, acompanhada por alguns criados de Zacarias. O nascimento do Batista foi festejado como o do flho de um príncipe hebreu. Os habitantes de Ain regosijaram- se por espaço dalguns mêses com as festas, que o sacerdote fez em celebração de tão fausto acontecimento.

Porém quem, não sendo um Deus, teria podido levar a cabo, em tão curto tempo, a obra da redenção que salva a humanidade?

G ul i st onMais adiante tornaremos a ocupar-nos de S. João Batista. Agora regressemos a Nazaré, onde nos esperam outros acontecimentos. CAPÍTULO VI

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1Os hebreus gostam muito de comer debaixo das ramadas, já pelo calor excessivo naqueles climas, já pelo antigo costume dos seus antepassados, quepor tantos anos viveram debaixo das suas tendas durante as suas longas peregrinações – (Fleury, Costumes dos israelitas)

27 O EDITO DO CÉSAR

: “A honra da filha de um príncipe consiste no interior da sua casa”.A Virgem chega à fonte; algumas nazarenas, que a seguem, chegam também, e trocando a saudação dos

Então as filhas de Nazaré reunem-se em tôrno da fonte. O estado da Virgem não escapou aos seus curiosos olhares. Uma delas observa às outras que Maria está grávida; regosijam-se e tenciosam propagar a nova pela povoação.

Então José, suspendendo o seu solilóquio, derramando um mar de lágrimas, permaneceu mudo e silencioso por alguns instantes. - Ela foi reconhecida grávida1 - tornou a murmurar o patriarca – todo Nazaré o sabe; os meus parentes jáAquele que tem consigo uma mulher adúltera é um louco, um insensato? Como devia sofrer aquele santo varão nos momentos de dúvida que o devoraram! Faltar à lei ou desonrar sua espôsa, eram os dois caminhos que a sua crítica situação lhe apresentava. A paixão dos ciumes é dura como o inferno, e o marido não perdôa, no dia da vingança. Isto disse Salomão.A mulher adúltera deve morrer, escreveu o grande legislador dos hebreus no monte Sinai.

1Os E va n g el ho s.

28

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José adorou os misteriosos decretos do Eterno, e vendo em Maria, a mãe do futuro Redentor, envergonhou-se das suspeitas que concebera.

ímpio império- Nada de bom pode sair da Galiléia, haviam dito as Escrituras.E os profetas designavam Belém de Judá como o lugar destinado ao nascimento do Messias.

K ar avanse r ayk aravanse r ayCAPÍTULO VII O BERÇO DO MESSIAS 1 A época da vinda de Cristo não é dogma: é sómente o seu nascimento. A multidão de autores que escreveram sôbre este assunto, discrepa de2Os jumentos da Palestina são de notável beleza.

29 Belém, terra imortal, cidade santificada,

desperta do teu sono, porque está a amanhecer o dia, e uma multidão de dromedários trepa pela tua suave encosta.

Os cavalos árabes, esporeados pelos cavaleiros luxuosamente vestidos, relincham e caracolam, manifestando assim o fogo do seu sangue e a pureza da raça.

- A paz seja contigo, bom velho, disse José saudando o judeu. - Que queres? - Minha espôsa e eu vimos escrever os nossos nomes no livro de Cesar; somos de Nazaré, e pedimos-te por

E voltando grosseiramente as costas a José, pôs-se a falar afávelmente com um romano, cujo cinturão de ouro e

30 - Não cabes aqui, galileu, respondiam-lhe os

inopistaleiros habitantes de Belém. E José, tornava a suplicar, e as suas súplicas eram desatendidas.

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. Os dois esposos deram graças ao céu por lhes terdeparado aquela asilo selvagem; e Maria apoiando-se ao braço de José, foi sentar-se sôbre uma pedra nua que formava uma espécie de assento estreito e incômodo. Pouco a pouco seus olhos foram acostumando-se à obscuridade que os rodeava ; e então viram que não estavam sós. Um boi manso e tranquilo ruminava pausadamente os últimos restos do seu jantar. José colocou a jumentinha junto ao boi, em seguida estendeu o manto de peles aos pés da Virgem, e sentou-se sem descerrar os lábios. Maria, a imaculada nazarena, a filha de Davi, a imortal senhora nossa, deu à luz naquele miserável presépio, sem socorro, o Messias prometido, o Rei dos reis, o Filho de Deus.A terna mãe colocou o Divino, recem-nascido sôbre a palha da mangedoura e, ajoelhando aos seus pés adorou-o como ao enviado do céu. José imitou sua espôsa. A noite era fria, a caverna, húmida e desabrigada: acender luz era impossível; porém o manso boi e a inofensiva jumentinha prestaram o suave e temperado calor da sua respiração para abrigarem o Divino Infante. Entretanto Maria, inundada de lágrimas de prazer, contemplava o terno Menino, que lhe enviava um sorriso carinhoso. - Como vos hei de chamar? exclamou a Filha dos patriarcas inclinando-se sôbre seu Filho. Imortal? Euconcebi-vos por obradivina! Devo aproximar-me de Vós com o incenso, ou oferecer-vos o meu leite? Serás

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necessário que vos prodigalize os cuidados de mãe, ou que vos sirva como escrava com a fronte no pó?1

A lua, desfeita em mil raios de prata, caia sôbre tão terno e encantador quadro, esmaltando-o com a sua suave e formosa luz. Deus tinha nascido: a humanidade ia brotar do seu berço. Os deuses do paganismo resvalavam dos impuros altares; os sacrificadores de Roma não achavam o coração das vítimas. Uma estrêla apareceu no Oriente: Gabriel anunciava aos pastores o nascimento de Cristo.

LIVRO TERCEIRO OS PEREGRINOS DO ORIENTE

E a Iduméia será propriedade sua: a herança de Seir cederá aos seus inimigos, porém Israel procederá com esfôrço. De Jaó sairá aquele que há de dominar e destruir as relíquias da cidade (Liv. dos Números cap. XIV, Vaticinio de Balaão) 1S. Basílio

31 CAPÍTULO I OS PASTORES Algumas choças humildes agrupadas pelo amor na raiz de um monte indicavam ás peregrinas caravanas que aquilo era uma povoação. Esta povoação chamava-se o povo dos Pastores.

Era o mês de dezembro, e o curso das estrêlas marcava meia noite.

- Má profissão é a do pastor, velho Sof, quando se tem que estar de vela em uma noite como esta.

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- Tens razão, mancebo, respondeu o velho sem levantar a cabeça; porém Abraão foi pastor e era melhor que nós; e isso deve consolar-te. - Porém, êsse patriarca criava a lã dos seus rebanhos para seus filhos, enquanto que nós só trabalhamos para pagar o tributo a Cesar e alimentar os vícios dos ímpios romanos que, em má hora, invadiram nossa terras. - Os romanos, que Jeová confunda, riem-se dos sofrimentos dos judeus, disse outro pastor intervindo na conversação. - Como para êles não somos mais que um bando de escravos... - Ai dos ímpios romanos! Ai dos torpes adoradores do sombrio Molok e da lúbrica Venus, se o Messias prometido desce dos céus a salvar os filhos de Israel da escravidão!... E ao pronunciar estas palavras, nos olhos da ancião na expressão do seu semblante, via-se algo extraordinário e profético. - Muito tarde, o Messias, bom velho, atalhou outro pastor. E, entretanto, o sanguinário Herodes trata-nos como cães e ri-se da nossa dôr e das nossas esperanças. - Respeitemos os decretos e desígnios de Jeová. - Melhor seria se todos os israelitas corressem a unir-se com os bandos de homens livres da montanha para expulsarem os estrangeiros de Judá.1

- Os assassinos e os salteadores, nunca podem devolver a liberdade aos filhos de Abraão. Só ao Messias é

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permitido gular-nos na noite escura do nosso infortúnio. Esperemos, pois, a sua vinda. - A paz de Deus seja convosco, disse uma voz doce e harmoniosa, a cujo acento se comoveu o coração do ancião, que se pôs em pé. - Quem é? Entre com Jeová, disse o velho pastor. Se fôres viandante e procuras albergue, entre e toma a minha pele de carneiro par a tua cama; se tens fome, vem servir-te do pão do pobre e do leite das suas ovelhas.

Aquela formosa aparição encheu de assombro os pastores. - Quem és? – perguntou o ancião com espanto. - Gabriel me chamo, e venho dar margens do Tigre guiando três reis magos do Oriente que abandonaram a

- Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens! Ajuntou o recem-chegado.Do seu corpo saiam torrentes de clara e viva luz. Cânticos celestiais ecoaram no espaço, repetindo: - Glória a Deus, paz aos homens! Glória nos céus, paz na terra ás criaturas de pensamento humilde e de coração singelo. Os pastores, assombrados e tímidos ante aquele prodígio, começaram a retroceder. 1Estes bandos de homens livres sobressaltavam bastante a Herodes e aos romanos. Alguns tinham uma bandeira política; outros não eram mais quehordas de assassinos que entravam às vêzes em Jerusalém, cometiam crimes horríveis á luz do meio dia e no meio das ruas. – (Flavius Josephus)

32 O desconhecido mancebo dispunha-se a

abandonar a choça, quando o velho pastor, prostando-se-lhes aos pés,

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O anjo desapareceu, a brilhante claridades dissipou-se, os cânticos celestes cessaram. Então os pobres pastores olharam uns para os outros com assombro. - Abraão! Abraão! – exclamou o velho jubilosamente. Deus sem dúvida quer que os bons tempos voltem, pois os anjos descem do céu a visitar os homens.

- Onde está o Messias? perguntaram as curiosas mulheres ao ancião. Queremos adorá-lo e depositar a nossa pobreza aos seus divinos pés.

Os pastores voltaram a cabeça, como levados por um impulso alheio à sua vontade, para o ponto onde incidia o raio estelar. - É aqui! Exclamaram todos com alegria e com uma certeza que admirava a êles mesmos. Entremos...

Ao terminar o ancião as suas palavras, vários pastores depositaram aos pés da Virgem as humildes oferendas que traziam, e uma donzela, colocando-lhe no regaço um cordeirinho, ajuntou:

- Aceito, meus bons amigos, em nome de meu adorado Filho, com lágrimas de gratidão, os presentes que me trazeis. Jeová, que está olhando por vós e lê nos vossos corações, vos recompensará como mereceis.

Os pastores abandonaram o presépio depois de terem adorado Jesus e, loucos de alegria, correram a espalharaboa nova por todos os contornos de Belém. - O Messias nasceu! Bradavam com fé e entusiasmo os verdadeiros descendentes de Abraão. Está salvo Israel! Glória a Deus nas alturas. CAPÍTULO II

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33 OS ÁRABES

- Ouves, Hassaf? disse um dos árabes. Que dizes desta música campestre, misturada com o canto da voz humana, que chega até nós através das sombras silenciosas da noite, e das palmeiras e das árvores da montanha? - Digo que morreu algum desses orgulhosos descendentes de Abraão que sofrem o judo dos romanos, e que os

- Vamos! Atalhou o outro, encolhendo os ombros. Os judeus perderam seu antigo valor; fanáticos crentes das

- Pois bem, Elias era um raio do Deus dos israelitas, e êles vêm beber desta água porque dizem que endurece o coração e aumenta o valor.

- Confia menos no teu valor, atalhou Hassaf, e lembra-te de que êsses camelos que estão descansando, e a pesada

- Água, respondeu lacônicamente o recem-chegado, aplicando a boca ao fresco manancial que deslisava entre os

Então Hassaf aproximou-se de um dos camelos, introduziu a mão em uma cesta de palma, e tirando dela um punhado de pêssegos secos, disse: - Toma. Os árabes oferecem-te a amizade ao darem-te o fruto da sua terra; já sabes que quando um filho de Agar reparte com um forasteiro a sua frugal comida, é porque a sua pessoa lhe é sagrada desde aquele instante. - Bem sei, respodeu o jovem desconhecido, sentando-se entre os árabes e comendo sem receio.

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Elias. Os árabes começaram a distinguir por entre as árvores o grupo dos alegres e madrugadores pastores que para êles se encaminhava. Os mercadores egípcios conheceram desde logo que aqueles novos hóspedes eram gente de paz. - Alto! Alto! Gritaram os pastores agrupando-se em volta dos camelos. - Sim, alto! Ajuntou uma pastora com alegre e sonora voz. Bebamos da água santificada pelo profeta Elias, e continuemos a jornada, se os da caravana o permitirem. - A água é do céu. Deus derrama-a sôbre a terra para aplacar a sêde dos homens. Maldito seja aquele que a negar aos seus semelhantes! Afogado se veja por falta de água entre as áridas areias do deserto!. O árabe que pronunciou estas palavras apresentou com gravidade um púcaro de ferro à pastora, a qual foi enchê-

- Êsse Messias, êsse Rei desejado, e que dizeis que acaba de nascer, deve ser filho de um príncipe.Jerusalém deve estar de festa....- Não, árabe, replicou o velho pastor. O rei prometido teve por berço uma mangedoura e por palácio um curral. Sua mãe não é uma princesa poderosa, mas sim Maria, espôsa de José, o carpinteiro de Nazaré.

- Ancião, pela honra das tuas barbas, pelas cinzas de teus pais e pela paz de teus filhos, suplico-te que respondas às minhas perguntas. - Fala.

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E o misterioso homem, rápido como o gamo perseguido pela matilha, perdeu-se por entre a espessura das árvores. Os pastores depois de saudarem os árabes seguiram monte acima amenisando o caminho com os seus cantares e com o som dos rústicos instrumentos. - Ouviste, Ibraim? - Sim, Hassaf, porém rio-me das ilusões dos judeus, não há mulher na Palestina que, ao dar à luz um menino, não o julgue o Messias. - Porém esses pastores dizem que viram e falaram com o mensageiro de Jeová. - O faminto sonha sempre com os delicados manjares dos festins de Baltazar; e os judeus sonham com o Messias, que os deve libertar do opróbio que sôbre as suas cabeças lançou o estrangeiro. - A dúvida é indigna de um crente como tu.

Os árabes são muito dados à controvérsia. No entanto, Hassaf cruzando os braços, exclamou com acento quase imperceptível: - Eu verei êsse menino. Pouco depois o dia dissipou com os seus formosos raios as últimas sombras da noite. A caravana dipôs-se a continuar a interrompida marcha, e os obedientes camelos puseram-se em pé à voz de seus donos. Deixemos, porém, os árabes caminhando com os seus camelos para Jerusalém e, retrocedendo um pouco, vamos ao encontro de outros personagens que, como os pastores, eram conduzidos até o Menino-Deus pela vontade do Eterno.

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35 Os escravos começam a colocar as tendas, os

alforges de víveres e os odres de água para a viagem sôbre os robustos e gibosos dorsos dos dromedários.

- Belchior, restitui-me a honra! Maldito sejas infame incestuoso!

Os três reis magos iam adiante, falando amigavelmente. Atrás deles caminhava em silêncio o luxuoso esquadrão. - Para onde irão? Perguntavam os seleucionos.

B re s-Ne mr od36 - Sigamos a sua bela luz, exclamou Belchior

com júbilo. Ela é a minha esperança, nobre ancião. - Não a percamos de vista e ela marcará o termo da nossa peregrinação, disse por sua vez Baltazar. - Assevero-vos, volveu Gaspar, que esta é a estrêla de Jacó, anunciada pelo profeta Balaão. Valor, amigos, ela será para nós como a coluna luminosa que guiou os israelitas às desertas plagas do mar Vermelho. E os reis magos seguiram com a fé no coração e os olhos no céu a caprichosa marcha do seu guia radiante.

A incredulidade de alguns filósofos nunca pôde explicar os assombrosos acontecimentos que rodearam a vinda do Filho do Homem.

perturbou-se em si mesmoJesus, filho de José, vinha recordar Joás, filho de Ocosias, e a lembrança de Atália afugentava o sono ao verdugo da Galiléia. CAPÍTULO IV JERUSALÉM Antes de penetrarmos no recinto da cidade santa volvamos um olhar para o seu passado. Êste capítulo deve ser o

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itinerário que nos guie no decurso desta obra. O povo hebreu precisava fundar uma cidade forte, que fosse a capital onde se assentasse o trono dos seus senhores, o refúgio daquelas hostes que desde a saída do Egito corriam errantes em busca da terra prometida. Adonisec, um dos cinco reis vencidos por Josué, fortifica-se com o seu povo, os jesubianos, no monte Sion. Desta fortaleza inexpugnável desafia e escarnece o exército de Davi. - Os coxos e os cegos, lhe brada Adonisec, são os que mandarei sôbre ti. Eles bastarão para exterminar-te.

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privilegiada do rei vão perder-se nas asas da brisa noturna, entre as florestas de Gaboad e nas côncavas rochas do despenhadeiro dos Cadáveres. O dulcíssimo eco daquele canto chegou até nós. Diz assim:

Então vendo no Oriente o profundo vale de Josafá arrastando pelo seu leito as avermelhadas águas do Cedron, ao Meio-dia o escarpado barranco do Geenon, e ao Ocidente o nome dos Cadáveres, exclamou com um gôzo inexplicável: - Jerousch al Aim, mansão da paz,tu serás a cidade forte de Israel; eu te engrandecerei a ponto que as naçõeshão de invejar-te. Eu elevarei pelo Norte, a tua parte mais fraca, uma tríplice muralha onde se despedace a cobiça de teus inimigos.

- Pede o que quiseres, meu amado.

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Muitos destes livros perderam-se no decuso dos séculos que rolaram sôbre êles. Mas restam-nos osSa l m os e os Cânticos dos cânticos, cuja poesia se avantaja em perfume aos lírios de Gaalbó, em viço às rosas de Saaron, e embrilho aos diamantes do Golconda. Estes livros bastam para imortalizar o seu autor. Salomão chegou a ser o homem mais rico, mais feliz, mais glorioso do mundo; mas faltavam-lhe artistas construtores para levar a cabo o pensamento de seu pai: edificar um templo a Jeová sôbre o monte Moria.

cidade amada- Ditosos os que alcançam a tua sabedoria, oh, rei! Ditosos os que te servem , oh! Senhor!

As samaritanas fizeram-no prostar-se ante o bezerro de ouro; mas Jeová, repreendendo a impiedade de Salomão, anunciou-lhe que o seu reino iria para às mãos dum servo seu. Então o povo hebreu dividiu-se: Judá conservou-se obediente a Roboão, filho de Salomão; Israel proclamou Jeroboão. A decadência do povo escolhido por Deus começava a passos agigantados.

Em vão Elias, raio de Deus, procura reunir aquêlo povo desgarrado. As suas palavras e os seus milagres são desatendidos. Os descendentes de Abraão caminham para o abismo como uma torrente caudalosa. Atrás de Elias aparecem sucessivamente Jonas, Oseas, Amós e Isaias. A vinda do Salvador é anunciada, porém

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os ouvidos cerram-se para escutarem as proféticas palavras.

fortes de Davi38

Setenta anos de escravidão rolaram sôbre o aflito povo de Israel. O profeta Daniel consolava a amargura de seu irmão: porém as harpas da donzela de Judá pendiam das árvores e não tinham melodias para o Santo dos Santos. Uma noite, o afeminado Baltazar celebrava um banquete. Os vasos sagrados, iam ser profanados pelos lábios das impuras cortesãs, pelos torpes adoradores do deus Belo e pelos servis sátrapas do rei Nabonido.

Mane thecel phares.- Esta noite é a última da tua vida.

Zorobatel guiou o seu povo até à cidade santa, e no ano seguinte tornaram a lançar-se os alicerces ao novo edifício destinado ao Santos dos Santos. Duzentos anos viveram os judeus sujeitos aos persas. Uma noite chegou até Jerusalém o estrondo da guerra, que sobressaltou os seus tranquilos moradores.

- “Sai ao encontro de Alexandre; lança flores e palmas a seus pés: abre-lhe as portas da cidade santa, e nada temas”.Jadus obedeceu e o conquistador embainhou a espada ameaçadora, vendo aquele povo que se prostrava ante êle,e ajoelhou-se por sua vez aos pés do sumo sacerdote. Permenion, seu general o repreendeu dizendo-lhe: - E acaso esse sacerdote do templo de Júpiter que visitaste no oasis de Amon?

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Depois de Alexandre, decorreram cento e sessenta anos. Os seus principais capitães haviam repartido entre si os povo conquistados por êle. Antioco, da raça dos Eleidas, propôs-se a total ruína do povo de Abrão. Aqui torna a elevar-se até à epopéia o povo de Israel.

Eadi sTasi s;M ac abe uAbdo nAf us.Pela face oriental, costeando o vale de Josafá, e à vista do monte das Oliveiras, achavam-se as quatro portas do Fiemo,a do Vale, a Doura e a das Águas. A primeira caía sôbre a fonte do Dragão, a segunda conduzia ao povo deGetsemani, a terceira a Engadi e ao mar Morto, e a quarta ao Jordão e a Jericó.

Pe i xe sJ udi c iá ri aGe nat39

M ul he re sEfr ai mÂng ul o.Como dissemos, as torres eram treze, a saber: a dasFor nal has, aAng ul a r, a deAnani el, a Torre Alta, a de Méa,a Torre Grande, a de Siloea, a de Davi, a de Psefine, e as quatro restantes que se chamavam Torres das Mulheres.Jerusalém dividia-se em quatro cidades separadas uma das outras por uma espessíssima muralha, para a tornar mais inexpugnável em caso de ataque; mas todas elas se comunicavam umas com as outras. A cidade de Davi ous upe r i or, encerrava no seu circuito a montanha de Sion, o sepulcro de Davi e os palácios dos reis de Judá, de Anaz e de Caifaz.

cidade inferior segunda cidade cidade de BezetaTal era Jerusalém sob o poder de Herodes.

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Agora entremos no seu glorioso recinto, destinado pela impiedade de seus filhos a ser até à consumação dos séculos um montão de ruínas. O seu nome enche o mundo; mas enche-o com a sua memória, porque no cume dum dos seus montes foi sacrificado o Salvador do homem. CAPÍTULO V OS PEREGRINOS O nascimento de Jesus foi um grito de alarme as divindades pagãs. Só Deus podia conseguir tão imenso triunfo. Só da Deus era dado arrancar do coração do homem a peçonha que o erro nele havia introduzido.

Vamos extratar algumas das suas estrofes, servindo-nos da tradução do abade Orsini. Dizem assim:

“Sôbre as montanhas solitárias e ao longo dos murmurantes ribeiros, só se escutam pranto e lamentos. O gênio vê-se forçado a afastar-se dos vales que habitava no meio dos pálidos choufos”.

Por fim os reis Magos, depois de treze dias de viagem, viram ao longe os altivos minaretes, as galhardas torres e as fortes muralhas de Jerusalém. Perto do caminho que seguiam murmurava a clara corrente de uma fonte e os ilustres viajantes detiveram-se. A uma voz do chefe do comboio os dromedários deitaram-se no chão e os reis apearam-se. Então quatro escravos africanos estenderam uma rica alfombra de pano fino recamado de ouro sôbre a fresca

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erva, e, sentando-se nela dos Magos, serviram-lhe em delicados cestinhos de palmas saborosas tâmaras e enroscados

40 mich mich, frugal almoço dos orientais. Outros escravos encarregados dos dromedários deram a estes a sua ração defavas secas. De repente e quando mais tranquila se achava a luxuosa caravana dos reis, Gaspar pôs-se em pé e exclamou com assombro: O estrêla, a estrela desapareceu! Melchior e Baltazar levantaram-se, apantando da boca as frutas que lhe iam levar as mãos. A estrêla tinha desaparecido entre as flutuantes nuvens que se moviam sôbre a cidade tributária.

- Prossigamos a nossa pobre peregrinação: a estrela desapareceu; mas não importa: diante de nós levanta-se uma grande cidade digna de servir de berço ao Rei dos judeus; caminhemos para Jerusalém. - Sim, sim, prossigamos o nosso caminho: a misteriosa estrela que nos conduziu desde o Tigre ao Jordão, não pode ter-nos abandonado, sem um poderoso motivo, exclamou Baltazar. - E depois, quem haverá na cidade dos pretores que não saiba onde nasceu o Messias? Basta perguntar-nos ao primeiro transeunte que encontremos e estou certo de que nos conduzirá ao pé do berço Rei a quem buscamos.

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Judi c i ár i aOs reis tristes, desalentados, caminhavam rua adiante. A esperança ia esfriando no seu coração. Pouco a pouco foram-se agrupando em torno da oriental cavalgata alguns curiosos. Então, Gaspar, que ia adiante, inclinava-se sôbre o nervudo pescoço do seu dromedário, e, dirigindo-se aos curiosos espetadores, dizia-lhes: - Dizei-me, jerosolimitanos, vós sabeis onde se acha o Messias prometido pelos profetas, o rei dos judeus que acaba de nascer? Então a plebe olhava-se com espanto, e, não sabendo que responder aos viajantes, fazia um movimento de ombros. Baltazar por sua vez perguntou aos que tinha mais perto: - Onde está o Messias, o rei dos judeus? - Em Jerusalém não há outro rei senão Herodes, o Grande, nosso senhor, lhe respondia um cavaleiro com grosseiro acento. - Nós vimos uma estrela desconhecida no céu, replicava Gaspar e essa estrela, não nos resta dúvida, é a que

Os reis, vendo que eram inúteis as suas perguntas, pois ninguém lhe indicava a casa do Messias, torceram por uma larga rua que conduzia ao antigo palácio de Davi, e instalaram-se num dos seus arruinados pátios.

Perdida a estrela que com tanta insistência vinham seguindo desde os seus lares, restava-lhes uma esperança.

E uma vez ali, mandaram levantar as tendas, e encerrando-se numa delas puseram-se a deliberar.

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CAPÍTULO VI HERODES, O GRANDE

41 A sua idade tocava nos vinte e quatro anos, quando subiu os primeiros degraus que deviam conduzi-lo ao trono de Jerusalém.

O senado, ressentido com Antígono porque pedira auxílio aos partos, inimigos acérrimos de Roma, pôs-se da parte do ambicioso Idumeu, que chegava às portas do Capitólio para implorar a sua proteção. O vento da fortuna começou a soprar em favor dos dourados sonhos do verdugo de Belém.

Herodes atacou com fereza aqueles baluartes de pedra e aço que se colocavam ante êle como um obstáculo,

águia romana foi colocada sôbre o templo de Zorobabel. Milhares de habitantes pereceram ao sanguinolento fio das espadas dos seus partidários. Nem um só dos Antígonos se livrou do seu furor, sobretudo se tinham bens que confiscar. Roma pedia ouro e Herodes era escravo de Roma.

Nunca monarca algum na terra derramou tanto sangue inocente, nem deu cabimento no seu peito a tão baixas paixões, como Herodes, o Idumeu, a quem a história deu o glorioso cognome de Grande. Foi poderoso, carecendo de

42 todas as virtudes que honram e engrandecem os monarcas. Cruel e sanguinário, regozijava-se com a dor das suas

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vítimas. Fez morrer o velho Hircano, avó de sua espôsa, o qual lhe salvara a vida sendo governador da Galiléia. Os anos e a alta dignidade de Hircano não detiveram o braço do seu ingrato assassino. O crime do pobre ancião não era outro que o de suspeitar o seu verdugo que tinha recebido alguns presentes do rei dos árabes. Sua espôsa Mariana, a princesa mais bela do seu tempo e que possuia um talento nada comum, morreu também assassinada por ordem de seu marido, e pouco depois coube a mesma sorte a Alexandra, mãe da desgraçada Mariana. Temeroso de que seu filho Filipe vingasse sua mãe, deu-lhe a morte, sem que a voz da natureza se levantasse para o deter no fundo do seu coração.

Uma coroa de louro, comprada no Capitólio com o ouro do rico e a indigência do pobre, manchava a sua fronte cheia de remorso. Porque a sua vida era um remorso contínuo. Os seus sonos eram sempre povoados de fantasmas aterradores, de visões horríveis que, girando em infernal tropel pelo seu cérebro, lhe amarguravam sem cessar uma por uma as sangrentas horas da sua maldita existência.

No mais forte destas discórdias civis foi que os reis Magos chegaram a Jerusalém perguntando pelo rei de Judá que acabava de nascer, pelo Messias anunciado pelos profetas, pelo Salvador do povo de Israel. CAPÍTULO VII A CARTA DE ROMA

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Fazia-se servir por grande número de escravos etíopes, desses filhos da abrasada Líbia que, fieis como os cães e imutáveis como a bronzeada cor das suas faces, adoram os seus senhores como os deuses pagãos dos seus templos. Para contrastar com estes, tinha outros de raça síria, de rosada cútis e doce expressão. Dava o nome de Cubiculo à sua câmara, e o deG i ne o à casa destinada a guardar as jóias e a coroa real.

B ac ante sB ai aDurante a sua permanência em Roma, os costumes sibaríticos dos libertos tinham-no fascinado e quis transportá- lo para Jerusalém.

A vida era ali uma torrente de prazeres, um delírio embriagador e era um luxo gastá-la. O seu afã reduzia-se a saciar os apetites do corpo, esquecendo-se da alma. A matéria estava sôbre o espírito.

43 Herodes nunca conseguiu a metamorfose que se propunha levar a cabo. Esparta nunca teria tido Atenas, ainda que todos os tiranos do mundo lhe houvessem proposto. O Gólgota estava destinado a Jesus Cristo; Delfos a Apolo........................................................................................................................... Entremos no palácio de Herodes, e, atravessando alguns salões, nos achamos num aposento luxuosamente adornado. Num leito de marfim, estendido sobre fôfas almofadas de pano de grã, acha-se o rei de Jerusalém.

Ambos guardam silêncio, como se temessem interromper a silenciosa imobilidade do monarca.

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Por fim Herodes levanta-se um pouco sôbre os almofadões. Aquele movimento executado pelo senhor põe em pé os esposos favoritos que lhes assistem.

E depois, dirigindo a palavra a seu cunhado, continuou:

Salomé, pegando então num frasco de prata, derramou algumas gotas numa taça do mesmo metal e foi apresentá- la a seu irmão, dizendo: - Isto te sossegará, meu irmão. O enfermo pegou na taça e, depois de lançar um olhar para o líquido que lhe apresentavam, disse com voz pausada: - Bem sei que tu não me farás mal, porque me queres e teu esposo também: vós sois a minha única família; eu desejo pagar-vos os vossos serviços; veremos. E bebeu o contéudo da taça num só trago. - Mas meus filhos, que estão em Roma continuou, porque não sacrificam de boa vontade uma galinha preta no altar de Eucalápio para que eu recobre a saúde? - Teus filhos, disse Aleixo com gravidade, acercando-se do leito do enfermo, em vez de anelarem o teu restabelecimento, acusam-te ante o César Augusto.

44 Um sorriso infernal lhe passou pelos lábios ao dizer estas palavras. Depois percorreu com a vista as linhas escritas, dizendo ao terminar, com acento estranho e cruel:

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Dois raios de fogo brilharam nas pupulas de Herodes ao dizer estas palavras. Os seus dentes produziram um ruído áspero e estranho ao tocarem uns nos outros, impelidos pela raiva; e as suas encarnadas mãos amassaram aquele

Um escravo etiope, negro como um gota de tinta e ricamente vestido, apareceu entre as cortinas que cobriam a

- Isso lhe disse, senhor; mas obstinou-se em entrar, dizendo que era de alta importância o que tinha que comunicar-te. - Que entre pois esse importuno adorador de Cibele, que nunca depositou uma pomba nos altares da castidade, e que não tem compaixão do seu doente soberano.

- Marte na guerra, Apoio na paz, protejam o amigo aliado do César, meu senhor. - Eles te ouçam, lhe respondeu Herodes; e depois continuou: Que importante missão te conduz àminha estância?

Herodes estremeceu, e escorregando do leito ficou em pé ao lado de Verutídio.

Cingo, o escravo favorito de Herodes, era um africano, negro como as asas do corvo, forido como um atleta. Para aquele filho do lago de Shiat, não havia outro adeus, outra lei nem outra paixão que o seu senhor.

Quando Herodes o viu aparecer à porta da câmara, sorriu-se pois sabia que para se chegar a êle era preciso antes passar por cima do cadáver de Cingo. O Idumeu fez-lhe um sinal indicando-lhe que esperasse. O escravo inclinou-se

conduze-os a esta sala.

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- Tu, meu bravo Verutídio, junta as tuas legiões, e acampa-as nos pórticos do meu palácio; e tu, minha querida irmã, minha boa Salomé, consulta os médicos da cidade acerca da saúde de teu pobre irmão.

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CAPÍTULO VIII A SEMANA DE DANIEL s upl i c ante sanuncia com seu timbre sonoro que um homem pede justiça ao meu senhor. Aqui estamos na Galiléia; eu sou o rei de Jerusalém e posso castigar a sua desobediência. Herodes, enquanto dizia isto, passeava, ocultando a sua agitação, pela câmara. Cingo imóvel como uma rocha dos Alpes seguia com a vista as evoluções do seu senhor, esperando uma ordem para a executar. Uma porta secreta abriu-se deixando um oco nas preciosas tapeçarias. O seu ranger imperceptível fez com que Herodes virasse a cabeça com rapidez, porque em todas as partes via o punhal do assassino. Cingo empunhou o cabo do

achava-se rodeado dos doutores da lei e dos príncipes dos sacerdotes. Absortos os nobres anciãos ante o seu rei sem poderem compreender a causa daquela reunião, esperavam silenciosos e graves ouvir da boca do seu senhor o que eles não podiam adivinhar. Depois duma breve pausa, durante o qual Herodes procurou ler com um olhar escrutador do coração daqueles anciãos, disse com doce acento e o sorriso nos lábios:

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em que lugar deve nascer o Messias?Os sábios conhecedores das Sagradas Escrituras, ainda que absortos ante a inesperada pergunta, responderam sem hesitar: - Em Belém de Judá. Herodes perturbou-se em si mesmo, permaneceu alguns instantes como aturdido e sem saber o que dizer, pois aquelas profecias que via quase realizadas, desorientavam-no. Os anciãos de Israel, perceberam o efeito que a sua resposta causara no tirano de Jerusalém, e, desejoso de subjugar o favorito dos romanos, um deles continou deste modo:

A estas palavras proféticas pronunciadas pelo mais velho dos juízes, seguiram-se alguns instantes do sepulcral silêncio.

- Agradecido, sábios doutores, satisfizestes uma curiosidade que me preocupava há alguns dias. Jeová cumpra os vossos desejos; agora podeis retirar-vos. - Nós, responderam os sacerdotes, somos teus súditos; até que o Messias apareça entre os homens, manda e serás obedecido.

46 novo Rei de Judá que acabava de nascerE Herodes,

como se houvesse esgotado as últimas forças do seu espírito enfermo, deixou-se cair desamparado

Herodes escorregou da cama, foi colocar-se diante de um espelho, e, pegando numa redoma e numa esponja,

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começou a tingir o cabelo e a barba, que adquiriram instantâneamente um brilho e um negro admirável. - Esses caldeus poderiam desprezar-me vendo as minhas cãs; porque os velhos são fracos... E preciso enganá-los,

Herodes, procurando serenar o semblante, depois de cingir a coroa e colocar sôbre os ombros um rico e luxuoso manto romano, foi sentar-se num dos divãs, tomando uma atitude nobre e magestosa. Quando os três Magos apareceram à porta da câmara, Herodes era outro homem diferente do que acabava de ver- se só com a sua consciência. Antes de lhes falar esteve observando-os com vagar, como se quisesses ler-lhes nos corações. Os Magos, que com os braços cruzados sôbre o peito tinham saudado o senhor de Jerusalém, esperavam as suas ordens junto da porta, imóveis e silenciosos. Cingo lia nos olhos de seu amo e foi esconder-se com alguns companheiros

ao rei de JerusalémLIVRO QUARTO 47 CAMINHO DO EGITO CAPÍTULO I OS QUATRO REIS - Sábios do Irã que chegastes às minhas terras em busca dum rei que acaba de nascer, eu vou saúdo, disse Herodes, depois de contemplar um breve momento os caldeus. Os discípulos de Zoroastro, os gentis adoradores do sol, inclinaram-se respeitosamente, e Gaspar, o mais velho dos três, e conhecedor da língua hebraica, disse:

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- A esperança de encontrarmos esse rei nos traz das margens do Tigre à tua cidade, que os deuses protejam; mas as nossas esperanças desvaneceram-se como um sonho.

- Deus,o grande Peregrino do céu, tem a sua tenda no sol; nós mortais peregrinos da terra, levantamos as nossas

- Balaão predisse uma estrela que devia aparecer na época do nascimento dum grande rei, o qual estava destinado a passar o seu estandarte vencedor do Oriente ao Ocaso. - Mas essa estrela não a vimos em Judá: os meus sábios nada me disseram. Como, pois, me explicais uma coisa tão estranha? Como, pois, se anuncia o Deus invisível dos hebreus, o verdadeiro Jeová, na terra dos pagãos, e não na

- Noite e dia brilhou sôbre as cabeças dos nosso dromedários, guiando com a sua misteriosa luz os nossos

homem e incenso como a Deus. Beijar os seus pés, render-lhe vassalagem e adorá-lo como merece um Anunciado dos céus.

O Idumeu havia-lhes armado um laço, e satisfeita a sua curiosidade, despediu os reis dum modo cortez e lisonjeiro, dizendo-lhes:

48 - Ide informar-vos exatamente desse Menino, e, quando o houverdes encontrado, fazei-me saber para que eu também vá adorá-lo e celebrar um banquete de nascimento à usança do vosso país.

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Os Magos saíram do palácio de Herodes, encantados do bondoso caracter do rei protegido do Capitólio. Descendo a escada, Gaspar disse aos seus companheiros: - Se o rasto de sangue humano que tinge a terra de Israel não o fizesse um assassino desprezível, julgaria que este homem não é o que dizem.

O novo personagem que assim se introduzia sem se anunciar no quarto do verdugo de Mariana, era um menino de doze a quatorze anos, de altivo e formoso semblante. O traje romano que vestia ficava perfeitamente ao seu talhe esbelto. Apesar dos seus poucos anos, pendia-lhe o arco do braço, a aljava dos ombros e a espada curta da cinta.

Este menino chamava-se Aquiab, e era um dos inumeráveis netos de Herodes. Na família chamava-se o Favorito;havia-se educado em Roma com o esplendor dum príncipe, às espensas de seu avó, que o amava de ummodo indizível, avivando com este afeto os ciúmes dos seus filhos, e particulamente de Arquelau, pai de Aquiab. CAPÍTULO II A Q U I A B Herodes, o Grande teve nove mulheres, vinte filhos e um número ainda mais considerável de netos. Sucessivamente coube a mesma sorte a Meltaca, Palada, Olimpiada, Fedra, Elpides, Roxana, Salomé, e outras duas de cujos nomes não nos recordamos.

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Herodes viu o perigo que o ameaçava; teve medo da sua numerosa família; viu cem punhais sôbre a cabeça prontos a descarregar o golpe fatal e disse consigo: “Matemos: os mortos não se vingam”. Sem embargo, era preciso buscar um pretexto para desculpar-se aos olhos de César, seu aliado, e de Israel, sua escrava. Entre as princesas repudiadas, Mariana era a mais temível pelo seu claro talento e deslumbrante beleza.

Entre os seus netos, o favorito era Aquiab, filho de Arquelau, a quem destinava a coroa de Jerusalém. Só seis pessoas rodeavam o rei: Salomé, sua irmã, Aleixo, seu cunhado; Cingo, seu escravo; Vertúdio, general legionário; Arquelau, seu filho, e Ptolomeu, o velho guarda-selos. Depois destes todos os habitantes de Israel eram tidos

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Herodes voltou a cabeça, e, ao ver seu neto, apareceu-lhe um sorriso nos lábios. - Como me achas? lhe perguntou com estouvamente o menino, dando uma viravolta para que o visse melhor. - Estás mesmo um capitão de César. Mas a que vem esses aprestos militares em tempo de paz? Por que

Herodes, o feroz verdugo de Belém, era fraco ante aquele menino, como Sansão aos pés de Dalila. - Ptolomeu é um servo fiel e proibo-te que lhe queiram mal, respondeu com doçura Herodes.

- “Deixar-me? lhe disse. - Amanhã passamos a Jericó; só os deuses sabem como encontrarei o meu discípulo quando regresse a

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Jerusalém”. - “Porque não me levas contigo? lhe tornei.

- É preciso que teu pai Arquelau o consinta. - Ah! Pois então de certo não vou... Mas tu és o rei; aqui todos te prestam obediência; quem ousará contradizer uma ordem tua? Herodes, que como todos os adulados era fraco ante a adulação, passando carinhosamente a mão pela cara de seu neto, disse-lhe: - Irás. O jovem deu um salto, e pendurando-se aos ombros de seu avô e cobrindo de beijos aquelas barbas encanecidas

filho Aquiab perdeu a alegria à vista do pai. Herodes, que estremecia a cada palavra que

pronunciava, procurou dominar-se dizendo: Aquiab beijou a mão de seu avô e saiu da

câmara saltando de alegria. Quando Arquelau e Herodes ficaram sós, disse este a seu filho, baixando a voz:

- Serás obedecido, respondeu com prazer Arquelau, em cuja veia ardia o pobre sangue de seu pai. Entretanto, dorme tranquilo; tu reinarás em Galiléia ainda que seja preciso para isso encher o Cedron de sangue humano. Herodes, chegando-se à janela, pela qual começavam a entrar os raios de sol nascente, agitou um lenço, e imediatamente ressou na praça o toque das trombetas. Depois pegando na vara de metal, tornou a tirar da folha de aço

- Ora! Os médicos sempre acabam pelo mesmo; quando se vêm perdidos, entregam o corpo nos braços da natureza. Vamos.

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50

de viva el-rei ressou na praça. Herodes, depois de saudar com um sorriso seu neto e com um lenço os seus soldados, disse ao seu escravo Cingo: - Para Jericó! - Para Jericó, repetiu Cingo ao guarda-seios, o qual transmitiu a ordem a uma centurião romano.

Deixemos o Idumeu prosseguir o seu caminho, abismado nos seus sanguinários planos, e tornemos a encontrar os peregrinos do Oriente, os sábios de Selêucia. CAPÍTULO III A ADORAÇÃO DOS MAGOS

cisterna dos magosOs viajantes, sem se poderem contar, fazem um movimento de terror, crendo que um raio caía sôbre êles para os exterminar. Mas o fogo do céu não chega à terra; ficando suspenso no espaço, a pequena distância das suas cabeças, envia- lhes as cambiantes irradiações dos seus formosos raios que esmaltam quanto tocam os seus brilhantes reflexos. - A estrela, a nossa estrela! Exclamaram jubilosos os reis, levantando os braços para o céu com religioso movimento. - A estrela, a estrela! Repetem com louco entusiasmo os escravos e soldados da caravana.

Por fim o divino astro deteve-se por cima duma pequena cidade que descansava no topo duma colina. Aquela cidade era Belém de Judá, pátria imortal, berço santificado do Redendor do homem.

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Gi nastanDi ve sPe r i sCá uc asoCáspio converteram em torrentes de cambiantes côres e em mares de brilhante luz só com o lhe tocarem com suavarinha misteriosa? Prostarem-se ante o Filho de um pobre operário três poderosos reis do Oriente, no tempo da vinda de JesusCristo, era tão inversossímil, tão portentoso, como esgotar o Oceano à força de braços e converter o deserto de Saaranum vergel frondoso das margens do Eufrates! Só Deus poderia levar a cabo tão portentosa transformação. Só o Filho de Deus podia conduzir junto do seu berço, com os pés descalços e o pó na fronte, Gaspar, Melchior e Baltazar. Postos de joelhos ante Jesus, os potentes reis adoraram o recém-nascido como os príncipes do Oriente adoravam então os seus deuses e soberanos.

51 Abriram os ricos cofres que levavam e tiraram para depositar aos pés de Messias, ouro puro de Ninive a granel e perfumes árabes do Iemem.

- Tu és o Messias prometido... Tu és o meu Deus, o teu glorioso nome cravar-se-á no meu coração eternamente e

murmurando estas palavras. - O Messias nasceu; Jeová apiedou-se por fim dos descendentes de Jacó; creio nele e hei de adorá-lo enquanto viver.

Esta revelação foi feita em sonhos, segundo o Evangelo, e no dia seguinte os discípulos de Zoroastro deram

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graças Aquele cujas tenda está no sol, e em vez de tomarem as praias infecundas do lago Maldito, para encontraremB e m-bui e r de cor negra ou escura,: que do Oriente havia de nascer a fé verdadeira do Messias anunciado pelos profetas.CAPÍTULO IV A ANCIÃO E A PROFETISA

52 Simeão o homem justolágrimas permaneceu

estático contemplando o cândido semblante do Menino-Deus.

Maria, cada vez mais admirada das palavras do ancião olhava-o sem despregar os lábios, como se através das suas misteriosas palavras visse o doloroso futuro que os céus lhe destinavam.

Ana chegou ao templo na ocasião em que o Menino Jesus se achava ainda nos braços do ancião. A profetisa detém o passo diante de Simeão. Seu rosto demuda-se, seu coração comove-se e exclama absorta do que sente: - Que é isto, Deus invisível!... Então os seus olhos fitam-se em Jesus... Um grito de alegria sai da sua boca e, caindo prostrada aos pés de Maria, diz, estendendo os braços: - Tu és a Mãe do Messias: deixa que beije os pés do teu Santo Filho. Os jerossolimitanos, que respeitam o saber de Ana, foram-se agrupando em torno dela, ansiosos de ouvir as palavras de júbilo que a vista daquele Menino lhe arrancava.

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E Ana, a inspirada profetisa, a virtuosa viúva, saindo do templo de Sion, começou a correr pelas ruas da cidade sacerdotal anunciando a vinda do Messias, o nascimento de Deus. As mulheres e os velhos que se achavam nos degraus do templo, absortos ante as palavras de Ana, apressaram-se a beijar o humilde e grosseiro manto da Virgem Maria.

lixo do mundo. Antiguidades Judaicas História dos Judeus53

Esta máxima horrível e cruel praticavam-na com criminoso escrúpulo.

O imortal Balmes o disse; nós o repetimos com êle:

“Enquanto grande parte da espécie humana gemia na mais abjeta escravidão, exaltavam-se com tanta facilidade os heróis até os mais detestáveis monstros sôbre as aras dos deuses. - -

- - José terminada a cerimônia prescrita pela lei, saiu do templo e, reunindo-se com a sua santa Espôsa, abandonou a cidade sacerdotal, e, tomando o caminho de Galiléia, dirigiu-se a Nazaré. CAPÍTULO V O BOSQUE HOSPITALEIRO

Ainda o eco misterioso da divina relevação soava nos ouvidos de José, quando precipitadamente chegou à porta do quarto de dormir de sua Espôsa e lhe disse com voz agitada:

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- Maria, desperta e deixa o teu leito, pega em teus braços o inocente Menino e prepara-te para fazer uma viagem

- Entra, José, e não temas: Jesus sorri, e o seu sorriso é como o arco-iris da tarde que dissipa as carregadas nuvens.

54 - Deus manda-nos executar o que te disse, tornou o ancião. - Partamos, pois, e do céu Jeová vele por nós durante a viagem, disse Maria com santa resignação.

Trindade da terra- Ouviste, Maria? Perguntou a Virgem.

- Ouço, murmurou Maria, assim como o ruído de armas e passos de cavalos, no extremo oposto deste vale. - Sim, para a montanha, pelo caminho romano que conduz às ribeiras de Efa; talvez sejam comerciantes de

- São romanos, murmurou José; ainda que não compreendo bem as palavras, creio que cantam a canção do famoso gladiador. Maria não despregou os lábios; só pensava em seu Filho, que apertava carinhosamente ao seio. A voz ia-se aproximando e pouco depois as brisas do campo levaram até aos ouvidos da Santa Família a canção romana. Cessando a voz, as patas dos cavalos ouviam-se a pequena distância.Os fugitivos mal respiravam. Um momento depois, os capacetes romanos e as lanças trácias dos cavaleiros brilhavam.

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Maria teve mêdo, e, levantando os doces olhos ao céu exclamou com doloroso acento: - Oh, doce palmeira que elevas tua linda copa até aos céus! Tu que te achas mais próxima de Jeová que esta pobre Mãe, dize-lhe que não abandone meu inocente Filho.

- A ordem não nos proibe que bebamos água quando tivermos sede e acharmos na passagem uma fonte, disse um dos cavaleiros tirando o capacete e enchendo-o no manancial. - Por Júpiter! Que a infamante pena das varas não havia de deter-me se tivesse sêde e achasse um manancial tão claro como êsse que serpeia aos pés do meu cavalo. - Que opinas tu da nossa mensagem, amigo Caio? disse um dos soldados depois de beber água, dando o capacete cheio a outro que ainda permanecia sôbre a sela. - Opino, Otávio amigo, que o tributário Herodes uivará como um cão raivoso quando nos vir regressar a Jericó sem os reis Magos. - A terra sem dúvida enguliu esses estrangeiros. - Alegro-me, volto a Esculápio. Nós soldados da invicta Roma, não viemos à Palestina perseguir criancinhas e encarcerar indefesos peregrinos. - Herodes paga e manda na Judéia, replicou um herodiano da comitiva.

55 - Roma protege-o, tornou o romano com império. O César, meu amo, será sempre o senhor do Oriente. O herodiano mordeu os lábios de raiva e foi ocultar a sua perturbação no claro manancial da fonte.

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Deus, sem dúvida para evitar à aflita Mãe uma hora de horrível e mortal angústia ouvindo a pouco passos a conversação dos perseguidores de seu Filho, fez com que descesse sôbre êles o fluído misterioso e reparador sono. CAPÍTULO VI O BOM LADRÃO

- É isto um sonho? dizia a Virgem apertando o Filho ao coração. Vive ainda a vida da minha vida? Deus de bondade! Seus ímpios perseguidores não derramaram o seu precioso sangue?

Nunca mãe alguma sofreu tão contínuos receios, tão terríveis temores por seu filho, como a Santa Virgem por Jesus. Parecia que o céu lhes retirava a sua proteção, ou punha à prova sua paciência e sofrimento.

Como poderão os pobres Nazarenos atravessar tão dilatado caminho, sem outro auxílio que a sua modesta cavalgadura, que se enterrará na movediça areia como o cadáver na sua cova para não tornar mais a sair dela?

56 - Alto ou morres! - Que mal vos fizeram esta pobre Mãe e seu

inocente Filho para levantardes os vossos punhais contra êles?

Dimas (pois era êle o que pronunciara aquelas tranquilizadoras palavras) abriu passagem por entre os seus companheiros, e aproximando-se de S. José, que estava absorto, sem despregar os lábios, disse-lhe:

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mate l ô- Agora, bom velho, segue-nos com a tua Espôsa; meu castelo está perto e deves aceitar a hospedagem que te ofereço até que cesse a tempestade que ainda ruge sõbre as nossas cabeças.

Ao deixá-los sós, pediu licença para beijar o menino e Maria apresentou-lhe Jesus, dizendo-lhe: - Beija-o, senhor, pois tu o protegeste. Dimas imprimiu umbeijo na fronte do Messias, e depois, saindo da habitação com seus companheiros, disse- lhes: - Não sei o que senti no meu peito ao tocar com os lábios aquele Menino; mas parece que me acho como se todo o meu sangue se houvesse purificado. Pouco depois todos dormiam no castelo; somente as noturnas gralhas se agitavam nas bordas das muralhas e nas fendas das rochas.

- O dia está belo, lhes disse; subi comigo para que vosso Filho aspire o ar puro da montanha. Os hóspedes seguiram Dimas, admirando-se da benevolência do bandido. Dimas, fascinado ante o olhar de Jesus, não apartava os olhos daquele formoso Menino.

- Aquelas ovelhas que tranquilamente pastam à sombra dos muros são nossa; e aquele cordeirinho branco como leite de sua mãe é teu; eu te dou para te lembrares da hospedagem que te ofereceu o facínora dos montes de Samaria.

- Se és bom, se no teu coração ainda não se extinguiu o amor aos desgraçados, porque não abandonas esta vida

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de sobressaltos e crimes, que pode conduzir-te à perdição?

57 - Tua morte será gloriosa... e morrerás comigo.

Trinta e dois anos depois, Cristo, sôbre o Calvário, recompensava com estas palavras a caridade hospitaleira do Bom Ladrão: “Hoje, estarás comigo no Paraíso”. A tradição sobre que baseamos a lenda que precede, diz assim:

CAPÍTULO VII A CARAVANA

58 Cristo), e desde então as suas torres derruídas servem de assento a seus pacíficos habitantes quando, nos ardentes mêses de canícula, vão respirar a brisa da tarde à sombra das suas belas palmeiras.

Dimas tinha cumprido a palavra, porque um branco cordeirinho começava a saltar junto de Maria, a qual, com doce e maternal solicitude, mostrava a seu Filho o presente do bandido. - Maria, lhe disse José, depois de terminar o trabalho: Deus quis conduzir-nos sãos e salvos à porta do deserto; Deus nos tirará a salvo das terríveis solidões que vamos atravessar em breve. José, levando o modesto herbívoro pelo freio, encaminhou-se para a cidade de Gaza, que levantava os seus esboroados muros e uns trezentos passos do lugar em que se achavam.

Por fim o silencioso observador da Virgem fez um movimento com a cabeça, como o homem que aceita uma

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resolução que o teve indeciso por alguns momentos e encaminhou-se para a árvore onde se achavam Maria e Jesus. - Mulher, a paz seja contigo, disse. - Árabe, ela te seja propícia, respondeu a Virgem. - Perdoa, se com a minha pergunta te pareço indiscreto, tornou o árabe; mas a julgar pelo teu traje pareces-me

- Belém de Judá foi o seu bêrço. - Então tu és Maria, a venturosa Mãe a quem os anjos de Abraão saúdam e os reis do Oriente rendem vassalagem. - Meu Filho foi o que mereceu tanta honra. - Perdôa se torno a fazer-te uma pergunta: que esperas neste lugar, tão afastado da tua pátria? Para onde te diriges?- Espero meu espôso. Vou ao Egito.- Ao Egito! Exclamou o árabe com espanto, não vejo os camelos nem o guia que deve conduzir-te. - Deus é grande o misericordioso. Quem pode ler os seus desígnios? Só sei que vou ao Egito. As misteriosas palavras de Maria, a doce e modesta dignidade do seu acento, comoveram o velho árabe, o qual respondeu deste modo:

- Que tens, meu espôso perguntou com doçura. - É preciso que façamos a viagem, sós, sem um guia que nos indique os desconhecidos caminhos do deserto, sem um camelo que encurte as imensas distâncias que havemos de atravessar.

59 José, com o coração cheio de alegria, foi

encontrar-se com o árabe e êste ofereceu-lhe um camelo para sua

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Espôsa e seu Filho sem retribuição alguma. - Que importa, respondeu José com alegria, se

minha Espôsa e seu Filho caminharem sem cansaço?

Pouco depois, tudo estava pronto; os comerciante de Gaza reuniram-se com os egípcios e Hassaf o árabe mandou levantar as tendas e empreender a partida. CAPÍTULO VIII O DESERTO

si mumsi m umsi mumbouc ol e s60 - -

Maria aceitou a fineza do velho egípcio, agradecendo do fundo da alma tanta generosidade.

Quantas amarguras, quantos sobressaltos, quantos incômodos devia sofrer durante a perigosa e longa viagem a delicada e terna nazarena!

Por isso quando o grito selvagem do egípcio condutor da caravana exclama, com o prazer inexplicável do náufrago que vê aproximar-se á frágil tábua que o sustenta, sôbre as espumantes ondas do navio salvador,M ok al te b!Mokalteb! grito que todos repetem com prazer indefinível, grito ante o qual os sedentos dromedários partem a galope

61 si mum.A caravana, antes de penetrar na cidade de Cléopatra, deteve-se.

Os divinos viajantes só se detiveram na cidade para agradecerem ao seu protetor e descarregarem do camelo os seus modestos haveres.

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Pouco depois a Santa Família habitava humilde choça e ali, naquele miserável ninho, a virtuosa mulher respirou em paz longe de Herodes, o inumano perseguidor de seu Filho.

LIVRO QUINTO A DEGOLAÇÃO

62 CAPÍTULO I OS FILHOS DA VESTAL

Uma esperança animava ainda o vingativo coração do assassino de Mariana: era que seu filho não lhe havia noticiado definitivamente a evasão dos caldeus.

- Gostaria muito, exclamou o adolescente, que tu fosses um rei tão poderoso como o nosso aliado Otaviano Augusto. O Idumeu sorriu-se. O menino inocentemente tinha afagado um desejo que Herodes teria realizado até à custa da sua honra.

- Povo valente, eu te saúdo e venero, o teu nome ficará gravado na minha memória.

Herodes, sempre bom e condescendente com seu neto, entretinha-se ensinando-lhe deste modo ameno a história militar das nações.

- Não, meu filho, seus domínios alargaram-se pelas conquistas. A origem de Roma tem uma história fabulosa, é quase um conto. - Oh! Pois já sabes que eu morro pelos contos e pelas histórias.

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- Ouve-o, pois meu filho, e não esqueças que um rei, por pequeno que seja o seu reino, pode com o seu valor convertê-lo em grande e poderoso. Herodes abandonou a mesa e, estendendo-se no seu branco leito, fez com que seu neto se sentasse à cabeceira sôbre uns almofadões, e depois continuou desde modo:

63 CAPÍTULO II

AS VÍBORAS DO ESCRAVO - Ah! Finalmente dignas-te vir ver êste pobre rei

enfêrmo, meu valente general. Trarás novas desses caldeus?

- E meu filho Arquelau que diz? perguntou o Idumeu de modo estranho, que gelou o sangue do neto. - Teu filho, lhe respondeu o romano, acha-se no teu palácio de Jerusalém, entregando-se às fúrias do averno.

64 - Oh!, a moléstia torna-me impotente! E Herodes levou a mão ao peito, rasgando a magnífica túnica escarlate, como se um áspide o houvesse mordido no coração.

Como se estas palavras fossem de uma pitonisa, correu-se um tapete da parede e a escura e feroz figura de Cingo, o etíope, apareceu na câmara de Herodes.

Herodes, ao ver o escravo, sorriu-se com ferocidade indescritível Cingo permaneceu impassível. Nem um só músculo do seu rosto se agitou.

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- Verútidio, meu amigo, exclamou Herodes, espera-me na antecâmara, que talvez precise dos teus serviços. E tu, Aquiab, já são horas de tomares o banho; vai-te. Aquiab beijou a mão do avó e saiu. Verutídio fez o mesmo, mas não sem volver antes um olhar de desprêzo ao escravo negro, cujo favor para com o rei o desgostava altamente na sua qualidade de general e de romano. Herodes e

- Pois bem, Cingo, emprega tuas víboras nesses dois Meninos.

- Então quer dizer que os belemistas se propuseram ocultá-lo? Pois tanto pior para eles... Eu tencionava arrancar uma só espiga, e êles opõem-se, Cingo, será preciso segar todo o campo. O escravo inclinou a cabeça em sinal de acatamento, ainda sem compreender as palavras do amo.

Herodes dizia todas estas palavras para si próprio, dando largos passos pela câmara.

Por desgraça, os tiranos que passaram sôbre a terra com a fronte coroada como uma maldição, como um açoite do céu, tiveram servos leais, fiéis executores dos seus horríveis desígnios, que não vacilaram em dar o sangue por êles. Porque a ferocidade, o crime, o assassínio, costumam ter também seus admiradores; almas empedernidas, seres degradados e repugnantes que lambem carinhosamente a ensanguentada mão do verdugo, e se sorriem com desprêzo

65

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Antípatro não trazia arma mas, em compensação seu traje estava perfumado como o duma cortesã de Roma.

Herodes tinha também um filho de que nos ocuparemos mais adiante. O rei, ao voltar-se a cabeça e achar-se com seu filho Antípatro ao lado, franziu o sobrolho; mas êle, antes de lher dar tempo para que fizesse a pergunta que sem dúvida estava formando, exclamou com voz melíflua: - Meu pai, Augusto manda-te de Roma um emissário a quem acompanham vários soldados pretorianos: queres recebê-lo?

- Que entre êsse enviado de Roma, disse Herodes sentando-se nos almofadões, depois de colocar a coroa de louro na cabeça e o manto de púrpura sôbre os ombros. Antípatro fez uma saudação acompanhada dum sorriso e saiu da câmara do pai. Pouco depois quatro escravos levantavam a pesada e larga cortina da porta do camarim de Herodes para que passasse o mensageiro de Roma. CAPÍTULO III A LEI DAS DOZE TÁBUAS

l ati cl ávi as66 Lei das DozesTábuas. - Saúde ao César Augusto, exclamou Herodes, vendo entrar na câmara o enviado de Roma.

pat r onoÊste fez uma reverência, pegou no rôlo e começou a desdobrá-lo pausadamente. A segunda carta de Otávio Augusto, imperador de Roma, dizia assim: “Ao rei de Judeia, por nosso favor, Herodes, o Escalonita, do Capitólio: saúde.

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Lei das Doze TábuasDe c ê nvi r osAug ust o” .Herodes terminou a carta, procurando dominar as desencontradas comoções que lhe agitavam o coração. Por um lado o César, o poderoso Otávio, o grande Augusto, o senho do mundo, chamava-lheque r i do eami go, e por outro seus filhos acusavam-no perante os tribunais de Roma como assassino de sua espôsa. - Com que então meus filhos acusam-se e requerem a minha presença em Roma?

- Pois bem, romano, eu acato a lei, e nomeio-te meu patrono; lê-me a lei quarta dos Decênviros. - Antes que eu te aceite por meu cliente, é preciso que conheças os deveres que unem até o dia da sua morte o defensor e o defendido. - Fala, pois. O romano pousou o livro sôbre u’a mesa e, com um gesto indicou aos escravos que podia retirar-se. Quando ficou só com Herodes disse-lhe:

- Juro, exclamou Herodes, estendendo a mão sôbre o livro.

Mário Cúrcio fez uma pausa, durante a qual abriu livro da lei que deixara na mesa.

Herodes ouvia seu patrono com profunda atenção; quase não respirava; teria dado a metade da coroa para poder afogar com suas próprias mão os rebeldes filhos.

Os filhos não se verão livres do poder dos pais até a morte deste, ainda que cheguem a ter netos. As filhas casadas dependem só de seus esposos. - Ah! pois então! exclamou Herodes sem se poder conter... - Teus filhos são teus apesar da sua acusação.

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O Idumeu pôs-se em pé, e, pegando numa varinha de metal, descarregou uma forte pancada sôbre um timbre

ma ní pul o67 - Descansa, partiremos amanhã ao despertar do dia.

maní p ul ocl â mi decal iga,- Eu julgava-te no campo de Marte vencendo homens e conquistando belas. - Corpo de Baco!!! Antípatro! Por Júpiter “Stator” que me apraz encontrar-te, julgava-te na cidade santa dos Macabeus, mas folgo de que te aches na cidade das rosas. Devemos dizer que Antípatro, como todos os filhos de Herodes, se tinham educado em Roma; rasgo de adulação servil que o rei tributário de Judá rendeu a Otaviano Augusto, o imperador. Paulo conheceu-o na cidade pretoriana e fizeram-se amigos. Além disso Atme tinha por duas vêzes ido a Jerusalém cobrar o tributo do César; de modo que eram antigos conhecidos.

E Antípatro, sem esperar resposta, separou-se de Paulo, receioso de que seu pai suspeitasse daquela familiaridade.

- Vou fazer com teus tios Aristóbulo e Filipe o que Amúlio fez com Rómulo e Remo, para que não me suceda o mesmo que lhe sucedeu a êle. E Herodes, dando em seu neto uma pancadinha no ombro, indicou-lhe que se retirasse. Ficando só, encaminhou- se para o leito murmurando: - Com meus filhos me servirá de exemplo Amúlio; com o novo Messias, com o rei de Judá, tomarei por modelo

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Atalia. CAPÍTULO IV O NINHO DUM PRÍNCIPE

68 tal e tAssim decorreu coisa de meia hora, até

que por fim outra figura humana apareceu no extremo oposto da praça.

O filho de Herodes, o efeminado Antípatro, enfiou o braço no de Paulo, o soldado romano, e ambos se encaminharam pelas tortuosas e estreitas ruas em busca dum dos bairros mais solitários e afastados da cidade, onde

- Boa noite, Enoe, disse Antípatro ao entrar na casa, a uma jovem que, com um lâmpada na mão, alumiava aos dois amigos. - A paz seja contigo, senhor, e com quem te acompanha, respondeu Enoe com a entoação melodiosa das judias. Paulo lançou um olhar à filha de Israel, e depois outro ao amigo como a perguntar-lhe quem era a moça. Antípatro sorriu-se e êsse sorriso era uma resposta ao olhar de Paulo. - Esperai, bons senhores, tornou Enoe; o corredor está escuro e vos alumiar-vos.

- Passai, lhes disse Enoe. - Oh! pronunciou com profundo assombro Paulo,

isto é maravilhoso: a luz sucede as trevas; a ostentação à pobreza.

man up udi um71 - Pois bem, Paulo, meu pai vai a Roma, porque meus irmãos o acusam perante o senado como assassino da nossa

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uma vez apagada no coração a voz da natureza, a luta será terrível e precisarei de ti, Paulo. - Fala, respondeu o romano, vendo com desgosto que aquela ceia, que começara com tão bons auspícios, ia terminar com uma conspiração. Terminada em Roma a sua causa, meu pai voltará a Judá escoltado pelos soldados pretorianos. Se ao pisar as

conheces a sêde insaciável de ouro dos meus compatriotas: nada lhes basta quando se trata de pôr preço às suas vidas:

Depois de esvaziarem as taças, Antípatro saltou do leito e, encaminhando-se para um dos extremos da estância, tirou duma espécie de armário, embutido na parede mui dissimuladamente, uma bolsa de couro bastante grande, um

72 - Pois não esqueças de que precisamos ambas as coisas.

Cingo saudou e tornou a sair do camarim por onde tinha entrado. Herodes tornou a deixar-se cair sôbre o mole leito como se ninguém o houvesse interrompido. CAPÍTULO VI CLEÓPATRA E OS TRIÚNVIROS

para não sobreviver à república que julgava perdida nas mãos de Júlio Césarsi nalprecursor dalgum grave acontecimento. O povo agrupa-se nas praças e comenta a seu modo aquele misterioso sinaldo céu.Passa a noite, nasce o sol, e César, com o seu manto de púrpura, sem armas, encaminha-se a pé para o senado, também tu, Bruto!Cícero, o sábio orador, acha-se já salvo na popa de uma galera; mas teme o enjôo e faz-se conduzir a sua casa de

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campo, numa liteira. Os soldados de António encontram-no, cortam-lhe a cabeça e colocam-na no senado sôbre a

73 tribuna dos discursos: sarcasmo cruel e sangrento do feroz António, que arrancou lágrimas de dor aos sábios de Romae Grécia.

Armaram-se as legiões; Marco e Otaviano encaminharam-se à frente delas para a Grécia, onde Cássio e Bruto tinham levantado um poderoso exército. Venceram-nos na batalha de Felipes. Lépido entretanto ficou em roma; covarde e preguiçoso, inepto para governar aquela poderosa nação, comete mil torpezas. Otaviano convence a Marco coberta de ouro e pedraria, cujas velas eram de púrpura e os remos de prata, disfarçadas deamores agitavam sôbre a encantadora cabeça de sua soberana vistosos leques de plumas, purificando o ambiente com- Dispõe-te a seguir-me a Roma com o manto de púrpura sôbre os ombros e a coroa na cabeça; far-te-ei entrar pela via Triunfal diante do meu carro vencedor. A rainha nada disse. Seus olhos, negros como a noite, lançaram um olhar de ódio e desprêzo ao romano. Quando se viu só, chamou Iras, sua escrava favorita, e disse-lhe, entregando-lhe um punhado de ouro: - Toma, procura o camponês a quem encomendei o último adôrno do meu reinado.

- Cumpriste as ordens da minha senhora? disse. - Sim, escrava, lhe respondeu o homem entregando-lhe um açafate cheio de figos, e cuidadosamente coberto com

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pâmpanos e flôres. Iras deu ao campônes uma bols de seda cheia de moedas de ouro, e retirou-se. Nos olhos do campônes brilhou a alegria e a cobiça, e enquanto acariciava com suas calosas mãos a bolsa da rainha, murmurou: - Para que quererá Cléopatra as víboras, e porque me terá dado tanto dinheiro por elas? As rainhas têm caprichos

74 Algumas árvores de folha amarelada erguiam às

copas por detrás dos muros, como os ciprestes num cemitério abandonado pelos vivos, para enxugar uma lágrima e, depois, soltando um suspiro, exclamou:

O homem da toga entrou nos jardins e, percorrendo aquela dilatada rua de árvores, chegou ao vestíbulo da casa, onde sôbre um pedestal de pedra rústica se erguia uma elegante estátua de mármore.

Cuidado com ocão”.O homem que entrava acariciou a cabeça do cão com familiaridade; êste fechou preguiçosamente os olhos,CAPÍTULO VII - Saúde ao César, exclamaram a um tempo Mecenas e Agripa. - Para ti a quisera eu, meu querido administrador. - Ah! A minha, poderoso Augusto, é u”a menina malcriada que há algum tempo anda descontente por dentro do meu ser. E Mecenas, dizendo estas palavras, procurou sentar-se no leito. César tinha-se sentado sem cerimônia ao lado de Agripa.

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- As mulheres são egoístas, senhor; nenhuma delas compreende sacrificar um instante de felicidade pelo público, disse Mecenas. - E todavia, nada lhes agrada tanto como exigir sacrifícios dos homens, tornou Agripa.

- Os deuses me concedam vida suficiente para ver terminada a nossa obra! terminou Mecenas. - Pois então toca a trabalhar! E Augusto, Mecenas e Agripa puseram-se a folhear volumes que colocavam depois com ordem em uma estante, formando antes um índice em longos pedaços de papiro que se achavam estendidos na mesa.

- O meu maior desgôsto será sobreviver-lhes. A morte dos seus dois poetas favoritos encheu-o de dor porque, folheando seus versos passava as horasmelhores da sua vida. Quando, algum tempo depois, a morte lhe arrebatou Mecenas e Agripa, que tão bons conselhosar tí fic e- Este cacho de pérolas, ilustre César, lhe disse, trouxe-os de Judá para que os mandes colocar na vide de ouro de Aristóbulo, meu antecessor, para que Roma veja que a vide de Judéia dá fruto nas mãos do teu servo Herodes. Desde então, Augusto propôs-se, escudado com a lei quarta das Tábuas, conceder a Herodes todos os direitos que como pai tinha sôbre seus filhos.

O tribunal, por conselho de Augusto e querendo que se respeitasse a lei das Doze Tábuas, entregou os filhos ao pai, para que obrasse com êles como lhe aconselhasse o coração.

Page 87: O MÁRTIR DO GÓLGOTA

Enquanto isto acontecia o manípulo Paulo Atme não se descuidava. Diariamente concorria ao campo de Marte em busca de aventureiros que recrutasse na sua pequena legião. Cingo, escravo de Herodes, fiel ao seu senhor, astuto como uma cobra, espiava o romano sem que êle o percebesse, chegando a tal extremo sua astúcia e fingimento, que Paulo, crendo na palavra do etíope, o julgava um

76 - Que é isto? perguntou Otávio fitando os olhos no escrito. Mas antes que Herodes lhe respondesse, exclamou com doloroso acento!

- Pelos deuses do Capitólio, pela honra de teus pais e pela glória da águia, que serve de cimeira ao estandarte do teu manípulo, exijo-te que me digas se é certo o que diz este pergaminho. - É certo, César. - Só Augusto levanta legiões em Roma, exclamou o imperador com voz ameaçadora; ninguém mais que eu tem direito a conceder as coroas tributárias nos meus domínios. Tu faltas à lei; morre pois, como soldado! E Augusto, tirando a espada que pendia do cinturão de Paulo, disse-lhe com voz enérgica, apresentando-lhe pelo punho: - Toma.

- Assim devem morrer os traidores que ameaçam a existência dos reis a quem concedo hospitalidade no meu

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palácio, tornou Augusto, afastando os olhos do cadáver de Paulo. E depois, vendo que as duas testemunhas, Herodes e o centurião, nada diziam ante aquele drama sangrento, continuou, dirigindo-se ao velho soldado:

Pouco depois os litores mandavam enterrar o cadáver de Paulo. LIVRO SEXTO CAPÍTULO I F A N T A S I A

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Cícero havia dito: “Desde que os homens não são tão singelos, os oráculos emudeceram? Roma, pois, começava a rir-se até dos seus deuses.

Ars amandie i si umr e dosA noite tinha também seus encantos na cidade do Tibre.

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- Uma estrangeira que vem do centro do mundo, que deixou atrás de si o golfo de Corinto, e que caminha em

VIAJANTE: DETÉM O PASSO, E SAÚDA AS CINZAS DO CENSOR - Quem és tu que tens o poder de agitar as minhas

cinzas, e dar voz ao meu espiríto? Perteces à família dos

deuses?- Sou a sibíla Cúmea.- A sibíla Cúmea, a sibíla de Tarquínio abrindo os fossos do Capitólio sôbre a rocha Tarpeia, a vender os livros

- Sim, morri: o velhor Quiron conduziu minha alma pela lagoa Estígia; visitei a caverna da morte e vi as três parcas: Laquesis, de cujos dedos brotam milhares de fios; Cloto, que sustenta eternamente o fuso; e Átropos, com suas

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79 incansáveis tesouras de diamante que cortam sem cessar o fio da vida. O meu caiu também sob o corte incansável da sua arma fatal. - Como, pois, ouço a tua voz, se deixaste de existir?

A estrangeira pôs-se em pé soltou doloroso suspiro, e, tomando o caminho de Roma, disse: - Dorme em paz, Ápio; mas, se a tua alma vagueia errante pelas regiões do desconhecido em busca dum perdão que não podem conceder-te os deuses pagãos, dirige-a para Israel, terra prometida onde nasceu o verdadeiro Deus, o

Crasso, caiu ao chão feita em pedaços; os mármores estremeceram e a sibila Cúmea, inclinada a fronte para o chão, apoiado o corpo no cajado que lhe servia de árrimo, encaminhou-se para Roma, pronunciando estas palavras:

CAPÍTULO II O ORÁCULO DE DELFOS

Os dois cavaleiros chegaram ao pórtico do palácio de Augusto, e apearam. Os soldados do César rodearam os forasteiros, estranhando-lhes a franqueza com que se introduziam no palácio do seu senhor a tal hora da noite. - Que? Já me não conheceis, lobos caducos! Disse Tibério imperiosamente. Tão depressa se apagou da vossa memória a fisionomia do sobrinho do vosso senhor? Nesse caso, aconselho-vos a que depositeis um coração de pomba

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Macron pôs com impassibilidade a cobra no peito, e, enquanto Tibério subia as largas escadas do palácio, encaminhou-se para as cavalariças, seguido dos corcéis. Quando Tibério chegou à antecâmara do imperador, disse lacônicamente a um dos litores que vio ao seu encontro: - Dize a César que Tibério está aqui. - Meu querido tio tu quiseste que abandonasse a minha rocha solitária para me estabelecer no teu palácio de Roma, e os teus desejos são ordens para Tibério. Aqui me tens, falou êle.

- Eu sou o teu primeiro escravo, senhor, lhe disse; manda; mas preferiria a solidão da minha rocha de Rodes ao bulício de Roma. - Chamei-te, pois, continuou Augusto desatendendo as palavraas de Tibério, porque desejo instruir-se nos deveres de um rei clemente e justiceiro. A paz, meu filho, deve ser o primeiro cuidado dos reis. Tibério tornou a inclinar-se.

- Senhor, antes de nos separarmos quisera interceder por um desgraçado que geme num cárcere, na praia do Ponto Euxino, recordando na sua solidão os encantos de Roma, os gôzos da via Ápia.

Augusto despediu Tibério com um gesto. O imperador ficou um momento taciturno, com os braços curvados sôbre o peito e os olhos no chão, como se o nome de Ovidio, o cantor inspirado da Ars amatória, de Medea e do poema

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A Batalha de Acio, lhe houvesse evocado na mente dolorosas recordações.Desse atitude veio tirá-lo um litor anunciando-lhe que uma mulher estranha e coberta de pó, que dizia vinda de

Me puer hebrae, divos Deus ipse gubernans, Credere sedem jubet, tristemque reddire sub óreum. Aris ergo lime tacitis abscedite nostris. Apenas Augusto, pronunciara a última palavra dos três versos do oráculo, quando Cúmea, estendendo o braço para o Oriente exclamou: - De Israel brota a luz que há de dissipar as trevas. Ai dos cegos idólatras do Olimpo! Ai dos deuses pagãos! Jesus mandou-os emudecer, e caem ante o seu glorioso nome dos soberbos pedestais para baixarem ao infernor! Augusto apertava o papiro entre os dedos, tremendo ante o fatídico eco da sibila. Grossas gotas de suor lhe caíam da fronte. Cúmea continuou: - Já cumpri a última missão do oráculo; Átropos, corta o fio da minha existência!... A sibila soltou um gemido doloroso, extenso. O cajado desprendeu-se-lhe das mãos; os olhos fecharam-se-lhe, e caiu em cheio sôbre a alfombra.

85 - “Vem, já, Salvador do mundo! Por mais que te

busquem a ninguém, temes: veja-te o tirano e não tire a vida a nossos queridos filhos”. Até aqui Sto. Agostinho.

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Mais de sessenta belemitas sacrificadas ao furor de Herodes, jaziam degolados no largo do pátio da piscina. O quadro era horrível, espantoso, sem exemplo. A história recorda-o como assombro.

- Ai de ti, miserável escravo, exclamou a mulher com as feições horrivelmente contraídas, se tocas num só cabelo desse menino! - Nada temas, lhe respondeu Cingo sorrindo-se dum modo feroz; quanto a êle, não me denunciará aos juízes de Jerusalém. - Treme, infame, tornou a mulher, a quem dois satélite de Cingo tinham segurado: êsse menino é o herdeiro da coroa de Judá, é filho de rei, e está destinado a ocupar o trono. Ao ouvir estas palavras, no escuro semblante de Cingo, brilhou uma alegria feroz.

- Cingo, eu te apresento a cabeça dum rei: não te esqueças de me dar o galardão. A infeliz mulher não pôde resistir ao sangrento espetáculo, e caíu de costas, sem sentidos.

Belém, pátria de Davi, berço de Deus, foi a mãe dos primeiros mártires do Cristianismo.

CAPÍTULO VI •

SANGUE NO ROSTO 86

- Eu cortei vinte cabeças, vêde aqui os dentes das mães.

Mais tranquilo que os seus satélites, o escravo favorito encaminhou-se para o palácio de seu senhor. Como

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sempre, penetrou no quarto de dormir de Herodes pela porta secreta. O Idumeu passeava agitado, quando Cingo entrou

cruel, o Rei de Judá não deve inspirar-te o menor receio: eis aqui a sua cabeça. E o escravo, desdobrando a ponta do manto, apresentou a cabeça do menino que tão cruelmente arrebatara dos braços da última belemita.

- É estranho, murmurou, parece que já vi esta cara... Cingo nada dizia. Orgulhoso por ter desempenhado tão fielmente a terrível missão de seu senhor, esperava impassível a recompensa que, segundo o costume, devia seguir o serviço prestado.

A mulher soltou um rugido reconhecendo Cingo. Herodes voltou a cabeça. - Tu aqui, Rebeca! perguntou o rei com estranheza. - Sim... eu! Exclamou a mulher com um rouco e nervoso acento. Eu... que venho entregar ao rei de Jerusalém o

que êste infame assassinou por ordem tua! E Rebeca estendeu o braço na direção de Cingo.

- Deixai-me! Deixai-me! gritou o rei com acento ameaçador depois de um momento; mais levai êsse corpo ensanguentado da minha presença. Sua vista abrasa-me os olhos e faz-me arder o coração. Rebeca levantou o destroçado corpo do menino, embrulhando-o na saia e depois lançando um olhar ameaçador ao escravo, exclamou em tom profético. - Ai do assassino dos primogênitos de Judá! Seu nome será maldito pelos séculos dos séculos, e na hora da sua

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morte, as fúrias do inferno se deleitarão em despedaçar-lhe as entranhas com as línguas de fogo! Rebeca saiu da câmara do rei, apertando contra o peito o cadáver do inocente mártir. Cingo ia também sair, quando Herodes exclamou, levantado-se: - Espera... - Senhor, castiga-me; sou digno de tua cólera. E Cingo inclinou a cabeça, como se esperasse o golpe que devia vingar o seu rei.

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- Se tu consegues apresentar-me as cabeças de João e Jesus, prometo-te em recompensa um talento hebreu, e

- Éros, escravo de Marco Antonio, imortalizou o seu nome morrendo aos pés do seu senhor; a minha única ambição é imortalizar o meu morrendo por ti.

- Parte, e não esqueças que te espero. - Nunca descanso quando o meu senhor me encarrega de alguma coisa.

- Socorro... Socorro!... que morro! CAPÍTULO VII

PRELÚDIOS DA MORTE 88

improbo trabalho, com o sorriso e os beijos de seus filhos, e encontraram a incrível realidade ante os absortos olhos, a dôr, a desesperação, as lágrimas e os gritos de raiva e vingança foram incalculáveis.

Mas aquele céu sem nuvens, aquela manhã risonha tinha sido substituída por uma noite de dor, dor tanto mais

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terrível, tanto mais inconsolável, quando estavam mui longe de esperar.

...................................................................................

...................................................................................

...............

.................................................... Perguntam por João e a pergunta fica sem

resposta, porque todos ignoram seu paradeiro, ameaçam com a morte os criados, e estes lançam-se aos pés dos verdugos derramando lágrimas. Cingo precisava duma vítima para aplacar a raiva do seu senhor. Pergunta pelo velho sacerdote e diz-se-lhe que se acha de semana no templo de Jerusalém. Parte de Ain, chega a Jerusalém, penetra na câmara de Herodes pela porta secreta com o fim de informar da sua desgraçada missão, e detém-se ante o espetáculo que se lhe apresenta aos olhos.

Num extremo da sala acham-se sentados quatro anciãos ao redor de uma mesa. Uma lâmpada de prata derrama luz sôbre um grosso volume que se acha aberto. Esse anciãos são os médicos do rei que deliberam em voz baixa.

- Ainda nos falta tentar, disse um outro, os banhos de azeite aromático. As úlceras da pele cerrarão, e o cheiro do corpo desaparecerá. - Tudo é inútil, replicou o primeiro; mas o nosso dever é aconselhar, e opto pelos banhos de Caliroe. - O rei tem sessenta anos: com esta idade e com esta moléstia, o médico mais sábio só pode enganar a morte por

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alguns dias; aconselhemos, pois, os banhos de Caliroe. Este parecer, que foi o dum ancisão que não tinha despregado os lábios até então, foi aprovado pelos companheiros e, depois de trocarem frases em voz baixa, um dos médicos aproximou-se do leito do enfêrmo.

89 - Que opina a ciência, amigo Joaquim, deste pobre enfêrmo? Perguntou Herodes vendo acercar-se o médico favorito. - A ciência opina, senhor, que deves tomar os banhos de Caliroe. - Mas eu sofro horrivelmente! É preciso que busqueis alguma coisa que minore os meus padecimentos. Se não para que sois médicos? Para que vos pago, para que vos tenho em minha casa? Pedi ouro, mas daí-me saúde; já que

- Uma liteira conduzida pelos teus escravos pode transportar-te, sem que sofras com isso mais do que agora. - Está bem, tornou Herodes, entrego-me nas vossas mãos; fazei de mim o que vos aprouver, mas salvai-me a vida. Porque não quero morrer ainda... entendeis? - Então manda que se prepare tudo para o novo sol. - Ptolomeu! Ptolomeu! exclamou Herodes dirigindo a palavra ao velho guarda-selos; bem ouves, dispõe tudo: a

CAPÍTULO VIII A PROFANAÇÃO

Cingo, que permanecera oculto atrás das pregas duma cortina, entrou na sala apenas viu que se achava só o seu

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senhor. O escravo, andando nas pontas dos pés para não fazer barulho, acercou-se do leito do seu senhor.

O enfêrmo abriu os olhos e viu a negra figura. - Ah! És tu, meu leal Cingo, disse com voz desfalecida. Não sabes! Os médicos desconfiam, a ciência é impotente, e deixam-me morrer, mas ai deles! O meu último suspiro será a sua sentença de morte. - Senhor, lhe disse o escravo: se a saúde, se a vida pudesse transmitir-se como a riqueza, tua não morrerias,

- Quando me vir livre desta horrível enfermidade, hei de nomear-te general das legiões herodianas, hei de dar-te

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Cingo ficou em Jerusalém. O negro devia derramar sangue inocente e manchar com êle, a casa de Deus. O santo sacerdote Zacarias, pai do Batista, sábio, preceptor da Virgem, estava sentenciado à morte. Os verdugos não recuaram ante o horroroso e sacrílego crime. Cingo e seus infames companheiros apresentaram-se no templo de Sion com o punhal homicida na dextra. O velho sacerdote achava-se desempenhando os santos ofícios do átrio interior da casa de Jeová. Os verdugos perguntaram-lhe por seu filho; êle que ignorava e seu paradeiro, respondeu ingenuamente que estava em casa de Ain, e que se ali não se achava êle não o sabia.

A morte de Zacarias foi o sangrento epílogo com que terminou a terrível tragédia dos mártires de Belém. O

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sangue do justo, manchava os mármores da casa do Santo dos Santos. Não estava longe o dia em que o sangue de Deus devia correr pelas ásperas ladeiras do Gólgota.

LIVRO SÉTIMO A ÁGUIA DE OURO CAPÍTULO I A VIA SANGRENTA Herodes chega a Caliroe, e os banhos daquela águas medicinais, tão célebres então, pioram-lhe a saúde.

- Tenho fome... muita fome... Daí-me alguma coisa que comer, porque morro. Salomé consultou com um olhar os médicos; mas êstes que perderam a esperança de o salvar e que temem desobedecer às ordens de um rei bárbaro e cruel que pode mandá-los degolar na sua presença, respondem que se lhe dê

91 Herodes estava ébrio e, na sua embriaguez, pede em altos gritos que o transportem para o seu palácio de Jericó. Todos temem desobedecer-lhe, e as suas ordens, cumprem-se imediatamente. Chega a Jericó, mas em que estado!

Proibe-se a entrada no quarto do rei a toda a gente; e os escravos; crendo que o seu senhor morreu, espalham esta nova, que corre a Judéia, enchendo de júbilo quantos a ouvem.

via sangrentaO ardente corcel, alheio às comoções que agitam o coração do dono, que a tais horas da noite cruza tão solitários caminhos, continúa galopando com incansável e impertubável regularidade.

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Deve ser aqui, murmurou em voz baixa o cavaleiro.

Imediatamente um rouxinol cantou a poucos passos do cavaleiro; que se pôs em pé, e, como se o vomitasse a terra, um homem se levantou dentre as matas. O cavaleiro, ao ver levantar-se uma sombra ao seu lado, empunhou por precaução a espada que lhe pendia do talim.

92 Então o homem deu alguns passos, e agachou-se, agarrando com seus robustos braços uma rocha. O cavaleiro fez o mesmo. Pouco depois a boca duma gruta chou-se aberta antes êles. - Entra, disse o homem; só tu faltas. O cavaleiro entrou sem despregar os lábios naquele abismo que se lhe abria diante dos pés; mas a escuridão era tão completa, que se deteve sem se atrever a dar um passo. Desta indecisão o tirou uma mão que na escuridão lhe travou

- Entra, disse ao cavaleiro. Este entrou numa caverna espaçosa alumiada por uma imensa lâmpada de ferro de três bicos.

O viajante caminhou alguns passos, e ao ruído das suas pisadas os moradores da gruta voltaram a cabeça. - É êle, disse um dos companheiros, e, todos se puseram em pé.

- Sabemos, disse um dos homens da caverna, os perigos que te rodeiam, e desculpamos-te de todo o coração a

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- Senta-te entre nós, pois nós te admitimos como um irmão que vem derramar o sangue nas aras da liberdade da pátria.

CAPÍTULO II A CONJURAÇÃO Dissemos que eram quatro homens que se achavam na caverna esperando Antípatro, filho de Herodes. Três deles são desconhecidos e passarão pelas páginas deste livro rápidos como uma exalação; o outro é conhecido, e acompanhar-nos-á até ao cume do Calvário.

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profetizou a Herodes, quando era menino, que seria rei de Jerusalém, e como esta profecia se realizou a família ficara como hereditária; todos era adivinhos. Josefo diz-nos que Herodes protegia os essénios e a explicação que disso nos dá é tão curiosa que merece ser contada:

Reinarás vinte, trintaSedós era filho de Manaém, e a fama de seu pai ficara hereditária nele. Judas e Matias tinha grande influência entre os discípulos, e quanto a Dimas, já o sabemos com a gente contava, e a felicidade e respeito que pelo seu valor lhe tinha os seus soldados. Informamos de quem eram os personagens da caverna, prossigamos a narração. Sedoc, o essénio, o mais velho, foi quem rompeu o silêncio. - Mancebo, tu que vens da cidade santa, dize-nos que se passa nela?

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- Jerusalém chora como sempre, respondeu Antípatro; as filhas de Israel quebraram os saltérios e penduraram as harpas no tronco das palmeiras. - Os jerossolimitanos chorarão eternamente enquanto a águia dos ímpios estender as asas de ouro sôbre a casa de

- Pensa, mancebo, que se Israel desembainhar a espada será a primeira vítima, teu pai, lhe disse Sedoc com voz grave. - Meu pai deve ter expirado a estas horas; mas no caso de viver no dia da batalha, por ventura não sacrificou êle minha mãe e meus irmãos? Não me persegue com o intento de sacrificar-me? Pois então, cale a voz da natureza e fale o

volume da Lei da mão. Êsse volume não era um livro, mas dois cilindros de madeira. Sedoc sentou-se de novo entre os companheiros, e Matias desceu a lâmpada de modo que a chama banhasse com seus raios a fronte do ancião.

Matias começou a ler as sábias leis espalhadas pelo sábio legislador do Sinai noE xodo e noL e ví t ic o.

amé mEntão os quatro israelitas levantaram-se e, pondo as mãos sôbre a cabeça do jovem princípe, exclamaram: - Já és nosso irmão... a tua carne é a nossa carne, como a nossa é a tua; e teu sangue nos será tão prezado desde este dia como o que nos gira pelas veias.

- Amém!... tornaram a dizer os quatros companheiros.

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Depois, houve uma pausa. Os cinco conspiradores rezaram em voz baixa para que Deus santificasse aquele laço fraternal que em prol da liberdade e da pátria acabavam de apertar.

94 - Agora, disse o essénio, cada qual revele a seus irmãos aquilo com que conta para o dia do levantamento; e dirigindo-se a Antípatro disse-lhe: fala tu primeiro que és o mais moço.

à vossa voz. - Eu também, replicou Judas, ofereço como

Matias os meus discípulos, e respondo com a cabeça pelo seu valor e patriotismo.

- Tu és como o mais velho o mais prudente; a ti compete pois dirigir o movimento, disse Dimas. - Permití-me que vos diga, meus irmãos, tornou Antípatro com melíflua voz, que a moléstia de meu pai poderia auxiliar os nossos planos, e não devemos desprezar esta ocasião.

festa das sortes das sortesOs quatro responderam afirmativamente com a cabeça.

das sortesEste r- Quando cair a águia que pousa sôbre o pórtico do templo, os meus soldados desembainharão a espada pela pátria, exclamou Dimas entusiasmado. - O mesmo prometemos à frente dos nossos discípulos derribar esse padrão de ignomínia que rouba o sono aos judeus descendentes de Jacó. - Agora, o Leão de Judá afie as garras como em outros tempos, e o glorioso estandarte dos Macabeus tremula,

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do barranco e detiveram-se. Ali deviam separar-se. - Deus seja convosco, disseram uns aos outros. - A celebração dassor te s seja tão propícia aos judeus de agora, como o foi para os judeus no tempo deEste r, exclamou Sedoc.

CAPÍTULO III O TEMPLO DE SION Enquanto o Eterno não concedia morada fixa aos judeus para lhe elevaem um templo estável, as doze tribos de Israel serviram-se dum portátil, durante os seus longos anos de errante peregrinação.

As oito tribos restantes dormiam tranquilas debaixo das suas tendas, vendo flutuar os estandartes sôbre as suas cabeças.

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Quando o sábio legislador mandava levantar os arraiais, os levitas desfaziam o templo com prodigiosa rapidez, pois cada um tinha a seu cargo um pano ou uma tábua dos que formavam as paredes.

Tudo está pronto: plantas e material; porém Davi morre, e seu filho Salomão tem a glória de pôr em obra o pensamento do pai.

Santo dos SantosCAPÍTULO IV 96 A FESTA DAS SORTES

Por i mS or te spar te sO favorito tinha deitado sortes para ver o dia que devia começar a terrível matança; mas, felizmente para o povo hebreu, a formosa rainha consegue salvá-lo do cutelo homicida e perder o iniciador de tão terrível pensamento.

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cidade inferior- Ouvi, ouvi, ouvi, o livro de Ester, filha de Abigail, sobrinha de Mardoqueu, da tribo de Benjamim, mulher de Assuero, rei da Pérsia. Aqui fez uma pausa e leu os dois primeiros capítulos do livro, no meio de religioso silêncio.

treze do mês duodécimo chamado Adar- Sumido seja o teu nome: o nome do malvado seja destruído. A dor dos judeus mudou-se em estrondosas alegria quando o sacerdote leu o versículo 10 do capítulo VIII que diz: “E assim foi enforcado Aman no patíbulo que tinha preparado para Mardoqueu, e cessou a ira do rei”. Tocava seu têrmo a leitura do livro de Ester quando um acontecimento veio perturbar a solenidade religiosa da festa das sortes.- Abaixo os ídolos dos ímpios! exclamaram várias vozes que figuravam sair da parte superior dos pórticos do templo.- O leão de Judá quer ser livre, responderam outras vozes que saíram da multidão que enchia o átrio das nações.

99 Ptolomeu dispunha-se a abandonar o quarto do

rei, receioso de que terrível sentença o alcançasse quando Herodes o deteve: - Ah! esquecia-me. Os outros podes deixar livres para que apregoem a clemência de Herodes. Vai e dize aos meus escravos que me sirvam a ceia. O guarda-selos saiu da câmara real, e meia hora depois o rei ceiava tranquilamente com seu filho Arquelau, seu

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neto Aquiab e o seu general Verutídio. - Esse miserável com coroa é um infame sem

coração. Vale mais ser porco que filho de Herodes.Deixemos o rei ceiando na sua câmara, rodeado dos filhos e do general, e sigamos Cingo que caminha favorecido pela escuridão da noite por uma das ruas desertas de Jericó.

As quatro sombras reunem-se com o negro, e este diz em voz baixa: - Entremos. Os punhais brilham nas mãos dos misteriosos companheiros de Cingo, e imediatamente desaparecem todos no estreito e escuro corredor que comunica com o interior da casa. Cingo detem-se e, aplicando os lábios no ouvido de um dos companheiros, murmura uma frase que só aquele a quem é dirigida pode ouvir. Êsse deteve, tornou a desandar o andado, e, embuçando-se no manto, foi sentar-se de cócoras sobre o tosco degrau da porta. Os outros quatro seguiram avante, caminhando pelo escuro corredor com as mãos estendidas como se temessem topar nas paredes que os rodeavam. Aonde iam?... Vamos vê-lo.

LIVRO OITAVO A AGONIA CAPÍTULO I A DUPLA CADEIA Retrocedemos algumas horas. Tomemos o fio da nossa narração desde o momento em que o príncipe Antípatro, vendo perdida sua causa

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abandonou o templo, buscando na fuga a salvação da vida ameaçada tão de perto pela vencedora espada dos romanos.

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- Escravo, és livre, celebra a tua alegria e a minha desdita com esses siclos que semeio a teus pés. E, enterrando o acicate nos ilhais do corcel, partiu a galope rasgado. O escravo deitou-se de bruços no chão e começou a apanhar as moedas com avidez. Aquilo era uma fortuna para ele; nunca seus olhos tinham visto tanto dinheiro junto e aquele dinheiro era seu. Tanta emoção transtornava-o e nem

Então Arquelau, pois era ele, fez voltar o corcel em direção ao templo e Cingo, o escravo favorito de Herodes,

Cingo conheceu que o galope dos cavalos era tão igual, que nada adiantaria, pois só no caso em que seu inimigo desse um tropeção poderia conseguir alcança-lo.

Cingo, resolvido a levar a cabo a sua estratégia, agarrou-se com força, às crinas do cavalo, e, com risco de cair, conseguiu tirar-lhe a sela e a manta e mais arreios, deixando dentro em pouco o cansado animal em pêlo.

Esta manobra foi executada com tanta rapidez, que Cingo não pôde ve-lo por causa do quebrado do terreno. Antípatro teve cuidado de picar a ancar do cavalo com a adaga que tinha na mão ao cair, de modo que o corcel, livre do pêso do dono e ferido pelo ferro, redobrou o veloz galope.

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Cingo, sempre estendido sobre o pescoço do corcel, esperava impaciente o instante em que os cavalos se juntassem para apoderar-se do inimigo.

Na terrível noite do seu infortúnio só aparecia uma estrela que do céu tempestuoso da sua desgraça lhe enviava os suaves e tranquilos raios da sua luz pura e formosa. Aquela estrela era Enoé, à escrava favorita.

101 amor onde possa esquercer-se a perfídia dos homens, o bulício do mundo, que maior ventura, para que mais felicidade sobre a terra enquanto não chega a hora da eterna recompensa?

Um pensamento lhe assaltou a mente, e disse para si:

Algumas horas depois, já de noite, o príncipe, fugitivo bateu à porta da escrava, e esta abriu-a rapidamente.

- Só um sentimento agitava o doce e terno coração daquela menina: o amor. Só um nome sabia balbuciar a sua encantadora boca: Antípatro. Costumava lembrar-se da pátria; mas um olhar do seu senhor, tinha o poder de fazer-lhe esquecer tudo.

Enoé deu um grito ao vê-lo daquele modo, e lançou-se-lhe nos braços. Antípatro pagou aquela afetuosa recepção com um beijo e um sorriso e antes que a escrava lhe dirigisse a palavra, disse-lhe:

E Antípatro, que se tinha deixado cair sôbre um coxim indiciu os pés a Enoé. - Esta ajoelhou-se e respeitosamente os beijou.

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- Oh! disse-lhe o príncipe levantando-a com carinho, deixa agora os meus pés e ocupa-te do meu estômago, minha querida.

Antípatro viu sair a escrava, e acompanhou-a com um olhar doce e carinhoso. - Pobre menina, disse consigo, só os deuses lares poderiam revelar-te o teu futuro, quando os escravos de meu pai me lancem ao pescoço a cadeia opressora que preparam! Um suspiro seguiu estas palavras.

CAPÍTULO II ONDE SE PROVA QUE NÃO É DIFÍCIL ADORMECER NOS BRAÇOS DUM ANJO E ACORDAR NOS DUM DEMÔNIO Enoé tornou a entrar no camarim, conduzindo uma bandeja com Carne e duas garrafas de vinho.

- Ah! estás ai, Enoé? 102 - Espero as tuas ordens, senhor. - Canta, pois, minha bela: a tua doce voz faz-me bem. Sou tão desgraçado! - Tu não és minha serva, és minha doce amiga; podes cantar o que te agrade; só devo advertir-te que sou um príncipe mui desgraçado a quem a morte persegue mui de perto. Enoé, estremeceu. Antípatro começou a comer distraidamente, e Enoé, depois de procurar uma canção análoga às circunstâncias, atreveu-se a dizer:

- Ouçamos o canto do rei. Enoé começou um acompanhamento que tinha um doçura, uma variação indefível e, pouco depois, a sua voz

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argentina começou a cantar a poética prosa de Isaias desta maneira: “No meio dos meus dias, entrarei pelas portas do sepulcro: vejo-me privado do resto dos meus anos. Já não verei o senhor meu Deus na terra dos que vivem. Não verei mais homem algum, nem os que morarem em doce paz. Tira-se-me o viver, vai-se dobrar a minha vida como a tenda dum pastor: quando a estava ainda urdindo, então Êle ma cortou; de manhã à noite acabarás comigo, ó Deus meu. Esperava viver até ao amanhecer: o Senhor como um leão forte havia quebrado os meus ossos; mas pela manhã dizia: antes de anoitecer acabarás, ó Senhor, a minha vida. Estava eu como um filhinho de andorinha; gemia como as pombas; debilitaram-se-me os olhos de olhar sempre para o alto do céu. A minha situação, Senhor, é mui violenta; toma a teu cargo a minha defesa. Mas que é que digo? Como me tomará Êle sob o seu patrocínio, quando Êle mesmo foi o que fez isto? Repousarei, ó Deus meu, diante de Ti com a amargura da minha alma todos os anos da minha vida. Ó Senhor! Se isto é viver e em tais apuros se acha a vida da minha alma, castiga-me, rogo-te, e castiga-me, e vivifica-me. Vêde como se mudou em paz a minha amaríssima aflição; e Tu, ó, Senhor, livraste da perdição a minha alma, lançaste para trás das costas todos os meus pecados.

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Os vivos, Senhor, os vivos são os que Te hão de tributar louvores, como eu faço neste dia; o pai anunciará a seus filhos a Tua fidelidade nas promessas. Cessou o canto: Antípatro, ainda preocupado como se escutasse o doce eco da voz de Enoé, ficou alguns momentos sem despregar os lábios. As palavras do rei moribundo tinham-lhe chegado até ao fundo do coração, e êste pulsava de modo estranho para ele. Por fim, deslizando do leito e pegando num leque de penas, começou a abanar-se e a passear distraído pela sala. De súbido os olhos do senhor encontraram-se com os da esrava, e então o senhor foi sentar-se aos pés da formosa egípcia, que lhe apresentou o regaço para que reclinasse a cabeça. Antípatro aceitou o oferecimento enviando um sorriso a Enoé, e depois disse-lhe: - Fizeste bem em recordar-me a prece do rei Ezequias. Desde este momento prometo-te ocupar-me um pouco mais de Deus e um pouco menos dos homens. - Meu príncipe: de Jeová emana todo o bom e consolador; dos homens todo o azíago e penoso. Deus é a fonte do bem que vivifica o foco de luz que ilumina; pensa n’Êle e serás feliz, ama-o e terás ventura sôbre o pó da terra.

103 O príncipe hebreu selou com um beijo as palavras da sua amada.

A voz de Antípatro ia-se enfraquecendo pouco a pouco.

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Enoé continuou abanando com o leque a formosa cabeça do amante. O amor da contemplação brilhou com todo

O príncipe tinha adormecido nos seus braços, e o sono ia revelar-lhe com a sua rude franqueza o que o amor não se tinha atrevido a comunicar-lhe desperto.

A pobre menina estava tão preocupada, e absorta na dor do amante, que não percebeu uma porta abrir-se atrás dela, e um homem entrar no camarim andando em ponta de pés sobre a mole alfombra para não fazer bulha. Aquele homem era um negro de feroz semblante. Um sorriso de prazer horrível separou seus grossos lábios, deixando ver duas muralhas de marfim. Sua dextra oprimia um longo punhal e a esquerda, uns cordões de seda. Atrás do negro apareceu outro homem, e atrás deste outro, e atrás outro. Eram quatro; o negro ia adiante, e chegou até onde estava a escrava. Antípatro dormia com a formosa cabeça reclinada no seio da sua amada, e esta chorava em silêncio e agitava o leque de penasa refrescando a ardente fronte do seu senhor. De repente Enoé soltou um grito terrível, mas afogado, porque uma mão rude e calosa caiu brutalmente sobre a sua nacarada bôca. Antípatro abriu preguiçosamente os olhos, e no seu semblante plantou-se com as côres mais vivas o assombro e o terror.

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- Ah! formoso príncipe, disse Cingo com insultante entoação: por fim consegui pôr-me em contato com a tua bela pessoa. - Miserável! exclamou Antípatro cheio de ira.

104 - Não tens de que enfadar-te, meu amo, respondeu o negro colocando a ponta do punhal sobre o coração de Antípatro, fazendo sinal aos seus para que o atassem com os cordões. - Covardes, porque não me matais dum só golpe? Tornou o jovem, forcejando por desembaraçar-se dos perseguidores. - Porque isso é incumbência do meu senhor, teu pai. Antípatro, a quem os seus inimigos tinham atado e pôsto em pé, dirigiu um terrível olhar à escrava Enoé, chorando ao seu lado, aturdida com o que estava vendo. - E quanto te valeu, miserável escrava, lhe disse com tom de desprezo, entregar a minha pessoa aos meus

Enoé deu um grito e caiu desamparada aos pés de Antípatro. Êste apartou a vista com desprezo daquela mulher

Os três homens saíram levando atado o pêso. O negro ficou um momento no camarim; pôs-se a contemplar o desmaiado corpo de Enoé. - É formosa como uma virgem do templo de Sion, esbelta como uma garça do mar de Tiberiades. Pobre menina, perdeu o seu protetor. Bem posso sê-lo, desde agora.

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E dizendo isto, tomou nos braços Enoé, como se fosse uma criança, e saiu pelo estreito corredor, atrás dos companheiros. CAPÍTULO III AS MAÇAS E O MENINO Decorreram alguns meses desde os últimos acontecimentos.

Com assombro dos rabinos e altos dignitários de Jerusalém e Jericó, o idumeu, cuja origem plebéia o atormenta, mandou queimar os livros hebraicos em que consigna a cronologia dos príncipes de Israel. - Por este meio, diz a posteridade ignorará que a minha raça não era tão ilustre como a de Davi. Na ocasião em que tornamos a apresentá-lo em cena, acha-se como de costume deitado na cama. Ptolomeu,

- “Distribuo o meu reino, porque assim é minha vontade, da maneira seguinte: Deixo por sucessor no reino e

Ptolomeu escreveu, encolhendo os ombros e fazendo um gesto de desgosto, mui dissimulado, receioso de que seu senhor o descobrisse.

Ptolomeu, quando acabou de escrever a última frase, disse, levantando a cabeça: - Contante... Aqui uma pausa, durante a qual o guarda-selos permaneceu imóvel com a pena suspensa sôbre o papiro, esperando que seu senhor ditasse. - Agora continua a copiar as doações que faço aos meus amigos e à imperatriz dos romanos, como está no testamento antecedente, pois não quero alterar essa parte.

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O guarda-selos ficou imóvel, ao terminar, esperando novas ordens. - Agora, Ptolomeu, pega na pena e escreve o que vou ditar-te; é um pensamento novo que surpreenderá os israelitas. No macerado semblante de Herodes brilhou um sorriso de selvagem alegria. Seus pequenos e encovados olhos injetaram-se de sangue e disse desta maneira:

- Está pronto, senhor, disse o guarda-selos. - Agora encarrega-te da publicação desse edito. Hoje mesmo podem estender-se os arautos pelo meu reino. Ptolomeu saudou e saiu da câmara do rei, não sem levar no peito alguma curiosidade sobre aquela medida extrema que acabava de ditar-lhe o seu senhor.

- Avô, meu avô, exclamou Aquiab correndo, com os braços abertos, para onde estava Herodes.

- Ah! exclamou o enfêrmo depois da horrível luta. Todos me abandonam, todos me esquecem! Julgava sufocar,

a tua fruta favorita. São muito boas, eu provei uma. Oh! Quando eu for rei, recompensarei os lavradores dos campos de Damasco, que tão boas maçãs fazem produzir às suas árvores. A verbosidade do terno adolescente encantava o velho monarca.

O menino calava, porque as palavras do avô lhe causavam medo; e, depois, olhava-o com olhos tão espantados, tão fosfóricos, e a sua voz tão rouca, tão estranha, que o pobre adolescente não se atrevia a respirar.

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- Tens mêdo? perguntou; e por que tens mêdo? - Eu não tenho mêdo, respondeu o menino com voz apagada; mas as tuas palavras fazem-me mal. - Ah! As minhas palavras fazem-te mal, tu vinhas trazer-me um cestinho de maçãs criadas nos campos de Damasco... e essas maçãs... essas maçãs... – E Herodes parou um momento e olhou seu neto como se quisesse lêr-lhe no

106 fundo da alma. – Apanha as maçãs e trá-las aqui em cima da cama; quero vê-las, tocá-las e comê-las, porque tenho muita fome... ah... dá-me uma faca, anda, traze as maçãse a faca... Aquiab apanhou as maçãs, pô-las em cima da cama, e depois, pegando ma faca de prata da mesa onde se achavam os medicamentos, foi entregá-la a Herodes. - Uma, duas, três, quatro, cinco, seis... seis maçãs, disse Herodes contando-as e olhando às furtadelas o neto; que

- Mas eu já não tenho vontade de mais, trouxe-as para ti. São tão bonitas que ao vê-las neste cestinho disse comigo; vou pegar nelas e levá-las ao avôzinho, e ele me agradecerá. Herodes ficou um momento estudando as palavras do neto e depois disse: - Pois bem, comamo-las ambos, eu quero-o, ouves? - Então obedeço; e o menino pegou numa maçã e começou a comê-la.

Os receios tornaram a atormentá-lo, e obrigou o menino a comer a maçã que ele acavaba de morder.

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Aquiab obedeceu. Persuadido o rei de que as fortes dores que sentia não eram filhas senão de sua horrível moléstia, começou a revolver-se no leito como um demente num acesso de furor.

Aquiab soltou um grito e precipitou-se sôbre seu avô. Então começou uma luta desesperada, Herodes procurava desprender-se dos braços do neto para cravar o punhal

eu quero acabar duma vez esta agonia lenta e dolorosa?

Salomé, Aleixo e Ptolomeu correram à câmara de Herodes seguidos por escravos e soldados. O bondoso Aquiab, repelido pelo avô a alguns passos da cama já não podia impedir o crime; mas felizmente Aleixo lançou-se sobre o rei, e, arrebatando-lhe o punhal das mãos salvou-lhe a vida. Herodes, vendo frustada a tentativa, cego de raiva, caiu sem sentidos sobre o leito. - Sai vós, exclamou a irmã do rei dirigindo-se aos escravos e soldados; mas chamai imediatamente os médicos, porque o rei creio que morreu. Os escravos sairam sem voltar as costas. Então Aquiab informou seus tios do que tinha acontecido, e todos cercaram a cama procurando auxiliar o enfêrmo. Naquela noite espalhou-se por Jericó a notícia de que o rei, cansado dos seus padecimentos, pusera termo à vida cravando um punhal no coração. Esta nova voou por toda parte com a rapidez do costume.

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O príncipe Antípatro, que gemia num calabouço desde a noite em que o terrível Cingo e arrancou dos braços da

- Eu creio, amigo Cocels, que aquele velho leproso fez bem em matar-se; quando o homem não pode beber nem amar, a vida é um estôrvo. - Tens razão, Heráclio, eu peço aos deuses imortais de Roma que, como primeiro sintoma da velhice, me enviem o último suspiro da minha vida. - Ah! esquecia-me dizer-te que a sentinela que esta noite dormir no seu posto, tem pena de morte. As rondas

- Em Roma, a morte dum imperador é sempre uma fortuna para as suas legiões, porque o novo rei espalha ás

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Era Cingo, o negro, que aproximando-se do miserável leito do desgraçado príncipe, pousou ambas as coisas no chão, dizendo com voz pausada. - Boas noites, meu príncipe. CAPÍTULO IV O LIVRO DE JÓ Antípatro assentou-se sôbre a palha e disse com naturalidade. - Ah! és tu, Cingo? Alegro-me de ver-te; esta solidão cansa-me... Que queres! Sou um homem efeminado... a quem desde pequeno acostumaram a viver com alguma comodidade e neste calabouço não tenho muitas, por certo. - O homem deve acostumar-se a tudo, senhor.

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- Sim, é verdade, mas eu não posso; prefiro uma punhalada no coração, como a que meu pai deu em si hoje, a

- Matar-te-ias, senhor? - O rei, meu senhor, é justo castigando as tuas

rebeldias. - Por Júpiter, que nem tu mesmo crês o que dizes! Herodes justo, o matador da virtuosa Mariana, o assassino de meus irmãos, o verdugo de Belém, Justo! Ora, Cingo, tu estás mangando. Ainda que seu filho Antípatro fosse tão

ao tomar uma resolução. Antípatro julgou ver alguma esperança na indecisão do escravo. - A tua mão pode transportar-me das trevas à luz, da morte à vida; o favor, como compreendes, é grande. Pede sem medo. - Dorme, meu príncipe, dorme sossegado, enquanto eu medito as tuas propostas. E Cingo encaminhou-se para a porta.

108 - Enoé... e quem é Enoé?

- Tu... não a conheces? exclamou Antipatro deixando cair sílaba por sílaba, com pausa, dos lábios, e estudando o efeito que faziam suas palavras no escravo. - É a primeira vez que me chega esse nome aos ouvidos... E Cingo deu outro passo em direção da porta.

- Eu não a conhecia nem a conheço; os meus soldados espiaram-te, descobriram a tua guarida, e eu surprendi-te;

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Cingo saiu do cárcere, e, pouco depois, da torre. Ao chegar à rua apagou a lanterna e encaminhou-se para o palácio. O escravo deteve-se junto da porta do camarim de Herodes e aplicou o ouvido. O rei não estava só: ouviam-se as vozes de várias pessoas que conversavam. O escravo levantou o extremo da larga cortina que cobria a porta e observou o que se passava no interior da câmara real.

- Rabino, exclamou Herodes com voz enfraquecida: os médicos abandonam meu corpo, mas recomendam meu espírito aos sábios. Tu o és; recebe-o, pois, sob o teu amparo, e os deuses imortais te premeiem.

- Oh! bom velho, lê o teu livro, se é que com a sua leitura podes tranquilizar as minhas pernas, e deixa os deuses e as crenças religiosas de lado. O velho rabino abriu o livro, e leu deste modo com entoação afetada e fanhosa:

- Ela, acaba, rabino, exclamou Herodes; basta dizer que o meu compatriota Jó, era rico mas não tanto como eu. - Moisés não escreveu este livro santo, respondeu o judeu sem se pertubar, para que tu o talhasses por onde se te antolhasse. Moisés escreveu esse livro para os desgraçados: eu respeito o grande legislador, mas quero que comeces pelo capítulo terceiro, quando Jó amaldiçoa, o dia do seu nascimento... ouves, rabino? Eu sou o rei, eu to mando.

Herodes, torva a face e preso o corpo dum tremor convulsivo, escutava em silêncio a leitura desse grande poema

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do deserto, desse grito de dor sublime, imutável. Suas descarnadas mãos esfregavam a rica colcha e horríveis gestos, descompunham o seu cadavérico semblante. O rabino, inspirado com a leitura do livro santo, que tantas vezes tinha feito ouvir na Sinagoga, ia insensivelmente levantando a voz até tomar um timbre grave e magestoso, que fazia estremecer o coração do enfêrmo.

Assim é que, sem que o percebesse Herodes, pulou algumas folhas e tornou a ler no versículo V do capítulo VII, que diz assim: “Ferve a minha carne em bichos; asquerosas crostas cobrem todo o meu corpo; a minha pele sêca vê-se toda encolhida e enrugada. Se concebo alguma esperança de achar descanso, quando de noite me recolho a repousar,

109 consolando-me com gemidos, e buscando alívio aos meus males com lágrimas e suspiros, então cheio de sobressalto me vejo acometido de espanto com as imagens e sonhos que me perturbam a alma. Eu não tenho esperança de viver; compadece-te Senhor, de mim, e cesse já o castigo. Não é muito o que te peço, pois que é tão pouco o que me resta viver. Que é o homem para que mereça que Tu ponhas nele o teu coração, e o olhes como alguma coisa grande?

O rabino ficou pálido como um agonizante. Herodes, com os olhos fitos no aturdido velho, ria-se de maneira cruel.

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Salomé, Aleixo e Aquiab tremiam, conhecendo que o pobre leitor ia receber uma sentença de morte dos lábios do rei. De repente, reanimou-se a fisionomia do rabino, e, ajoelhando-se junto da cama de Herodes, disse com voz severa e clara: - Mui poucos, senhor, porque te ofendi segundo parece, e a minha vida está pendente dos teus lábios; a minha estrela pode eclipsar-se quando à tua rale vontade se antoje. Herodes humanizou a dura expressão do semblante, e, deixando-se cair sobre os almofadões, disse com tom de

Cingo,que tudo tinha ouvido, oculto atrás da cortina decidiu-se a entrar na câmara desobedecendo à ordem do seu senhor. Chegou-se ao leito e esteve contemplando alguns segundos o enfêrmo.

Herodes abriu os olhos e viu ao seu lado o escravo favorito. No rosto do enfêrmo brilhou um raio de alegria e

CAPÍTULO V ONDE SE PROVA QUE O AMOR DOMESTICA AS FERAS - És um servidor leal, Cingo, e quisera antes de exalar o último sôpro de vida recompensar os teus serviços. Dize-me, que ambicionas? Que queres? Pede, estou pronto a satisfazer os teus desejos. - Só anelo servir-te até que morras, e depois partirei para a África, pois quisera morrer sob aquele sol que me viu

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- A estreiteza do calabouço afoga-o; a liberdade é a rainha do seu pensamento, a mais bela imagem dos seus sonhos.- Nunca, enquanto eu viver.- A notícia da tua morte espalhou-se pela cidade, e, traspassando as grossas paredes do seu cárcere, chegou-lhe

O rei ficou um momento pensativo. As rugas da fronte afundaram-se-lhe, e uma sombra e feroz expressão lhe passou pelo semblante.

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executado à hora da minha morte, sobre mim, nada me importa; sua morte é uma necessidade; mas procura que morra

mães e se devorariam uns aos outros se não fosse cegos. Antípatro é uma víbora: solta pois as tuas víboras sobre eles. - Far-se-á como desejas. Dize-me o dia e a hora.

- Parto, pois, a obedecer-te. Houve um momento de pausa. A egípcia

contemplava o africano, e este imóvel como uma estátua da dor, com a

- Enquanto o meu senhor gemer num cárcere, a minha língua só saberá abaldiçoar-te; rompe as suas cadeiras e

Cingo, com olhar suplicante, as mãos juntas e prêso o corpo dum tremor convulsivo, lançou-se aos pés da egípcia. - Escravo, exclamou Enóe com indignação, retrocedendo alguns passos, as mulheres da minha raça nunca se unem com os homens da tua. A sua lei o proíbe.

- Pela última vez, exclamou o negro, contendo a raiva, queres partilhar comigo a minha fortuna? Queres vir para

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Gabriel cessou de falar, inclinou a formosa cabeça sobre o peito, e permaneceu nessa atitude alguns minutos. Depois envolveu-o a nuvem entre as suas pregas e, abandonando a mansão dos homens, elevou-se

Três dias depois chegaram, ao cair do sol, à torrente do Egito. Só lhe faltava atravessar a estéril Idumeia para se acharem na formosa terra de Judá. Buscando refúgio onde

alegre, pois em breve iam ver as altas torres da cidade santa. À meia noite, dois homens se apresentaram à porta da caverna. Um deles vinha do Egito; o outro das terras de

tua gente. Depois esfregou com violência as duas pedras e

o extremo da corda, até que se inflamou, despedindo uma chama

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- Este Dimas não sabe fazer contrato; para não depenar uma família de mendigos deu-me vinte dracmas e o seu punhal. Creio que a vantagem está da minha parte, se viver ao seu lado. Alguns dias depois a Santa Família chegou “a Nazaré para que cumprisse o que tinham dito os profetas: que será chamado Nazareno”. Com quanta alegria, com quanto regozijo viram os desterrados do vizinho monte as modestas chaminés da sua aldeia, os tranquilos prados onde correu a sua infância, a fonte onde apagavam a sede nos ardentes dias do verão!.

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A Santa Família chegou a Nazaré depois de mil perigos e sobressaltos. A viagem era longa, porém o Deus invisível guiou os seus passos no deserto.

CAPÍTULO IV A FESTA DOS ÁZIMOS

tale tRecordai as palavras do Senhor, que vos disse por Moisés:

lavradores de Zabulon e Judá, montanheses do Líbano e da Galiléia. Jerusalém vou espera adornada com os atavios duma desposada, e suas altivas portas estão abertas para vos receberem.

Para que se cumpram os preceitos da lei, revistai os cantos de vossa casa, não seja que os ratos hajam escondido algum bocado de pão fermentado e a maldição de Jeová caia sobre vós.

Os pobres galileus, com suas túnicas pardas e brancos turbantes, caminham fatigados em busca do Santo dos Santos.A lei, com tanta exatidão praticada, proibe-lhe a mistura nas grandes festividades. Por isso as mulherescaminham adiante, num grupo, e os homens atrás, a uma distância de quinhentos passos. Mas detenhamos um momento o olhar para contemplarmos o modesto grupo das nazarenas. Vede-a! Aí vai a Virgem Mãe, a Estrela do Mar, a Flor da Galiléia, a que em breve será fonte de ternura imaculada.

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Junto da Santa Virgem, e com saborosa prática entretidas, caminham Joana, esposa de Chus; Salomé, mulher de Zebedeu, e outra que mais tarde devia consignar-se nos Evangelos, com o nome de Altera Maria.

Tiago ignorava que mais tarde chegaria a ser Bispo de Jerusalém pelas doutrinas daquele Jovem que caminhava ao seu lado e que ele olhava com indiferença. E Jesus? Jesus, como tudo possuia, nada afetava, porque só se finge o que se não tem.

Bastante entrada noite, detiveram-se as mulheres que iam adiante, na casa desmantelada que devia servir-lhe de albergue durante a noite. Maria volveu um olhar para o alegre grupo de galileus que se aproximava. A rosada cor das frescas faces da

CAPÍTULO V O MENINO PERDIDO

Aquele caminho foi a primeira rua da sua amargura. Qual rôla enamorada que busca seus filhinhos de ramo em ramo, assim Maria andava e desandava o caminho perguntando a todas as mulheres que via pelo seu Filho amado. As palavras do salmista, pronunciadas pela sua boca, tinham um sentimento e amargura indefiníveis. - Haveis, por ventura, visto Aquele a quem tão deveras adora a minha alma? lhes diz com olhos arrasados de lágrimas e as mãos juntas com dolorosaa atitude; mães que tendes filhos, buscai pelo Deus de vossos maiores.

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Absortos, compadecidos da profunda dor da jovem galiléia, os caminhantes suspendem seus alegres cantares, detêm o passo, sentem-se enternecidos e perguntam-lhe como Salomão: - Que tem o teu Amado sobre os outros amados, ó tu, a mais formosa entre todas as mulheres? Que há no teu Querido sobre os outros queridos, para que assim nos rogues que o busquemos?

130 - Oh, filhas de Jerusalém! Se soubésseis quem é o Amado da minha alma, quem é o Bem que choro perdido, não estranhareis que assim vos rogasse para que me ajudásseis a buscá-lo. Maria chegou alterada a Jerusalém; percorreu as ruas; bateu com trêmula mão às portas dos seus parentes e amigos;mas ali seu Filho adorado não aparecia. Seus parentes, ao abrirem-lhe as cerradas portas de suas casas, a receberam com o sorriso nos lábios dizendo-lhe

Noe miM ar adias era feliz e ditosa: meu Filho sorria ao meu lado; o calor dos seus olhares chegava ao meu coração dando-lhe vida; e hoje choro meu Filho perdido, e busco-o e corro, e em vão me canso... meu Filho não aparece, Jesus não se encontra.

Aqueles anciãos, mudos, absortos, vencidos, impotentes ante aquele tenro adolescentes que se havia apresentado ante eles com a humildade do pobre e o modesto traje dos galileus da montanha:

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graciosos caracóis, sobre os ombros. Nos seus azuis e melancólicos olhos brilha uma faísca de luz divina, que aprofundava, ao deter-se, as mais recônditas dobras da alma.

A aflita Mãe soltou um grito de júbilo ao ver seu filho; mas toda a alegria do seu coração se converteu em surpresa vendo-o sentado entre os doutores da lei, a Ele, um Menino de doze anos. Era aquele o Menino que ela procurava? Nunca sua Mãe, o tinha ouvido falar daquele modo! Era Jesus, sim,

com a fé na alma. peregrinação sobre a terra do homem. CAPÍTULO VI OS FUNERAIS DE AUGUSTO Dois imperadores imortalizou o Mártir de Gólgota: com o seu nascimento, Otaviano Augusto; com a sua morte, Tibério Cláudio Nero. Sendo estes dois príncipes de alguma importância na narração deste livro, deixemos as pacíficas e sombrias ribeiras do Jordão e nos transportemos por alguns momentos a Roma. A cena que vamos bosquejar ocorria no monte Célio, no palácio de Augusto, tres anos depois que Jesus surpreendera com suas perguntas os doutores de Jerusalém. Otaviano Augusto achava-se gravemente enfêrmo.

131 O mal de Augusto estava no espírito. Debilitado

pela avançada idade, recebeu o golpe mortal que o levou ao

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sepulcro, quando soube a catástrofe irreparável de Varo e suas legiões. Augusto, como todos os conquistadores da terra, sonhava sempre com o canto do mundo que não lhe pertencia, ainda que este fosse o mais pobre, o menos produtivo do globo terrestre.

Armínio tinha reunido naquele lugar algumas tribos címbrias, que só esperavam o sinal para se lançarem contra os romanos, como lobos famintos. Chegou a noite, e a horrível matança dos estrangeiros com ela.

Tres legiões imensas de soldados veteranos pereceram naquela bosque. Só puderam salvar-se alguns, que levaram a infausta nova às margens do Tibre.

Varo, Varo, restitui-me as minhas legiões.A consternação foi grande em Roma ao saber-se a notícia. Criam ver os germanos passando o Reno e dirigindo- se para a Itália a marchas forçadas. Porém Armínio contentou-se com a sua vitória e com sacudir o jugo estrangeiro. Já dissemos que o César morreu de paixão. No momento em que o apresentamos achava-se sentado no leito, escrevendo as últimas disposições.

Bastava deter-se a gente um momento ante aquela fronte altiva, para compreender a astúcia, a reconcentração e a inveja que encerrava no coração aquele homem.

seu castelo, suspenso sobre as rochas na praia, donde sonhava com seu império, cometendo atos de barbaridades na vizinhança para entreter, segundo dizia, o aborrecimento que o matava.

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- Tibério, disse-lhe Augusto deixando a pena e olhando-o com bondade; mandei-te chamar porque me sinto morrer, e pensei em ti para que me sucedas no poder. Tibério sentiu o coração bater de modo violento; mas o rosto não mudou. Abaixou a cabeça em sinal de acatamento.

- Tua vida, que os deuses conservem por longos anos para o bem do teu povo, será um exemplo quando a pesada carga que me confias caía sobre os meus ombros. Eu serei digno de ti: juro-o pelo nome de meu pai.

- Eu o juro. - Guarda o meu testamento e prepara os meus funerais, porque o novo sol alumiará meu cadáver.

132 Tibério beijou a mão do César deixando nela uma lágrima: primeira e última que derramou durante a sua vida. Otaviano Augusto não se tinha enganado: duas horas depois expirava. Tibério esteve contemplando o cadáver um instante. Depois aplicou os lábios à boca do defunto imperador. - A alma dos moribundos está nos lábios, exclamou Tibério dirigindo-se aos que o rodeavam: eu recebi a de

Decorreu uma hora, durante a qual reinou o maior silêncio na habitação. Tibério levantou-se e chegando os

- Chamei-o e não me responde: é morto o César. Apresentai ao senado o seu testamento. – E entregou a um dos

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senadores os pergaminhos que o nomeavam herdeiro.

tr i e nteO ramo de ciprestes se pendurou sobre a porta da casa mortuária, e o cadáver de Otaviano foi posto num leito de marfim no vestíbulo da casa, com os pés fora do leito, para denotar que estava pronto a empreender a última viagem. Feito isto, as carpideiras começaram a chorar e a arrancar os cabelos, lançando de vez em quando flores e folhas de louro sobre o corpo do seu imperador. César esteve oito dias exposto. Alguns jovens da nobreza, vestidos de branco em sinal de luto, de pé e graves, ao lado do féretro, enxotavam as importunas moscas que pousavam no rosto do seu senhor. Os funerais foram explêndidos, suntuosos.

Depois o cadáver do César, estendido no leito e coroado, e com os despojos das suas conquistas, era levado por oito senadores. Fechavam a marcha fúnebre algumasc e ntúr i as de tropa escolhida, com as bandeiras baixo e dando pancadas com as armas do som du’a marcha, em sinal de desconsolação.

For umr ostr aAs andas com o cadáver foram colocadas sobre a pira, e os parentes pegaram fogo à lenha seca, virando a cabeça para outra parte, para mostrarem sua repugnância.

para que os ventos favorecessem o progresso das chamas- Leva para o céu a alma do César!

Sôbre a polida lousa que cobria as cinzas do César, lia-se este epitáfio: V.F. DEDICADO AOS DEUSES MANES.

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133

Os romanos, em Augusto tinham perdido um imperador sábio, um general valente. Tibério, hipócrita e receioso, antes de se aclamar imperador, comprou alguns senadores e, certo dos seus votos, recusou o império; porém eles lançaram-lhes aos pés pedindo-le com as lágrimas nos olhos que não os abandonasse.

por um rasgo de bondade às súplicas do senadoValério respondeu: “A Tibério Augusto, imperador de Roma, o seu súdito Valério Gratos.

Tibério, tranquilo, esqueceu bem depressa Jesus. O soberbo imperador ignorava que aquele Menino era Deus que baixava à terra a destruir os seus ídolos e a regenerar o homem com o seu sangue. Dois anos depois, sucedeu a Grato, no governo da Palestina, Pôncio Pilatos, nome que a sentença contra o Mártir do Gólgota imortalizou. CAPÍTULO VII A HORA ANUNCIADA Os anos rolavam um após outro pelo declive interminável do tempo. Nazaré dormia à sombra das palmeiras como uma ave de arribação que descansa das fadigas de penosa viagem.

a fronte de Jesus, que era cruzadaaa por uma profunda ruga, em cujo seio descansava a idéia santa de redenção, reanimava-se à vista de sua Mãe, e um sorriso de bondade lhe assomava aos lábios.

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O Filho de Deus seguia em silêncio sua Mãe, com a modéstia, com a humildade de que tantas vezes mostras deu, percorrendo a terra dos homens. S. Bernardo não admira menos a dignidade da Virgem, que a humildade de Jesus.

Cristo correspondeu ao excessivo amor de sua Mãe com uma ternura sem limites. Maria, sempre zelosa do seu amor e profunda conhecedora dos livros sagrados do seu tempo, instruía seu Filho nas leis inquebrantáveis de seus maiores.

134 Grandezas da Virgem)Ia Jesus completar vinte e

nove anos quando o anjo da morte estendeu as impalpáveis asas sobre a modesta choça, e José, o patriarca de Nazaré, fechou os olhos à vida.

Um ano depois, Jesus como o bordão do viajante, a túnica parda dos galileus sobre os ombros, a fronte serena como o mar da Galiléia, saiu de Nazaré e encaminhou-se com passo grave e mesurado para as margens do Jordão.

Jesus quis receber o batismo antes de começar a dolorosa peregrinação. Aquele Cordeiro sem mácula desejava a limpeza do corpo como o último dos hebreus. U’a manhã abandonou o humilde lar antes que a luz da aurora enviasse o orvalho aos campos de Zabulon.

O Cristianismo erguia-se duma humilde cabana de Nazaré. Pobre, solitário, sem outro apoio que o seu bordão, seguia seu caminho com os olhos no chão e o pensamento em Deus.

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Quem senão o Eterno podia levar a cabo a grande obra, a assombrosa revolução de idéias que se efetuou no mundo no breve espaço de tres anos?

LIVRO UNDÉCIMO As pombas dos bosques de Jabes batiam as

robustas asas arrulhando entre os espessos ramos

das árvores. As aves, essas eternas, incansáveis

madrugadores do bosque e do espaço, esses cantores sonoros da natureza, enviavam seus mil harmoniosos ecos, suas infinitas modulações ao sol que ia nascer. Na margem do lago erguia-se magestosa uma cidade moderna, recém-construída, cidade dedicada por Herodes Antípas a Tibério, chamada Tiberiades. Tinha fortes muralhas de granito, palácios de mármore, jardins preciosos, um circo para entreter o ócio dos soldados mercenários, e vinte torres cilíndricas para defender-se das invasões estrangeiras. O verdugo de Belém tinha dedicado a Augusto a cidade e torres em prova de vassalagem. Seu filho Antípas seguiu a mesma marcha para captar as simpatias do senhor de Roma, seu aliado. O sol rompeu por fim. Seus brilhantes raios banharam com a formosa luz os altos minaretes da cidade nova e a tranquila superfície do mar da Galiléia.

166 - O amor verdadeiro é pouco comunicativo; rejeita a liberdade e escolhe um cárcere onde não penetram os raios

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do sol, a alma. - O que êle ama mais no mundo é sua mãe. - O filho tem um amor imenso que mata o amor da mãe; é o que sente pela mulher que o fascina. O Mestre Divino, o Messias que percorre a terra de Israel, disse: “Pela esposaa deixarás teus pais. - É verdade, murmurou Dimas ficando dolorosamente com os olhos fitos no chão, como se aquela citação que acabava de pronunciar a egípcia lhe houvesse recordado algum pensamento doloroso. Houve um momento de silêncio. Enoé pensava em seu filho; Dimas, em Jesus. Por fim a mãe de Boanerges disse

Dimas deteve-se. Pela fronte corriam-lhe grossas gotas de suor; o corpo tremia, e a voz ia-se apagando pouco a pouco. - Esse homem é Deus, disse pausadamente Enoé.

- Que queria dizer-te com isso? perguntou Enoé. Dimas, tu morrerás comigo.- Oh! Nunca!

- Pois aquele menino falou, e é hoje um homem que se chama Emanuel (Deus, conosco). - Dimas, desde que Jesus percorre as tribos, os cegos vêm,os coxos andam, os mortos ressuscitam, murmurou com voz profética Enoé.

- Ah! Agradecida, meu irmão, não sabes o prazer que me causam as tuas palavras; temia ver-te nas mãos dos soldados de Pilatos - Desde amanhã seguirei os passos de Jesus. Êle perdoará as minhas culpas, que são muitas, e me fará bom em paga da fé que sinto no coração.

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Dimas e Enoé ficaram silenciosos. Aqueles dois corações rasgaados pelo amor e outro pelos remorsos, esperavam tudo do Pastor de almas que percorria a terra dos homens em busca do martírio. CAPÍTULO VII O FESTIM DE MACHERONTE

167 Mais de cinquenta convidados de ambos os

sexos se acham em volta da esplêndida mesa a que preside a

sua filha. Neste momento abriu-se a porta. Heródias

soltou um grito de prazer. Todos dirigiram os olhos para a porta.

na chegar abriram passagem. A filha da infame adúltera, ajoelhou-se aos pes do tetrarca. - Venho, senhor, lhe disse, reclamar o oferecimento que há pouco me fizeste. Peço, senhor, a cabeça de João Batista, sobre um prato. Estas palavras produziraaam um efeito mágico. Os miseráveis cortesãos de Antípas, aplaudiraaam com entusiasmo o criminoso capricho de Salomé. O tetrarca tinha dado a palavra, mas vacilava.

168 - Tenho a tua palavraa, senhor, que é sagrada, tornou a desenvolta jovem.

A maior parte dos cortesãos apoiaram as palavras do seu companheiro, Antípas, ainda que com alguma repugnância, chamou um oficial do castelo, e disse-lhe: - Desce ao calabouço de João e manda a uma salão que lhe corte a cabeça. Põe sua cabeça num prato e depois

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entrega-a a esta menina. Então, barbaridade inaudita, Heródias faz um sinal aos músicos e empunhando uma taça, convidou os convivas a um brinde, dizendo: - Pela graça da dançarina, pelos encantos irresistíveis de Salomé, minha filha. Todos esgotaram a taça, exceto Antípas, em cujo rosto se pintava o remorso. O festim continuou com a mesma alegria, com a mesmo entusiasmo. Que importava para aqueles infames e a vida dum homem, como João Batista?

Quandos os algozes entraram no cárcere, João dormia tranquilamente. O ruído das armas, o clamor dos archotes

CAPÍTULO VIIIO SONHO DE UM ASSASSINO Quando terminou o festim, o oficial encarregado da terrível sentença, apresentou a Salomé a cabeça de João num

169 Salomé, encerrada na sua for, amaldiçoava

aquele monarca desterrado. Por fim chegaram a Roma.

Ei saqui um tirano que morre por falta de ar, e não deixava respirar ninguém no império.

Ai! Se o povo romanonão tivesse mais que uma cabeça e pudesse cortar-se dum só golpe!... rei dos partos, contra Tibério. Pois bem, teu irmão Agripa é teu delator; eu dou-lhe as tuas riquezas e o teu reino, e desterro-te com tua família para um canto de Espanha.

- Ah! exclamou. Que sonho tão horrível se fosse certo! Aquele sonho devia cumprir-se alguns anos depois da morte do Nazareno.

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CAPÍTULO IX A APARIÇÃO

170

Madalena, imóvel, absorta contemplava aquele homem sem poder compreender o que sentia.

Vede como crescem os lírios, que nem trabalham nem fiam; pois diga-vos que nem Salomão em toda a sua

Vendei o que possuis, e daí esmola. Fazei bolsas que não envelheçam, entesourai nos céus, onde o ladrão não chega nem rói a traça. Porque onde está o vosso tesouro, está inteiro o vosso coração. Quando fordes convidado para bodas, não vos sentes no primeiro lugar, não seja que ali haja outro convidado mais honrado que vós. Não convideis os ricos quando deres um banquete, porque esses o podem retribuir; convidai os pobres, os paralíticos, os cegos e os coxos. E sereis bem-aventurado, porque não tem como que corresponder-vos, mas sereis galardoado na ressurreição dos justos”.Aquele Homem continuou a falar po espaço de uma hora, enquanto descansavam os que o seguiam. As suas“Toma a cruz, e segue-me, mulher pecadora. Eu desci à terra para salvar o enfêrmo do corpo e alma”. Madalena viu como aquele Homem abandonava a benéfica sombra do terebinto, seguido dos seus companheiros. Parecia-lhe eu um perfume delicioso lhe penetrava no coração. Não se atrevia a mover-se do vão da janela.

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- Não temas, Madalena, lhe disse com uma voz cheia de doçura e mansidão. - És tu uma sombra ou um realidade? perguntou com medroso acento Madalena.

Madalena cobriu o rosto com as mãos, como se o resplendor que despedia a fronte de Jesus a cegasse. Quando descobriu o rosto, Cristo tinha desaparecido.

- Madalena, pensava, zombou deste amor que me abrasa o peito. 171

As mulheres chegaram a Cafarnaum. Pararam diante duma casa de modesta aparência em que se notava bastante animação. Viam-se entrar e sair algumas pessoas. As duas mulheres que tinham saido do castelo de Mágdalo

Jesus, os seus díscipulos, e algumas pessoas distintas da cidade, achavam-se ao redor de uma mesa. A comida tocava o seu têrmo.

Madalena, afligida pelo remorso da sua vida passada, pouco serena ante o desprêzo dos convidados, ajoelhou-se aos pés de Jesus. Cristo não voltou a cabeça para a olhar. Continuava em voz baixa conversando com o seu parente João, e com o seu díscipulo Pedro. Nem as conjecturas dos convidados nem as lágrimas da Pecadora o distraiam.

- Se esse Homem fosse profeta, bem saberia quem é e qual é a mulher que lhe toca, porque é pecadora. Então Jesus levantou os amorosos olhos para os fitar em Simão, seu hospedeiro, que era o que tinha falado, e lhe

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disse: - Simão, quero dizer-te uma coisa. Um credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos dinheiros e o outro

- Vês esta mulher... Entrei em tua casa: não me deste água para os pés; mas esta com as suas lágrimas banhou-

Pelo que te digo: que perdoados lhe são seus muitos pecados, porque amou muito. Mas aquele a quem menos se

- Detém-te, Maria! Madalena e sua criada detiveram-se. Boanerges estava pálido com um convalescente. - Esta noite, continuou, permaneci debaixo da tua janela. O sol ao nascer surpreendeu as lágrimas dos meus olhos: porque chorei senhora. Já te arrependes da promessa que fizeste?

Boanerges sentiu alguma coisa desconhecida no fundo da alma. Seus lábios cerraram-se. 172 Madalena continuou o caminho.

Uma hora depois, um homem montado num cavalo parou junto do corpo exânime do Filho do Trovão. Inclinou o

- Ainda bate, tornou. Este rapaz percorre as tribos ao som da sua lira. É um entusiasta das musas. Façamos um aboa obra: o que não é muito entre as muitas más que me pesam sobre a consciência. Getas, era ele, colocou o corpo de Boanerges na garupa do seu cavalo e, montando depois encaminhou-se para Cafarnaum, onde vivia a mãe de Boanerges. CAPÍTULO X

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Madalena fechou desde aquele dia as portas do seu castelo. Os seus alegres visitadores fizeram mil conjecturas sobre aquele mudança inesperada. Pouco tempo depois o antigo castelo de Mágdalo tinha mudado de dono. O novo proprietário era um rico cavaleiro de Cafarnaum que enriquecera com as cobranças dos pobres contribuintes da Galiléia. Madalena distribuiu todos os seus bens pelos necessitados. Com a consciência mais tranquila, encaminhou-se para Betânia em busca de seus irmãos, para lhe pedir perdão pelas suas passadas culpas.

Madalena chegou a Betânia e, ao achar-se perto da porta daquela honrada casa que a vira nascer, caiu de joelhos beijando humildemente o pó da terra. Marta, a laboriosa, viu uma mulher que soluçava com a fronte colado no chão. Marta chamou Lázaro, e disse-

Lázaro, apertou ao peito sua irmã vendoá tão arrependida. Marta chorava de alegria.

necessária. Maria escolheu por certo a melhor parte, que não lhe será tirada. Marta, ainda que não compreendia mui claramente as palavras do Mestre divino, não tornou a ocupar-se de sua irmã. Naquela mesma tarde partir Jesus para a Galiléia. Ia despedir-se de sua mãe. Entretanto, Madalena empregava as horas em fazer obras de caridade, em chorar as suas culpas passadas e esperar tudo d’Aquele que lhe dissera: “Toma a cruz e segue-me”.

- Maria, eis-me aqui outra vez. 179

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Durante esta caminhada, os silenciosos viajantes dirigiram olhares prescrutadores por toda parte, como se

- Porque seguis os meus passos? - Prossegue teu caminho, irmão, e não temas; o que pode mandou que sigamos os teus passos, disse João. A doçura daquela voz dissipou os receios do homem do cântaro. Caminharam e o homem do cântaro parou

O criado obedeceu, e os dois discípulos de Jesus encostaram-se aos muros do vestíbulo, dispostos a esperar. Em breve se apresentou um homem de aspecto venerável que trazia a túnica branca dos essênios. Um criado o precedia

- Na minha casa de Betânia passou a última Páscoa o Cristo. Já não vos lembrais de mim? - Sim, disse Pedro, reconheci-te: tu és Heli, cunhado de Zacarias e de Hebron. É esta a tua casa? - Não, é a casa de Nicodemos, o Fariseu, e de José de Arimatéia. Eu alugueia-a para que Jesus celebre a ceia convosco. Segui-me e vos mostrarei o aposento destinado à ceia pascal. Heli tomou o archote das mãos do servo e entrou, seguido de João e Pedro, em sua casa.

- Será aqui, disse laconicamente Heli. Os dois discípulos inclinaram-se e, como nada mais tinham de fazer, pediram licença para se retirarem e participar o que tinham visto ao seu Mestre. - Ide, lhe disse o hospedeiro, e saudai o Mestre em meu nome dizendo-lhe que o espero.

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Os dois emissários do Redentor sairam daquela casa pela porta das Águias e encaminharam-se para Betfagé, onde os esperava o divino Mestre. CAPÍTULO III HOSANA NAS ALTURAS Jesus, no caminho de Jericó a Betânia, tinha parado alguns instantes para que descansasse a gente que o seguia.

180 - Ide ao lugar que está em frente de vós e

achareis um jumentinho preso, no qual não montou ainda homem algum; desprendei-o e trazei-º Os discípulos trouxeram o jumentinho; puseram os mantos sobre o paciente lombro do animal, e Jesus

E os homens, as crianças e os velhos repetiam com entusiasmo: “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor! Hosana, hosana, Paz no céu e... glória nas alturas!”

Seus olhos puros e radiantes como a tênue luz da aurora, iam em breve converter-se em mananciais inesgotáveis de pranto.

raça de víboras- Vêde-o! Lá vem, dizia um homem aos que o rodeavam. Eu era cego de nascimento: Jesus pôs-me o dedo sobre as cerradas pálpebras e, imediatamente, vi a luz querida do sol. Bendito seja o Senhor, que vem a nós!

- Ei-lo ali. Meu Jesus! exclamou Maria, estendendo um braço em direção ao caminho de Betânia.

Jesus aproximou-se dos muros da cidade santa humildemente montado num jumento, rodeado dos discípulos e

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- A sua voz aplaca as tempestades, os seus pés caminham sobre a superfície das águas sem que o seu corpo se afunde, e quando a sua palavra diz aos mortos: levantai-vos” os mortos levantam-se e vivem como tu e como eu. O soldado punha-se então na ponta dos pés para o ver passar e, sem poder da razão disso, exclamava com os outros: - Hosana nas alturas! Bendito o que vem nome do Senhor! No meio do contentamento, do entusiasmo geral, os fariseus e os doutores da lei que tinham acudido impelidos pela curiosidade a ver Jesus, murmuravam: - Desconfiemos desse Galileu que faz milagres que ninguem pode fazer. - Devemos prendê-lo antes que Israel se levante e venham os romanos e nos destruam como uma manada de ovelhas, disse outro. Mas ninguém se atrevia a pôr a mão no jovem Mestre.

181 O povo apinhou-se em redor dele e guardou

profundo silêncio, porque Cristo tinha mostrado com seu olhar que ia falar e as suas palavras eram um tesouro inapreciável para o povo de Jacó.

jovem MestreJeová. Jesus chorava com a radiosa fronte inclinada sobre o peito. Depois dum momento de doloroso silêncio, ergueu osolhos, e disse dirigindo-se à cidadem, com uma voz que chegou até os últimos, com a mesma vibração, com a mesma

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clareza que aos primeiros: - Jerusalém, Jerusalém! A minha alma estremece de dor, contemplando os teus soberbos muros. Oh, cidade ingrata, a quem tanto tenho amado e distinguido! Eu quis recolher teus filhos como a galinha o faz aos seuspintainhos, e tu pretendes dar-me a morte... O teu louco orgulho, a tua vã soberba há de perder-te, pobre povo da porque virão dias contra ti em que os teus inimigos te cercarão com trincheiras, e te porão cego, e teapertarão por toda parte, e de derribarão em terra, e não deixarão em ti pedra sobre pedra. do Messias, e os coros das virgens ressoaram no espaço, repetindo ao som dos saltérios e das harpas: CAPÍTULO IV PÔNCIO PILATOS

Aos pés deste gigante de granito e de mármore, encostado ao flanco setentrional, achava-se um palácio, palácio que era quase uma povoação pelas suas imensas edificações, habitado na época de Jesus Cristo pelos juiz romano.

182 Desde então, o sono do governador era desassossegado. Sempre se achava disposto a sufocar o grito de liberdade que tão pronto está a pronunciar um povo escravo.

lat ic l ávi aTibério amava este servidor, que se unira em casamento com uma parente um tanto remota, bela, rica e nobre, por cuja influência o senhor do Tibre lhe concedera o governo da Judéia. Esta romana chamava-se Cláudia Procia.

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- Flávio, indubitavelmente ocorre alguma coisa estranha na cidade. Sabes o hebraico com um rabino de Jericó;

Por Esculápio, que é prodigioso tudo o que d’Êle se conta, e a não ser fábula, merecia que os seus compatriotas o colocassem sobre os cornos do altar! Mas fala, Flávio, fala: dá-me conta do que viste... Flávio falou desta maneira:

- Um homem contra tantos! exclamou Pilatos. - Sim, um Homem cujo olhar é irrresistível, cuja fronte brilha como a aurora, e cuja magestade tem algo que faz estremecer, Pôncio meditava. Flávio continuou:

- Esse Homem sabe mais que os doutores do sinédrio? disse Pilatos.

Pôncio, ante esta pergunta, levantou os olhos. Tinham dito: “Viva Jesus, rei da Judéia”, e pinham ao seu arbítrio o tributo romano. Flávio continuou:

Mostrai-me u’a moeda daí a César o que é deCésar e a Deus o que é de Deus”. - Êsse homem é indubitavelmente o açoite dos fariseus, disse Pôncio, desses hipócritas especuladores do fanatismo hebreu. Continua, Flávio, continua, pois vejo que Jesus não é inimigo de Tibério. Senhor, disse Flávio, o Galileu falou, disse muitas parábolas e todas causaram profunda sensação; e depois, seguido dos seus discípulos e du’a multidão imensa, saiu da cidade pela porta Dória. - E onde ia? - Segundo ouvi, ao horto das Oliveiras.

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183 Pilatos despediu Flávio e, mais tranquilo, foi reunir-se com sua esposa Cláudia, que passeava pelos jardins do palácio. CAPÍTULO V PROFECIAS

Jesus levantou a radiosa fronte, e exalando um doloroso suspiro, estendeu a mão para a cidade, dizendo como profético acento: - Vês aqueles grandes edifícios, aquelas torres altivas que desafiam as nuvens? Pois de tudo isso não ficará pedra

Jesus fez uma pequena pausa, e continuou exalando segundo suspiro:

Jesus guardou silêncio. O pranto corria dos seus olhos. Os apóstolos, ante aquela terrível profecia, estavam absortos. O Nazareno, que não desviava o doloroso olhar de Jerusalém, tornou pela terceira vez a falar, e disse:

184 CAPÍTULO VI O GRANDE SINÉDRIO

li sc hathagasi thpal e t ohsCaifás presidia aquela noite ao supremo tribunal. Anás, seu genro, receoso de que alguns anciãos quisessem deferir a causa para depois de terminada a festa dos Asmos, porque segundo a lei não lhes era lícito tirar a vida aninguém no dia festivo da Páscoa, nem exerce o juízo das almas, tinha comprado alguns membros cujos nomes ahistória nos conservou. São os seguintes: Sumus, Datam, Gamabel, Levi, Neftali, Alexandre, Siro, Roboam e Amer.

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Naquele momento de confusão e dúvida em que todos falavam e o medo e o temor não os deixavam entender-se, apresentou-se no sinédrio um executor das sentenças e disse: Ilustre senado, no átrio das Nações espera um homem a vossa licença para entrar; diz que se chama Judas e que é discípulo do falso Profeta que transtorna a paz da cidade santa. Os sacerdotes olharam uns para os outros perguntando-se que queria aquele homem, discípulo de Jesus. Anás, o

Divino. Todos os olhares se fitaram no recém-chegado. Judas volveu em torno de si os olhos, mostrando uma agitação espantosa. Dir-se-ia que aquele homem tinha corrido muito; sua respiração era cansada; agitava os lábios como se a língua se lhe pegasse ao paladar. Todos os seus movimentos mostravam medo, cansaço, desgosto. Os sacerdotes

que vos importa muito, e pensei: Vamos lá. Os juízes querem prendê-lo e não se atrevem; pois bem, eu atrevo-me, se

- Todos, menos eu; por isso venho dizer-te: Que me dás e entrego-te? O que te prova que em vez discípulo, sou

185

e José de Arimatéia haviam alugado a Heli. Era o santo cenáculo onde Jesus se achava reunido com os seus discípulos. Entretanto os sacerdotes fizeram o juramento de um jejum forçoso se Jesus de Nazaré caísse nas suas mãos e

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fosse crucificado. CAPÍTULO VII A ÚLTIMA CEIA Jesus e os discípulos achavam-se reunidos no salão que lhes prepara Heli. O cordeiro pascal fumegava em cima da mesa. O Nazareno indicou quepodia começar o sacrifício.

Pouco depois devia sentar-se, junto de Tomé, Judas o traidor, o filho da aldeia de Iscariote. Da parte oposta, sentaram-se junto de Jesus: Pedro, André, Judas Lebbe, o discípulo mais fiel; depois Simão, Mateus, e finalmente Felipe, que não esperava nada de bom de Nazaré. Na mesa só havia tres pratos. O do centro cotinha o cordeiro pascal. A direita estava um prato de ervas amargas, à esquerda outro de ervas doces.

Pai nosso que estás nos céusOs discípulos olharam-se uns aos outros com olhar cheio de profunda tristeza, de mudas perguntas que se dirigem. Aqueles corações puros não podiam compreender tal maldade. Vender Cristo! Vender seu Mestre!... Era

Ao dizer Jesus estas palavras achavam-se no prato as mãos de Judas Iscariotes. Cristo contemplou um momento a perturbação do traidor e o assombro dos outros e disse com a sua bondade nunca desmentida: - O filho do homem há de ser entregue, como está escrito; mas ai daquele por quem for entregue! Mais lhe valera não ter nascido! Todos os olhos se fitaram em Judas, o único que não tinha dirigido a pergunta a Jesus. O Iscariotes conheceu que

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era preciso dizer alguma coisa: - Sou eu, por ventura, Mestre?

- Tu o disseste, Judas. 189 Lusbel interrompeu sua gargalhada e exalou um grito de dor. A mansidão de Cristo despedaçava-lhe o coração. Tomou alento, como o que se prepara para lutar, e disse:

- A tua dor sublime, o teu sangue inocente, dará a paz ao universo. Glória a Jesus sobre a terra! Glória ao senhor nos céus! CAPÍTULO II O TREVO DA JUDEIA

190 Jesus continuava orando com a fronte colada no pó. Deus ouvia as súplicas, todas em favor da humanidade. Seus rogos foram atendidos, e o sangue que oferecia pelo pecado alheio admitido.

Aquela voz nascia do cálice duma flor. Compadecido o Nazareno ante a súplica daquela débil planta, disse-lhe:

- Senhor, Senhor, bendito sejas! tornou a tenra florzinha. Desde então cresce nos campos uma flor silvestre, que ostenta em suas brancas folhas três manchas de sangue que entrelaçam uma coroa de espinhos. Esta flor chama-se trevo da Judeia.

- Pedro, Tiago, João, levantai-vos, porque estão perto os que vêm por Mim. Os apóstolos levantaram-se. Naquele momento o resplendor dos archotes banhou a modesta parede do horto de

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Getsemani. Os apóstolos viam caminhar aquelas luzes, ouviam o ruído das armas e as pisadas que se aproximavam, e

- Pedro, exclamou Jesus, tudo o que vai acontecer-me, está escrito lá em cima. É vontade de Meu Pai. Tu não farás nada. - Saiamos ao encontro dos que vêm prender-me. Jesus caminhava adiante, triste, mas sereno. Saía ao encontro dos seus inimigos, como para lhes evitar trabalho. Quando estava perto da parede, voltou a cabeça e chamou João, que se colocou ao seu lado. Jesus pôs amorosamente uma das mãos sobre o ombro do discípulo favorito e disse-lhe:

- Eis o que me vendeu. Inclinou a fronte para o chão e esperou.

CAPÍTULO III SOU EU!

191 Retrocedamos algumas horas. Tomemos a narração desde o momento em que Judas, deitando ao chão o pão que Jesus lhe havia entregado, saiu desesperadamente do cenáculo arrancando os cabelos e gritando: - Sou um miserável!

- Esperam-me, disse Judas. Por que me deténs? - Romano, deixa-o passar, disse um dos criados do pontífice: esse homem é o que o entrega. - Espera-me um instante, disse o soldado; e entrou no salão onde os sacerdotes se achavam reunidos em número de mais de quarenta. A tardança do discípulo traidor, tinha-os impacientes. Era tal o desejo de verem Cristo no Gólgota, que cada

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minuto que passava era para eles um tormento. Quando entrou o arauto e disse: “Judas espera”, ouviu-se uma

- Está claro! A que havia de vir? Está perto desta casa; apenas o separam uns duzentos passos de vós, mui sossegado, em casa de Heli, celebrando a Páscoa. - E toleramos, sábios sacerdotes, exclamou cheio de ira Anás, que esse Galileu celebre a Páscoa em quinta-feira? - Ora! disse Judas em tom de desprêzo. Não tendes tolerado que cure os enfermos ao sábado? Que vos admira pois? As vossas leis, os vossos costumes, olha-os com desprezo. Ele segue um caminho novo que a vós não convém, e

- Jesus não é homem de guerra, é de paz. Ele mesmo apresentará as mãos para que as ateis. Quanto aos seus

da tribo de Zabulon, os moradores das praias do mar da Galiléia, conhecem-no e querem-lhe como a um profeta. Um

Anás não respondeu; mas pegando na bolsa de couro que estava em cima da mesa, deitou-a aos pés de Judas

Judas saiu para o vestíbulo acompanhado de Malco, e pegando num banco aproximou-se do braseiro onde

soldados de Tibério. 192 E, empurrando-o bruscamente, repeliu-o do lugar que ocupava. - Nós o acompanharemos, acrescentaram alguns anciãos, que talvez ignorassem que iam desonrar suas cãs naquela noite. A comitiva percorreu em silêncio as desertas ruas de Jerusalém; saiu pela porta Dória em busca do caminho do

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- Deus te guarde, Mestre. - Amigo, a que vieste? lhe perguntou Jesus.Judas lançou os braços em volta do pescoço de Jesus e imprimiu um beijo carinhoso na face d’Aquele a quem acabava de vender tão miseravelmente. Jesus, vendo o tropel que se aproximava, perguntou com carinhosa voz: - A quem buscais? Malco e alguns anciãos responderam-lhe: - A Jesus Nazareno. - Sou Eu, disse com magestade Cristo, adiantando-se um passo.- A quem buscais?- A Jesus Nazareno, disseram algumas vozes com temor.- Disse-vos que sou Eu. Se me buscais a Mim, deixai esses. E indicou com um gesto os apóstolos, quecontemplavam com temor aquela cena.

- Sois soldados de Tibério, e fugis diante de um homem! Covardes! Ai do que não cumpra o seu dever! A pena das baquetas lhes cairá nas costas! Esta ameaça deteve os fugitivos, que se agruparam ao redor do decurião. Entretanto, Jesus tinha dito a Pedro: - Mete a espada na bainha! O cálix que me deu meu Pai, não tenho de o beber? Depois, inclinou-se para o chão, pôs a mão na ferida de Malco, e curou-º Malco tivera a orelha arrancada, e achava-se bom, como se nada lhe houvesse sucedido. O miserável, em vez de agradecer o milagre que nele acabara de operar Jesus, atirou-se como uma hiena a Ele e começou a atá-lo. Enquanto o atacavam disse-lhes com doçura:

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- Como a um ladrão saistes para prender-me, com espadas e paus, e quando estava convosco ensinando no templo, não me prendieis... Mas é preciso que se cumpra a Escritura. Os discípulos tinha desaparecido, exceto Pedro e João, que, escondidos atrás de uma árvore, observaram, transpassados de dor, os insultos que prodigalizavam ao Mestre.

Os anciãos, os soldados e os criados de Anás, que desde a saída de Getsemani não tinham cessado de dirigir-lhes palavras grosseiras e insultos miseráveis redobraram seus horríveis gritos ao entrar na cidade. Mário Cúrcio, o decurião romano, disse em voz baixa a um dos soldados que se achava ao seu lado: - Creio que o preso vale, pelo menos, tanto, Ele só, como todos os hipócritas rezadores da sinagoga que especulam com o fanatismo do povo. Pilatos, não devia empregar seus soldados nestas intrigas sacerdotais... A comitiva tornou a entrar em Jerusalém e, tornando a fralda do monte Dória, chegou junto da esplanada do cerro de Acra, e parou à porta da casa de Anás.

193 CAPÍTULO IV OS MILHAFRES E A POMBA

A comitiva que conduziu o Nazareno desde a granja de Getsemani, tão depressa chegou diante do átrio da casa de Anás, começou a soltar gritos de entusiasmo e alaridos de prazer.

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Jesus, que tinha fortemente atados os braços atrás das costas, levantou com humildade a cabeça, e disse: - Por que me perguntais a mim? Perguntai aos que ouviram o que Eu lhes disse e ensinei; eles bem sabem o que Eu disse. Apenas Jesus acabou de falar o miserável Malco, que se achava ao seu lado, levantou a mão e deu-lhe uma terrível bofetada. Jesus caiu no chão.

- Se falei mal, mostra-me em que? e se falei bem, dize-me porque me bates.

O ódio dos homens amesquinha-os, às vezes, até ao crime, e leva-os quase sempre à loucura. A humildade de Jesus irritou de tal modo Anás, que, levantando-se do seu assento e esquecendo a compostura que lhe impunha o cargo que desempenhava, começou a gritar: - Levai-o à casa de Caifás! Ali está reunido o tribunal e o esperam as testemunhas que o acusam! Não quero ver na minha presença esse miserável. - Vamos, falso Profeta, exclamou Malco, cuidado com a língua na presença do pontífice, se não queres que a minha mão te afague pela segunda vez a face. Então um soldado pôs uma cana nas mãos de Jesus, passando-a barbaramente pelos cordéis que lhe prendiam os

Ferocidade incrível – Jesus, o manso cordeiro caiu sobre a dura lage e, ao levantar-se o seu formoso semblante achava-se coberto de sangue. Aquele sangue e aquela cana irrisória que promoveu a hilaridade dos verdugos, deviam ser mais tarde a semente

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da redenção, o cetro do mundo. O Nazareno era esperado com impaciência. O

ódio cegava a razão dos juízes. A lei ia calcar-se julgando o que cuidavam um transtornador da ordem pública. Pedro, que temendo o furor dos soldados, se escondera atrás dumas árvores no momento da prisão, tão depressa desapareceu a comitiva levando o Mestre, cobrou ânimo. O valor tornou a reanimar-lhe o coração e, embuçando-se no

194 manto encaminhou-se para Jerusalém, resolvido a saber o que acontecera. Ao atravessar a torrente do Cedron, topou com um homem que reconheceu por um discípulo de Jesus. - Quem és? lhe disse. - Sou João, discípulo de Jesus, lhe respondeu o homem com admirável serenidade, atendendo às críticas

Os dois apóstolos entraram em Jerusalém. Em breve os gritos dos verdugos lhe fizeram encontrar a comitiva. Algumas janelas começavam a abrir-se. O povo perguntava a causa daquel alvoroço. Jesus tinha muitos amigos no arrabalde de Ofel. Ninguém, contudo, se atreveu a defendê-lo.

João e Pedro choravam em silêncio sob as pregas dos mantos, vendo-o passar. Por fim, Jesus chegou à casa do pontífice Caifás. Os dois discípulos entraram também confundidos entre a multidão. De um extremo da sala podiam ver, ouvir

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tudo sem inspirar suspeitas. Depois todos os olharess tinham um ponto onde se reconcentrassem: o humilde Mártir. Caifás, vendo entrar Jesus, exalou um grito de satisfação. Era o tigre ao ver a indefesa presa, a hiena em presença da ferida onça, o lobo ante o manso cordeiro.

A multidão que rodeava a casa do pontífice era imensa. Ia-se julgar um Profeta, um Deus: isto era curioso.

e f od- Aproximai-me esse embaucador, disse com voz de trovão. Malco obrigou Jesus a caminhar até o pontífice. Jesus em pé diante do tirano, pálido, desfalecido, tinha o olhar docemente fito num ponto da sala, onde estavam os seus dois discípulos favoritos, Pedro e João. Caifás chamou as testemunhas. Alguns homens apresentaram-se diante do tribunal. Nicodemus, ao ver aqueles homens, não pode dominar a indignação que lhe inspiravam e, adiantando-se um passo, disse: - Caifás, não dês crédito a esses homens! Pensa que Jesus, em vez de ser um falso Profeta, pode ser um Enviado

ser reta como a torre de Davi, firme como as rochas do Sinai. Caifás, colérico, pôs-se em pé segunda vez e dirigiu-se às testemunhas depois de enviar um olhar de desprezo a Nicodemos. - Falai vós, lhe disse. Que sabeis desse embaucador? - Nós, disseram várias testemunhas, ouvimo-lo dizer: Eu destruirei o templo feito à mão, e em três diasedificarei outro não feito a mão. - Não respondes alguma coisa ao que atestam contra ti?

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- És tu o Cristo, o Filho de Deus bendito?- Eu sou, respondeu humildemente Jesus; e vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus e vir com as nuvens do céu. Como se as palavras do dulcíssimo Jesus houvessem sido um insulto lançado ao pontífice, este começou a dar gritos rasgando as vestes e arrancando as barbas. - Blasfemou!... Blasfemou! bradava Caifás, levantando as mãos e fazendo gestos indignos do honroso cargo que desempenhava. Para que precisamos, já de testemunhas? Agora ouvistes a blasfêmia; que vos parece? - É réu de morte! É réu de morte! gritavam vários anciãos.

195

Nicodemus cobriu a cabeça com o manto, para não ver os ferozes rostos dos juízes, para não ouvir as terríveis blasfêmias dos seus companheiros. José de Arimatéia imitou o amigo, e ambos sairam do salão precipitadamente,

Pedro, absorto, aterrado com o que acabava de presenciar, foi esconder-se entre a multidão, receioso que o reconhecessem.

- Faz um milagre, falso Profeta! lhe dizia um. - Adivinha como se chama o que te dá esta bofetada, sábio! repetia outro.

- Oh! O ilustre pontífice Caifás estará contente com os seus servos, dizia um criado. Ao abandonar o salão, disse- lhes: Soldados, eu vos entrego este Rei; tratai-o como merece. E os soldados postaram-se bem.

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- É costume romano, e que chegou a Israel, disse outro, que as legiões celebrem com regozijo a subida dum

trinta anos; era alta, morena e de ademãs desenvoltos. Levava uma roça na mão esquerda e um fuso na direita. - Muito madrugas hoje, Rebeca, lhe disse um dos que a rodeavam.

- Não estavas tu com Jesus Nazareno? Todos os olhares se fitaram nele. Pedro estremeceu; mas era preciso dar uma respostas e respondeu perturbado: - Mulher; nem o conheço, nem sei o que dizes. Pedro, não se julgando seguro naquele lugar levantou-se e saiu do átrio. Ao transpor o umbral parou. Então

Alguns homens o cercaram; mas no meio dos insultos que começavam a levantar-se, ouviu Pedro segunda vez o canto profético do galo. Um dos presentes disse, aproximando-se do apóstolo: - Por que negas que o conheces? Receca tem razão: tu és galileu como ele, e vimos-te no templo, ouvindo suas patranhas. Pedro julgou-se perdido. Sua razão ofuscou-se e o medo pôs-lhe na língua palavras e juramentos que mais tarde deviam causar-lhe dolorosas lágrimas de arrependimento. - Não o conheço, disse: o Deus de nossos maiores não dê ouvidos às minhas súplicas, se tendo tido contato com esse Galileu de quem falais.

na bk a- Ainda é muito cedo para incomodar Pilatos; esperai que o sol possa iluminar o rosto do Réu, e do juiz. Os

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fariseus tem medo de o sentenciar de noite. CAPÍTULO V

196 O SUICIDA

- Que é de meu Filho? exclamou Maria com doloroso acento.

- É que venho encomendar-te outro trabalho, tornou Malco. Precisamos de outra cruz para outro réu, um falso profeta.- Ah! Pois então será preciso que nos esmeremos. Disse-te de que madeira a quer o tribunal?A poucos passos da casa, havia um grupo de gente que rodeava um homem. Este gritava com toda a força dos pulmões, dizendo:

- Este homem está louco, disse um soldado. - Filho da minha alma!

A dois passos da grade via-se um grupo cuja dor era imensa, Madalena, João e Pedro choravam, dirigindo através da grade olhares dolorosos para Jesus. - Eu não tenho deixado de ver-te, minha Mãe, desde o momento da nossa separação, disse o Mártir; bendita serás entre as mulheres como bendito será o fruto do teu ventre, que hoje é objeto de zombaria e escárnio. Naquela dolorosa cena as lágrimas substituiram as palavras; dor profunda, imensa, indescritível; cruel amargura a que a pena do homem não dará nunca o elevado sentimento de que foi digna. Entretanto, no átrio da casa do pontífice, um homem cujo olhar tosco e receioso inspirava desconfiança, perguntava aos soldados com preocupada e intranquila voz:

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- É certo que Jesus foi sentenciado à morte? - Tão certo como nós estarmos aqui esperando que amanheça para o levarmos à casa do juiz romano, responde um soldado. - E não amaldiçoou ninguém? Não disse que um traidor o vendera? - Jesus suportou tudo com uma humildade incompreensível e pediu a Deus o perdão dos seus inimigos e juízes.

A bolsa que pendi doc into do apóstolo traidor, fazia soar no fundo as trinta moedas de prata. Quanto mais corria, mais lúgubre e ameaçador era o argentino som do dinheiro, que levantava um eco doloroso no coração do miserável.

- Vêde o que o vendeu! disse um dos anciãos. - Sim, eu fui o infame, o miserável, o traidor; este dinheiro queima-me as mãos; tomai-o, tomai-o, para nada o quero.

197 E dizendo isto, atirou com as moedas aos pés dos sacerdotes e, descendo as escadas do templo, dirigiu-se desesperadamente para a porta Dourada.

- A vida, disse com cavernosa, é um gemido interminável, quando se tem, como eu, um inferno no coração. Ela, pois, valor, lancemos fora uma carga tão penosa.

Had ed adomCAPÍTULO VI A FAMÍLIA DE BELI-BETH

Seram três horas da madrugada. Na estreita habitação achava-se uma mulher sentada à cabeceira duma cama,

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onde jazia enferma uma velha. Junto via-se um berço, onde dormia um menino que apenas teria doze meses de idade.

Beli-Beth era judeu. Apenas o buço lhe apontava no rosto quando sentou praça numa legião romana.

198 saúde.

Samuel soltou segunda gargalhada, e continuou:

- Os fariseus não se atreverão a crucificar um homem que não faz mal a ninguém.

Samuel aproximou-se da cama de sua mãe e do berço de seu filho. Seráfia retirou-se. Samuel sentou-se junto do berço do filho e esteve-o contemplando por alguns momentos. CAPÍTULO VII CLÁUDIA PROCLA Retrocedamos. O sol acabava de nascer. Seus raios saiam como uma chuva de ouro sobre os mármores brunidos da cidade Antônia e da cilíndrica torre de Davi. Pôncio Pilatos passeava pelo camarim. Nisto abriu-se uma porta e apareceu u’a mulher moça e formosa. - Ah! disse o governador. És tu Cláudia? A que devo a felicidade de ter vêr cedo? Mas estás agitada... pálida! Que tens? - Tive um sonho horrível... espantoso! disse Cláudia.

- Minha Cláudia, estranho as tuas palavras: rogo-te, pois,que te expliques. - Conheces Jesus Nazareno?

199

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- Pois Jesus foi preso esta noite pelos teus soldados! Nunca homem algum se viu tão cruelmente maltratado.

Perdoa-lhes, meu pai: não sabem o que fazem.- Repele vãos temores, lhe respondeu Pilatos um tanto preocupado. Juro-te que eu defenderei Jesus, caso ele não

Pilatos tirou do dedo um grosso anel em cuja preda se achava gravada a cabeça de Tibério, e entregou-o à espôsa.- Estás contente? disse-lhe.- Oh, sim, estou contente, porque vou evitar-te uma infâmia. Apenas Pôncio Pilatos acabava de dizer estas palavras, quando Caio Ápio, centurião da guardaa pretoriana, entrou no gabinete. Caio Ápio era espanhol, como Pilatos, e ambos filhos de Taragona. O governador tinha em Caio um

- Senhor, disse Caio, os juízes do sinédrio, os sacerdotes e os fariseus, recusam-se a entrar no palácio, porque não querem manchar a consciência entrando no dia de Páscoa em casa de um homem que adora os deuses do Olimpo. - Miseráveis hipócritas! exclamou Pilatos. Raça desprezível e vil, que toca as trombetas para dar um miserável dinheiro de cobre ao mendigo, e rouba em silêncio um talento hebreu. É como neste momento os gritos de “ – Justiça! Saia o governador! Apareça Pôncio Pilatos” – lhe chegavam com mais força aos ouvidos, continuou:

Dentro em breve correu a notícia de que o juiz romano ia apresentar-se. Jesus, entretanto, achava-se no meio da praça, sofrendo os insultos e golpes da plebe.

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CAPÍTULO VIII DE PILATOS PARA HERODES

200 Samuel Beli-Beth agarrou brutalmente pelo ombro direito a Jesus e conduziu-o quase a rastos até junto dos degraus onde estavam os estandartes. Depois, dando-lhe uma terrível punhada nas costas, disse:

Beli-Beth tornou a assentar segunda punhada no peito de Jesus. O povo aplaudiu-º. O miserável judeu fez uma cortesia, agradecendo. - Se Jesus não cometeu mais crimes que os que acabas de relatar, disse Pilatos, eu, que represento Roma, não lhe acho culpa suficiente para o castigar. - É um malfeitor, um conspirador, um blasfêmo, gritou Caifás, aproximando-se dos degraus. Se não fôsse um criminoso não to haveríamos trazido. - Se esse Homem pecou contra a vossa lei, tornou Pilatos, julgai-o vós. Que tem que ver Roma com as vossas questões religiosas? Tolera-vos o vosso templo, permite-vos que rezeis nas vossas sinagogas e nada mais. Julgai-o vós. - A pena de morte, bem o sabes, Pilatos, que o reservaste a vós, disse Caifás, como direito de conquista; nós não podemos sentenciar Jesus, e o seu crime merece a morte. - Pois bem, acusai-o de crimes que que mereçam a cruz: estou pronto a ouvir-vos; mas em tudo o que me dissestes nada achei digno de morte...

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- Pilatos, no que te dissemos tens motivos para sentenciar Jesus; lembra-te que Tibério declarou réu de morte em cruz afrontosa todo feiticeiro, e este homem cuja endemoninhados e faz outros mil sortilégios. A Pilatos, que era homem justo e reto, ainda que um pouco timido e político, começava a desagradar o nome de Tibério naquele negócio; e, desejando acabar depressa, mandou um litor, que fizesse subir Jesus ao Pretório. Ao ver o Nazareno, Pilatos contemplou alguns segundos a sua mansidão. No divino olhar de Jesus havia tal

- És tu o Rei dos Judeus? Jesus respondeu, fitando os formosos olhos nos de Pôncio: - Dizes isso por ti mesmo ou disseram-te outros de Mim?Pilatos meditou, porque a voz de Jesus lhe tinha produzido na alma uma doce sensação e disse: - Sou eu acaso judeu? A tua nação e os pontífices te puseram nas minhas mãos. Por que desejam a tua mortecom tal empenho? - O meu reino não é deste mundo, disse Jesus; não devo, pois, inspirar receio ao teu senhor. Se dêste mundo fôsse, os meus ministros pelejariam para que não fôsse entregue aos judeus. - És tu Rei? disse Pilatos.- Tu dizes que o sou, respondeu Jesus; Eu para isso nasci, mas venho reinar nos corações dos justos, transmitir-

todo aquele que ama a verdade, escuta a minha voz.- Nenhum delito acho neste homem. A opinião de Pilatos irritou os fariseus, que começaram de novo a soltar maldições.

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- Meditas o que dizes, exclamou Caifás, crendo que a vítima lhe escapava das mãos. Jesus na Galiléia praticou

- Pois então levai-o a Herodes, tetrarca da Galiléia, que se acha no seu palácio de Jerusalém por causa das festas

- Mago feiticeiro, faz um milagre, concedendo-me a mim a imortalidade, e a minha mãe, que é muda, o uso da palavra! Jesus voltou uma vez a cabeça, junto do palácio de Herodes, e dirigindo-se a Beli-Beth, disse: - O filho do homem vai-se... mas tu esperarás que volte.Beli-Beth soltou uma gargalhada. A comitiva continuou a caminhada, parando em frente ao palácio de Herodes. Aquele rei vérdugo, monarca assassino, receoso e cruel, tinha edificado seu palácio-fortaleza com um luxo, e magnifiência incríveis.

201 Jesus dirigindo um olhar de compaixão ao

tetrarca, guardou silêncio. O Nazareno sorriu-se docemente.

- Miserável, disse o tetrarca, desprezas as minhas ameaças! Estás louco! Faze um prodígio ou, do contrário, o rigor da minha ira te cairá sobre a cabeça. O Mártir permaneceu impassível e mudo com os olhos fitos no rosto do tetrarca.

Jesus nada respondeu. Então Caifás, o mais encarniçado inimigo de Jesus, que o seguira até ao palácio de Herodes, adiantou-se alguns passos e colocando-se junto do Réu, exclamou:

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- Ilustre tetrarca, este Homem é um embaucador; ofereces-lhe uma coroa por um milagre, e não o faz.

Depois, descendo do trono, abandonou a sala da justiça, mandando que levassem dali aquele Homem. CAPÍTULO IX DE HERODES A PILATOS Pilatos já se julgava livre do grave compromisso de sentenciar Jesus,quando ouviu na praça altas vozes. Chegou- se a uma janela e, com desgôsto e assombro, viu que lhe levavam segunda vez Jesus. Caio Ápio entrou para dizer-lhe

- Dize a teu amo que pode contar desde agora com a minha amizade, e que fico muito honrado se me conta no número dos amigos.Mas, por que torna a remeter-me Jesus? Por que não o julga, sendo galileu? - Porque meu amo crê que esse Homem, mais que criminoso é um louco. - Pilatos! Saia o Governador! Sentencie o Galileu! A cruz para o Nazareno! – gritava a alvorotada multidão da praça desaforadamente.

- Oh! Essas hienas acabarão por devorar o indefeso Cordeiro que lhes caiu nas mãos! exclamou Pilatos; e,

202

Pilatos sentou-se junto de uma mesa que tinha mandado levar para o terraço, e escreveu esta sentença em língua latina: “Despi, atai e açoitai com varas a Jesus de Nazaré por sedicioso e menosprezador da lei de Moisés, acusado

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pelos sacerdotes e príncipes da nação. – Litor, vai e entrega as varas”.

O litor pegou no criminoso papiro que levava a sentença de Jesus e correu a buscar os verdugos e o Réu. Pilatos retirou-se do terraço, afrontado de sim mesmo. Temia encontrar Cláudia, sua espôsa.

LIVRO DÉCIMO SÉTIMO O GÓLGOTA CAPÍTULO I A COLUNA DAS AFRONTAS

Apenas o litor lhes aponteou Jesus, lançaram-se sobre Ele e conduziram-no quase a rastos para baixo dos pórticos onde se achavam as colunas dos ultrages.Teriam estas escassamente cinco pés de altura, e uns grossos anéis de ferro para atar os braços do réu, de modo que as costas apresentassem toda a largura para que os golpes não fosse infrutuosos.

Estes trinta e nove golpes davam-se; treze nas costas, treze no ombro direito e treze no esquerdo. Os saiões amarraram terrivelmente Jesus na coluna, rasgando-lhe a veste pelas costas até mostras as carnes. Naquele doloroso momento o semblante de Jesus respirava mansidão infinita; seus olhos contemplavam com

Tão depressa as ardentes notas do bélico instrumento se estenderam pelas âmbitos da praça, o povo calou-se. Todas as gargantas emudeceram. O silêncio foi universal. Naquele momento horrível só se escutava o assobio das varinhas espinhosas ao caírem sobre as ensanguentadas

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costas de Jesus, e os dolorosos gemidos do divino Mártir, murmurando: - Perdoai-lhes, meu Pai: não sabem o que fazem!

203

- Deus te salve, Rei da Judéia! exclamava um, açoitando o rosto de Jesus com as duras e ensanguentadas correias que ainda conservava na mão. - Glorioso Messias! exclamava outro, escarrando na divina face do Nazareno. Faze um milagre! Enriquece-me! pois boa falta me faz. Guardava Jesus profundo silêncio ante tão atrozes insultos. Os costumes, as leis, tinham sido violadas, e, sem embargo, ainda se cevavam de um modo cruel na indefesa Vítima que se acha a seus pés. Esta fraqueza produziu um grito de júbilo enre os verdugos. CAPÍTULO II “ECCE HOMO” Jesus jazia no chão, cercado dos seus verdugos que lhe escarravam no rosto e maltratavam o corpo, quando de pronto se levantou sobre os joelhos e logo se pôs em pé. Como os gritos da multidão redobrassem ao invés de diminuirem mandou Pilatos que cobrissem os ombros do

visse com o manto de púrpura, coroa de espinhos e cana na mão. - Vêde-o, israelitas! Gritou Pilatos. “Ecce Homo”! Bastante castigado está pelos seus crimes. Que vos importa

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que este Homem viva depois da afronta que acaba de receber?... - Ao Gólgota!... Ao Gólgota!... Crucificai-o! Crucificai-o! clamava o povo. Caifás, cujo rancoroso coração temia que Jesus se livrasse da morte, subiu até o último degrau do palácio, e gritou com voz desaforada.

- Defende-te. Bem ouves o que de ti dizem. Jesus guardou silêncio. Neste instante, um criado de Cláudia acercou-se de Pilatos e disse-lhe: - Senhor, tua espôsa me manda dizer-te que não esqueças a tua promessa; que respeites a vida do Nazareno,

criminoso. Pilatos chegou segunda vez à varanda e indicou

que ia falar. O povo calou-se. - Faz morrer Jesus! Solta-nos Barrabás!

exclamaram os sacerdotes. Pilatos tornou a retirar-se da varanda. Apesar da sua fraqueza de caráter, repugnava-lhe matar Jesus. Fez o

acento:- Nenhum poder terias sobre mim, se não te fosse dado do Alto.As palavras, o acento, o olhar de Jesus, tudo naquele Homem tinha uma magestade tão sublime, que Pilatos sentiu uma coisa extraordinária dentro do seu ser. Jesus naquele momento, parecia-lhe um Deus. Suas mãos, assinando a sentença de morte d’Êle, manchavam-se para uma eternidade. Seu coração, pouco antes indeciso e fraco, resistiu-se de valor, e tornou a chegar à varanda, resolvido a salvar o Acusado. Esta resolução irritou de um modo horrível os sacerdotess e a plebe. Caifás, que formava à frente daquelas feras,

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falou: - Pilatos, lembra-te que esqueces os teus deveres. Jesus proclamou-se Rei dos Judeus, usurpando uma dignidade que pertence a Tibério, teu senhor e nosso, por direito de conquista. Esse homem que defendes é inimigo do César.

204 Sendo seu defensor, tornas-te seu cúmplice. Salvando-lhe a vida, atentas contra a glória do augusto imperador de Roma. Ai de ti, Pilatos! Ai de ti, se o teu procedimento neste dia chega aos ouvidos do senhor do mundo, do imortal Tibério!. Pilatos tremeu, ouvindo as palavras do Pontífice. Fraco e covarde, rendeu-se ante as ameaças daquele sacerdote

G abbathaPouco depois, apresentaram-se dois criados com a bacia e a toalha. Traziam também a Pilatos o anel que sua

- Tomo o céu por testemunha de que sou inocente na morte desse Justo! A cólera celeste caia sobre os seus verdugos. - Amém! replicaram os sacerdotes. Depois, Pôncio Pilatos sentou-se numa cadeira junto da mesa; Jesus de pé ao seu lado: os soldados rodeando o mártir, e os ferozes sacerdotes e o povo em frente. Era sexta-feira, e seriam aproximadamente dez horas da manhã. O juiz romano escreveu com mão trêmula.

Os dois ladrões estão igualmente pendentes das suas cruzes um à direita e outro à esquerda, residindo no meio

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como Rei, para que seja exemplo e escarmento de todos os malfeitores, e em voz alta pelo pregoeiro,para que chegue ao

Pôncio Pilatos”.CAPÍTULO III A RUA DA AMARGURA Junto da cidadela Antônia achava-se o cárcere. Uma mulher acocorada no umbral da porta chorava amargamente, com a cabeça escondida nas pregas do manto. Ao seu lado, de pé, triste, imóvel, achava-se um moço com uma citara pendente do ombro. Era Enoé e o moço era Boanerges, seu filho, que esperavam para ver o seu protetor, o bandido Dimas. Um litor seguido de quatro soldados parou diante da porta do cárcere. Enoé levantou a cabeça. Um carcereiro saiu ao encontro do litor e este apresentou-lhe um papiro, que dizia: “O carcereiro entregará ao litor os dois bandidos Dimas e Gestas”. - Ah! Com que finalmente os crucificam, disse o carcereiro, dando voltas ao molho de chaves que lhe pendia da

em pé, e, adiantando-se para o litor, deteve-o, dizendo-lhe: 205 cruzes esperavam os réus. Doze verdugos, soldados das fileiras romanas, rodeavam os instrumentos do patíbulo. O povo, para não se manchar com seu contato, deixava um espaço entre eles e os saiões. Como cães danados, como carniceiras hienas, lançaram-se sobre Jesus, e, arrancando-lhe o manto de púrpura que

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pouco antes lhe tinham pôsto sobre os ombros, vestiram-no com o antigo traje para que fosse reconhecido de todos. Trinta soldados, capitaneados por Caio Ápio, esperavam junto aos degraus da cidadela Antônia o momento da partida. Era a guarda de honra que devia acompanhar Jesus ao Gólgota.

- Cumpra-se a sentença. - Já que és Filho de Deus, leva só a carga e faze

um milagre, para que te não seja pesada. Jesus estava débil, pálido, desfalecido. Mal podia ter-se em pé. Ao receber sobre os amantíssimos ombros o pesado e afrontoso lenho, seu corpo dobrou-se como a frágil cana impelida pelo rijo sopro do furação. Os verdugos riram-se daquela fraqueza. O povo, vendo o Mártir pronto a encetar o caminho do suplício, agitou- se como um imenso formigueiro, soltando gritos de prazer. A comitiva seguiu o caminho do Calvário, ao lúgubre som das trombetas. Longuinhos, seguido de quatro soldados a cavalo, ia adiante, afastando a gente com a lança. Seguia-se um pregoeiro e dois trombeteiros. O primeiro devia ler a sentença em todas as bocas de rua do trânsito. Caminhavam depois os soldados a pé, apetrechados com os arreios de guerra, capacetes, escudos, coraças e espadas.

“JESUS DE NAZARÉ, REI DOS JUDEUS” Atrás deste jovem ia Jesus, rodeado de verdugos, com uma corda atada à garganta.

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Jesus dirigia seus compassivos olhos para aquele inocente pimpolho carregado com os cruéis instrumento da sua morte. O Nazareno com a mão direita procurava diminuir o peso enorme do afrontoso lenho, e com a esquerda levantava a comprida túnica para não tropeçar nas duras e desiguais pedras das ruas.

A plebe, instada pelos fariseus e sacerdotes, seguia Jesus, uivando, escarrando da sua cruel agonia. Aos oitenta passos tropeçou Jesus numa pedra, faltaram-lhe as fôrças e caiu. A multidão soltou um grito de alegria. A divina fronte do Galileu tinha batido no duro pavimento da rua. Os saiões puxaram as cordas para o levantarem; os soldados deram-lhe duríssimos golpes com as hastes das lanças para refazerem suas desfalecidas forças. Jesus levantou-se fitando os formosos e doces olhos no céu. Seus divinos lábios murmuraram uma frase que ninguém pode compreender e, ao redor da sua puríssima fronte apareceu uma auréola de resplandecente luz. - Saudai o Rei dos Judeus! exclamou um. Não vedes como se levanta para olhar o povo, para agradecer ao numeroso acompanhamento que o segue ao Calvário?

206 Esta horrível gargalhada foi repetida pela

multidão. Jesus continuou o doloroso caminho repetindo em voz baixa: - Perdoai-lhes, meu Pai: não sabem o que fazem.

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Entretanto a Virgem Maria dissera a João. - Corramos ao Calvário! Quero ver meu filho! As santas mulheres e o discípulo favorito de Jesus foram juntos. Maria colocou-se na Via Sacra, num ponto por onde ia passar o Filho. Ali caiu de joelhos. Madalena, Maria Cléofas, Maria Salomé e João rodearam-na. Era em vão querer consolar

- Toma, Galiléia: ai tens o presente de morte que te faz teu filho, o Profeta de Nazaré. Jesus quis correr em socorro de sua Mãe. Mas ai! os pés enredaram-se-lhe na túnica, e segunda vez caiu ao chão, batendo com a divina fronte nas duras pedras da rua. - Filho da minha alma! exclamou a Virgem, com um desses gritos que só podem sair do coração de u’a mãe. Jesus, sereno, pálido e vacilante, dirigiu um doloroso olhar a sua mãe, e levantando-se disse-lhe com voz dulcíssima: - Salve, Flôr de amargura! Salva, Estrela puríssima da manha! Salve, minha Mãe!

A enamorada donzela de Mágdalo, dirigiu um olhar cheio de amor e amargura para Jesus, e a comitiva continuou a interrompida marcha.

- “Jerusalém! Jerusalém! Quantas vezes quis congregar os teus filhos como a galinha congrega os pintainhos debaixo das asas, e não quiseste!” Jesus teria caminhado a metade da dolorosa estrada, quando parou pela terceira vez, falto de alento. As pernas fraquejavam-lhe.

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Alguns pobres do arrabalde de Ofel e algumas mulheres a quem a bondade e os milagres de Jesus tinham curado as doenças, choravam amargamente seguindo os passos do Mártir.

Junto do poço, pôsto em pé sobre um banco de pedra, via-se um homem de elevada estatura e feições pronunciadas. Era Samuel Beli-Beth.

E aquele miserável ria-se como um condenado. - Samuel, disse Jesus, tenho sede! Dá-me dessa água! Samuel, permite-me por caridade que descanse um

Jesus levantou-se lentamente. Colocou o pesado lenho sobre o ombro, olhou de um modo compassivo Samuel e disse:

anda,a ndaa nda Eu logo descansarei; mas tu andarás sem cessar até que Eu volte.Judeu Errante; e teu passo não se deterá nunca; serás imortal, mas a imortalidade será o teu maior castigo. Prepara as207 tuas sandálias; prepara o teu bordão de viagem. Infeliz! Disseste-meanda; pois tu andarás até à consumação dos séculos. Anda, anda, Samuel Beli-Beth; maldito como a tua pátria, vaguearás pelo universo até o dia do juízo final.

Neste instante u’a mulher saiu da casa da frente com um lenço na mão. Era Seráfia. Aproximou-se do divino Galileu, cujo rosto se achava banhado de suor e sangue, e ajoelhou-se diante d’Ele dizendo: - Senhor, meu Jesus, permite que esta humilde pecadora limpe o teu divino rosto com este lenço tecido pelas

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Seráfia soltou um grito de alegria. Algumas mulheres a cercaram. No lenço tinha ficado impresso por três partes o rosto do Mártir. Cada um dos crudelíssimos espinhos da sua coroa despedia um raio de luz. Seráfia estava absorta. - Seráfia, deixa o teu nome e toma o deVe r ôni c a, pois nas tuas mãos deixo a minha verdadeira imagem. CAPÍTULO IV A CRUZ

- Observai! Jesus não pode com o enorme peso do lenho. Bom homem, disse olhando para Simão, ajudai-o antes

Ai, caiu pela quarta vez desmaiado. Simão deixou a cruz e correu a levantar o Nazareno. Um grupo de mulheres que esperava o jovem Mestre para o ver passar, vendo em tão doloroso estado o que seis dias antes entrara coberto de flores e de bênçãos por um caminho de rosas e de plantas, pôs-se a chorar. Jesus ergueu a fronte, abatida pela dor, manchada pelo sangue, e disse-lhes: - “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! chorai por vós e por vossos filhos; porque virão em breve dias em que dirão: Bem aventurados as estéreis e os ventres que não conceberam e os peitos que não amamentaram!” Uma senda estreita e tortuosa, semeada de grossas e duras pedras, conduzia ao cume do Gólgota, desde o lugar

Caio Ápio despediu Simão, agradecendo-lhe; mas Simão pareceu não ter ouvido a ordem do romano, e permanecia cravado junto ao corpo desfalecido de Jesus.

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Simão afastou-se alguns passos. Em seus olhos apareceu uma lágrima. Alguns passos acima do lugar em que Jesus se despediu do homem venturoso de Cirene, achava-se a pequena e

Quando os quatro saiões tiveram os cravos, os martelos e a cordas preparadas junto da cruz dirigiram-se a Cristo, e pegando-lhe asperamente de um braço, arrastaram-no até o lugar onde devia ser crucificado.

208

- Creio que não devemos rasgar esta túnica. Seria conveniente que a tirássemos inteira, porque a poderíamos vender a algum dos fanáticos que crêm que este homem é o Messias. - Dizes bem, esfolemo-lo, pois tem na pegado ao corpo.

Os verdugos colocaram Jesus sobre o afrontoso madeiro.

O sangue saltava ao rosto do verdugo. Jesus agitou-se dolorosamente sobre o madeiro. A mão esquerda foi, por fim, pregada. Os cravos tinham nove polegadas , eram triangulares e a cabeça redonda. A ponta ensanguentada saiu pelo outro lado da cruz. Faltavam os pés, e colocaram-nos sobre o ponto de apoio um por cima do outro. Dois cravos esperavam a carne para a penetrarem. Dez marteladas terminaram o horrível martírio. Jesus ficou pregrado, e foi levantado à vista das nações. Então ressoou um grito de entusiasmo ao redor do Gólgota.

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Pilatos tinha mandado pôr uma tabuinha na parte mais alta da cruz com este letreiro: JESUS NAZARENO, REI DOS JUDEUS Caifás, que tinha presenciado tudo rodeado dos seus amigos e fariseus, apenas leu o letreiro aproximou-se de Caio Ápio e disse-lhe com voz descomposta: - Tira aquela tábua, onde diz que aquele Condenado é nosso Rei, e põe: Jesus de Nazaré, que se diz Rei dosJudeus. Caio enviou um olhar desdenhoso ao pontífice, que se dirigiu a Pilatos. - O escrito, escrito. Saí de minha casa, e não espereis que se mude nem uma só letra, disse Pilatos.Entretanto, Jesus exclamava com moribundo acento: Perdoai-lhes, meu Pai, não sabem o que fazem.Alguns homens do mais soez da plebe, que se tinham reunido com os verdugos, escarneciam desapiedadamente do Filho de Davi. - “Eh! Tu que destróis o templo de Deus, lhe disse um e em três dias o reedificas, salva-te a Ti mesmo. Se és

O bandido Gestas, pregado na cruz à esquerda do Galileu, voltou a cabeça para olhá-lo, e disse-lhe com desprezo: - Se Tu és Cristo, salva-te a Ti mesmo e a nós.

e estavam jogando a túnica inconsútil do Nazareno. CAPÍTULO V TUDO ESTÁ CONSUMADO

209 Maria, a Flôr de pureza, a virgem imaculada, não pôde permanecer muito tempo na gruta para onde a tinham

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conduzido os amigos. Quis tornar a ver seu Filho. Os rogos de João, as súplicas de Madalena, foram vãos. Saiu, por fim, e pouco depois caía ajoelhada aos pés de Jesus, e abraçava-se ao cruel madeiro, com a alma dilacerada de dor e de angústia.

Seus olhos, cheios de doce e amorosa expressão encontraram-se com os olhares angustiosos dos três únicos seres

Jesus ergueu os olhos ao céu, como se buscasse seu Pai no pálido e triste horizonte que se estendia sobre sua cabeça ensanguentada e, exalando um doloroso grito, disse: - Eli! Eli! Lamma Sabacthani? Jesus agitou a cabeça com agonia e, neste momento, um relâmpago azulado atravessou os dilatados âmbitos do espaço.Cem mil espectadores levantaram os olhos para o céu depois de passarem as mãos por eles.Não havia nuvens; mas o sol ostentava a palidez dos cadáveres e os muros da cidade, e as cristas dos montes, e os seios dos barrancos tingiam-se de um resplendor estranho, que gelava o sangue nas veias e oprimia o espírito. Cessou o trovão, como se a natureza suspendesse seu enfado, e Jesus, abrindo a boca, exclamou com moribunda voz: - Tenho sêde.

O Nazareno voltou o rosto para o Ocidente, exalando um doloroso suspiro. Os elementos responderam com sua poderosa voz a este gemido do Redentor.

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Longuinhos, que se achava perto da cruz, a custo podia segurar o cavalo que, espantado e receioso, trabalhava para despedir-se da sela o cavaleiro. Jesus tornou com moribundo acento: - Tudo está consumado.Os trovões redobraram: a escuridão entendeu-se pelo espaço; a pavorosa luz do raio dilatou-se pelo éter.

- Meu Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! Jesus inclinou a cabeça e, exalando um suspiro, soltou o último alento.

A noite substituiu o dia; as estrelas, o sol. Os vivos vêm os cadáveres pelas ruas e os

pálidos esqueletos inclinam-se para saudar os parentes. No meio desta desolação geral, dois homens permaneciam no cume do Gólgota com a fronte erguida e o olhar provocador. Ambos fitaram os altivos olhos no corpo sem alento de Jesus. Um chamava-se Longuinhos e outro Samuel Beli- Beth. Beli-Beth! Nazareno! Não me respondes? É o mesmo: escuta as minhas palavras. Eu rio-me da voz da tempestade e desprezo essa raça covarde que foge espantada quando vibra o raio sobre as suas cabeças; a minha nunca

210 se inclina. Se és homem vencer-te-ei, estou certo; se és Deus, advirto-te de que me acho pronto para a luta; disseste que

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peito do Nazareno. Por aquela ferida rebentou uma fonte de sangue e água, que correu como um arroio pela lança de Longuinhos, umedecendo-lhe as mãos. Longuinhos sentiu ao tocar aquele sangue alguma coisa estranha. Maquinalmente a lança caiu-lhe das maõs, e

CAPÍTULO VI CAIO ÁPIO Os trezentos mil espectadores da tragédia divina, tão depressa a terra lhes tremeu sob os pés e o sol ocultou a brilhante fronte como envergonhado do crime que acabava de cometer-se, dispersaram-se. Atropelando-se uns aos outros entraram na cidade e, escondendo-se nos mais escuros cantos de suas casas, repetiam com covarde acento: -Era verdade que Êste era Filho de Deus e matamo-lo. Os covardes jerossolimitanos fechavam as portas e janelas, porque alguns mortos que tinham saido dos sepulcros corriam pelas ruas, graves, silenciosos como os túmulos que tinham encerrado os seus corpos. Entretanto ao redor da cruz, onde ainda permanecia pregado Jesus, agrupava-se com amor um grupo doloroso de onde devia brotar brevemente a fecundante fonte do Cristianismo. Daquele punhado de israelitas reunido no cume do Calvário, ia nascer o perfume imortal e salvador que há desenove séculos fortalece com sua essência o grande espírito da humanidade. Maria, a Mãe dolorosa, era o precioso vaso que reunia as flôres abatidas do Evangelho.

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Madalena, Maria Salomé, João, Pedro e outros discípulos choravam amargamente ao pé da cruz, quando viram subir pelas desertas fraldas do Gólgota, José de Arimatéria e Nicodemus, seguidos de quatro criados. Os dois amigos de Cristo tinham alcançado do juiz romano licença para darem sepultura ao corpo do Mártir; eram responsáveis para com Pilatos pelo cadáver de Jesus. José de Arimatéia levava finíssimo lençol de linho e Nicodemos cem libras de mirra e aloés para ungir e embalsamar o corpo de Cristo, segundo o costume dos judeus. José fechou o sepulcro com uma enorme pedra e, como tudo estava terminado, regressaram a Jerusalém, onde oschamava a celebração da Pásacoa.

Os fariseus temeram que os partidários do Galileu roubassem o corpo do Crucificado, fazendo depois crivel a ressurreição que profetizara e os fizeram reunir no sinédrio. O concílio acordou que era preciso que Pilatos lhes desse certo número de soldados para guardarem o sepulcro,

conclave de pedraCaio Ápio saiu do templo sem que ninguém se opusesse. Suas palavras tinham sobressaltado os sacerdotes e os fariseus.

211 Naquele momento, no interior do Santo dos Santos, cujo véu se tinha rasgado, justamente à mesma hora em que

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Jesus soltou o último suspiro, ouviram-se vozes que nunca se pôde saber quem pronunciou, as quais diziam:Pa r ta mo sdeste lugar.Caifás fez esfôrço para reanimar os companheiros. Logo partiram alguns sacerdotes seguidos dos soldados, chegaram ao jardim de José de Arimatéria e levantaram a pedra do sepulcro. Ali estava o cadáver de Jesus. Em presença dos sacerdotes tornou a colocar-se a enorme pedra, e pelas suas próprias mãos foram seladas as

juntas.Quatro soldados com a lança no braço se colocaram à porta do sepulcro.Os sacerdotes sairam do jardim, e já no campo, Caifás disse aos que o cercavam:- Agora estou tranquilo. Se é Deus, que quebre a lousa do sepulcro e ressuscite, o que é difícil que suceda.CAPÍTULO VII OS MORTOS FALAM

Samuel Beli-Beth, depois de apostrofar Jesus na agonia, desceu do Gólgota e começou a caminhar sem saberpara onde, como impelido pela aterradora voz da consciência.A escuridão era completa; o temor dos habitantes deJerusalém tão grande, que a gente se atropelava pelas ruas.Samuel parecia insensível ao espanto geral. Seguia seu caminho com a fronte inclinada e como se a maldição de Deus lhe pessase sobre a cabeça. Sem o perceber, atravessou grande parte da cidade de Beceta e, torneando as fraldas do monte Mória, achou-se nas portas das Águas. Parou fatigado no vale dos Cadáveres, que conduz ao sepulcro de Absalão.

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Ali limpou o suor que lhe inundava a fronte e, erguendo a cabeça, retrocedeu dois passos, aterrado.

Os profetas achavam-se sentados sobre os seus sepulcros com os descarnados braços na direção do Gólgota.Aqueles esqueletos envoltos nos brancos sudários, que se levantavam das sepulturas para chorarem a morte de Deus,aterravam Samuel, que os olhava com olhos espantados.

O trovão, rugia-lhe sobre a cabeça; a terra tremia-lhe debaixo dos pés. Então, ao resplendor dum relâmpago,pôde ver que os esqueletos se puseram em pé que dos seus olhos sem luz corriam lágrimas de sangue. Caiu de joelhos, eestendendo as mãos em direção aos mortos, murmurou com voz aterradora:- Perdão!... Perdão!... Os profetas responderam-lhe com a voz espantosa dos sepulcros: - Anda!Imediatamente, em toda extensão do vale de Josafá, se escutou um gemido, cujo eco repetiu de modo fúnebre: - Anda, anda, anda! Samuel pôs-se em pé possuido de um pânico horrível.Então viu umas letras de fogo esculpidas sobre as pedras do sepulcro, que diziam:Absa l ã o.- Piedade! exclamou Samuel juntando as mãos.O esqueleto de Absalão estendeu o braço em direção ao Gólgota e disse:- Anda! Os mortos do vale de Josafá tornaram a repetir por três vezes: - Anda, anda, anda! Samuel com o cabelo eriçado, olhos encovados, a testa coberta de suor, começou a caminhar como impelido por mão misteriosa.

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A terra parecia escapar-lhe debaixo dos pés e parou como para tomar um fôlego; mas apenas tinha detido opasso, a pedra dum sepulcro que se achava ao lado caiu em pedaços e o cadáver do profeta Zacarias saiu do túmulo,repetindo:- Anda! E outra vez, os mortos tornaram a repetir dos seus sepulcros: - Anda, anda, anda!Samuel continuou seu caminho, caindo fatigado depois de meia hora de caminhada junto duma árvore. Ali, só com sua dor, com a cabeça entre as mãos, permaneceu longo tempo. O remorso devorava-lhe o coração e quis novamente implorar a clemência divina: mas apenas os lábios abrasados pela febre pronunciavam a palavraper dã o ouviu uma voz que lhe repetia sobre a cabeça: - Anda, maldito como eu, anda, anda! Ergueu os olhos para vêr quem era o que o perseguia e ameaçava em tão desertos lugares, e viu à luz de um

relâmpago o corpo de um homem enforcado que se agitava sobre o precípicio.Aquele cadáver era o de Judas.Samuel abandonou aterrado o lugar, encaminhou-se para a cidade e entrou pela porta Estercolária; atravessou domesmo modo o arrabalde de Ofel, a esplanada do templo, passou sem se deter parte da cidade de Beceta e chegou por fim, à sua casa.

212 Então viu com horror que um esqueleto se achava sentado no poial da sua porta. Fitou os olhos espantados

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naquele espectro dos túmultos, soltou um grito, e disse com medroso acento:- Sara, Sara! Minha espôsa, tu também deixas o sepulcro para amaldiçoar-me?O espectro respondeu com doloroso acento:- Samuel, Deus permite-me que abandone por um instante o sepulcro e que venha despedir-me de ti e dizer-te: Anda, maldito de Deus, anda até a consumação dos séculos! A visão desapareceu. Samuel desfalecido, entrou em casa e foi refugiar-se junto ao berço do filho, que apenas contavadoze meses.

Ali ao menos julgava-se seguro dos mortos. Fitou os aterrados olhos no formoso menino que dormia no berço;mas, naquele momento, o menino levantou-se, e pondo-se em pé, estendeu a mãozinha em direção ao Gólgota, e dissecom voz doce e sonora, que devem ter os anjos:- Samuel Beli-Beth, anda, anda, anda! Samuel retrocedeu até tocar com a cama da sua velha mãe; que, muda, paralítica, havia muitos anos, pôs-se em pé, e disse com claro acento: - Anda, anda, anda, maldito de Deus! Samuel não pôde resistir a tanta comoção e caiu desamparado no chão. Naquele momento ouviu-se uma pancada na porta da rua, logo outra, depois outra. Estas três pancadas pausadas, sem que ele pudesse compreender a causa, reanimaram subitamente, o espírito aterrado do judeu. Pôs-se em pé e perguntou: - Quem é?Uma voz que não tinha nada da terra, respondeu:- O que Deus envia. Abre.

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- Entra, se queres, respondeu Samuel, que parecia ter recobrado a passada energia.

A porta abriu-se. Um jovem que quando muito teria dezesseis anos de idade, branco como o leit, louro como oouro, formoso como as rosas de Saron e vestido com um túnica resplandecente, entrou em casa de Samuel. Levava umbordão de viagem na mão, e do do corpo irradiava uma auréola de luz.- Quem és? perguntou Beli-Beth. - Sou Gabriel, o enviado do Senhor, o mensageiro do Paraíso, que venho entregar-te o bordão do viajante e dizer-te que a tua hora chegou:Anda !- Então era Deus? exclamou dum modo indescritível Samuel. Então era Deus? E recusei-lhe a água que me pedia! Ah, maldito, maldito, maldito, seja o meu nome! O arcanjo repetiu:- Samuel, a hora chegou.Anda !- Por caridade, permite que dê um beijo na fronte desse pobre menino que se acha no berço.- Anda! Repetiu Gabriel.- Deixa que dê a minha mãe o ósculo de despedida. - Anda, anda! tornou o enviado de Deus.- Estou cansado; deixa que respire um quarto de hora; corri muito desde que Jesus soltou o último suspiro. - Anda! Anda! Anda! repetiu o Arcanjo; mas de um modo tão enérgico, que Samuel baixou a fronte, pegou nobordão que lhe apresentava, atou as sandálias e exalando um doloroso suspiro, saiu de casa para nunca parar, para caminhar eternamente.

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Jacó Besnage, autor protestante, na sua História dos Judeus, conta três judeus errantes; o primeiro chamou-se Samer, e foi amaldiçoado por Deus por ter fundido o bezerro de ouro no tempo de Moisés, o segundo, com o nome deCataflio que foi porteiro de Pilatos; e o último chamado Assuero, sapateiro de ofício, que tinha a loja na rua que depoisde chamou via Dolorosa, recusando a Jesus um pouco de água quando caminhava para o Calvário.

Feijó, no tomo segundo das suas Cartas eruditas, falando extensamente sobre o judeu errante, diz que no de 1129apareceu o judeu errante na Inglaterra, em 1547 em Hamburgo, em 1575 em Madrid, em 1609 em Viena, em 1610, em1612 em Astran, em 1643 em Paris, em 1694 em Moscou, e finalmente indica-se nos fins do século XVII em Londrespela segunda vez, como assegura uma carta da duquesa Hortência de Mazzarino, irmão do célebre cardeal do mesmosobrenome.

Acrescenta Feijó, que um homem astuto e sagaz, instruído na história em oito ou nove línguas, que vida maisagradável podia escolher que a de se fingir judeu, o errante, chamando a atenção dos príncipes e pessoas poderosas, ouque estranho seria que depois o imitassem outros embusteiros?

Em todo o caso, se a tradição é uma fábula, como deve crer-se, é preciso convir que em nada pode representarcom tanta exatidão o disperso povo de Israel, que nunca pôde reunir-se, como esse homem, amaldiçoado por Deus emcujos ouvidos ressoa claramente o anda, anda, anda! da tradição.

Nós demos-lhe uma forma fantástica, porque em anda afeta o dogma, assim como nos servimos dum nome queninguém cita, em vista dos diferentes pareceres que desde o célebre historiador Matias de Paris (o primeiro que

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deu àluz a tradição do judeu errante no ano de 1299) até nós se tem adotado.CAPÍTULO VIII TRÊS DIAS DEPOIS

213 Quatro soldados da sinagoga, encostados as suas lanças guardavam o sepulcro de pedra que encerrava o divino corpo do Salvador. Aqueles mercenários de Roma, emprestados por Pilatos aos sacerdotes israelitas riam-se muito do receio dos fariseus. Formando um grupo a uns doze passos do sepulcro achavam-se mais oito homens. O dia não estava longe. O

avermelhado resplendor de duas teias alumia a enorme pedra do sepulcro.- Para isto viemos nós? dizia um dos soldados, dirigindo a palavra aos companheiros.- Só os judeus são capazes de pôr sentinelas ao redor dum cadáver. Fanáticos! respondeu outro.- Felizmente, disse o primeiro, o prazo desta guarda enfadonha terminará brevemente.- Sim, depressa se completarão os três dias que teme a sinagoga.Quando surgir o sol, que não está longe.- Sabes, disse um que até então não tinha despregado os lábios, que seria coisa surpreendente que se realizasse o

medo desses velhos rabinos?- Com certeza! Ver voar um homem pelos ares!Os soldados romperam numa gargalhada; mas ao mesmo tempo ouviu-se um doloroso gemido no centro da terra.- Ouviste? disse um deles.- Sim, a terra tremeu debaixo dos nossos pés.Então houve um breve silêncio; mas depressa os soldados, envergonhados do seu medo, tornaram a rir.

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- Bonito fôra que os filhos da guerra, os adalides de Tibério, se pusessem a chorar de medo como covardes mulheres! exclamou o decurião da fôrça.

A aurora começava naquele momento a estender suas róseas cores pelo espaço. Apesar das gargalhadas e dachacota da soldadesca, desde que tinham sentido o estranho estremecimento da terra não tornaram a despregar os lábios,notando-se em todos os semblantes certa expressão de desgosto.Subitamente, fez-se escuro.

Antes que os soldados pudessem compreender aquele acontecimento inesperado, tornou a gemer e estremecer ocentro da terra. Aquele eco subterrâneo, pavoroso, parecia aproximar-se da superfície com incrível rapidez e, como amaré, crescia, reforçando sua aterradora voz. De repente saltou a pedra que cobria o sepulcro em mil pedaços e umachama esplêndida brotou do seio do túmulo.

Alguns soldados caíram aterrados ao chão; outros apelaram para a fuga, encaminhando-se para Jerusalém. Aprofecia acabava de cumprir-se. Cristo ressuscitava dentre os mortos ao terceiro dia. Abandonava o túmulo para tornar aaparecer sobre a terra dos vivos. O túmulo que encerrava o seu divino corpo achou-se vazio. Um anjo apareceu sentadona borda do sepulcro. Os seus olhos brilhavam como os serenos raios do sol. Seus vestido, branco como as nuvens deArará, resplandecia como a fronte da lua numa noite serena. As quatro sentinelas que tinham caído meio mortas,levantaram-se retrocedendo com assombro na presença do anjo.Este estendeu o celeste braço em direção a Jerusalém e disse, com dulcíssima voz.- Ide a Jerusalém e contai o que vistes.Os soldados obedeceram. O anjo ficou só na gruta. Ao mesmo tempo umas mulheres saíam de Jerusalém.

- Corramos, dizia uma delas, e derramentos sobre o seu puríssimo corpo estes preciosos aromas. Hoje

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completa-se o terceiro dia, e os soldados da sinagoga poderão deixar-nos vê-lo, já que está morto. Corramos, seus discípulos e suaamorosa Mãe também não faltarão.A que assim falara era a enamorada donzela de Mágdalo.

Chegaram ao sepulcro. Madalena entrou só, primeiro. O dia ainda estava indeciso às portas do Oriente.Aproximou-se do sepulcro, e vendo a pedra levantada do seu lugar, não retrocedeu; mas introduzindo a formosa cabeçana gruta, soltou um grito:- Levaram o Senhor! Então correu a participar a triste notícia aos seus amigos, Pedro e João encaminhavam-se para aquele lugar.

Madalena saiu-lhes ao encontro, dizendo:Levaram Jesus; que faremos agora?Os apóstolos, cheios de assombro penetraram na gruta. O sepulcro estava vazio. Madalena tinha dito a verdade.Pedro examinou atentamente o sudário que se achava colocado num extremo do sepulcro, e disse, dirigindo-se a João: - Observa bem que o corpo do nosso Mestre não foi roubado com precipitação; porque nesse caso não se teriam entretido em desatar as tiras de pano. Cristo ressuscitou dos mortos, como disse. - Corramos a participar tão faustosa nova a nossos irmãos, disse João.

Madalena caiu de joelhos junto do sepulcro. Seu amor imenso precisava de verter um mar de lágrimas sobreaquela pedra abandonada: mas ao fitarem-se os formosos olhos no fundo do sepulcro, viram dois mancebos vestidos debranco, cujos corpos despediam um perfume inebriante.Um deles estava sentado no mesmo lugar em que três dias antes tinham pôsto a cabeça de Jesus. O outro achava-

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se no lugar onde estavam os feridos pés de Cristo.- Mulher, porque choras tão amargamente? lhe perguntou o mancebo, sentado à cabeceira.Madalena, contemplando com sobressalto aquele formoso mancebo, respondeu-lhe:- Choro porque tiraram o meu Senhor e não sei onde o puseram.

214 Apenas pronunciara estas palavras Madalena sentiu atrás de si um ruído que lhe fez voltar a cabeça, e viu um

homem que lhe pareceu o hortelão do jardim onde se achava.- Mulher, a quem procuras? lhe disse o homem.Madalena sem levantar os joelhos do chão, juntou as mãos com gesto suplicante e disse:- Se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei.

Madalena observou no olhar daquele homem alguma coisa de sobrenatural que lhe sobressaltava o espírito.Jesus, pois este era o que se achava junto da arrependida pecadora, compadecendo da sua dor, pronunciou com a vozque tão docemente ressoava nos ouvidos da desgraçada durante a pregação do evangelho:- Maria!Madalena conheceu Jesus. Soltou um grito, e lançando-se-lhe aos pés exclamou com apaixonado acento:- Mestre!Jesus recuou, dizendo:- Não me toques; ainda não subi a meu Pai; mas vai a meus irmãos e dize-lhes o que viste.

Tinha aparecido a Madalena primeiro que aos Apóstolos, mas depois que a sua Mãe, a quem dedicou a suaprimeira visita ao ressuscitar. Entrevista venturosa foi esta para aquela Mãe aflita; cena doce, felicidade imensa, com aqual recompensou o Redentor do mundo a incrível amargura que sofrera a Flor de Nazaré, a Estrela do mar. Madalenavoltou pressurosa a Jerusalém. Encontrou os dois apóstolos que poucos momentos antes tinham observado

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detidamenteo vazio sepulcro e, com gozo indefinível que lhe transbordava na alma, lhes diz:- Cristo ressuscitou, eu o vi, como vos vejo a vós. Ouvi a doce voz que me comoveu o coração, enchendo-o de alegria e de gôzo. Pedro e João creram o que Madalena lhes disse; mas ao participarem-no a seus irmãos, a dúvida achou cabida em alguns deles.

Naquela mesma tarde, dois discípulos de Cristo caminhavam tristes e meditabundos de Jerusalém para a aldeiade Emaus, que dista duas léguas da cidade santa. Falavam com doloroso acento dos tristes acontecimentos daquelesdias.A morte de Jesus, seu jovem Mestre, era o motivo da conversação. - Sim, Lucas, dizia um deles, Jesus Nazareno era um Homem sem igual, um grande Profeta. - Amigo Cléofas, respondeu Lucas, Cristo foi poderoso conosco, e amado de todo o povo. Os fariseus

cometeram um crime horrível.Neste momento, apareceu-lhes um desconhecido, que disse:- A paz seja convosco: de que falais, irmãos?Contaram-lhe os acontecimentos que o povo jerossolimitano presenciara tres dias antes, e que umas mulheres tinham trazido a surpreendente notícia a Jerusalém de que Jesus ressuscitara dentre os mortos. O viajante misterioso notou a dúvida na palavra dos apóstolos e, como já se achassem perto da aldeia, disse-lhes: - Vejo que a dúvida se alberga no vosso coração: fazeis mal. Crêde tudo o que vos disserem do Messias que

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pregou convosco o Evangelho.Pouco depois chegaram a Emaus e os apóstolos convidaram o viajante para comer com eles.O viajente aceitou. Mas tão depressa se sentou à mesa, pegando num pão sem fermento, partiu dele dois pedaços,e dando um a Lucas e outro a Cléofas, disse-lhes: - Tomai o meu corpo. Os apóstolos estremeceram e creram reconhecer o Mestre; mas o estranho desapareceu. Era efetivamente Cristo, o Mártir do Gólgota. CAPÍTULO IX A ASCENÇÃO

Cristo, depois da sua resssureição apareceu primeiro a sua mãe; logo, a Madalena, depois às piedosas mulheresMaria, mulher de Cléofas, Joana, mulher de Chusa, intendente que foi de Herodes; Salomé, mãe de João e Tiago, e aoutras que o seguiam no tempo da pregação.No mesmo dia da triunfante ressurreição, os apóstolos, excetuando Tomé, achavam-se reunidos no cenáculo e Pedro referia com ardente fé o assombroso acontecimento da ressurreição de Cristo.

O sol acabava de esconder os últimos raios do Ocidente, e duas lâmpadas de bronze alumiavam a habitação.Tôdas as portas estavam fechadas, pois o receio de serem surpreendidos pelos soldados da sinagoga não era estranhonos apóstolos.

A dúvida tinha cabimento na alma de alguns daqueles futuros mártires; já começavam as réplicas entre eles,quando Cristo apareceu no meio do cenáculo sem que nenhuma porta se abrisse para lhe dar passagem. O assombro dosapóstolos foi grande.- A paz seja convosco, disse com aquela voz que penetrava até o mais fundo dos corações; sou Eu, não temais.

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Os assombrados discípulos mal podiam dar crédito ao que viam. Pedro, reposto do seu assombro, e crendo-se o mais pecador por o ter negado três vezes, caiu aos pés do Cristo, e juntando as mãos com gesto suplicante, exclamou:

215 - És Tu, Mestre! És Tu o Cristo! És Tu o Messias! Ah, Senhor! - Sou Eu, lhes disse Deus; e depois estendeu a mão sobre os apóstolos, encheu-os da sua divina essência e disse- lhes: - Recebei o Espírito Santo: aqueles a quem perdoardes os pecados, perdoados lhe são: e aqueles a quem o retiverdes, retidos lhes são. Depois disto desapareceu do mesmo modo que aparecera, sem se saber por onde.

Oito dias depois achavam-se os apóstolos reunidos no mesmo lugar e com a porta fechada. Os escribas e ossacerdotes tinham comprado à força de ouro o silêncio dos soldados guardadores do sepulcro, para que o assombrosoacontecimento da ressurreição não se divulgasse.Os apóstolos eram acusados como ladrões do corpo de cristo. No sinédrio meditava-se a maneira de os prender, e

aquele punhado de ovelhas agrupava-se durante a noite para tratar da pregação do evangelho.- Para que Tomé creia, meus irmãos, é preciso que o veja e que o toque.Então apareceu Cristo, entre eles e, como da primeira vez, disse-lhes com doçura:- A paz seja convosco.

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Jesus, com passo tranquilo e olhar sereno, foi-se aproximando de Tomé, que o olhava com olhos espantados. Quanco chegou mui perto dele, disse-lhe: - Aproxima-te do teu Mestre, mete aqui o dedo, examina esta chaga, sonda depois a do lado, e não sejais por mais tempo incrédulo, mas fiel. Tomé, que tinha escutado as palavras de Jesus e visto as feridas que o Mestre lhe mostrava, caiu confundido a seus pés, exclamando com doloroso acento: - Perdão, pela minha dúvida, Senhor e Deus meu: o martírio não poderá com seu doloroso tormento apagar a luz vivíssima da minha fé. - Porque me viste, Tomé, creste, lhe disse Jesus; bem-aventurados os que não viram e creram. Jesus, tornou a desaparecer do cenário. Por espaço de quarenta dias percorreu a Galiléia, mostrando-se a muita gente. O lago de Tiberíades presenciou depois da ressurreição os novos milagres de Cristo.

Os apóstolos que, receiosos do furor dos sacerdotes, se tinham retirado a Cafarnaum, julgando-se ali maisseguros, tornaram a ver o Mestre divino um dia em que pescavam nas suas barcas, mandando-lhes Ele queregressassem a Jerusalém sem receio dos fariseus, pois não havia de faltar-lhes o socorro do Alto.

Os apóstolos, fieis ao que lhes tinha mandado o Mestre, chegaram a Jerusalém, e prepararam uma comida emcasa de José de Arimatéia, no santo cenáculo. Onze se achavam sentados à mesa quando Jesus tornou pela quarta vez aaparecer. Durante a ceia instruiu-os no que deviam fazer.

- Ide por todo o mundo, e pregai o Evangelho a toda a criatura! Ensinai a toda gente, batisando-os em nome doPai,

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do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-lhes que guardem todas as coisas que eu vos mandei guardar, praticar ecumprir, para serdes eternamente felizes; e estai certos que Eu permanecerei em vossa companhia até à consumação dosséculos.Terminada a comida, Jesus levantou-se e disse aos discípulos: - Segui-me! Chegou a hora de abandonar a terra o que desceu do céu.

Cristou saiu do cenáculo. Sua Mãe, as piedosas mulheres que nunca a abandonavam e mais de cento e vintediscípulos, reuniram-se aos apóstolos. Todos seguiam Jesus, que se encaminhou com tranquilo passo para o povoado deBetânia. Ao chegar ao cume do monte das Oliveiras, o Nazareno parou.

Todos os que o seguiam fizeram o mesmo. Jesus dirigiu um olhar amoroso, primeiro a sua Mãe, que se achavaquase ao seu lado; depois aqueles fiéis que deviam pregoar em breve a milagrosa ascenção; e, por último, ao grandiosopanorama que o rodeava, pois do cume do monte distinguia o sombrio mar Morto, o clarão do Jordão, e as gigantescaspalmeiras do vale do Jericó. Depois, inclinando a divina fonte sobre o peito, ficou pensativo.

Todos os rodeavam sem se atreverem a interrompe-lo. De súbito, o corpo de Jesus encheu-se dum resplendorvivíssimo. Da sua divina fronte brotaram raios da luz. Uma harmonia dulcíssima se ouviu no espaço, e uma nuvemnacarada foi descendo do céu até tocar com sua transparente fimbria os cabelos de Jesus.A voz dos anjos cantavam o hino da glória; o hosana dos céus ressoou aos ouvidos dos apóstolos, que caíram ajoelhados aos pés do seu Mestre.

Então Jesus estendeu os braços sobre aquelas cabeças inflamadas pela semente fecundante do Evangelho eabençoou os futuros mártires do Cristianismo. Depois foi-

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se elevando suavemente em presença dos discípulos, que oolhavam com infinito gozo.

Por muito tempo viram Jesus, rodeado de anjos, elevar-se ao céu. Quando o corpo do divino Mestre, do Deus-Verdade, desapareceu, quando Jesus, abandonando a terra penetrou pelas portas do Paraíso para sentar-se á direita deDeus Pai, os apóstolos ficaram estáticos, absortos, imóveis, com os olhos fitos no céu, como se o assombrosoacontecimento que acabavam de presenciar lhes houvesse roubado a faculdade vital de toda criatura. Dir-se-ia que o seuestático arroubamento os convertera em estátuas.Dois formosos mancebos, completamente vestidos de branco e que tinham uma palma na mão direita e uma pequena cruz na esquerda, apareceram no meio dos apóstolos. Um deles disse-lhe com a voz dos anjos:

- Varões de Galiléia, que fazeis neste lugar olhando para o céu? Os desgraçados vos esperam. Ide, pois, percorreio mundo, contai o que vistes, porque o vosso Salvador, meu Deus, que acaba de subir ao céu na vossa presença, voltaráalgum dia a cumprir o que vos prometeu.Os anjos desapareceram.

216 Então os apóstolos, como fortalecidos com as misteriosas palavrasm, agruparam-se como para transmitirem a fé dos seus corações.

Aquelas flores do evangelho preparavam-se para perfumar o mundo com o aroma das palavras do Mártir.Aqueles soldados de Jesus Cristo, anelando semear a frutífera e benéfica semente do Cristianismo, estenderam as mãossobre o lugar onde pouco antes se tinham firmado os pés do Mestre, e juraram percorrer o universo pregando oEvangelho, e morrer pela fé do Cristo.E cumpriram o juramento.

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CAPÍTULO X O SEPULCRO DAS ROSAS Alguns anos depois uma pequena e veloz barca fendia com a deigada proa as águas transparentes e azuladas do mar Icário.

Duas mulheres, formosas como aquele mar que se estendia ante os seus olhos, e um homem, cuja docefisionomia expressava a bondade do coração, achavam-se sentados no banquinho de popa do barco, contemplando ascostas pitorescas da Asia Menor, semeadas de plátanos e açucenas.Os três viajantes vestiam o traje judaico, pobres desterrados que buscavam em solo estranho a paz de existência. A barca chegou à praia, e os viajantes saltaram sobre a finíssima alfombra de areia que separa a cidade de Efeso do mar. - Quão belo é este solo! Quão brilhante o firmamento! Quão claro o mar que o acaricia! exclamou o homem, embevecido na contemplação da paisagem. - João, meu filho, disse uma das mulheres; lembra-me o formoso solo da Galiléia, o transparente lago de

Tiberíades, o pitoresco jardim de Zabulon.- É verdade, murmurou em voz baixa o homem.- Pobres desterrados! tornou a mulher.A SS. Virgem, Maria Madalena e João, o discípulo favorito de Jesus, pois estes eram os viajantes, entraram na

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cidade de Efeso. O ódio insaciável dos fariseus a Jesus tinha-os feito emigrar, dispersando os apóstolos da fé pelo mundo.

A misteriosa Flôr do Evangelho, a Mãe do Mártir do Gólgota, sem mais parentes sobre a terra que João – seufilho adotivo, e Madalena, sua inseparável amiga, viu passar um, outro e outro sono, em país estrangeiro, sentada àsombra duma daquelas frondosas árvores que aformoseiam as vizinhanças de Efeso, e com os dolorosos olhos no marIcário, como procurando no seu longínquo horizonte as palmeiras da Galiléia, céu da sua pátria.

Durante aqueles momentos de doce contemplação, enquanto Maria e Madalena vagueavam por esse mundoencantador dos sentidos que tanto embevece a amargura do desterrado, João, o modesto pescador de Betsaida, oamoroso discípulo de Cristo, ocupava-se em escrever um livro cuja maravilhosa ciência, cuja poesia inesgotável deviaser imortal.

Uma nova desgraça fez rebentar de novo as lágrimas dos olhos da Virgem. Madalena, a doce amiga, aenamorada de Jesus, deixou de existir. A Virgem e João companharam aqueles restos queridos à última morada e, desdeentão, a soledade do seu destêrro foi mais dolorosa, mais sombria. A virginal Açucena de Nazaré começou a pensarnovamente na Pátria.Pressentia o fundo do coração que seu Filho ia enfim chamá-la à mansão eterna. Uma noite que João escrevia ao lado do seu leito, disse-lhe com voz carinhosa: - João, meu filho, pressinto que a minha vida se acha próxima a extinguir-se, e antes quero visitar o templo de Jerusalém.

João, que não tinha outra vontade senão a de sua Mãe adotiva, preparou tudo para a viagem, e poucos dias depoisembarcaram no porto de Mileto, numa galera que ia

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dirigir a proa para a Europa, fazendo escala em Sidon. A SantaVirgem, durante a viagem de regresso à pátria, contemplava com indefinível gôzo as costas pitorescas que passavamante seus olhos aproximando-se da cidade querida. Por fim a galera chegou a Sidon. Os remeiros levantavam cansadosas pás das águas, e a Santa Mãe pisa enfim a terra desejada.Quando os viajantes chegaram a Jerusalém, hospedaram-se na cidade de Sion numa modesta casa levantada perto do arruinado palácio de Davi.

Em breve souberam que Tiago era Bispo de Jerusalém, e que quase todos os apóstolos tinham regressado àcidade santa, depois de terem semeado em outros países com proveitoso fruto as sublimes palavras do Evangelho. Joãocorreu a participar a chegada da Mãe de Jesus aos apóstolos e em breve a modesta Flôr de Galiléia se viu rodeadadaqueles santos varões, cujo amor a Ele e a seu Filho era inesgotável. Maria, cansada da viagem recebeu os fieisrecostada num leito de pobre aparência.Seus bondosos olhos encheram-se de lágrimas na presença dos santos varões, que com tão carinhosa solicitude a rodeavam. Pedro, o apóstolo ancião, o homem da fé, disse-lhe, pegando-lhe na mão: - Maria, nossa Mãe, não te separarás nunca mais do nosso lado!

217 - Pedro! murmurou a Virgem com desfalecido acento. A minha hora aproxima-se, e meu Filho espera-me: logo cerrarei os olhos à vida terrestre. Algumas horas depois, quando a noite estendia pelo firmamento as sombras, quando os débeis clarões de uma

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lâmpada banhavam com sua vacilante luz a habitação que ocupavam os apóstolos, Maria deu um suspiro e,

Depois, exalando um gemido, elevou a sua alma à região do Paraíso. A Virgem deixara de existir; mas a formosura do seu rosto era tamanha, as rosas de suas faces tão puras, que os apóstolos ficaram estáticos contemplando-ª

No dia seguinte, o corpo embalsamado da Virgem foi colocado sobre um leito de flores, e coberto com um véu fúnebre tecido pelas donzelas de Sion. Os apóstolos conduziram-no aos ombros ao horto de Getsemani, onde lhe estava destinada a sua derradeira mansão sobre a terra.

- Quem morreu? Que fazeis vós aqui? perguntou o viandante. Aquela voz fez palpitar todos os corações, e os discípulos pronunciaram ao mesmo tempo um nome: Tomé! - Sim, sou eu, meus irmãos, lhes disse, que venho novamente reunir-me convosco. Tão desfigurado me achais que não me conhecestes senão quando vos falei. Mas respondei-me: a quem guardais nesse sepulcro? - A Maria de Nazaré, a Flôr mística do Evangelho, a Mãe do Redendor do Mundo, disse Pedro com voz pausada

E P Í L O G O 218 NEM PEDRA SOBRE PEDRA Quarenta anos depois que o Homem-Deus exalou no cume do Calvário o seu derradeiro alento, Jerusalém era um

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montão de ruínas. A profecia do Lírio de Nazaré havia-se cumprido. Os descendentes de Abraão e de Jacó, quais débeis arestas que esparge com o seu sôpro o poderoso furação, haviam-se espalhado pelo universo, chorando a sua vergonha e a sua dor. Era uma manhã do mês de Nisan, desse mês venturoso em que os filhos de Israel abandonavam as tribos para celebrarem a festa do cordeiro pascal na mui amada cidade de Salomão, na mui querida Jerusalém. As harpas de Sion, já não ressoavam no Santo dos Santos, nem as alegres donzelas de Galiléia levantavam as tendas ao redor das muralhas de Nain. O vale dos Cedros era um solitário páramo semeado de cadáveres e ruínas, e os corvos e as águias do Líbano, abandonando as quebradas rochas, pairavam sobre a cidade maldita, depois de devorarem as entranhas dos deicidas.

Ali, naquele mesmo lugar, a venturosa mão de Simão Cireneu ajudara a Cristo a levar o pesado madeiro.

Depois da muda oração, aquelas duas cabeças veneráveis ergueram as maceradas frontes para o céu. Nos olhos

- Nasci em Jerusalém. 219 tempo, dividido dentro da cidade em três bandos, quando o inimigo suspendia os ataques, pelejavam eles entre si,

O ancião da citara guardou silêncio e duas lágrimas se lhe desprenderam das pálpebras.

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- Viste morrer os confessores? perguntou o ancião da citara.

O ancião parou, para tomar folego, e então o peregrino falou por sua vez:

220 em voz baixa. Pouco a pouco seu melancolico semblante foi-se reanimando e por fim exalando um suspiro disse, frisando os olhos do peregrino.

O peregrino preocupado com a palavra do ancião, disse com voz insegura:

- Não aparte Deus de ti a sua santa misericórdia, disse o ancião d dispondo-se a abandonar o Gólgota. - Espera , tornou o peregrino, antes de nos separar-nos dize-me por tua vez, porque nunca se detêm as tuas plantas intranquilas.

O peregrino ficou aterrado poruqe aquelas palavras foram pronunciadas com um voz espantosa. O ancião empreendeu a interminável jornada, e descendo do cume do Calvário sem entrar na cidade passou ao longe da muralha, deixando à esquerda o Monte Acra, o sepulcro de Jesus, a torre Ípica e o palácio de Davi.

Quando se achou no caminho de Belém dirigiu os passos para os desertos areais da Iduméia.

O peregrino, resposto um tanto do assombro que aquele homem maldito lhe causara, despreendeu a citara doombro, e levantando os olhos ao céu, como se dela esperasse a inspiração, entoou um hino de louvor ao Mártir doCalvário.