o manual diagnóstico e estatística de transtornos mentais (dsm) como dispositivo biopolítico

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    O MANUAL DIAGNSTICO E ESTATSTICA DE TRANSTORNOS MENTAIS(DSM) COMO DISPOSITIVO BIOPOLTICO1

    Autoras: Andreza Estevam NoronhaBetina Hillesheim

    Professora de Educao Fsica, Mestranda do PPG em Educao da Universidade de SantaCruz do Sul (UNISC) - [email protected]; (51) 9519-1484

    Doutora em Psicologia Social pela PUC-RS, professora do PPG em Educao da UNISC naLinha Identidade e Diferena na Educao [email protected]

    Resumo: O Manual Diagnstico e Estatstica de Transtornos Mentais (DSM) um dos

    principais instrumentos para realizar diagnsticos atravs dos sinais-sintomas ali descritos. O

    presente trabalho tem por objetivo fazer uma descrio analtica dos DSM, desde seu

    primeiro lanamento em 1956 at o sua ltima edio em 2013. A partir das teorizaes de

    Michel Foucault referentes s modificaes nos mecanismos de poder, no qual se inverte a

    mxima fazer morrer ou deixar viver para fazer viver ou deixar morrer, compreende-se o

    DSM como um dispositivo de normalizao e de investimento na vida. Desse modo,

    analisam-se as modificaes no nmero de diagnsticos e pginas nas diferentes verses do

    manual, problematizando-se questes relativas a uma psiquiatrizao/psicologizao da vida

    como estratgia biopoltica.

    Abstract: The Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder (DSM) is one of major

    instrument to perform diagnostics through the described signs-symptoms. This paper aims to

    make an analytical description of the DSM since its first launch in 1956 through its last

    edition in 2013. From Michel Foucault's theories concerning the changes in the mechanisms

    of power, which reverses the maxim "make die or let live "to" make live or let die ", it isunderstood the DSM as an appliance standardization and investment in life. Thus, we analyze

    the changes in the number of diagnoses and pages in the different versions of the manual,

    questioning matters relating to a psychiatrization / psychologizing of life as biopolitics

    strategy.

    1 Trabalho apresentado no V Colquio Latino-Americano de Biopoltica / III Colquio Internacional deBiopoltica e Educao / XVII Simpsio Internacional IHU

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    O Manual Diagnstico e Estatstica de Transtornos Mentais (DSM), produzido pela

    Associao Americana de Psiquiatria (APA), se constituiu como um dos principaisinstrumentos de trabalho que ajuda na realizao de diagnsticos e de tratamentos para a rea

    da psiquiatriamas no somente nela na atualidade. Ao longo de suas edies e revises

    houve mudanas significativas tanto no nmero de diagnsticos quanto nos critrios para os

    mesmos. De acordo com Figueira e Caliman (2014), historicamente a psiquiatria tem um

    cunho higienista, explicando comportamentos socialmente indesejados a partir de

    parmetros biolgicos e hereditrios (p. 21), sendo que, como destaca Foucault (2006), a

    psiquiatria (e outras reas que lidam com subjetividades), veio pautar, organizar e ao mesmo

    tempo distribuir esse campo do poder disciplinar (p. 348). Tendo isto em vista e, a partir do

    entendimento que as mudanas no DSM produzem efeitos sobre os modos pelos quais as

    pessoas compreendem a si e aos outros, no que se refere aos aspectos relativos sade (e

    doena) mental, este trabalho tem por objetivo fazer uma descrio analtica do processo de

    transformao do DSM ao longo de suas cinco edies e duas revises.

    No que tange s questes relativas ao discurso e discursividade, pontua-se que estas

    se modificam e se (re)produzem tanto por meio de alteraes relacionadas s suas

    materialidades (), quanto pelos significados que passamos a atribuir (DARSI, 2014, p.

    21). De acordo com o autor, tais significados so associados s prticas culturais dos

    sujeitos que constituem as diferentes populaes que nelas vivem e lhes do forma (p. 21).

    A partir disso, possvel pensar, por exemplo, que aquilo que se entende por

    transtorno mental vai se modificando a cada edio e reviso do DSM, sendo que esse

    processo no se d no sentido de uma evoluo, mas resultado de determinados jogos de

    foras, os quais no so absolutos ou estanques. Dessa maneira, a atual conceituao de

    transtorno mental que apresentada na ltima verso do DSM (DSM V), lanado em 2013,

    resultado dos discursos sobre sade/doena do nosso tempo, no remetendo a uma realidade

    pr-existente linguagem. Afinal, como coloca Foucault (2004),

    A doena mental foi constituda pelo conjunto do que foi dito nogrupo de todos os enunciados que a nomeavam, recortavam,descreviam, explicavam, contavam seus desenvolvimentos,indicavam suas diversas correlaes. Julgavam-na e, eventualmente,emprestavam-lhe a palavra, articulando, em seu nome, discursos quedeviam passar por seus. (p. 36)

    No presente texto, apresenta-se uma anlise do nmero de diagnsticos e nmero de

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    pginas dos DSMs, problematizando questes relativas a uma psiquiatrizao/psicologizao

    da vida como estratgia biopoltica. Para tal anlise, utiliza-se algumas ferramentasfoucaultianas, sobretudo discurso e poder, partindo-se do pressuposto que a necessidade de

    diagnstico dos transtornos mentais vem responder a uma demanda de investimento na vida

    das populaes, constituindo o que Foucault (1985) denominou como uma biopoltica da

    populao.

    Sobre o DSM como dispositivo biopoltico

    Conforme Kyrillos Neto e Oliveira (2011), com a necessidade de se obter

    informaes epidemiolgicas e/ou estatsticas na rea da psiquiatria, foi desenvolvida uma

    classificao de transtornos mentais nos Estados Unidos, tomando-se como base o censo

    norteamericano. Essa primeira tentativa se deu ainda no sculo XIX, por volta de 1840,

    quando as designaes usadas foram idiotice e insanidade para demarcar algum trao de

    transtorno mental. J por volta de 1880 foram includas nos censos as (...) categorias de

    transtornos mentais: mania, melancolia, monomania, paralisia, demncia, alcoolismo (...) (p.

    156) para designar os transtornos mentais. Ainda antes da primeira edio do DSM, a APA,

    conjuntamente com a Comisso Nacional de Higiene Mental, criou um Manual Estatstico

    para o Uso de Instituies de Insanos, que continha aproximadamente 20 diagnsticos.

    O DSM teve sua primeira edio no ano de 1952. Segundo consta em sua

    apresentao (APA, 1952), o DSM-I veio para uniformizar a linguagem em relao aos

    transtornos mentais nos Estados Unidos. Dentro de todo o processo de edio desse Manual,

    houve forte participao das Foras Armadas e Administrao de Veteranos para a nomeao

    e diagnstico junto APA. Essa participao deve-se ao fato do seu contexto histrico :era o

    perodo posterior II Guerra Mundial, sendo que mesmo antes da II Guerra Mundial, j

    havia Manuais de Higiene Mental voltado para hospitais (APA 1952), nos quais a Associao

    dos Veteranos de Guerra participavam ativamente na deciso da nomenclatura e critrios

    diagnsticos de transtornos mentais. Salienta-se ainda que essa Associao se mantm

    participante at os dias de hoje, porm com menos poder de deciso do que em 1952. O

    DSM-I contava com apenas dois grandes grupos de transtornos mentais, 11 subgrupos e em

    torno de 125 diagnsticos. O nmero de pginas tambm relevante, pois eram apenas1452.

    2 Coloca-se o nmero de pginas como relevante, pois tambm parte da anlise, havendo um aumentosignificativo da primeira edio, em 1952, at a ltima, em 2013.

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    J no perodo de Guerra Fria, foi lanada a segunda edio do DSM, ainda com forte

    vinculao Associao dos Veteranos de Guerra, em sua maioria, atuantes na perspectivapsicanaltica. O DSM-II (APA 1968), contava com aproximadamente 220 possibilidades de

    diagnstico, subdividido em onze grandes grupos. O nmero de pginas diminuiu para 135,

    apesar do aumento nas possibilidades diagnsticas. Conforme trazem Kyrillos Neto e

    Oliveira (2011), os sintomas no eram especficos, tal como no DSM-I; a maioria da

    sintomatologia era descrita como resultantes de conflitos subjacentes ou reaes inadequadas

    aos problemas da vida (ansiedade), neurose (depresso com contato com a realidade) e

    psicose (depresso com no-contato com a realidade). Nessa segunda edio, o DSM comea

    a ter maior proximidade com o Cdigo de Classificao Estatstica Internacional de Doenas

    e Problemas Relacionados com a Sade ou simplesmente Cdigo Internacional de Doenas

    (CID)3j que a APA teve grande voz ativa pra seo de transtornos mentais desse Cdigo. No

    prefcio do DSM-II, a APA (1968) coloca que uma edio que reflete o crescimento do

    conceito de que todas as pessoas vivem em um nico mundo4(p. vii) e reconhece o esforo

    da Organizao Mundial da Sade (OMS) nessa tentativa de uniformizar as nomenclaturas de

    doenas/transtornos/agravos.

    vlido lembrar que, conforme Moreira (2010), o DSM I e o DSM-II tiveram forte

    influncia psicanaltica no seu modo de descrever e apontar os transtornos mentais. Termos

    como neuroses e psicoses eram descritos muito prximos do que Freud j trazia, fazendo

    com que se questionasse a fidedignidade dos diagnsticos em psiquiatria. Com isso a APA

    secularizou o DSM, fazendo com que a psiquiatria e seus diagnsticos se aproximassem

    muito de diagnsticos clnicos, trazendo um novo respaldo a essa rea5.

    Essa secularizao deve ser entendida como uma tentativa de no seguir uma nica

    corrente terica das reas da psiquiatria e psicologia, como ocorrera com os DSM I e II.

    Nestas duas verses era predominante o aparecimento de termos considerados psicanalticos,

    tanto nas descries como nas nomenclaturas das doenas. Nas verses posteriores, a

    tentativa, alm de abordar outras correntes tericas, era no sentido de tornar o DSM,

    3 O CID trata de um nmero muito maior de doenas, sejam elas clnicas, psicolgicas, transmissveis, etc. Asua classificao das doenas correspondem a letras e nmeros que informam o diagnstico, atravs degrandes agrupamentos. Os transtornos mentais se encontram na letra F, por exemplo. O restante dacodificao por nmeros e se assemelham (principalmente nas suas ltimas 3 verses) ao DSM.

    4 Livre traduo (DSM II est disponvel apenas em ingls e em arquivo pdf).5 Para saber com mais detalhes sobre esse processo de mudana entre o DSM II e o DSM III, a dissertao ODSM, o sujeito e a clnica de Max Silva Moreira encontra-se disponvel online em:http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/VCSA-8QWG6D

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    inclusive, aterico, se possvel. Moreira (2010) explica que essa secularizao (no sentido de

    ateorizaro DSM), faz ...parte da herana da metodologia emprica, historicamente aplicadas classificaes, que pressupunha a cincia como conhecimento diretamente extrado do

    real, sem intermediaes previamente estabelecidas pelo pesquisador. (p. 20-21).

    Alm disso, na terceira edio (DSM-III) do Manual, lanado em 1980, se define ,

    pela primeira vez, grandes eixos axiais que subdividem os diagnsticos (APA 1980) e, at

    2013, data da ltima edio do DSM (DSM V) segue-se tal proposta, com algumas poucas

    alteraes. possvel, atravs desses eixos multiaxiais6, que se tenham vrios diagnsticos

    em um s. Ao todo, propunha-se em torno de 250 diagnsticos, os quais poderiam ser

    mltiplos entre seus eixos. J no prefcio dessa edio explicam-se os motivos pelos quais

    ele foi to noticiado:

    Durante a ltima dcada no foi sido crescente reconhecimento da importncia dodiagnstico tanto para a prtica clnica e da investigao. (); Desde o seu incio,rascunhos de DSM-III foram amplamente divulgadas para a reviso crtica e uso

    por mdicos e investigadores. (); Interesse no desenvolvimento deste manual devido conscincia de que o DSM-III reflete um maior compromisso em nossocampo de dependncia de dados como base para a compreenso de distrbiosmentais.7(APA, 1980, p. 1)

    Com essa mudana dos eixos e um dilogo mais prximo com o CID (que tambm se

    modifica ao longo dos anos), o DSM III precisou e passou a especificar como diagnosticar,

    bem como descrever mais detalhadamente cada doena, entre outros aspectos. Com isso, foi

    dado um grande salto em termos de tamanho do Manual, que passou a ter aproximadamente

    500 pginas. Conforme Kyrillos Neto e Oliveira (2011), no DSM III:

    Um dos objetivos foi o de melhorar a uniformidade e a validade do diagnsticopsiquitrico [com uma nomenclatura coerente ao do CID]8. Havia tambm anecessidade de padronizar as prticas de diagnstico nos Estados Unidos e em

    outros pases (). O estabelecimento desses critrios tambm foi uma tentativa defacilitar o processo de regulamentao farmacutica. () A fora tarefa [algo comogrupo que coordenava a APA e a conduo do DSM], decidiu que cada uma dasdesordens mentais passaria a ser concebida como uma sndrome clinicamentesignificativa, comportamental ou psicolgica (p. 157-158)

    Moreira (2010) contextualiza essa mudana aqui no Brasil, abordando o modo como a

    6 Cada Eixo Axial correspondia e corresponde ainda hoje uma espcie de grande categorizao de doenas domesmo grupo/tipo. No DSM III os cinco eixos axiais eram: Eixo I Sndromes clnicas: Condies no-atribudas a transtornos mentais que so o foco de ateno notratamento; Eixo IITranstornos de Personalidade; Eixo IIITranstornos ou condies fsicas: (recorria-se

    ao CID, tanto que no Manual no h indicaes de como se fazer diagnsticos nesse eixo via DSM); EixoIVGravidade dos Estressores Psicossociais; Eixo VMaior Nvel Adaptativo no ltimo Ano;7 Livre traduo (DSM III est disponvel apenas em ingls e em arquivo pdf).8 Nota da autora.

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    mdia veiculava tais mudanas:

    As mudanas operadas no DSM-III foram lanadas no Brasil como um anncio denovidade cientfica: O Fim da neurose. O Fim da Psicose; e atingiram nosomente as categorias da neurose e da psicose, mas tambm a psicopatia. Naquelecontexto, o anncio demarcava, com autoridade cientfica, os transtornos mentaiscomo territrio da gesto psiquitrica. Disciplinas como a psicologia e a prpria

    psicanlise foram excludas da propedutica e do tratamento dos problemaspsquicos, que definitivamente foram transformados em doenas sob adenominao de transtornos subordinados a condies mdicas gerais. Tratava-sede um anncio que deixava a impresso de que, finalmente, a psiquiatria recobrira averdade sobre as doenas mentais, no havendo mais nada que outra disciplina

    pudesse acrescentar sobre o assunto. (p. 13-14)

    O DSM III (APA 1980), tambm inova como sendo o primeiro a passar por umareviso, durante sua vigncia, com reclassificaes e mudanas nas nomenclaturas, inclusive

    dos Eixos9. No DSM-III-R (APA 1989), houve mais acrscimos do que sada de doenas,

    passando a ter em torno de 275 diagnsticos e 602 pginas. Mesmo tratando-se de uma

    reviso, vlido notar que o mesmo teve uma vigncia curta, cerca de 6 anos. Durante a

    vigncia dessa reviso, j estava se discutindo a prxima verso do Manual, j que o CID

    tambm estava passando por reformulaes.

    O DSM IV (APA 1995) lanado juntamente com a nova verso do CID (em sua 9

    edio na poca), teve vrias modificaes; a que vai chamar mais a ateno refere-se a uma

    reorganizao de alguns diagnsticos dentro dos Eixos Axiais e a nomenclatura desses

    ltimos.10 Esse DSM conta com mais de 380 possibilidade de diagnsticos e

    aproximadamente 830 pginas. Tal como o DSM III, o DSM IV tambm passou por uma

    reviso, o DSM IV-R (APA 2000). Neste no houve modificaes nas nomenclaturas dos

    Eixos, apenas acrscimos e sadas de alguns de diagnsticos, assim como a mudana de eixo

    ou subgrupo. Continuou-se com cerca de 380 diagnsticos, porm os testes, os sinais-

    sintomas mereceram ateno especial, fazendo com que esta reviso ficasse com cerca de

    950 pginas.

    Por ltimo, o DSM-V (APA 2013), chegou com uma srie de mudanas como a sada

    dos Eixos. Em sua introduo, foi explicitado a ideia de que no se faa mais diagnsticos

    9 No DSM III-R os cinco eixos axiais eram: Eixo I Sndromes clnicas; Eixo II Distrbios dePersonalidade; Distrbios de Desenvolvimento; Eixo III Distrbios e condies fsicas: (recorria-se aoCID, tanto que no Manual no h indicaes de como se fazer diagnsticos nesse eixo via DSM at 2013);Eixo IVGravidade dos Estressores Psicossociais; Eixo VAvaliao Global de Desenvolvimento (AGF);

    10 No DSM IV os cinco eixos axiais eram: Eixo I Transtornos clnicos; Outras condies que podem ser umfoco de ateno clnica; Eixo II Transtornos de Personalidade; Retardo Mental; Eixo III CondiesMdicas Gerais; Eixo IV Problemas Psicossociais e Ambientais; Eixo V Avaliao Global doFuncionamento

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    por eixo axial, o que fez com que sua organizao se assemelhasse bastante com a do DSM

    II, com vrios pequenos grupos de transtornos, os quais se subdividem em transtornos aolongo da vida. Sendo assim, possvel perceber que, nessa ltima edio, os diagnsticos vo

    acompanhando as fases de desenvolvimento. .

    Vale ainda lembrar que o DSM-V atrasou alguns anos seu lanamento por conta de

    discusses internas, especialmente da ala mais ligada psicanlise, a respeito da incluso da

    homossexualidade/transexualidade/bissexualidade (que haviam sido retirada em verses

    anteriores) enquanto doenas, bem como de outras questes que geraram discusses

    referentes ao entendimento do que deveria ser considerado ou no transtorno mental. Como

    resultado disso, o DSM-V conta com 563 possibilidades de diagnsticos e mais de 1020

    pginas. Para melhor visualizao de todo esse processo de crescimento no nmero de

    pginas e diagnsticos, apresenta-se, a seguir, dois grficos que mostram tais questes:

    GRFICO 1: Aumento do n de diagnsticos ao longo dos DSMs.

    DSM I (1952)

    DSM II (1968)

    DSM III (1980)

    DSM III-R (1989)

    DSM IV (1995)

    DSM IV-R (2000)

    DSM V (2013

    0

    100

    200

    300

    400

    500

    600

    Nmero de Diagnsticos por edio/reviso do DSM

    n diagnsticos (aprox.)

    Legenda

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    GRFICO 2: aumento no nmero de pginas ao longo dos DSMs.

    Como se pode ver no grfico 1, h uma crescente no nmero de diagnsticos ao longo

    dos anos. Tal aumento pode ser compreendido a partir do que Foucault (2006) denomina

    comoprova psiquitrica. Segundo o autor transcrever a demanda como doena, fazer existir

    os motivos da demanda como sintomas da doena a primeira funo da prova psiquitrica

    (p. 348). Trata-se, assim, tanto de fazer [algo]11 existir como doena ou no-doena (p.

    348), como, principalmente, fazer existir como saber mdico o poder de interveno e o

    poder disciplinar da psiquiatria(p. 349).Neste segundo grfico, como j discutido anteriormente, chama a ateno o salto de

    nmero de pginas do DSM II para o DSM III, devida s mudanas que ocorreram nesta

    poca. possvel visualizar tambm que, do DSM III at o DSM V, houve aumento

    proporcional na quantidade de pginas desse Manual. Esse aumento se d em uma progresso

    em mdia de 104 pginas12a cada verso/reviso do Manual, a partir de sua terceira edio.

    11 O termo entre parnteses foi includo pelas autoras.12 Clculo feito da seguinte forma: 1020500 = R/5 onde:1020: nmero aproximado de pginas do DSM V;500: nmero aproximado de pginas do DSM III;

    DSM I (1952)

    DSM II (1968)

    DSM III (1980)

    DSM III-R (1989)

    DSM IV (1995)

    DSM IV-R (2000)

    DSM V (201

    0

    200

    400

    600

    800

    1000

    1200

    Nmero de pginas por edio/reviso do DSM

    n de pginas (aprox.)

    Legenda

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    A partir das consideraes apresentadas at aqui e tendo em vista que, como coloca

    Foucault (2004), no h uma correspondncia entre as palavras e as coisas, mas os discursos,mais do que designar as coisas, so prticas que forjam os objetos de que falam, possvel

    afirmar que, na medida em que se ampliam o nmero de diagnsticos e os critrios para os

    mesmos, est tambm se constituindo formas de compreenso do humano, mediante grades

    de inteligibilidade que perpassam aquilo que visto como sade ou doena mental. Assim,

    no s os especialistas do campo psi passam a utilizar tais grades, mas as pessoas, em geral,

    passam a se ver e dizer mediante tais classificaes. Proliferam, portanto, nas falas

    cotidianas, afirmaes como: sou bipolar, fulano hiperativo, ele estdeprimido, etc.,

    as quais produzem determinadas formas de viver.

    Para um melhor entendimento dessas questes, tambm importante assinalar que, de

    acordo com Foucault (1985), h, a partir do sculo XVII, um deslocamento nas formas de

    exerccio de poder, de um poder calcado no direito de causar a morte ou deixar viver, para

    um poder que buscafazer viver ou deixar morrer. O primeiro, constitui o que o autor chama

    de poder soberano, que tem no confisco sua forma principal. Diferentemente desse, a

    segunda forma de poder apoia-se na produo de foras: trata-se mais de faz-las crescer e

    orden-las do que bloque-las ou destru-las. Assim, sobre a vida que o poder passa a

    estabelecer seus pontos de fixao, centrando-se tanto no corpo do indivduo (o poder

    disciplinar), quanto no corpo-espcie (o biopoder). Desse modo, as disciplinas do corpo e as

    regulaes da populao constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a

    organizao do poder sobre a vida (FOUCAULT, 1985, p. 131).

    Assim, o DSM pode ser compreendido como um dispositivo que atua tanto no

    sentido do poder disciplinar visto que, mediante os diagnsticos, so prescritos uma srie

    de tratamentos que visam administrao desses corpos tidos como desviantes , quanto de

    uma biopoltica da populao, visto estar inserido em uma lgica de gesto da vida, a qual

    sustenta em uma srie de intervenes e controles que buscam avaliar o nvel de sade da

    populao, categorizando-a e traando estratgias que visam ao incremento de suas foras e

    sua ordenao.

    Consideraes finais

    R: resultado da subtrao;5: nmero de edies/revises a partir do DSM III;

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    Conforme Klip, Bartolom e Ruiz (2009), o objetivo do biopoder empregar as

    potencialidades da vida humana para um fim til. (p. 1327). Isso faz com que a vida possaser controlada dentro de limiares aceitveis, com condutas condizentes as da maioria das

    pessoas.

    Scileski e Bernardes (2014) pontuam que, mais do que investir na vida, o biopoder

    est centrado nas formas de viver e como isso ser feito. Para as autoras, a economia poltica

    permitir o acesso ao investimento poltico como possibilidade para a vida. (p. 132). Pode-

    se pensar, assim, que um dos efeitos do aumento dos diagnsticos psiquitricos a

    medicalizao da vida. O DSM sustenta resultados de pesquisas epidemiolgicas,

    justificando, por exemplo, que governos federais comprem remdios psiquitricos para a

    populao ou que, nas escolas, os alunos sejam compreendidos como portadores de

    determinados transtornos e necessitados de intervenes normalizadoras.

    Aponta-se ainda que, no presente trabalho, foram abordados apenas aspectos

    referentes ao incremento do nmero de diagnsticos e ampliao dos critrios; porm,

    preciso considerar que necessrio problematizar a prpria conceituao de transtorno

    mental nas diferentes edies e verses do DSM, assim como quais condies passam a ser

    includas (ou excludas) como doenas e o que se modifica em termos dos prprios critrios

    diagnsticos. Dessa maneira, ser possvel traar um panorama mais claro sobre como os

    discursos sobre sade/doena mental que so produzidos pelo DSM constitui determinadas

    formas de ver e compreender os seres humanos na contemporaneidade.

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    REFERNCIAS

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    _______ (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder DSM III.Washington, DC. 1980.

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