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O manto europeu no sculo XVII: a disputa dinstica entre Bourbons e
Habsburgos e o surgimento do sistema interestatal capitalista
Marina Machado de Magalhes Gouva*
Resumo: Busca-se retratar e analisar a conjuntura europeia com base nos conflitos entre as
dinastias Habsburgo e Bourbon de finais do sculo XVI a finais do sculo XVII. A partir de um
aspecto da conjuntura - as guerras deflagradas no perodo e das conquistas territoriais via
matrimnio pela lgica dinstica - procura-se investigar o nascimento de uma lgica de conquista
nacional e capitalista das entranhas da prpria lgica dinstica-feudal, que dela se alimenta e a ela
se contrape, tendo como marcos distintivos a transformao das bases produtivas na regio, a nova
ordem poltica reconhecida pelos acordos da Paz de Westfalia (1648) e a continuidade dos conflitos
militares aps tais acordos, deixando s claras a essncia do sistema interestatal capitalista, que logo
se expandiria para o resto do mundo.
Palavras-chave: Habsburgo, Bourbon, sistema interestatal, capitalismo, guerra
Resumen: Buscamos retratar y estudiar la coyuntura europea a partir de los conflictos entre las
dinastas Habsburgo y Bourbon desde finales del siglo XVI hacia finales del siglo XVII. Estudiando
un aspecto de la coyuntura - las guerras del periodo y las conquistas territoriales obtenidas por va
matrimonial en el marco de la lgica dinstica - investigamos el nacimiento de una lgica de
conquista nacional y capitalista desde las mismas entraas de la lgica dinstica-feudal, que de ella
se alimenta y a ella se contrapone, distinguiendose principalemte por la transformacin de las bases
productivas en la regin, por el nuevo orden poltico reconocido en los acuerdos de la Paz de
Westfalia (1648) y por la contiuidad de los conflictos militares tras dichos acuerdos, desvelando la
esencia del sistema interestatal capitalista, que pronto se expandira por el orbe.
Palabras-clave: Habsburgo, Bourbon, sistema interestatal, capitalismo, guerra
* Mestranda do Programa de Ps Graduao em Economia Poltica Internacional (IE/UFRJ). Bolsista CAPES. E-mail: marinagouvea@gmail.com (todas as imagens so de arquivo pessoal).
mailto:marinagouvea@gmail.com
I. Introduo
Em Passrgada, passear pelo tempo fcilL ele multidimensional
como o o espao
Se a anlise de conjuntura rigorosa implicaria () prever comportamentos e consequncias
com certo grau de necessidade de ocorrer no futuro, a partir de contradies, tendncias e decises
que contam, no momento conjuntural analisado, com certo grau de liberdade para se combinar
(Fiori, 2003, p.30), a maior dificuldade na anlise da conjuntura atual reside justamente em
distanciar-se de seu prprio tempo e conseguir ver com relativa objetividade as mltiplas
possibilidades de desenrolar dos acontecimentos, identificando contradies, interesses e tendncias
de longa durao. Reside justamente na impossibilidade de prever o futuro.
Por outro lado, se sempre mais fcil a anlise de conjuntura do depois, da anatomia do
resultado conhecido, da crnica da morte antecipada, a maior dificuldade na anlise de conjunturas
passadas justamente o efeito teleolgico que esse conhecimento privilegiado pode ter sobre a
anlise das contradies que ento se apresentavam como inmeras possibilidades. Ou mesmo
sobre o reconhecimento tendencioso da prpria existncia de algumas destas contradies e de
outras no dentre os parcos registros e dados que por vezes quedam de uma determinada poca.
H que se desenrolar a trama e buscar o emaranhado de fios, qual Penlope de manto eternamente a
desfazer-se.
O perodo compreendido neste artigo , pois, nosso manto. J estudado exausto, a partir
da maior diversidade de pontos e enrolares de linha de que capaz a mais hbil rendeira. Desde os
diferentes e de modo geral brilhantes pontos de vista daqueles que o estudaram, o sculo XVII
tido como momento fundamental na transio do feudalismo para o capitalismo (Dobb, Sweezy,
Parain, Vilar, Anderson), como desaguar do jogo de trocas e da constituio da identidade europeia,
ao fim do longo sculo XVI (Braudel), como desaguar do processo constitutivo da economia-
mundo capitalista (Wallerstein, Arrighi). Assim, desde qualquer uma das perspectivas ou desde
todas elas, trata-se de um momento fundamental de transformao que lanou bases para a
configurao do mundo tal qual o conhecemos hoje.
Mas, se em uma anlise de conjuntura o essencial caminhar pelos tempos e pelas vrias
duraes, contextualizando e analisando os distintos interesses dos vrios grupos, por vezes visveis
em um tempo e no em outro1, como casar as duraes, as contradies e caractersticas de cada
conjuntura s tendncias de longa durao e s caractersticas mais estruturais em um dado 1 Quaisquer que sejam suas motivaes poltica, econmica, ideolgica, cultural, etc todos tentam impor seus
interesses particulares no espao-tempo conjuntural (Fiori, 2003, p.31).
momento? em certa medida a mesma dificuldade reconhecida por Braudel ao relativizar a
concepo do tempo e do espao, ou aquela reconhecida por Marx e Engels ao compreender a
realidade como concreta um complexo de mltiplas determinaes que s podem ser conhecidas
abstratamente, tornando-se concreto pensado, e sobre cujo desenrolar tem enorme poder e
influncia, dialeticamente, esse prprio conhecimento necessariamente incompleto sobre a realidade
e as decises que tomamos com base nele2.
Partimos da hiptese de que a anlise de um aspecto da conjuntura do perodo - as relaes
diplomticas de matrimnio associadas lgica dinstica-feudal e as guerras deflagradas - permite
uma interessante perspectiva sobre suas nuances, visando a contribuir para a compreenso do
surgimento de novos elementos que podem e devem ser relacionados aos debates sobre a
transio do feudalismo para o capitalismo, ainda que este no seja o objeto principal do presente
artigo. medida em que a histria dana por nossos olhos, o sculo XVII descreve na Europa quase
um vivo romance enredando paixes, acordos e interesses do qual h certamente que distanciar-
se, buscando o significado para alm da mera crnica dos fatos, herana da historiografia
positivista. O encadeamento dos fatos ou acontecimentos pode, entretanto, auxiliar na compreenso
da forma pela qual o caminhante faz o caminho ao caminhar, para alm de estruturas que podem
inclusive repetir-se como tendncias e geralmente se repetem, marcando um contedo histrico
determinado mas que so fruto e sntese do desenrolar concreto da histria, ao contrrio de ser o
desenrolar concreto ele mesmo a manifestao de uma essncia ou estrutura existente a priori.
Assim, atravs desta srie de conflitos militares e diplomticos, a Europa pode ser vista
como um grande palco no qual os interesses geopolticos se conformam e se desenvolvem em
consonncia com as transformaes do cenrio econmico, social e poltico. A intrincada malha de
conflitos internos e externos que se sobrepem e de alianas entre distintos poderes que se fazem e
desfazem serve apenas para esclarecer ainda mais o contedo transformador do perodo, no qual
no apenas surgem as primeiras caractersticas do modo de produo capitalista enquanto tal, como
se consolida o sistema interestatal europeu, marcado pelos tratados de Westfalia. Alm disso, a
Espanha perde sua hegemonia como potncia europeia (ou, mais ainda, potncia da Europa a
expandir-se, mundial, portanto), que passa a ser disputada de maneira mais acirrada pela Frana e
pela Inglaterra, com a vitria desta ltima, apesar da superioridade das conquistas territoriais
francesas.
Em um primeiro momento, a anlise do perodo permite identificar um amlgama de lgicas
de conquista e dominao de manuteno e expanso de relaes de poder internas e externas
2 Para Braudel (1982), enquanto o historiador fique preso na aparncia dos acontecimentos, ele no entende o porqu das coisas, de modo que, do ponto de vista cientfico, o real o que se pode perceber tambm alm da aparncia. Dentre tantas diferenas, essa concepo um dos pontos de convergncia entre braudelianos e marxistas possibilitaria, por exemplo, obras como as de Wallerstein ou Arrighi.
s unidades de poder na qual a lgica capitalista da unidade para submisso interna conformando
um pretenso interesse nacional termina por substituir a lgica dinstica associada ao feudalismo.
Assim, ao final do perodo o interesse nacional defendido por um exrcito de novo tipo (Kennedy,
1988) substitui de maneira geral os exrcitos mercenrios associados lgica das guerras santas e
da suserania e vassalagem.
Tal amlgama pode ser percebido claramente no embate entre o projeto expansionista
habsburgo de monarquia universal, a resistncia a ele e os projetos expansionistas prprios de cada
um dos pequenos, mdios e grandes poderes europeus em um processo que culminou com a
fragmentao centralizada e centralizadora do espao europeu e a conformao definitiva de um
sistema interestatal capitalista, a partir no apenas do entrelaamento cultural e comercial
confluente dos sculos anteriores, mas de um sem-nmero de conflitos polticos, militares e
territoriais (Fiori, 2004) unificado pela h