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1 O lugar da literatura de Cornélio Pires nos primórdios do século XX ELTON BRUNO FERREIRA Introdução Esse artigo tem o objetivo de analisar alguns aspectos da literatura produzida por Cornélio Pires nas primeiras décadas do século XX. Assim, se busca algumas características de representação em seus livros a partir da sua relação com o ambiente urbano, onde foram publicados. Dessa forma, se propõe a lançar um olhar sobre as construções de representações do caipira em um ambiente de expansão da cidade. O caipira, envolto em uma dimensão que extrapolava uma cultura fechada, era inserido em um contexto no qual se via convivendo com outros grupos, como os imigrantes. Também eram interpretados por pessoas que poderiam ter vivências diferentes das suas e que passavam a ter a visão direcionada pelas construções feitas por Cornélio, a partir da leitura. 1. A família estava na cidade”: o caipira na cidade moderna. Refletir a pesquisa a partir de estudos que visam descortinar o cotidiano é também uma forma de reconhecer enquanto agentes históricos aqueles que não estão colocados na documentação oficial. Portanto, mais do que pensar o caipira e buscar uma veracidade na organização cultural de grupos interioranos, o que Cornélio produziu, proporcionou refletir sobre maneiras de representar o cotidiano. Assim, ele contribuiu para que se problematizasse uma pluralidade de vivências e experiências que buscavam responder aos anseios daquele momento histórico. Possíveis tramas só poderiam ser descobertas a partir da análise de um viés que ao mesmo tempo é único e múltiplo. Único por que a experiência da representação literária do escritor faz parte da sua vivência. Múltipla porque se inseria em um contexto mais geral de expansão urbana pela qual passava a cidade de São Paulo naquele período. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutorando em História Social, bolsista CAPES.

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O lugar da literatura de Cornélio Pires nos primórdios do século XX

ELTON BRUNO FERREIRA

Introdução

Esse artigo tem o objetivo de analisar alguns aspectos da literatura produzida por

Cornélio Pires nas primeiras décadas do século XX. Assim, se busca algumas características

de representação em seus livros a partir da sua relação com o ambiente urbano, onde foram

publicados. Dessa forma, se propõe a lançar um olhar sobre as construções de representações

do caipira em um ambiente de expansão da cidade. O caipira, envolto em uma dimensão que

extrapolava uma cultura fechada, era inserido em um contexto no qual se via convivendo com

outros grupos, como os imigrantes. Também eram interpretados por pessoas que poderiam ter

vivências diferentes das suas e que passavam a ter a visão direcionada pelas construções feitas

por Cornélio, a partir da leitura.

1. “A família estava na cidade”: o caipira na cidade moderna.

Refletir a pesquisa a partir de estudos que visam descortinar o cotidiano é também

uma forma de reconhecer enquanto agentes históricos aqueles que não estão colocados na

documentação oficial. Portanto, mais do que pensar o caipira e buscar uma veracidade na

organização cultural de grupos interioranos, o que Cornélio produziu, proporcionou refletir

sobre maneiras de representar o cotidiano. Assim, ele contribuiu para que se problematizasse

uma pluralidade de vivências e experiências que buscavam responder aos anseios daquele

momento histórico.

Possíveis tramas só poderiam ser descobertas a partir da análise de um viés que ao

mesmo tempo é único e múltiplo. Único por que a experiência da representação literária do

escritor faz parte da sua vivência. Múltipla porque se inseria em um contexto mais geral de

expansão urbana pela qual passava a cidade de São Paulo naquele período.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutorando em História Social, bolsista CAPES.

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O historiador do cotidiano tem como preocupação restaurar as tramas de vidas,

que estavam encobertas, procurar no fundo da história figuras ocultas, recobrar o

pulsar no cotidiano, recuperar sua ambiguidade e a pluralidade de possíveis

vivências e interpretações, desfiar a teia de relações cotidianas e suas diferentes

dimensões de experiência, fugindo dos dualismos e polaridades e questionando as

dicotomias (MATOS, 2002: 26).

Em Literatura e Sociedade, Antonio Candido citou Cornélio Pires como um escritor

dos primórdios do século passado que trazia em sua abordagem sertaneja uma ingenuidade.

Porém, apontava a centralidade do tema, indicando outros literatos do período. Para Candido,

a temática, quando colocada sob um “ângulo pitoresco, sentimental e jocoso” surtia “ideias-

feitas perigosas tanto do ponto de vista social quanto, sobretudo, estético”:

É a banalidade dessorada de Catulo da Paixão Cearense, a ingenuidade de

Cornélio Pires, o pretencioso exotismo de Valdomiro Silveira ou de Coelho Neto de

Sertão; é toda a aluvião sertaneja que desabou sobre o país entre 1900 e 1930 e

ainda perdura na subliteratura e no rádio (CANDIDO, 2000: 105).

Ainda o mesmo Antonio Candido, prefaciando o livro Cornélio Pires: criação e riso

de Macedo Dantas, apontou para algumas características da literatura de Cornélio,

reconhecendo aspectos de sua produção escrita:

Meio escritor, meio ator, meio animador; generoso, combativo, empreendedor,

simpático, - a sua maior obra foi a ação nos palcos, nas palestras, na literatura

falada, que perde bastante quando é lida. Como os oradores, como certo tipo de

poetas, como os repentistas e os velhos glosadores de mote, a dele foi uma literatura

de ação e comunhão, feita para o calor do momento e a comunicação direta,

eletrizante, com o público (DANTAS, 1976: 11-12).

É nesse sentido que, inserido em uma produção literária, Cornélio Pires colocava seus

personagens caipiras no cenário nacional. Tentando interagir com um contexto no qual esse

tipo interiorano ganhava espaço em posições que tendiam do polo afirmativo ao negativo.

Em 1910 Cornélio Pires publicou seu primeiro livro, Musa Caipira. Naquele momento

havia uma valorização das supostas características culturais do sertão. A idealização do sertão

se colocava como alternativa frente às mudanças ocasionadas pela expansão da urbanização

de São Paulo. Ainda existe a suposição de que naquele momento a busca por características

consideradas exóticas ou mesmo uma busca pela “brasilidade” tenham favorecido o tipo de

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publicação feita por Cornélio. Há que se considerar que além do escritor tieteense, outras

produções literárias tinham no sertanejo a inspiração para os seus enredos. É o caso, entre

outros, do livro Os sertões, de Euclides da Cunha. Essas seriam evidências de que o escritor

caipira participava de uma corrente de pensamento que explorava o modo de vida do

interiorano.

[...] na década de 1910 o sertão estava também em moda, maneira de escapismo do

citadino, sufocado pelo convencional, atração pelo exótico ou movimento de

brasilidade. Tinham sido revalorizadas as coisas sertanejas, talvez por influxo

direto do grande livro do nosso genial Euclides da Cunha (DANTAS, 1976: 75).

Naqueles primórdios do século XX a cidade de São Paulo era o palco das suas

publicações. Em seus escritos, o caipira ganhou notoriedade em um diálogo entre o rural e o

urbano. A cidade buscava um rompimento, apontando para um discurso de modernidade,

enquanto a ruralidade resistia em representações literárias.

“Moderno” se torna a palavra-origem, o novo absoluto, a palavra futuro, a

palavra-ação, a palavra-potência, a palavra-libertação, a palavra-alumbramento, a

palavra-reencantamento, a palavra-epifania. Ela introduz um novo sentido à

história, alternando o vetor dinâmico do tempo que revela sua índole não a partir

de algum ponto remoto no passado, mas de algum lugar no futuro. O passado é,

aliás, revisitado e revisto para autorizar a originalidade absoluta do futuro

(SEVCENKO 1992: 228).

Os escritos de Cornélio Pires estavam imbuídos de desejos de trazer características

caipiras para os livros. Os conhecimentos que trazia da sua região de nascimento se

misturavam à sua imaginação ganhando vida nas narrativas com forte oralidade transmitidas

nas publicações. Sua liberdade para interpretar a cultura caipira direcionou uma construção

que o inseria no contexto literário do período. A literatura, dessa forma, se configurava como

uma ferramenta para que ele extravasasse suas ideias1.

A literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo

pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que

guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver

1 “A liberdade do possível inclui o real, não ignora o real: abraça o real, vai até as entranhas do real e tira do real

os desejos de alguma coisa que o real ainda não é. [...] É claro que o possível traz em si elementos de futuro, de

desejo, de irrealizado. Mas todo real foi, a certa altura, possível.” (BOSI, 2013: 231).

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sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para a

leitura do imaginário. Porque se fala disso e não daquilo em um texto? O que é

recorrente em uma época, o que escandaliza, o que emociona, o que é aceito

socialmente e o que é condenado ou proibido? (PESAVENTO, 2008: 82-83).

Nas primeiras décadas do século XX era perceptível a necessidade de se encontrar

uma identidade nacional para o Brasil. Naquele contexto estava incluso Menotti del Picchia

que defendia a contribuição das “novas migrações” como formadora do brasileiro. Propunha a

extinção das possibilidades de representação do “índio selvagem e épico” e do “Jeca Tatu”,

que segundo ele agonizava, atingido por uma “infiltração cosmopolita”, esta portadora do

“moderno espírito industrialista” (CASTRO, 2008). A literatura assumia naquele período uma

função na tentativa de criar tradições em um país que buscava uma identificação. A atribuição

de um lugar para o caipira fazia com que Pires colocasse suas posições em termos de

possibilidades para que suas representações adquirissem um espaço nas ideias2.

Possivelmente seus livros eram apreciados por um público leitor interessado na

temática caipira apresentada pelo escritor. Ao correr o olhar para outras construções voltadas

à escrita naquela época, se encontra o livro de poesias escrito por Menotti Del Picchia, Juca

Mulato, publicado no ano de 1917. Buscava ressaltar uma poesia com caráter “regionalista”

com linguagem acessível. Acabara por agradar as camadas médias urbanas naquele momento,

apontado para um provável interesse desses grupos a essa categoria de leitura.

A recepção da obra e seu sucesso são de fato sintomáticos do momento em que ela é

escrita. Misturando a exaltação da raça nativa com uma linguagem simples, o

escritor conseguiu atingir um público amplo, proveniente sobretudo das camadas

médias que emergiam com a urbanização. A aproximação entre Menotti e Oswald

de Andrade pode ser tomada como exemplo do fenômeno Juca Mulato (CASTRO,

2008: 32 -33).

2 “Num país sem tradições, é compreensível que se tenha desenvolvido a ânsia de ter raízes, de aprofundar no

passado a própria realidade, a fim de demonstrar a mesma dignidade histórica dos velhos países. [...] A literatura

é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte; a tarefa do escritor de ficção é construir um

sistema arbitrário de objetos, atos, ocorrências, sentimentos, representados ficcionalmente conforme um

princípio de organização adequado à situação literária dada, que mantém a estrutura da obra.” (CANDIDO,

2000: 155;162).

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A cidade de São Paulo se apresentava como palco para construções de representação

de modernização e Cornélio Pires participava indicando que o caipira era parte integrante

desse contexto. De forma que um possível discurso que apontasse para uma cidade

homogênea, encontraria nos seus escritos possibilidades de fragmentos que denunciavam as

ambiguidades vividas na urbe. Assim, produzia para um público que buscava conviver com a

expansão urbana, mas alimentava um sentimento contraditório de resistência às rápidas

transformações.

Faz-se necessário confrontar a forma com a qual o escritor tieteense recriava o

território do interior ao tratamento nostálgico encontrado em Menotti del Picchia. E um

primeiro momento, Cornélio narrava o cotidiano na fazenda, em diálogo entre ele e a “[...]

negra velha, tia Jacinta, a caseira, pesadona e cadeiruda, já de cabelos brancos [...]”. Nota-se

que o escritor valorizava os adjetivos que remetiam a algo que já fora novo, pois agora está

velho, mas continuava existindo, como resquícios de um passado vivo. A negra é velha, a casa

é velha e descrita de forma rudimentar. Porém, a conversa com alguém que narrava

lentamente uma história passada era possível e agradável:

A sala da casa velha do sítio era de telha vã, e pelas ripas de palmito, esfiapadas,

viam-se pendentes, em franjas negras, as teias de aranha, e os picumãs, grosso

como pó de café, baloiçantes ao impulso da fumaça que subia do meio da sala,

fazendo arder os olhos da gente, que era forçada a engolir em seco, um eito de

tempo, até que se extinguisse a lenha verde ou molhada, que fora de cambulhada

com as achas secas, entre os tacurus, onde fervia, à noite, o caldeirão de feijão,

cambuquira ou serraia para a ceia.

A família estava na cidade.

Eu e a negra velha, tia Jacinta, a caseira, pesadona e cadeiruda, já de cabelos

brancos, éramos os únicos da casa.

Tia Jacinta, chegando fogo, endireitando os tiços, acendeu o pito de barro

enegrecido, fixo num canudo de dois palmos, deixou-lhe em cima a brasa que

pegara com os dedos grossos e calejados, e pôs-se a contar histórias de dante, como

quem falava sozinha, a olhar para o fogo e a cuspir para um lado (PIRES, 2002:

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A análise das crônicas de Menotti apontou para a temática da fuga da urbe, como se o

interior representasse um espaço adverso, oposto à cidade. Porém, ressalta-se que o olhar para

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a fuga da urbanidade indicava para o passado, assim como Cornélio. Dessa maneira, a cidade

em expansão mantinha um elo com um período idealizado a partir de escritos das primeiras

décadas do século XX, em um movimento que indicava a superação de um modo de vida mais

pacato, que, porém, poderia ser revivido na memória. A modernização precisava avançar e

essas representações criavam o contraponto ao que se propunha como “inevitável”.

Há uma espécie de nostalgia com o passado que parece se esvair – e em outra

crônica Menotti assumia a “crise da saudade” que às vezes lhe assaltava o espírito,

fazendo com que tivesse ímpetos de fugir desse “ergástulo tenebroso” que se

tornara a cidade. Nesses momentos, o cronista apelava para a memória e recordava

quão delicioso fora o tempo que “sadio e selvagem, sonhava a conquista dos

mundos, metido entre as brenhas da fazenda perdida”, nostalgia da vida no

interior, quando alternava a pacata vida de jornalista de província com caçadas

com os caboclos da sua fazenda. Para ele, “a urbanidade” chegava mesmo “a

irritar” com seu instinto de “megera exigente que pede cuidados de traje a atenção

para o tráfego tumultuoso; um sorriso para os maçantes e referências metidas a

patifes”. Após a descrição pouco louvável da vida urbana concluía: “Saudade...

‘Gosto amargo dos infelizes...’ Invisível doença dos presidiários urbanos...”

(CASTRO, 2008: 116-117) 3.

A expansão urbana vivida nas primeiras décadas do século XX abria um campo de

possibilidades de representações e interpretações. O rural e o urbano não estavam distantes e a

literatura de Cornélio Pires indicava essa proximidade ao público leitor. Assim, a variedade de

tipos e culturas sobrevivia, mesmo que rememorada estilisticamente, mesmo que representada

humoristicamente, naquele espaço em frequente transformação.

[...] traduziam tipos resultantes da observação rápida e superficial da sociedade,

formando uma humanidade vasta e variada que teimava em sobreviver numa cidade

meio híbrida, a caminho do rural e do urbano – aquela cidade feita de intimismo

provinciano e cosmopolitismo agressivo (SALIBA, 2002: 182).

Percebe-se, naquele contexto, que a receptividade aos escritos de Cornélio também

podem ser explicadas pela forma com a qual o escritor se colocou naquele embate, muitas

vezes apontando características de humanização das relações a partir da exploração de

possíveis sentimentos baseados em representações cotidianas.

3 No trecho destacado, a autora faz uma análise da crônica “Saudade”, publicada no Correio Paulistano em 15 de

abril de 1923.

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2. “Num custa nada pidi ua demão pros vizinho”: o caipira entre os estrangeiros

e os seus.

Baseado na tradição da caça como forma de sobrevivência, Pires escreveu o conto

Atira Juca, o qual transcorria relatando o relacionamento de afeto e companheirismo entre um

pai e um filho, mas que terminou de forma trágica. Juca havia prometido uma espingarda de

presente a Basílio, para ajudar nas caçadas, e cumpriu a promessa, que teve como desfecho:

Alegre, assobiando uma “moda” de viola, o caboclo saiu do quarto.

- Ocê madrugô, meu fio?

- Tava sem sono...

- Pr’amor de a espingarda...

- Nhor não... Perdi o sono...

- Cavortêro... Vô mostra pr’ocê cumo ela bate forte o cão no fecho-de-aço...

Tomou da espingarda... Previdente e desconfiado como todo o caipira, tirou a

vareta da “pica-pau” e sondou o cano direito da “Central”, como quem verifica se

está a arma carregada...

- É do cano cumprido! Bem mais cumprido do que a minha! A vareta num chega no

fundo. Há de ascançá longe...

- Mode que é da boa...

- É mais bunita do que a do seu padrinho!

Engatilhando o cano direito, o caboclo levou a arma à cara, procurando a mira e

puxou o gatilho; e o cão “bateu em seco”...

- Tivesse carregada e aquela barbuleta que tá no tijuco tava esbandaiada...

Engatilhou o cano esquerdo e, tomando distância do filho:

- Se os estranja quisé mandá nos brasileiro, faça ansim...

Apontou para o peito do filhinho e puxou de novo o gatilho...

No silêncio da manhã na roça ecoou um tiro...

Basílio caiu com a carga inteira no peito!

Tonto, idiotizado pela cena, quase sem consciência, não acreditando na realidade,

Juca, o pai amoroso, ergueu o filho que mal balbuciou:

- Ai! meu Deus!

E, sorrindo na agonia, ante os brados de perdão do pai, sorrindo, sorrindo, morreu-

lhe nos braços... (PIRES, 2002: 98-99).

Ainda, salienta-se que no discurso, o momento que leva ao ápice do conto, há a

referência à possibilidade de o estrangeiro querer mandar no brasileiro. Assim, a proposta de

defesa nacionalista também estava presente, inserindo Cornélio Pires no debate tão caro

àquele período.

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A receptividade do público a essa literatura certamente se deve à novidade do

assunto e do tom, laudatório e sentimental, extremamente oportuno em tempos de

ufanismo patrioteiro, em que um nacionalismo exaltado se projeto como alternativa

ao pessimismo crítico – cujos exemplos mais significativos são Euclides da Cunha,

Lima Barreto, podendo-se incluir aí também Monteiro Lobato (LEITE, 1996: 121).

Enquanto, nas primeiras décadas do século XX Cornélio Pires escrevia dando ênfase à

criação de personagens caipiras, no meio rural ou mesmo no meio urbano, a presença de

imigrantes era sentida no país. Em algumas oportunidades, os escritos também apontavam

para a descrição de pessoas de outras nacionalidades em contato com o caipira, na literatura

do tieteense. Também tinham seus sotaques específicos, de acordo com a nacionalidade,

criados por Pires. Trazendo uma possível cidade de São Paulo já passada, ele abordou, usando

do humor e da própria oralidade da língua, um diálogo entre um italiano e um caipira.

Atribuiu, também, valores, como a desconfiança, na relação entre brasileiros e estrangeiros:

Mal-entendidos

Um gênero de anedotas que desapareceu de São Paulo, com o cosmopolitismo, foi o

de mal-entendidos entre nacionais e estrangeiros.

O caipira antigo, por exemplo, troçava com o caso da prisão de um italiano.

Um soldado desconfiara de um italiano. Naqueles tempos os soldados desconfiavam

sempre de todos os estrangeiros.

Fazia meia hora que o italiano estava encostado a uma esquina, como quem

esperava alguém, quando o soldado chegou:

- O que tá fazeno aí?

- Spéto Luigi.

- Espéta nada! Tu tá é prêso! – E “passou a mão” no italiano.

- Per Dio Santo!

- Despois percura.

- Mas vi prégo...

- Num me borreça que o chego o frande! Qué espetá outro cum prego, é? Ocê vai

mais é pro xadreiz! (PIRES, 2005: 77).

Essa anedota foi publicada em 1928, no livro Meu Samburá. Talvez o escritor

influenciou e foi influenciado pela proposta de representar o imigrante a partir do personagem

Juó Bananére, criado por Alexandre Marcondes Machado. Ambos publicaram no jornal “O

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Pirralho”4. Eles optaram por escrever histórias curtas, estilizando seus personagens pela

oralidade.

Em alguns deles, como Juó Babanére e Cornélio Pires, os poemas e “causos”

constituíam uma literatura falada, feita para o calor do momento, que perdia muito

quando era apenas lida. Não será por mera coincidência que tanto Bananére

quanto Cornélio Pires serão os primeiros a gravar seus poemas e crônicas em

discos – o segundo, com grande sucesso a partir de 1929, o primeiro, com os seus

três discos de poemas macarrônicas em 1931, pouco antes de sua morte (SALIBA,

2002: 190-191).

Em Quem conta um conto..., publicado pela primeira vez em 1916, Cornélio deu vida

a vários personagens que se identificavam como caipiras. As características eram marcadas

pela vivência na descrição de determinado território, e pela oralidade buscada através da

escrita. Analisando o conto, Pra mim foi pisadêra, era possível adentrar em uma

representação cotidiana proposta enquanto vida no meio rural. A discussão sobre a existência

ou não de assombração possibilitava ir além e ter contato com a descrição de todo um cenário,

que ia desde as características da fazenda, das pessoas, da alimentação, até de seres de outro

mundo.

Chegara a hora da ceia. Caldo de cambuquira, um feijão virado alumiando de

gordura, e, para fechar, um café com bananinhas de farinha de trigo; tudo

indigesto, escorrendo gordura.

O Mandinga, depois de empanturrado, apalpou o patuá que lhe saía pela abertura

do peito da camisa, enfiou o rosário no pescoço, examino a escórva da garrucha,

passou a mão no chiqueirador e lá se foi para o engenho com a candeia

bruxoleante, pelo trilho fundo do pasto velho.

Não se sabe bem o que aconteceu.

Às três horas da manhã, desapontado, humilhado, coberto de vergonha, batia o

Mandinga desesperado na porta do casarão...

- Tirô o caborge?

- Credo in cruiz!

- Cheguei lá, inzaminei a casa, botei a garrucha in baxo do travesseiro, o rêio no

canto da cama, rezei a oração do tira-prosa e deitei. Sem querê me garrô ua sonêra

danada... Seria a ceia? Mais não era. A sonêra decerto já era arte do capeta,

porque eu nem bem tava durmino, nem bem tava acordado.

De repente, na porta do tendá, inxerguei um cabeção de bode, preto, botano a

língua pra mim e arrebitando o beiço, me cherano co aquele nari catinguento...

4 “É preciso lembrar que muitos dos escritores paulistas do período tiveram textos publicados nas páginas desse

jornal, desde Alexandre Marcondes Machado e Cornélio Pires [...].” (LEITE, 1996: 66).

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Quano eu quis fala num pude, mea língua inrolô e eu falava pra drento. O bicho deu

em espirro! E vê que pincho cincuenta arquêre de café in coco inriba de mim!

Percurei a garrucha; meu braço tava entravado; a cabeça do bode garrô branqueá,

ficô arvo que nem leite; e foi desceno, desceno, e vino pro meu lado... Quano eu

juntei tuda força que tinha pra sentá na bêra da cama, a coisa chegô inriba de

mim... abriu um bocão e feiz – sssssiiiuu... mais arto do que o apito da passagêra.

Meus óio fecharo; mea cabeça garrô virá e eu fiquei amortecido, inté que agora

mermo vortei in si, no meio do bagacêro véio...

- Que coisa estúrdia!

- Eu vô s’imbora! Sombração de ótra culidade eu pégo. De amortecê, não!

Só o tenente não acreditou.

- Quá! Pra mim foi pisadêra... (PIRES, 2002: 16-17).

Com o mote de uma história que envolvia a caça a uma assombração, Cornélio

desvelou várias representatividades do cotidiano caipira, como a própria crença em “seres do

outro mundo”. Além disso, ganharam vida através do conto personagens caipiras com valores

e crenças, que foram da valentia ao medo e ao ceticismo. O enfrentamento à assombração

possibilitou visualizar um contexto de reunião de grupo e construção de laços de

relacionamento a partir da amizade entre os que participavam do evento.

A ocasião proporcionou também uma proposta de vida a partir da qual a sociabilidade

se dava com a narração de histórias nas conversas em grupo. O fato de existir tal assombração

ou não pode até ser relegado ao segundo plano, caso se atentasse para as possibilidades que o

conto trouxe. A tentativa de confirmar a valentia, que posteriormente foi abalada, derrotada,

pela desistência, apresentava sentimentos, desejos e fraquezas como constituinte daquele

interiorano, representado pelo personagem Mandinga.

Há que se considerar que Cornélio, a partir dessa publicação, produzia para a leitura,

editada em meio a uma cidade em mudança e expansão, um modo de vida completamente

diferente. O conto marcava, dessa forma, um compasso de contraste com a nova vivência

urbana, que adotava o moderno como símbolo de desenvolvimento5.

5 Essa busca pelo “moderno” se acirrava cada vez mais na capital do estado. Na década de 1920 a transmissão

radiofônica começava a engatinhar como um novo meio de comunicação. Com as novidades, muitas vezes o

sentimento de volta ao passado era destacado no meio urbano: “A cidade sentia, cada vez mais, o peso das

transformações decorrentes de um sistema econômico de acentuado dinamismo, que engolfava as

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A possibilidade de uma assombração salientava um modo de vida que valorizava a

irracionalidade como constituinte da vida rural caipira. O fato de alguém acreditar e contar

gerava toda uma situação que envolvia aparatos sérios. Notava-se o Mandinga todo

paramentado para enfrentar aquela situação, visto que portava ferramentas que possibilitavam

a sua defesa, bem como uma garrucha, o chiqueirador, objetos de proteção material. E para a

proteção espiritual, portava o rosário e o patuá.

Visto a impossibilidade de separar os escritos da oralidade, Pires demonstrava

preocupação em trazer para os livros expressões que eram utilizadas no meio caipira. As

publicações estavam recheadas dessas características, reafirmando o desejo de aproximar as

histórias narradas nos livros à realidade interiorana. Era o que se apresentava também em Pra

mim foi pisadêra, no qual o próprio título já contava com uma expressão acaipirada.

Preocupado em dar conhecimento a essa forma de comunicação que seria típica dos

seus personagens, baseada nas suas coletas pelo interior, em 1921 ele publicou Conversas ao

pé-do-fogo. Nesse livro, o escritor procurou solucionar a possível dificuldade de leitura dos

seus contos e poemas a quem não era afeito ao falar caipira. Também aproveitou para

propagandear as diferenças de linguagem que, a partir da necessidade de um vocabulário

próprio, indicava a existência de um dialeto.

Dessa forma, uma espécie de dicionário fazia parte do livro, no qual palavras, em

ordem alfabética, eram explicadas. Nesse caso, se desvendava o significado de chiqueirador –

grosso relho com cabo de madeira em forma de chicote; patuá – pequeno invólucro contendo

orações, relíquias e pedras sagradas que os caipiras caboclos e pretos trazem ao pescoço;

pisadêra – Pesadelo; Duende representado por uma velha esquelética de garras aduncas que

individualidades numa crescente multidão. Isso mudava o perfil da cidade provinciana em uma metrópole

cosmopolita. Multidão que sentia as inadequações de uma cidade de expansão desordenada – os transportes

urbanos, ônibus e bondes, era alvos de constantes críticas por parte dos usuários através dos jornais. [...] A

modernização provocava reações do tipo ‘mito nostálgico’ de um ‘pré-moderno Paraíso Perdido’. Mas esta

nostalgia ia sendo engolfada pelo avanço da metrópole, criando simultaneamente, mais problemas e mais

oportunidades de usufruir os efeitos da modernidade.” (TOTA, 1990: 48;53).

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está sempre sobre o telhado pronta a pousar sobre o peito de quem dorme de costas (PIRES,

2002).

Ainda no desenrolar da narração, a ceia foi descrita, caracterizando um possível jantar

caipira, de onde se podia imaginar a alimentação daquele lugar em que Cornélio, em um tom

de valorização, carregou na fartura6. Havia uma variedade de alimentos, como caldo de

cambuquira; feijão virado alumiando de gordura; café com bananinhas de farinha de trigo,

que escorriam gordura.

Lançado em 1916, o livro Quem conta um conto... trouxe vários contos e em um

intitulado O que é de raça..., o escritor apontava exatamente na questão da força da

comunidade para o trabalho na roça. Traçava um grupo laborioso que conseguia contornar

seus problemas graças aos valores da comunidade, apontando a solidariedade como uma

característica cultural.

João Lino andava desanimadão, amarelo, meio esverdeado, depois de uma esfrega

de “maleita”, que lhe inflamara o braço, pondo-lhe a cabeça a zunir, após o

despropósito de sulfato que ingerira.

Era a choça dominada pela falta de coragem do chefe; desânimo que influía no

espírito dos filhos e do próprio “genro”, morador na mesma casa.

O velho, sentado ao sol, na soleira da porta, com o “xalemanta” às costas,

convalescia, pensando num meio de fazer as roçadas, pois já era tempo. Mas onde a

força? Onde o dinheiro, se a plantação passada fora nula, estragada pelos

gafanhotos e queimada pela geada? (PIRES, 2002: 103).

Apresenta-se o desânimo do personagem João Lino, porém, com uma causa específica,

a doença. Além disso, faltava-lhe dinheiro, pois a plantação anterior havia sido destruída por

fenômenos naturais. Em decorrência da situação difícil, a falta de coragem se alastrava aos

seus próximos, o que indicava a perda de mais um roçado. Em 1914 Monteiro Lobato,

6 Em crítica a Cornélio Pires e ao livro Conversas ao pé-do-fogo, Antonio Candido escreveu: “Esta rapsódia

eufórica – verdadeira página de um Rocha Pita moderno – descreve os recursos virtuais do homem rural sem

considerar a sua classe nem as possibilidades de combinar e selecionar o cardápio compatível com o momento, a

situação financeira, o lugar. Nela se englobam o fazendeiro, o sitiante, o parceiro, o salariado, cada um dos quais,

todavia, participa a seu modo deste vasto acervo, que de maneira alguma representa a experiência alimentar

quotidiana de qualquer um deles.” (CANDIDO, 2001: 193).

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também ocupado com a nacionalidade, apontava a incapacidade de evoluir como responsável

por uma possível má situação de vida do caipira:

Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadores

da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha

no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao

progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé. De pé ou sentado as ideias se lhe

entravam, a língua emperra e não há de dizer coisas com coisa (LOBATO, 2009:

169).

Enquanto para Lobato, naquele momento, a incapacidade intelectual - “as ideias se lhe

entravam” - de uma “raça” era causadora da inércia, Cornélio já havia respondido com

doenças e problemas na seara da natureza. Quanto à possível aceitação de uma situação

imposta, mesmo que por forças externas, o escritor de Quem conta um conto... argumentou

com outras ferramentas. A família de João Lino tomou rumo diferente do Jeca Tatu e graças à

comunidade o resultado adquiriu cores de vida ativa. Finalmente a esposa, “Nhá Firmina”

encontrou a solução aos problemas da família:

- Nhô João? Tempo de roça tá chegano e eu tive maginano que nóis pudia bem fazê

um muxirão, pra a roçada... Num custa nada pidi ua demão pros vizinho. Mecê

quando tava forte nunca se negô, nem as criança, nem eu...

- Mais percisa dinhero...

- Eu tenho argum, de uns óvo que vendi pro padero da vila, e nóis pode vendê uns

frango e uas leitoinha e há de dá pras dispesa de cumê, e pra pinga pro fandango

da noite...

-Puis seja (PIRES, 2002: 103 – 104)7.

Esse movimento de oposição entre o que poderia representar o caipira na construção

da “identidade nacional” colocou Cornélio no meio dos que, a partir das suas características

próprias, valorizava o “caipirismo”, junto a outros intelectuais.

O “caipirismo” ou “nativismo” tornara-se uma espécie de moda intelectual,

sobretudo depois de 1919, quando foi encenada no Teatro Municipal a peça O

contratador de diamantes, de Afonso Arinos, desencadeando uma série de “saraus

regionalistas” em que se cantavam canções sertanejas ou escritores famosos liam

seus poemas de tendências caipiras (SALIBA, 2002: 175).

7 Seguindo a narrativa, o escritor explicou o que era um muxirão: “O ‘muxirão’, ‘mutirão’ ou ‘puxirão’ é a mais

bela instituição cabocla. É o trabalho aliado à festa; é o socorro ao necessitado, aliado à folgança; é o serviço

prestado, sem interesse, aliado à alegria deliciosamente franca da caipirada.”

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Em Musa Caipira o escritor já exaltava a sociabilidade entre os caipiras. Em O almoço

do muchirão, o caipira que se apresentava era aquele que em comunidade construía uma

relação de interdependência entre os vizinhos. O trabalho na roça necessitava da ajuda dos

demais. Porém, o muchirão se transformava em um evento para o grupo, pois, para além do

esforço físico empreendido, a atividade reunia pessoas que se alimentavam, conversavam e,

na descrição, apontava para tipos de alimentos consumidos no meio rural do interior paulista.

- A alegria dos pobre dura pôco!

Chega-chega, moçada, a mesa é bôa.

despois do muxirão bamo no trôco,

que é estes frango co’ arrois e uas leitôa.

- Despois do armoço nóis vae vê, cabôco,

de quantos pau se fais ua canôa!

Grita um caipira barbaçudo e rouco:

- Dois arquere de róça é coisa atôa!

- Me dê a serraia – Intão, nho Benedicto,

Num qué porvá ûa coxa de cabrito?

- Passe o frango, nho Tico? – Passe a pinga...

E o dono do sitiéco, enthusiasmado:

- Com-coma, meu povo, que o roçado

É num capoeirão, num é restinga (PIRES, 1985: 43).

Cornélio Pires dava vida a personagens dentro dos seus escritos, buscando as cores

locais em possibilidades do cotidiano rural. No caso do muchirão, aproveitou essa forma de

organização e apresentou um tipo de oralidade acaipirada através das palavras, assim como

em outros poemas e contos. Ainda, trouxe as características básicas dos alimentos que

possivelmente permeavam essa atividade.

Enquanto o caipira proposto pelo escritor tieteense valorizava um modelo de vida mais

pacata, a vivência urbana apresentava um contraste marcante com os personagens rurais. O

muchirão enfatizava a ajuda mútua por parte da vizinhança, enquanto nas grandes cidades, a

industrialização avançava, trazendo para a cena desse novo palco uma diversificação

populacional.

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O início do século XX, na vida brasileira, representa um momento de mudanças,

com um acelerado processo de industrialização, uma intensificação do surto

imigratório, a premente necessidade de atualização do país com o que se passava

no mundo [...]. Nesse quadro de remodelação da vida nacional, com um dinamismo

crescente nas três primeiras décadas do século, inserem-se a campanha higienista,

as campanhas pela alfabetização em massa, uma visão regeneradora da educação,

o incremento dos meios de comunicação (LEITE, 1996: 42).

O imigrante se tornava ativo nessa urbe que passava por um processo de expansão. A

“modernização” surgia como projeto de desenvolvimento, abarcando algumas características

a serem valorizadas, tais como as campanhas higienistas, propostas de alfabetização em massa

e a utilização de novos meios de comunicação.

Considerações finais.

A literatura produzida por Cornélio Pires foi importante enquanto ferramenta de uma

possível sobrevivência de características caipiras no meio urbano. Era mais uma perspectiva

de abordagem dos grupos que viviam o meio rural. Dentro das possibilidades às quais a

literatura proporcionava ao trazer a tona questões do cotidiano, o que o tieteense escreveu

contribuiu para que se construíssem representações em torno dos debates sobre o rural e o

urbano. Ainda, formas de organização de vida em grupo, sentimentos e características

culturais diversas estiveram presentes em seus livros.

REFERÊNCIAS

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CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.

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transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2001.

CASTRO, Ana Claudia Veiga de. A São Paulo de Menotti del Picchia: Arquitetura, arte e

cidade nas crônicas de um modernista. São Paulo: Alameda, 2008.

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Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.

LEITE, Sylvia Helena Telarolli de Almeida. Chapéus de palha, panamás, plumas, cartolas: A

caricatura na literatura paulista 1900-1920. São Paulo: Fundação Editora Unesp, 1996.

LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Globo, 2009.

MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: História, cidade e trabalho. Bauru –

SP: Edusc, 2002.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,

2008.

PIRES, Cornélio. Conversas ao pé-do-fogo. Itu – SP: Editora Ottoni, 2002.

______________ Meu samburá. Itu – SP: Ottoni, 2005.

______________ Musa Caipira. Tietê-SP: Edição comemorativa do centenário de nascimento

do autor (1884-1984) – Prefeitura Municipal de Tietê, 1985.

______________Quem conta um conto... Itu – SP: Ottoni, 2002.

SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: A representação humorística na História brasileira –

da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos

frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SILVA, Albert Rafael Pinto. Representações de caipira nas práticas literárias de Cornélio

Pires. Mestrado em educação, UNIMEP, Piracicaba, 2008.

TOTA, Antonio Pedro: A locomotiva no ar: rádio e modernidade em São Paulo 1924-1934.

São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura/PW, 1990.