o lugar da criança na pesquisa sobre a infância alguns posicionamentos na perspectiva da teoria...

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Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v.18, n2, p.183-197, jul./dez. 2010 183 O LUGAR DA CRIANÇA NA PESQUISA SOBRE A INFÂNCIA: ALGUNS POSICIONAMENTOS NA PERSPECTIVA DA TEORIA HISTÓRICO- CULTURAL Suelly Amaral Mello 1 Resumo Ao defender a necessidade da voz das crianças nas pesquisas sobre a infância, busco, neste artigo, um argumento essencial da abordagem histórico-cultural do desenvolvimento humano: a compreensão de que ao se relacionar com a cultura, a criança atribui um sentido pessoal ao que conhece. Esse sentido conforma a concepção com a qual a criança, a partir daí, se dirige à cultura para novas apropriações e aprendizados que são promotores do desenvolvimento de sua consciência em processo de formação. Em outras palavras, esse sentido produzido pela criança condiciona seus processos de aprendizagem. Desse ponto de vista, parece fundamental que a pesquisa sobre a criança pequena contemple sua participação também como informante e não apenas como objeto desse processo. Palavras-chave: Abordagem histórico-cultural; concepção de criança; pesquisa com criança pequena. 1 Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos/UFSCar e Mestre em Educação pela mesma universidade. Graduação em Letras Modernas pela Universidade Estadual Paulista. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista/Unesp, Faculdade de Filosofia e Ciências/campus de Marília e vice-líder do grupo de pesquisa “Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural” .

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  • Revista Reflexo e Ao, Santa Cruz do Sul, v.18, n2, p.183-197, jul./dez. 2010

    183

    O LUGAR DA CRIANA NA PESQUISA SOBRE A INFNCIA: ALGUNS

    POSICIONAMENTOS NA PERSPECTIVA DA TEORIA HISTRICO-

    CULTURAL

    Suelly Amaral Mello

    1

    Resumo

    Ao defender a necessidade da voz das crianas nas pesquisas sobre a infncia,

    busco, neste artigo, um argumento essencial da abordagem histrico-cultural do

    desenvolvimento humano: a compreenso de que ao se relacionar com a cultura, a

    criana atribui um sentido pessoal ao que conhece. Esse sentido conforma a concepo

    com a qual a criana, a partir da, se dirige cultura para novas apropriaes e

    aprendizados que so promotores do desenvolvimento de sua conscincia em processo

    de formao. Em outras palavras, esse sentido produzido pela criana condiciona seus

    processos de aprendizagem. Desse ponto de vista, parece fundamental que a pesquisa

    sobre a criana pequena contemple sua participao tambm como informante e no

    apenas como objeto desse processo.

    Palavras-chave: Abordagem histrico-cultural; concepo de criana; pesquisa

    com criana pequena.

    1Doutora em Educao pela Universidade Federal de So Carlos/UFSCar e Mestre em Educao pela

    mesma universidade. Graduao em Letras Modernas pela Universidade Estadual Paulista. Atualmente

    professora do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Estadual Paulista/Unesp,

    Faculdade de Filosofia e Cincias/campus de Marlia e vice-lder do grupo de pesquisa Implicaes Pedaggicas da Teoria Histrico-Cultural .

  • Revista Reflexo e Ao, Santa Cruz do Sul, v.18, n2, p.183-197, jul./dez. 2010

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    nova, entre ns, a preocupao em ouvir as crianas nas pesquisas em

    educao e novo, tambm, o enfrentamento desse desafio. De fato, essa nova atitude

    no depende de uma deciso simples. Ao contrrio, a atitude de ouvir as crianas e

    consider-las seja em nossas prticas pedaggicas, seja em nossas pesquisas s

    possvel medida que superamos o conceito de criana que por longo tempo orientou

    nosso pensar e agir na educao das crianas, especialmente das crianas pequenas. O

    conceito de criana como algum incapaz de aprender at atingir certo nvel de

    desenvolvimento nasceu de uma viso adultocntrica de criana pequena que a

    caracterizava predominantemente de um ponto de vista negativo, destacando suas

    incapacidades em comparao com os adultos, a limitao de sua experincia, a

    insuficincia de seus conhecimentos, a incapacidade de pensar logicamente, de controlar

    sua prpria conduta. Como lembra Vygotsky (1995), um ponto de vista negativo que

    nada nos diz das peculiaridades positivas que diferenciam a criana do adulto. Essa

    concepo foi, por muito tempo, sustentada por uma psicologia do desenvolvimento que

    procurava explicar pela herana biolgica as qualidades humanas que, hoje sabemos,

    so sociais e histricas. E, seguindo a lgica do senso comum e da vida cotidiana, esse

    conceito de criana foi, aos poucos, se generalizando para o conjunto das crianas e

    tomou a escola como um todo. Incapazes no seriam apenas as crianas pequenininhas,

    mas as crianas de um modo geral. Ainda que, do ponto de vista do discurso, no

    vejamos essa concepo regularmente anunciada, um olhar para as prticas educativas e

    para as prticas de pesquisa envolvendo crianas denuncia a concepo de criana como

    algum que no sabe e no capaz de aprender concepo que nega, vale dizer, a

    prpria funo anunciada da escola.

    Essa incapacidade da criana refere-se, de um modo geral, a todas aquelas

    atividades que valoramos como coisas de gente grande: por isso nossas crianas no so

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    seno em prticas pedaggicas consideradas alternativas, inovadoras e, por isso,

    diferenciadas chamadas a participar do planejamento de festas ou outras atividades

    que as envolvem, nem das atividades de rotina na escola; no so chamadas a avaliar

    processos vividos, a participar da organizao da sala ou da soluo de problemas em

    que esto envolvidas. Em no raras situaes, nem reconhecemos sua produo. Falo de

    situaes em que os/as professores/as quando permitem que a criana realize uma

    atividade pedaggica proposta se permitem retocar a produo infantil para ficar com

    melhor aparncia. Da mesma forma, no so raras as situaes em que os/as

    professores/as praticam pela criana aes que consideram difceis que esta realize com

    o resultado esperado, ainda que sejam aes propostas pelos/as prprios/as

    professores/as. Em todas essas situaes, no se trata de a criana no saber fazer, mas

    de os/as professores/as no valorizarem sua produo, no perceberem essas produes

    como momentos especficos da apropriao e da objetivao da cultura que as crianas

    vo fazendo ao longo da infncia, como formas livres de experimentao com materiais

    e como expresso valiosa da interpretao que a criana faz daquilo que vive,

    experimenta e aprende. Em outras palavras, como a maneira especifica da criana

    produzir teoria sobre o mundo que a rodeia e as situaes que vivencia e express-las.

    Sem uma compreenso de que as qualidades humanas so histrica e

    socialmente aprendidas e, portanto, precisam ser vivenciadas ativamente pela criana,

    acabamos por impedir sua participao em atividades que ensinam diferentes

    capacidades prticas, intelectuais e artsticas e que iniciam a formao das primeiras

    ideias, sentimentos e hbitos morais, os traos de carter, enfim, os fundamentos da

    personalidade e da inteligncia.

    Por isso, a atitude de desconsiderar a criana ao falarmos sobre ela tem sido uma

    marca dos mtodos de investigao sobre a infncia.

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    Krupskaya, falando das tarefas da educao infantil, em 1932, j defendia a

    necessidade de observarmos as crianas pequenas se quisermos conhec-las e respondia

    criticamente queles que acusavam essa forma de estudar as crianas como uma

    transgresso dos princpios revolucionrios e um desvio em direo ao empirismo:

    Por acaso um mdico pode aprender a curar se no conhece a enfermidade?

    Por acaso podemos educar as crianas se no conhecemos as

    particularidades da idade e do meio em que crescem? (KRUPSKAYA, 1979,

    p. 249).

    Tambm Vygotsky, nessa mesma poca, j apontava a necessidade de uma nova

    perspectiva na pesquisa com as crianas:

    Se tivssemos que determinar de maneira geral quais exigncias bsicas se

    colocam ao problema do desenvolvimento das investigaes modernas, a

    resposta seria que o fundamental o estudo das peculiaridades positivas do

    comportamento infantil (VYGOTSKY, 1995, p. 141).

    Para tanto, como sugere a citao, preciso superar o conceito de criana que

    vem orientando o pensar e o agir nas prticas pedaggicas e nas prticas de pesquisas

    sobre a infncia. Tal superao envolve a apropriao de uma concepo do

    desenvolvimento infantil que questione as compreenses simplistas que abrangem este

    desenvolvimento semelhana dos processos de crescimento das plantas e dos animais,

    como processos naturais, isto , biologicamente determinados, acontecendo por

    acmulo quantitativo no nvel do indivduo e no na relao social. Ainda conforme

    Vygotsky,

    a tarefa que se coloca hoje para a psicologia a de captar a peculiaridade

    real da conduta da criana em toda sua plenitude e riqueza de expanso e

    apresentar o positivo de sua personalidade. Entretanto, o positivo s aparece

    se modificarmos radicalmente a concepo sobre o desenvolvimento infantil

    e se compreendermos que se trata de um complexo dialtico que se

    caracteriza por uma complicada periodicidade, pela desproporo no

    desenvolvimento das diferentes funes, pelas metamorfoses ou

    transformao qualitativa de umas formas em outras, um entrelaamento

    complexo de processos evolutivos e involutivos, pelo complexo

    entrecruzamento de fatores externos e internos, um complexo processo de

    superao de dificuldades e de adaptao (VYGOTSKY, 1995, p.141).

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    Desse ponto de vista, portanto, a prtica pedaggica e a prtica de pesquisa,

    tanto com crianas como sobre crianas, precisam ser fundamentadas por uma

    concepo de desenvolvimento infantil que considere a criana como capaz de

    estabelecer relaes com os outros e com o mundo desde o nascimento e que conceba

    essas experincias vividas socialmente como processos de aprendizagem responsveis

    por impulsionar a formao e o desenvolvimento das qualidades humanas na infncia.

    Para a teoria histrico-cultural, inverte-se a relao entre desenvolvimento e

    aprendizagem que nos acostumamos a pensar a partir das velhas concepes da

    psicologia que, de um modo geral, nos foram ensinadas. Desse ponto de vista, a

    compreenso de que o desenvolvimento aconteceria naturalmente uma vez que

    biologicamente determinado cede lugar concepo da materialidade dos processos

    psquicos. Com isso, passamos a compreender que o desenvolvimento decorre de

    processos de aprendizagem, condicionado socialmente pelas experincias vividas. Essa

    compreenso impulsiona uma mudana na concepo de criana que passa a ser

    concebida como capaz de aprender desde pequenininha, inicialmente com as

    experincias perceptivas que permitimos que viva e, a partir da, vai formando para si

    qualidades humanas, num complexo processo dialtico que envolve, em ltima

    instncia, trs elementos essenciais: os objetos da cultura oferecidos criana; a atitude

    mediadora dos adultos que cuidam e educam a criana ou seja, a concepo de criana

    desses adultos que medeiam a relao da criana com a cultura - e a prpria ao da

    criana. Essa ao da criana se concretiza, como afirma Vygotsky na citao acima,

    numa complicada periodicidade, envolve a transformao qualitativa de umas formas

    em outras, resulta de um entrelaamento complexo de processos evolutivos e

    involutivos, de um complexo entrecruzamento de fatores externos e interno, de

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    superao de dificuldades e de adaptao. E essa complexidade precisa ser

    compreendida pelos adultos que educam a criana.

    Parece importante enfatizar o fato de que esse complexo processo de

    humanizao , na verdade, sinnimo de processo de educao, uma vez que sempre

    mediado, em ltima instncia, por um parceiro mais experiente. Deste ponto de vista,

    vale lembrar Poddiakv (1987), para quem o conhecimento anterior acumulado pela

    criana constitui-se, em muitas circunstncias, em mediador de novos acessos das

    crianas em direo ao que ela ainda no conhece. No entanto, esse processo de

    autodesenvolvimento do pensamento ou de descoberta do desconhecido a partir do que

    j conhecido no garante o acesso ao conjunto da cultura histrica e socialmente

    acumulada. Conforme Leontiev (1978), citando uma imagem utilizada por Pieron para

    destacar o lugar do educador nos processos de educao:

    Se o nosso planeta fosse vtima de uma estranha catstrofe que s poupasse

    as crianas pequenas e na qual pereceria a populao adulta, isso no

    significaria o fim do gnero humano, mas a histria seria inevitavelmente

    interrompida. Os tesouros da cultura continuariam a existir fisicamente, mas

    no existiria ningum capaz de revelar s novas geraes o seu uso. As

    mquinas deixariam de funcionar, os livros ficariam sem leitores, as obras

    de arte perderiam sua funo esttica. A histria da humanidade teria de

    recomear (LEONTIEV, 1978, p. 272).

    Nesse processo de educao do qual resulta a formao das qualidades humanas

    de apropriao de qualidades criadas pelos homens e mulheres que nos antecederam

    ao longo da histria , a criana tem um papel ativo. Considerando os trs elementos

    constitutivos do processo de educao na escola a cultura como fonte das qualidades

    humanas historicamente acumuladas, os professores como mediadores do acesso das

    crianas cultura e a prpria criana , Vygotsky (1994) afirma em relao aos dois

    primeiros elementos que:

    no nenhum dos fatores em si (se os considerarmos sem relacion-los com

    a criana) o que determina como eles influenciaro sobre o futuro do

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    desenvolvimento da criana; mas os prprios fatores percebidos atravs do

    prisma da experincia emocional (parezhivaniya) da criana.

    (...) Em outras palavras, como a criana se informa, interpreta e se relaciona

    emocionalmente com um certo acontecimento: esse prisma que determina

    o papel e a influncia do meio sobre o desenvolvimento (VYGOTSKY,

    1994, p. 341 traduo nossa).

    No processo em que se inteira do mundo e aprende, a criana atribui sentido aos

    significados sociais de que se apropria. Desse ponto de vista, ativa e esse processo

    acontece desde que nasce. Conforme Vygotsky (1996), o primeiro ato humano de

    amamentao comea a criar uma nova necessidade no recm-nascido. Essa nova

    necessidade no biolgica, no essencial sua sobrevivncia, mas social,

    aprendida: a necessidade da relao com o outro. E a partir da, novas necessidades no

    param de se criar na criana pequenininha como resultado de sua experincia social.

    Essa nova concepo de criana capaz de estabelecer relaes que

    paulatinamente vo se ampliando e se tornando mais complexas com o mundo que a

    rodeia desperta no educador e no pesquisador da infncia a necessidade de conhec-la

    em suas peculiaridades positivas. Como que essa nova criana que emerge de um

    novo olhar se relaciona com o mundo e aprende nas diferentes idades?

    Ao mesmo tempo e na mesma perspectiva, se a cultura o meio social e

    histrico e o prprio mediador influenciam o desenvolvimento infantil por meio da

    relao que a criana estabelece com eles, relao essa que condicionada pela vivncia

    pela experincia emocional e pelas experincias anteriores da criana , sua expresso

    condio essencial dessa nossa nova compreenso. Se a apropriao que a criana vai

    fazendo do mundo no linear, mas condicionada por sua experincia emocional, pela

    atividade que realiza em relao ao objeto da cultura com que se relaciona, nosso

    conhecimento de como esse processo se efetiva depende essencialmente de

    conhecermos os sentidos que cada criana vai atribuindo aos elementos da cultura que

    vai conhecendo e do qual vai se apropriando a partir da maneira como os interpreta,

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    como se inteira deles, de como se relaciona emocionalmente com eles. E a condio

    para conhecer esses sentidos a prpria expresso das crianas.

    Para a teoria histrico-cultural, o processo de formao dos seres humanos se

    constitui na relao dinmica entre os processos de apropriao e de objetivao. Em

    outras palavras, no apenas o processo de apreender a cultura, mas tambm aquele em

    que expressamos essa apropriao que vai sendo feita da cultura constituem, ambos, a

    dinmica essencial do processo de humanizao ou de educao. Entendemos, com isso,

    que a expresso condio essencial do processo de formao das qualidades humanas

    nas crianas e, como tal, constitui conhecimento essencial do trabalho de professores e

    pesquisadores que querem avaliar o sentido de seu trabalho. Da mesma forma, a

    objetivao ou seja, a expresso da criana por meio das atividades que realiza

    objeto de estudo do pesquisador que queira conhecer a criana e seus processos de

    desenvolvimento. Mais que conhecer as objetivaes infantis e analis-las com uma

    lgica de pensar e agir prpria dos adultos, ser fundamental ao pesquisador e ao

    professor compreender os sentidos, os motivos das crianas para as atividades que

    realizam. Esses sentidos no se mostram na aparncia dos fatos observados, mas

    precisam ser procurados na forma como as crianas pensam e compreendem, em cada

    etapa de sua vida, as atividades que realizam, as situaes que vivenciam. Adentrar

    nessa lgica infantil a partir do que a criana faz e de como faz condio para

    compreender o processo de desenvolvimento de sua personalidade.

    Desse ponto de vista, a partir da teoria histrico-cultural, temos uma nica

    certeza: os processos psquicos tm origem material, so vividos coletivamente antes de

    serem internalizados pelas crianas. Para alm disso, somos desafiados a descobrir, por

    meio da pesquisa, como as crianas elaboram o que vivem e testemunham. Como se

    inteiram, interpretam e organizam para si os elementos da cultura, isto , os objetos

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    materiais e no materiais, os instrumentos, a lngua, as diferentes linguagens, os hbitos,

    os costumes, os valores, as tcnicas, a cincia, a arte, a filosofia.

    Entendendo, com a teoria histrico-cultural, que a criana, ao se relacionar com

    a cultura, atribui um sentido pessoal ao que conhece, e esse sentido conforma a

    concepo com a qual a criana, a partir da, se dirige cultura para novas apropriaes

    e aprendizados que so promotores do desenvolvimento de sua conscincia em processo

    de formao, parece fundamental que a pesquisa sobre a criana contemple esta tambm

    como informante e no apenas como objeto desse processo.

    As mltiplas linguagens as diferentes formas de expresso , e no apenas a

    linguagem oral, podem facilitar nosso acesso s formas de pensar na infncia, lgica

    das explicaes dos fatos, dos fenmenos, das relaes em diferentes momentos da

    formao e apropriao dessa lgica. Ao mesmo tempo, podemos tomar sua expresso

    por meio de mltiplas linguagens como ponto de partida para uma compreenso que

    pode ser tambm expressa pela linguagem oral, num formato semelhante a uma

    entrevista com roteiro aberto em que o pesquisador dialoga com a criana sobre suas

    teorias de explicao/compreenso da realidade que vai conhecendo.

    Ento, se consideramos que a criana capaz de expressar o que aprende com

    aquilo que vive, e, mais ainda, que sua objetivao faz parte do processo de apropriao,

    procuramos conhecer esse processo. Quando se considera que o processo de pensar

    aprendido, a forma como a criana pensa passa a ser objeto do interesse dos

    pesquisadores e dos professores.

    Em diferentes momentos de sua obra, Vygotsky enfatiza a importncia das

    formas de expresso das crianas. Discutindo a situao da criana pequenininha, o

    autor destaca a contradio entre sua mxima dependncia e, portanto, sua mxima

    necessidade do outro sua mxima sociabilidade e a ausncia dos meios

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    fundamentais de comunicao sob a forma de linguagem humana reconhecida. Essa

    caracterstica da situao social do desenvolvimento da criana pequenininha confere a

    esse momento da vida da criana uma peculiaridade:

    A organizao de sua vida lhe obriga a manter uma comunicao mxima

    com os adultos, mas esta comunicao uma comunicao sem palavras, em

    geral silenciosa, uma comunicao de carter totalmente especfico

    (VYGOTSKY, 1996, p. 286).

    Ao discutir a apropriao da linguagem escrita pelas crianas, Vygotsky aponta

    que, antes de se fazer escrita, a expresso tem uma longa histria que comea com o

    gesto. Para o autor, a tentativa frustrada de alcanar um objeto distante produz um

    movimento que, interpretado pelo adulto, passa a ter um sentido de gesto indicativo.

    Dessa forma, mediado pela compreenso do adulto, o gesto passa a indicativo da

    vontade da criana, passa a ser uma forma de sua expresso. Depois do gesto, vm a

    fala, o desenho e as mltiplas linguagens plsticas, corporais, musicais e o faz-de-conta.

    E por meio de todas essas linguagens, as crianas expressam a forma como interpretam

    o que conhecem e as experincias que vivem.

    Portanto, pensando a criana e seu desenvolvimento do ponto de vista histrico-

    cultural, superamos a velha concepo de criana incapaz que povoa nosso pensar e agir

    docentes o que deve promover um conjunto de transformaes na escola da infncia.

    Para isso, no entanto, essa nova concepo de criana capaz e de aluno capaz, no

    ensino fundamental precisa ultrapassar o nvel do anncio e incorporar-se s prticas

    docentes. No basta saber que teorias defendem e que pesquisas mostram que a criana

    capaz de aprender desde que nasce dentro da especificidade de suas formas de

    relacionar-se com o mundo; tampouco basta anunciar que a aprendizagem o fator que

    move o desenvolvimento. Para incorporar essa concepo s prticas, ns, professores,

    precisamos viver experincias que demonstrem o fazer independente das crianas e suas

    peculiaridades positivas, as capacidades formadas e em formao nas diferentes idades.

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    Promover atividades livres e diversificadas em grupos num espao em que a cultura

    esteja presente sob a forma de objetos diversificados pode nos iniciar nessa nova

    cultura. Objetos diversificados que vo desde os naturais sucata; dos mapas aos

    materiais de arte, passando pelos livros infantis e demais portadores de texto; dos

    objetos eletrnicos aos retalhos de pano; objetos deste e de outros tempos, deste e de

    outros lugares constituem um acervo que provoca a atividade independente e coletiva

    das crianas. Ao perceber as crianas como capazes de se organizarem para

    experimentar com os objetos, poderemos passar a consider-las capazes de participar

    tambm dessa nova organizao do espao da escola que procura contemplar a riqueza

    da cultura acumulada historicamente; capazes tambm de participar da coleta de novos

    materiais. Poderemos convid-las para participar do trabalho dirio de arrumao da

    sala (Russo, 2005) e possibilitar a sugesto de novas formas de organizao do tempo e

    do espao, bem como a utilizao de novos espaos e novos materiais. Nessa

    perspectiva, passamos a relaes mais horizontais e solidrias, sem prejuzo do acesso

    ao conhecimento. Ao contrrio, esse acesso ao conhecimento histrica e socialmente

    acumulado pode se fazer mais intenso porque mais focado em necessidades das crianas

    e tambm naquelas que vo sendo criadas nas crianas papel essencial da escola de

    um modo geral e que, tambm na educao das crianas pequenas, tem como desafio

    essencial a promoo do encontro das pessoas de qualquer idade com a cultura,

    especialmente aquela a que as pessoas no tm acesso em casa, na vida cotidiana.

    A partir da, teremos o espao da sala e da escola organizado para contemplar a

    cultura histrica e socialmente acumulada e tambm para conter as interpretaes dessas

    experincias de conhecimento expressas pelas crianas, as quais chamamos culturas

    infantis. Mais que isso, se passarmos a considerar as crianas como capazes de aprender

    o que ainda no sabem, passaremos a organizar o espao da escola tambm para garantir

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    o acesso de todas as crianas a todos os materiais em tempo integral e no apenas

    naqueles momentos em que o professor julga adequados.

    Esse novo conceito de criana e de como se d seu desenvolvimento tambm

    promove mudanas radicais na atividade da criana, no lugar que esta ocupa na escola

    infantil e na escola de ensino fundamental. Ativa no processo de aprender, quando

    interpreta e atribui sentido ao que vive, a criana aprende o que exercita na atividade

    que realiza (Leontiev, 1998). Desse ponto de vista, essa criana capaz que vemos

    emergir da abordagem histrico-cultural do desenvolvimento humano precisa realizar

    em relao aos objetos de que se apropria e das funes psquicas e capacidades

    incrustadas nesses objetos a funo adequada para a qual o objeto foi criado, ou seja,

    precisa exercitar ela mesma as funes que queremos que aprenda: aprende a pensar

    participando da resoluo de problemas, aprende a falar relatando histrias e fatos

    vividos, trocando teorias interpretativas do mundo com seus pares e com os/as

    professores/as, aprende a avaliar participando de processos coletivos de avaliao,

    aprende a planejar participando do planejamento das atividades. Para tudo isso, no

    entanto, condio essencial a concepo de criana capaz de aprender, ou seja, capaz

    de inteirar-se de, de relacionar-se com, de interpretar e atribuir um sentido, de elaborar

    uma teoria interpretativa ao que vive e v.

    Faz muito pouco tempo que as crianas brasileiras passaram a viver parte de sua

    infncia muitas j vivem a maior parte da infncia em espaos coletivos e extra-

    domsticos de educao e cuidado. Desde que comeamos a pesquisar as crianas nas

    instituies de educao infantil ou, em outras palavras, desde que comeamos a

    pesquisar o processo de humanizao em processos de educao coletiva com crianas

    pequenas -, descobrimos muitos preconceitos, muitas ideias e concepes equivocadas e

    estigmatizadoras sobre a criana e a infncia que orientavam nosso pensar e agir.

  • Revista Reflexo e Ao, Santa Cruz do Sul, v.18, n2, p.183-197, jul./dez. 2010

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    Apenas nos iniciamos nesse processo de necessria reviso de nossas prticas na escola

    da infncia. Do ponto de vista histrico-cultural, esse processo de conhecimento deve

    ser trilhado com um olhar orientado por uma fundamentao terica que explique o

    processo educativo em sua materialidade, o que envolve profundamente a atividade

    docente e a retira do marasmo da naturalizao dos processos.

    Esse caminho, no entanto, no precisa ser solitrio na escola da infncia e do

    ensino fundamental: a criana pode ser a companhia solidria nesse processo de

    recriao da escola na direo de faz-la um exerccio de formao de seres humanos

    cada vez mais humanizados pelo acesso ilimitado cultura.

    THE PLACE OF CHILDREN IN RESEARCH ON CHILDREN: SOME

    PLACEMENTS IN THE PERSPECTIVE OF HISTORIC-CULTURAL THEORY

    Abstract

    Defending the importance of the child's voice in research on childhood, I bring

    in this article, an essential argument of the historical-cultural approach to human

    development: the comprehension that when relating to culture, the child gives a

    personal sense to what she knows. This meaning shapes the new approaches the child,

    from there on, does to culture for new appropriations that promote development of

    conscience. In others words, this sense produced by the child affects her learning

    processes. From this standpoint, it seems imperative that research on infant also

    contemplates their participation as informants and not just as an object of this process.

  • Revista Reflexo e Ao, Santa Cruz do Sul, v.18, n2, p.183-197, jul./dez. 2010

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    Data de recebimento: 24/07/2010

    Data de aceite: 13/09/2010