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  • O LIVRO DAS COISAS PERDIDAS

  • JOHN CONNOLLY

    O LIVRODAS COISAS PERDIDAS

    Tradução deCATARINA ANDRADE

    BERTRAND EDITORALisboa 2010

  • Titulo original: The Book of Lost ThingsAutor: John Connolly

    © 2006 by John ConnollyTodos os direitos para a publicação desta obra em língual portuguesa,

    excepto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1

    1500-499 LisboaTelefone: 21 762 60 00

    Fax: 21 762 61 50Correio electrónico: [email protected]~

    Revisão: Susana Andrade

    Pré-impressão: Fotocompográfica, Lda.Impressão e acabamento: Peres-Soctip SA

    Depósito legal n.° 309 475/10Acabou de imprimir-se em Maio de 2010

    ISBN: 978-972-25-2146-8

  • Este livro é dedicado a um adulto, Jennifer Ridyard, e a Cameron e AlistairRidyard, que serão adultos demasiado cedo, pois em cada adulto vive a criançaque ele foi um dia e em cada criança espera o adulto que ela será.

  • Há um significado mais profundo nos contos de fadas que me leramna infância do que na verdade que é ensinada pela vida.

    FRIEDRICH SCHILLER (17591805)

    Tudo o que podes imaginar é real.

    PABLO PICASSO (18811973)

  • .Era uma vez — pois é assim que todas as histórias devem começar —

    um menino que perdeu a mãe.Na verdade, o menino já andava a perder a mãe há muito tempo. A

    doença que estava a matar era uma coisa sub-reptícia, cobarde, uma doençaque a comia de dentro, consumindo lentamente a sua luz interior, tanto queos seus olhos perdiam o brilho a cada dia que passava e a sua pele ficavamais pálida.

    À medida que ela lhe era roubada, pouco a pouco, o menino foi ficandocada vez mais receoso de finalmente a perder por completo. Ele queria queela ficasse. Ele não tinha irmãos ou irmãs e, apesar de amar o pai, seriaverdade dizer que gostava mais da mãe. Não suportava pensar numa vida sem ela.

    O menino, cujo nome David, fez tudo o que pôde para manter a mãeviva. Rezou. Tentou portar-se bem, para que ela não fosse castigada pelosseus erros. Andava pela casa com passos abafados, tão silenciosamentequanto brincava ás guerras com os seus soldadinhos. Criou um ritual e tentouexecutá-lo tanto quanto podia, pois acreditava que, em certa medida, odestino da mãe estava ligado às suas acções. Saía sempre da cama pondo

  • primeiro pé esquerdo no chão e depois o direito. Contava sempre até vintequando escovava os dentes e parava quando terminava a contagem. Tocavasempre nas torneiras da casa de banho e nas maçanetas das portas umdeterminado número de vezes: os números ímpares eram maus, mas osnúmeros pares eram bons, o dois, importasse com o seis, porque o seis,porque o seis é o dobro de três e o três faz parte do número treze e o treze éna verdade muito mau.

    Se batesse com a cabeça em qualquer lado, batia outra vez para manter osnúmeros pares e, às vezes, tinha de bater uma e outra vez, porque a cabeçaparecia ressaltar contra a parede e estragar-lhe a contagem ou o cabeloricocheteava contra ela quando David não queria que o fizesse, até lhe doer ocrânio do esforço feito e sentir-se atordoado e enjoado. Durante um ano, nodecurso da pior parte da doença da mãe, a primeira coisa que David fazia demanhã era levar os mesmos objectos do seu quarto para a cozinha e de voltapara o seu quarto á noite: um pequeno exemplar de contos de fadasseleccionados de Grimm e uma banda desenhada Magnet com os cantos daspáginas todos dobrados; o livro tinha de ser perfeitamente colocado nocentro da banda desenhada e os dois tinham de estar dispostos com asarestas alinhadas contra o canto do tapete do chão do seu quarto à noite ouna sua cadeira da cozinha preferida de manhã. Destas maneiras, David dava oseu contributo para a sobrevivência da mãe.

    Todos os dias, depois da escola, sentava-se à sua cabeceira, às vezes,falando com a mãe se ela se sentia suficientemente forte, mas outras vezeslimitando-se a vê-la dormir, contando cada respiração difícil e ruidosa queemergia, desejando que ela permanecesse com ele. Frequentemente traziaconsigo um livro para ler e, se estivesse acordada e a cabeça não lhe doessemuito, a mãe pedia-lhe para ler o livro em voz alta. Ela tinha os seus próprioslivros— contos e policias e romances de lombada preta com letraspequeninas—, mas preferiam que ele lhe lesse histórias bem mais antigas:mitos e lendas e contos de fadas, histórias de castelos e demandas e deanimais perigosos e falantes. David não se opunha. Apesar de aos doze anosjá não ser bem uma criança, sentia uma grande afeição por estes contos e ofacto de agradar à mãe ouvir estas histórias contadas por ele fazia com quegostasse ainda mais delas.

    Antes de adoecer, a mãe de David dizia-lhe que as histórias estavam

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  • vivas. Não estavam vivas da mesma maneira que as pessoas, ou mesmo oscães ou os gatos. As pessoas viviam quer se reparasse nelas ou não, enquantoos cães tendiam a fazer-se notar caso sentissem que não se lhes prestava adevida atenção. Os gatos, no entanto, eram muito bons a fingir que as pessoaspura e simplesmente não existiam quando lhes convinha, mas esse era umassunto completamente diferente.

    Contudo, as histórias eram diferentes: elas ganhavam vida ao seremcontadas. Sem uma voz humana para as ler ou um par de olhos arregalados aseguir as letras à luz de uma lanterna por baixo dos cobertores, as históriasnão tinham existência real no nosso mundo. Eram como sementes no bico deum pássaro, à espera de caírem à terra, ou como notas de uma cançãopousadas numa pauta ansiando ardemente que um instrumento desse vida ásua musica. Elas permanecem adormecidas, esperando uma oportunidade deemergir. Assim que alguém as lia, elas podiam começar a mudar. Podiam criarraízes na imaginação e transformar o leitor. As histórias queriam ser lidas,sussurrava a mãe de David. Precisavam de ser lidas. Era a razão por que elasabriam caminho á força do seu mundo para o nosso. Elas queriam que nóslhes déssemos vida.

    Estas eram as coisas que a mãe de David lhe dizia antes de a doença seapoderar dela. A mãe tinha quase sempre um livro nas mãos quando falava epassava ternamente as pontas dos dedos pela capa, tal como o fazia pelorosto de David ou do pai quando ele dizia ou fazia alguma coisa que lhelembrava o quanto gostava dele. O som da voz da mãe era como uma cançãopara David, uma canção que revelava constantemente novas improvisações ousubtilezas nunca antes ouvidas. À medida que foi crescendo e a música setornou mais importante para si (apesar de nunca se tornar mais importanteque os livros), ele pensava na voz da mãe menos como uma canção e maiscomo uma sinfonia, capaz de variações infinitas em temas familiares emelodias que mudavam de acordo com o seu humor e caprichos.

    Com o passar dos anos, ler um livro tornou-se uma experiência cada vezmais solitária para David, até que a doença da mãe os levou de volta aosprimeiros tempos da sua infância, mas com os papeis invertidos. Porém, antesde ela adoecer, David entrava silenciosamente no quarto onde a mãe lia,reconhecendo a sua presença com um sorriso (sempre retribuído) antes de sesentar por perto e mergulhar num dos seus livros e , desta maneira, embora

    13O Livro das Coisas Perdidas

  • os dois estivessem perdidos nos seus próprios mundos, partilhavam o mesmoespaço e tempo. Ao olhar para o rosto da mãe enquanto esta lia, Davidconseguia dizer se a história do livro estava viva dentro dela, e ela no livro, elembrava-se novamente de tudo o que a mãe lhe tinha dito sobre histórias econtos e sobre o poder que estes têm sobre nós e nós, por sua vez, temossobre eles.

    David lembrar-se-ia para sempre do dia em que a mãe morreu. Estava naescola a aprender — ou não aprender — a decompor um poema, a suacabeça repleta de dáctilos e pentâmetros, nomes como os daueles estranhosdinossauros que habitam uma paisagem pré- histórica perdida. O director daescola abriu a porta da sala de aula e aproximou-se do professor de Inglês, osenhor Benjamin (ou Big Ben, como era conhecido entre os alunos, devidoao seu tamanho e ao hábito de tirar o relógio do bolso do colete e anunciarnum tom grave e lúgubre a passagem lenta do tempo aos seus alunos maisindisciplinados). O director segredou algo ao ouvido do senhor Benjamin

    Seus olhos encontraram os de David e a sua voz era mais suave que ohabitual quando falou. Chamou David e disse-lhe que estava dispensado eque devia arrumar a sua mochila e seguir o director. David soube então o quetinha acontecido. Ele sabia bem antes de o director o levar para a enfermariada escola. Ele sabia antes de a enfermeira aparecer com uma chávena de chápara ele beber. Ele sabia antes de ver o director de pé à sua frente, aindaaustero de aspecto, mas tentando claramente ser gentil para com o rapazenlutado. Ele sabia antes de a chávena tocar o seus lábios e de as palavrasserem ditas e de o chá queimar a sua boca, lembrando-o de que ainda estavavivo enquanto a mãe estava agora perdida para ele.

    Mesmo os rituais, repetidos interminavelmente, não tinham sidosuficientes para a manter a salvo. Pensou mais tarde se não teria feito umdeles correctamente, se teria, por qualquer razão, contado mal naquela manhãou se deveria ter adicionado aos muitos outros gestos mais um que pudesseeventualmente ter mudado as coisas. Já não fazia diferença. Ela fora-se. Eledevia ter ficado em casa. Preocupava-se sempre com ela quando estava naescola, porque se estivesse longe dela não teria, então, qualquer controlosobre a sua existência. Os rituais não funcionavam na escola. Era mais difícil

    14 John Connolly

  • executá-los, pois a escola tinha as suas próprias regras e os seus própriosrituais. David tentou usá-los em vez dos seus, mas não era a mesma coisa.Gora a mãe tinha pagado por isso.

    Foi apenas nesse momento que David, envergonhado pelo seu fracasso,começou a chorar.

    Os dias que se seguram foram uma confusão de vizinhos e familiares, dehomens altos e estranhos que lhe passavam a mão pelo cabelo e lhe davamum xelim, e mulheres grandes com vestidos escuros que apertavam Davidcontra o peito enquanto choravam e inundavam os seus sentidos com ocheiro de perfume naftalina. Ele sentou-se já tarde da noite, esmagado contraum canto da sala de estar enquanto os adultos trocavam histórias de uma mãeque ele Ava nunca tinha conhecido, uma estranha criatura com uma históriainteiramente alheia à sua: uma criança que nem sequer chorara quando a suairmã mais velha morrera, porque se recusava a acreditar que alguém tãoprecioso para ela pudesse desaparecer e nunca mais regressar; uma raparigaque fugira de casa durante um dia porque o seu pai, num ataque deimpaciência perante algum pecado menor que ela cometera, lhe dissera que iadá-la aos ciganos; uma bela mulher com um vestido vermelho-vivo que foraroubada de outro homem debaixo do seu próprio nariz pelo pai de David;uma visão de branco no dia do seu casamento que picou o polegar noespinho de uma rosa deixou uma mancha de sangue á vista de todos noseu vestido.

    Quando finalmente adormeceu, David sonhou que era parte destescontos, um participante em cada fase da vida da mãe. Ele já não era umacriança a ouvir histórias de outros tempos. Em vez disso, era uma testemunhade todas elas.

    David viu a mãe pela primeira vez na casa fúnebre antes de o caixão serfechado. Ela parecia diferente e no entanto igual. Parecia-se mais como eraantigamente, a mãe que existira antes de a doença aparecer. Estavamaquilhada, como costumava estar ao domingo para ir á igreja ou quando elae o pai de David saíam para jantar fora ou ir ao cinema. Estava deitada com oseu vestido azul preferido e com as mãos cerradas sobre o estômago. Umterço estava entrelaçado nos seus dedos, mas os seus anéis tinham sido

    15O Livro das Coisas Perdidas

  • retirados. Os seus lábios estavam muito pálidos. David ficou de pé sobre etocou na sua mão com os dedos. Estava fria e húmida.

    O pai apareceu por trás. Só restavam os dois na sala. Os outros já tinhamido lá pra fora. Um carro espera David e o pai para os levar para a igreja. Eragrande e preto. O homem que o conduzia usava um boné com pala e nunca sorria.

    «Podes dar-lhe um beijo de despedida, filho», disse o pai. David olhoupra ele. Os seus olhos estavam húmidos e orlados de vermelho. O paichorara naquele primeiro dia, quando David regressou da escola e ele osegurou nos seus braços e lhe prometeu que ficaria tudo bem, mas nãochorara desde então. David observou-o à medida que uma grande lágrimabrotava dos seus olhos e deslizava lentamente, quase de formaenvergonhada, pela sua face. Virou-se para a mãe. Debruçou-se sobre ocaixão e beijou-lhe a face. Ela cheirava a químicos e a qualquer outra coisa,uma coisa sobre qual David nem queria pensar. Conseguia saboreá-la nosseus lábios.

    «Adeus mãe», sussurrou David. Os seus olhos ardiam. Queria fazer algo,mas não sabia o quê.

    O Pai pôs-lhe a mão no ombro, depois baixou-se e beijou suavemente aboca da mãe de David. Encostou a sua face à face dela e sussurrou qualquercoisa que David não conseguiu ouvir. Em seguida, deixaram-na e, quando ocaixão reapareceu, transportado pelo cangalheiro e pelos seus assistentes,estava fechado e o único indicio de que continha a mãe de David. Encostoua sua face à face dela e sussurrou qualquer coisa que David não conseguiuouvir. Em seguida, deixaram-na e, quando o caixão reapareceu, transportadopelo cangalheiro e pelos seus assistentes, estava fechado e o único indício deque continha a mãe de David era a pequena placa de metal na tampa com oseu nome e as datas do seu nascimento e morte.

    Deixaram-na sozinha na igreja naquela noite. David teria ficado com elase pudesse. Pensava se ela se sentia sozinha, se sabia onde estava, se já estariano Céu pu se isso só aconteceria quando o padre dissesse as palavras finais eo caixão fosse descido à terra. Ele não gostava de pensar na mãecompletamente sozinha, selada por madeira e latão e pregos, mas não podiafalar com o pai sobre isso. O pai não iria perceber e de qualquer maneira nãomudaria nada. Não podia ficar na igreja sozinho, por isso foi para o seuquarto e tentou imaginar como estaria ser para ela. Fechou as cortinas da

    16 O Livro das Coisas Perdidas

  • janela e a porta do quarto para que ficasse tão escuro quanto possível, depoisfoi para baixo da cama.

    A cama era baixa e o espaço sob ela era muito estreito. Ocupava umcanto do quarto, por isso David esgueirou-se para baixo da cama até sentir amão esquerda tocar na parede, depois fechou os olhos com força e ficoumuto quieto. Passado um instante, tentou levantar a cabeça. Bateu com forçanas tábuas do estrado que seguravam o colchão. Empurrou-os com força,mas estavam pregadas. Tentou levantar a cama, empurrando-a para cima comas mãos, mas era muito pesada. Sentiu o cheiro do pó e do seu bacio.Começou a tossir. Vieram-lhe lágrimas aos olhos. Decidiu sair de baixo dacama, mas tinha sido mais fácil esgueirar-se para a posição em que estava doque sair dela. Espirrou e a sua cabeça bateu dolorosamente na parte de baixoda cama. Começou a entrar em pânico. Os seus pés descalços procuravamalgum ponto de apoio no chão de madeira. Agarrou-se às tábuas do estrado eusou-as para se deslocar ao longo da cama até estar suficientemente perto daponta desta para deslizar para fora. Pôsse de pé e encostou-se à parede,respirando fundo.

    A morte era assim: encurralado num espaço pequeno com um grandepeso a mantê-lo em baixo para toda a eternidade.

    A mãe foi enterrada numa manhã de Janeiro. O solo estava duro e todasas pessoas que assistiam ao funeral usavam luvas e sobretudos. O caixãoparecia demasiado pequeno quando o desceram à terra. Em vida, a mãesempre lhe parecera alta. A morte tinha-a tornado pequena.

    Nas semanas que se seguiram, David tentou perder-se nos livros, pois asmemórias que tinha da mãe estava irremediavelmente entrelaçadas em livros eleituras. Os livros dela, aqueles considerados «adequados», foram passadaspara David, que deu por si a tentar ler romances que não entendia e poemasque não rimavam lá muito. Às vezes fazia perguntas sobre eles ao pai, maseste parecia interessar-se pouco por livros. O pai de David costumava passaro seu tempo em casa com a cabeça enfiada em jornais, com pequenas volutasde fumo de cachimbo a elevarem-se das páginas que faziam lembrar os sinaisde fumo feito pelos índios. Era obcecado pelas andanças do mundomoderno, ainda mais agora que os exércitos de Hitler avançavam pela Europa

    17O Livro das Coisas Perdidas

  • e a ameaça de ataques ao seu próprio território se tornava cada vez mais real.A mãe de David dissera-lhe um dia que o pai costumava ler muitos livros,mas abandonara o habito de se perder nas historias. Agora preferia os jornaiscom as suas longas colunas impressas, cada letra traçada cuidadosamente àmão para criar algo que perderia a sua relevância praticamente no mesmoinstante em que era colocado nas bancas, as notícias no interior já velhas e amorrer na altura em que eram lidas, ultrapassadas por acontecimentos de ummundo moderno.

    As histórias dos livros odeiam as historias contidos nos jornais, dizia amãe de David. As histórias dos jornais era como peixe acabado de pescar,digno de atenção apenas enquanto se mantivesse fresco, o que não duravamuito. Eram como miúdos de rua apregoando ruidosamente as edições dofim de tarde, barulhentos e insistentes, enquanto as historias — asverdadeiras historias, as inventadas como deve ser — eram comobibliotecários austeros, mas prestáveis, numa biblioteca bem fornecida. Ashistórias dos jornais eram insubstanciais como fumo, tão breves quanto asefémeras. Não criavam raiz, eram antes como ervas daninhas que rastejavampelo chão, roubando a luz do sol a contos mais merecedores. A mente do paide David estava sempre ocupada por vozes estridentes competitivas, cadauma delas silenciada assim que ele lhes prestava atenção, o seu clamorimediatamente substituído por outro. Isto era o que a mãe de David lhesussurrava com um sorriso enquanto o pai franzia as sobrancelhas e mordiao cachimbo, apercebendo-se que falavam dele, mas sem querer dar-lhes oprazer de mostrar que o estavam a irritar.

    Assim, era da responsabilidade de David salvaguardar os livros da mãe ejuntou-os aos que tinham sido comprados a pensar nele. Eram contos decavaleiros e soldados, de dragões e monstros marinhos, contos tradicionais econtos de fadas, porque eram estas as histórias de que a mãe de Davidgostava quando era pequena e que ele, por sua vez, lhe tinha lido à medidaque a doença tomava conta dela, reduzindo a sua voz a uma suspiro e a suarespiração ao ruído áspero de uma lixa velha a passar por a madeiraapodrecida, até que finalmente o esforço se tornou demasiado e ela deixoude respirar. Depois da sua morte, David tentou evitar aqueles contos antigospor estarem demasiado ligados à mãe para os poder apreciar, mas as históriasnão eram assim tão facilmente ignoradas e começaram a chamar por David.

    18 O Livro das Coisas Perdidas

  • Pareciam reconhecer algo nele, ou era ele que começava a acreditar nisso, algocurioso e fértil. Ele ouvia-as falar: suavemente no início, depois mais alto e demodo mais sedutor.

    Estas histórias eram muito antigas, tão antigas como a humanidade, esobreviviam por serem tão poderosas. Estes eram os contos que ecoavam nacabeça de quem os lia muito depois de os livros quer os continham teremsido postos de parte. Constituíam uma fuga da realidade e, ao mesmo tempo,uma realidade alternativa em si. Eram tão antigas e tão estranhas queencontraram uma espécie de existência independente das páginas queocupavam. O mundo dos contos antigos existia num mundo paralelo aonosso, tal como a mãe de David lhe tinha dito uma vez, mas a parede queseparava os dois mundos tornava-se, por vezes, tão fina e frágil que os doismundos começavam a fundir-se um no outro.

    Foi quando os problemas começaram.Foi quando as coisas más aconteceram.Foi quando o corcunda começou a aparecer-lhe.

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