o legado de raphael rabello

25
1 O VIOLÃO DO BRASIL NO SÉCULO XX: O LEGADO DE RAPHAEL RABELLO 1 Marcos César Santos Silva 2 Resumo O escopo do artigo é discutir a obra e contribuição do violonista Raphael Rabello para o violão e a música popular brasileira, a partir de uma contextualização histórica e circunstanciada. A obra de Raphael Rabello é analisada através de suas criações técnicas híbridas para o violão de seis e de sete cordas, além da contribuição da inserção do violão de sete cordas nas salas de concerto. Palavras – chave: Violão; Violonistas do Século XX; Raphael Rabello. Epígrafe Raphael cara de anjo, mãos de gênio, alma da gente. Amigo que se foi sem autorização. Infrator da vida. Meu irmão. (Betinho, 1995) 1. Introdução Rabello consolida uma nova era para o violão brasileiro, desde as possibilidades de novas técnicas até conceitos estéticos. O violonista traz influências pertinentes de seus transcendentes antecessores, e recria, a partir de sua genialidade, um novo violão de seis e sete cordas, se consolidando como um dos maiores expoentes em todos os tempos. Apesar de ter vivido apenas 32 anos, Rabello vivencia a música em sua plenitude. Dotado de talento e disciplina, deixou um legado indiscutível para o violão brasileiro, com seu estilo e repertório até então pouco explorado. Muitas de suas gravações são consideradas antológicas e até hoje servem como referência para todo violonista. O objetivo do artigo é informar aos músicos e educadores musicais a relevância do violonista Raphael Rabello, através de seu legado. Rabello é a 1 Artigo elaborado como forma de avaliação parcial da disciplina (TCC), Trabalho de conclusão de curso sob a orientação do professor doutorando Armando Castro, e em especial ao meu co-orientador Luciano Machado, Dr. em Engenharia Aeroespacial pelo Texas A&M University (EUA). 2 Graduando no curso de Licenciatura em Música da Universidade Católica do Salvador 2010/01. E-mail: [email protected]

Upload: paciell

Post on 17-Dec-2015

92 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

violao

TRANSCRIPT

  • 1

    O VIOLO DO BRASIL NO SCULO XX: O LEGADO DE RAPHAEL RABELLO 1

    Marcos Csar Santos Silva2

    Resumo

    O escopo do artigo discutir a obra e contribuio do violonista Raphael Rabello para o violo e a msica popular brasileira, a partir de uma contextualizao histrica e circunstanciada. A obra de Raphael Rabello analisada atravs de suas criaes tcnicas hbridas para o violo de seis e de sete cordas, alm da contribuio da insero do violo de sete cordas nas salas de concerto.

    Palavras chave: Violo; Violonistas do Sculo XX; Raphael Rabello.

    Epgrafe

    Raphael cara de anjo, mos de gnio, alma da gente. Amigo que se foi sem autorizao. Infrator da vida. Meu irmo. (Betinho, 1995)

    1. Introduo

    Rabello consolida uma nova era para o violo brasileiro, desde as possibilidades de novas tcnicas at conceitos estticos. O violonista traz influncias pertinentes de seus transcendentes antecessores, e recria, a partir de sua genialidade, um novo violo de seis e sete cordas, se consolidando como um dos maiores expoentes em todos os tempos. Apesar de ter vivido apenas 32 anos, Rabello vivencia a msica em sua plenitude. Dotado de talento e disciplina, deixou um legado indiscutvel para o violo brasileiro, com seu estilo e repertrio at ento pouco explorado. Muitas de suas gravaes so consideradas antolgicas e at hoje servem como referncia para todo violonista. O objetivo do artigo informar aos msicos e educadores musicais a relevncia do violonista Raphael Rabello, atravs de seu legado. Rabello a

    1 Artigo elaborado como forma de avaliao parcial da disciplina (TCC), Trabalho de concluso de curso

    sob a orientao do professor doutorando Armando Castro, e em especial ao meu co-orientador Luciano

    Machado, Dr. em Engenharia Aeroespacial pelo Texas A&M University (EUA).

    2 Graduando no curso de Licenciatura em Msica da Universidade Catlica do Salvador 2010/01.

    E-mail: [email protected]

  • 2

    continuao de uma dinastia iniciada no inicio do sculo XX, e que se corrobora na atualidade com uma das maiores escolas de violo do Mundo. Apesar das dificuldades existentes na educao musical do pas, o artigo preocupou-se em preservar a contribuio artstica de Rabello, podendo o educador musical, inserir e interdisciplinar nas escolas a contribuio incomensurvel do violonista, fomentando sobremaneira, a cultura. Este artigo est dividido em 10 sees. A seo 2 apresenta uma breve discusso sobre sua biografia, discografia e as bases familiares de Raphael Rabello que o influenciaram a se tornar um violonista. Uma breve histria do violo brasileiro apresentada na seo 3, onde so discutidos os principais precursores do violo brasileiro e tambm suas influncias no desenvolvimento do instrumento e na obra de Rabello. A seo 4 discute a contribuio tcnica de Raphael Rabello, a originalidade de seus arranjos e as influncias flamencas. O seu violo de sete cordas avaliado na seo 5, enquanto que a seo 6 apresenta o Rafael como compositor e o idiomatismo de seus arranjos. As influncias de Rabello em escolas de choro e violonistas rfos so tratadas na seo 7. As consideraes finais e obra autoral so apresentadas respectivamente nas sees 8 e 9. Conclumos com as referncias bibliogrficas na seo 10. Alm disso, a elaborao do artigo contou com uma pesquisa de campo, capas e contracapas de cds, videos e aplicao de uma entrevista semi-estruturada de Luciana Rabello, cavaquinista e irm de Rabello.

    2. A Biografia e Discografia de Raphael Rabello

    Rafael Baptista Rabello, que posteriormente adotou o nome artstico de Raphael Rabello, nasceu em 31 de outubro de 1962 em Petrpolis (Rio de Janeiro). Ele era o caula de uma famlia numerosa e com grande vocao musical. Seus avs Jos Queiroz Baptista (materno) e Flaviano Lins Rabello (paterno) tambm eram msicos e tocavam violo, sendo que Sr. Jos foi o primeiro professor de msica dos seus nove netos. Nessa poca, enquanto seus irmos aprendiam msica com Sr. Jos, o menino Raphael, pegava o

  • 3

    violo s escondidas e estudava sozinho, conforme conta Luciana Rabello. Um dia, em uma reunio familiar, o garoto com aproximadamente 8 anos surpreendeu a todos tocando Brejeiro de Ernesto Nazareth. Nesta poca s os irmos Fabiano e Luciana sabiam que Raphael comeara a aprender violo sozinho. A partir de ento, comea a ter aulas informais com seu irmo Ruy Fabiano e mais tarde com violonista Rick Ventura, amigo da famlia, essas aulas so mais do ponto de vista da intuio e observao de Rabello, e perduram at seus 11 anos.

    [...] Aos poucos, sua intuio para o acompanhamento foi desabrochando de uma forma surpreendente. (...) Por volta dos 10 anos de idade, Raphael se apaixonou perdidamente pelo disco Vibraes, do poca de Ouro de Jacob do Bandolim. Encantava-lhe especialmente o violo de Dino, a tal ponto que muitas vezes ele vinha minha casa s para ficar ouvindo o disco. De tanto ouvir, quase gastou todo o vinil, tornando precria em poucos dias a sua audio. O resultado que Raphael conseguiu, em menos de duas semanas acompanhar todo o disco imitando o violo de Dino com todas as notas a que tinha direito. Em mais algumas semanas j estava fazendo suas prprias variaes. Quanto ao repertrio que eu havia passado pessoalmente e ele nessa poca, poucos meses depois j conseguia me superar visivelmente. Acredito que se pudssemos traz-lo de volta hoje, com seus 10 anos de idade, faria qualquer violonista ficar boquiaberto, no s com a sua competncia tcnica, como a sua maturidade musical que demonstrava em suas interpretaes (VENTURA apud BORGES, 2008, pg 99)

    Em 1974, por indicao do bandolinista Deo Rian, Raphael comea a ter aula de violo com Jayme Florence, conhecido como Meira, que tambm tinha sido professor de violonistas como Baden Powell, Joo de Aquino e Maurcio Carrilho. Meira comea a ensinar Rabello por mtodos clssicos da literatura universal do violo, explorando compositores como Francisco Trrega, Agustn Barrios, etc. A primeira msica que Meira o ensinou, foi o Choro da Saudade, de Barros, conforme conta o prprio Rabello no Programa Ensaio da TV Cultura. importante mencionar que, alm do estudo de peas do violo erudito, Meira, tambm orientava os alunos a tocar os encadeamentos harmnicos em qualquer tonalidade, fomentando o choro que sedimentaria a formao de Rabello.

    A carreira profissional de Raphael comeou bem cedo. Quando tinha aproximadamente 14 anos, em 1976, e j tocando em violo de 7 cordas (

  • 4

    totalmente influenciado por Dino, at na maneira de andar, e de se vestir), Raphael participa da criao do grupo Os Carioquinhas. Alm do prprio Raphael (violo de 7 cordas) e de sua irm Luciana (cavaquinho), o grupo era formado por Celso Alves da Cruz (clarinete), Celso Silva (pandeiro), Maurcio Carrilho (violo), Mrio Florncio Nunes (percusso), Paulinho Alves (bandolim), e Teo de Oliveira (arranjador).

    Achava que aquilo era uma brincadeira, uma coisa que ia passar. S me dei conta de sua grandeza quando o Paulinho comeou a dizer: Lila, o seu irmo um gnio. (Lila Rabello apud Souza, 1991, p.12)

    Os Carioquinhas gravaram apenas um lbum, em 1977, intitulado Os Carioquinhas no Choro, onde umas das faixas, Gadu namorando de Lalau e Alcyr Pires Vermelho, fora includa na trilha sonora da novela A Sucessora 1978 da TV Globo. Ainda no ano de 1977, Rafael apresentado por Hermnio Belo de Carvalho ao violonista Turbio Santos3, que logo o integra ao seu grupo que gravaria o LP Choros do Brasil com produo do prprio Hermnio, editado tambm na Europa. Com o desfecho dos carioquinhas em 1979, Joel Nascimento,4 solicita a Radams Gnattali que transcrevesse para pequeno conjunto sua famosa Sute Retratos5, que foi composta originalmente para concerto de bandolim e, dedicado a Jacob do bandolim. Gnattali atende ao pedido e nasce o conjunto Camerata Carioca batizado por Hermnio Belo de Carvalho. Assim, Joel Nascimento aproveitou a maioria dos integrantes dos Carioquinhas: Luciana Rabello (cavaquinho), Joel Nascimento (bandolim), Maurcio Carrilho e Luis

    3 Turbio Santos j era um violonista bastante reconhecido internacionalmente quando convidou

    Raphael para participar da gravao deste disco. Em 1965, Turibio Santos conquistara o 1 Prmio no VII

    Concurso Internacional de Guitarra da ORTF (Office de Radiodiffusion et Television Franaise) em Paris

    [REF].

    4 Msico, compositor bandolinista de choro. Nasceu no Rio de Janeiro em 1937.

    5 Sute, palavra de origem francesa que significa srie ou sucesso. Em msica, designada como

    sucesso de peas em andamentos contrastantes. A Sute Retratos, composta de quatro

    movimentos: 1 Pixinguinha - Choro, 2 Ernesto Nazareth - Valsa, 3 Anacleto de Medeiros - Schottisch e

    4 Chiquinha Gonzaga Corta-jaca.

  • 5

    Otvio Braga, posteriormente substitudo por Joo Pedro Borges6 (violes de seis cordas), Raphael Rabello (Violo de 7 cordas) e Celso Silva (percusso). Em agosto de 1979, sob a direo do prprio Hermnio, o conjunto apresenta no Rio de Janeiro, o show Tributo a Jacob do bandolim, na passagem dos dez anos de morte do bandolinista. No mesmo ano, lanado em disco a Sute retratos, e seis composies de Jacob com a participao de Radams ao piano.

    Segundo Lus Otvio Braga (entrevista concedida, 2008 a Fabiano Borges), o contato com Gnattali durante os seis anos da Camerata Carioca, foi emblemtico para todos os integrantes, e foi justamente por meio desse contato, que Rabello consolidou uma forte relao musical com Gnattali. (BORGES, pg 100). [...] Radams era... Foi super legal, super, ensinou tudo pra mim e pra todo mundo que chegava perto dele, ele era generoso n, ele era um humanista praticamente, todo mundo que se aproximava, ele ajudava e... Vrias geraes, desde Tom Jobim at... Raphael Rabello completa J Soares. (Raphael Rabello no Programa J Soares Onze Meia 1990).

    A partir de 1981, Rabello comea a gravar para diversos artistas da msica popular brasileira, como Caetano Veloso, Djavan, Cazuza, Leila Pinheiro, Adriana Calcanhoto, Nelson Gonalves, Elizeth Cardoso, Gal Costa e Ney Matogrosso, Joo Bosco, ngela Maria, Cauby Peixoto, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Maria Bethania, Gilberto Gil, entre outros, contabilizando mais de quatrocentas gravaes.

    ...Raphael Rabello tinha uma caracterstica que o fazia ser muito solicitado para gravaes de estdio: ele fazia as gravaes de primeira. Como os msicos eram pagos pelo perodo que ficavam no estdio, ele costumava entrar para gravar o violo de um disco inteiro [...] (LUCIANA RABELLO, REVISTA VIOLOPRO n 27 pg 19).

    Ainda neste ano, recebe o prmio de melhor violonista pela Associao Brasileira de Produtores de Discos (Prmio Vinicius de Moraes) e tambm pelo corpo de crticos da revista Playboy. 6 Turbio Santos (entrevista concedida, BORGES, 2008) ressalta que, aps as turns, Joo Pedro Borges

    ministrava aulas de teoria e ensinava msica erudita a Raphael Rabello. Turbio assevera: ns fomos uma influncia muito importante para ele se transformar num solista e para ele assimilar essa condio de solista que ele tinha e que era maravilhosa, espetacular, genial....

  • 6

    O primeiro disco solo de Raphael Rabelo foi lanado em 1982 pela Polygram, intitulado, Rafael Sete Cordas. Alm de clssicos do choro como Sons de Carrilhes, e Interrogando de Joo Pernambuco, Garoto de Tom Jobim e Choro da Saudade de Agustn Barrios, este disco conta ainda com uma composio do prprio Raphael, Sete Cordas. Alm disso, destaca-se a complexa execuo da msica O Vo da mosca de Jacob do bandolim. No mesmo ano, Raphael grava acompanhado ao piano de Radams Gnattali, o disco Tributo a Garoto com composies do prprio Garoto e a reduo para piano e violo do Concertino n 2 de Radams, composto originalmente para violo e orquestra. A carreira internacional de Raphael decola, ainda na dcada de 80, e ele se apresenta em diversos palcos nos Estados Unidos, Canad, Mxico, Chile, Argentina e vrios pases da Europa. No ano 1987, homenageia seu mestre Radams com composies do prprio, ao lanar, Rafael Rabello interpreta Radams Gnattali. O disco intitulado, Rafael Rabello, lanado em 1988, com participaes de Dino 7 Cordas, Dininho e Chiquinho do Acordeon. Vale pena salientar o arranjo que Raphael fez para a msica Lamentos do Morro7, de Garoto, tornou-se uma referncia para todo violonista. Em 1989, Rabello sofre um grave acidente a bordo de um taxi no bairro do Leblon (Rio de Janeiro), causando fraturas mltiplas em seu brao direito que o levou a uma cirurgia complicada, na qual implantou nove pinos em seu brao direito. O mdico deu um ano para voltar a tocar, entretanto, em quatro meses ele surpreende a todos ao aparecer em turn com Elizeth Cardoso. O trabalho em duo com Elizeth Cardoso gerou o disco Todo o Sentimento, gravado em 1989. Contudo, este disco s foi lanado em 1991, um ano depois da morte da cantora.

    7 Lamentos do morro: Samba composto nos anos 40 em que Rabello se tornou uma espcie de co-autor.

    Rabello introduz afinao da 6 corda em R, uso do dedo mnimo da mo direita, baixos em alta

    velocidade na introduo atravs dos dedos polegar e indicador da mo direita, melodia principal

    oitavada, improvisos etc...

  • 7

    A carreira de Raphael Rabello tambm foi bastante produtiva na dcada de 1990. Com Ney Matogrosso gravou em 1990, o disco flor da pele, apresentando-se por todo o Brasil.

    J em 1991, ao lado de Chiquinho do Acordeon e Dininho no violo baixo, lanou disco Radams Gnattali Retratos. No mesmo ano, Rabello cede o violo de 7 cordas para seu grande dolo Dino 7 Cordas, e toca no seis para gravao do lbum histrico, intitulado, Rahael Rabello e Dino 7 Cordas. Esta foi primeira vez em 56 anos de carreira, que o Dino tem o seu nome na capa de um disco.

    Quando vi o Dino tocar, tive certeza do que eu queria fazer em msica. Tive certeza que eu queria tocar violo; acabaram-se as dvidas. Eu mudei minha vida. Quis ser igual a ele, me vestir igual a ele; foi a nica maneira de mergulhar culturalmente naquilo e aprender, porque uma escola que no est escrita e na hora me deu um estalo: isso a vai morrer com eles; um troo to genial, to nico, uma maneira de pensar harmonia e baixo cantado, um tipo de harmonizao que j no existe mais. Eu tenho mais que sugar esse troo. Comecei a andar com o Dino, que me pegava aos finais de semana em casa e me levava para o choro. Fiquei tendo esse tipo de aula. Ele me deu muita fora e eu fiquei sendo o cara que ia continuar o negcio dele. Me dediquei inteiramente ao Dino por muitos anos; uns 15 anos; me dediquei a estudar tudo o que ele fez: a saber tudo o que ele sabia. Hoje em dia, eu e ele uma coisa s; meu trabalho, mesmo solando, tem influncia do Dino. A inflexo igual, o sotaque... (RABELLO apud TABORDA apud, 1995, p.69199).

    Rabello realiza um sonho de dez anos de pesquisa ao lanar em 1992, Todos os Tons, um lbum dedicado a Tom Jobim, com participao de msicos como: Paco de Lucia8, Leo Gandelman, Nico Assumpo, Paulo Moura, Jaques Morelembaum e, inclusive o prprio Tom Jobim. Segundo Rabello, um trabalho que contou com apoio do prprio Tom, ele fazia as transcries e o mostrava, porque no queria mudar o carter de sua msica, deixando-a na linguagem do violo.

    8 "O melhor violonista que eu j ouvi em anos. Ele ultrapassou as limitaes tcnicas do violo, e sua

    msica vinha progressivamente de sua alma, diretamente para os coraes de quem o admirava."

    (Lucia ) 1987.

  • 8

    O lbum foi elogiado pelo prprio Jobim que considerava o violonista como um dos maiores msicos de todos os tempos. Tudo o que Rafael faz sensacional. Ele um gnio do violo, um cometa musical desses que aparecem uma vez a cada sculo. (JOBIM, 1991, pg 33)

    [...] Tom representa o seguimento de uma dinastia na msica brasileira dos neo-nacionalistas contemporneos que comeou com Villa-Lobos, seguiu com Radams Gnattali e vem seguindo agora com o Tom [...] (Raphael Rabello em entrevista ao Programa Metrpolis 1993).

    Ainda 1992, ao lado do violonista Romero Lubambo, grava em Nova York, o disco Shades of Rio. Voltando ao Brasil, no mesmo ano, Rabello grava mais uma vez em duo, o disco Dois irmos, com o clarinetista Paulo Moura, recebendo em 1993, o prmio Sharp9 de melhor disco instrumental. Em 1993, com o bandolinista Do Rian, lana o disco Delicatesse10, composto de msicas eruditas. Ainda neste ano, apresenta-se em So Paulo, no Projeto Brasil Musical, dividindo show com Armandinho Macedo. Rabello acompanhado por Luciana Rabello, Maurcio Carrilho, Wilson das Neves e Dininho. O show foi lanado em cd no ano de 1996 pela Srie Msica Viva. O lbum Relendo Dilermando Reis, com composies e msicas que ficaram conhecidas com prprio Dilermando, foi lanado em 1994, recebendo outra vez o prmio Sharp. No mesmo ano Rabello e Armandinho Macedo, apresentam-se no Jazzmania, Rio de Janeiro, dessa vez em duo, trs anos depois, foi lanado em cd intitulado, Raphael Rabello e Armandinho Macedo em concerto. Ainda em 1994, a convite do Violonista Laurindo de Almeida11, passou a residir em Los Angeles, (Estados Unidos) e por l, leciona em uma escola de curso superior de msica, onde tambm grava em duas tardes o cd intitulado, Cry, my guitar! Lanado 11 anos aps sua morte. 9 Rabello recebeu quatro vezes tal prmio. Em 1991, com Carlo pelo disco conjunto; em 1992, pelo

    disco Dois Irmos com Paulo Moura; e, em 1994 e 1995, como melhor solista (MARCONDES, 2000, p.659 apud Borges, 2008, pg 102)

    10 Com Delicatesse, Rabello evoca seu lado erudito em interpretaes magistrais de compositores como:

    Chopin, Tschaikowsky, Monti, Schumann, Ponce, Brahms, Schubert e outros.

    11 Violonista brasileiro que residia nos Estados Unidos desde 1947. Atuou como violonista e arranjador

    de centenas de filmes se tornando o msico brasileiro campeo em prmios Grammy.

  • 9

    Retornando ao Brasil, se tranca em estdio para gravaes do projeto Mestre Capiba por Raphael Rabello e Convidados, no repertrio, msicas do compositor pernambucano com interpretaes de diversos artistas da msica brasileira, tais como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Joo Bosco, Ney Matogrosso, Gal Costa, Maria Bethnia, Caetano Veloso, Milton Nascimento em duo vocal com o prprio Rabello, dentre outros. No conclui o trabalho, pois, a mesma velocidade que o levara ao reconhecimento mundial, o tirava a vida, Raphael Rabello falecera em 27 de abril de 1995, aos 32 anos, no Rio de Janeiro12. Rabello foi casado com Liana Rabello e teve duas filhas, Diana e Rachel.

    3. Breve histria do violo no Brasil

    O violo durante os sculos esteve bastante presente na vida dos brasileiros como instrumento da bomia, s margens da sociedade. Era utilizado pelos negros e seresteiros para acompanhamento de canes populares. Na Espanha em meados do sculo XIX, ganha nova e atual forma, graas ao luthier13 espanhol Antnio Torres que altera a forma e o tamanho da caixa, deixando-a mais larga e em forma de oito.

    Em meados do sculo XIX, comea a se difundir no Brasil a msica da pianista Chiquinha Gonzaga e do flautista Antnio Callado o choro, primeiro 12 Dois anos depois do acidente de taxi, fazendo exames de rotina, detectado em seu sangue o vrus HIV, contrado atravs da transfuso de sangue, algo irresponsvel e muito comum a poca. A partir da, sua vida vira um inferno astral. Rabello no aceitava a doena, passando a ter medo de morrer antes consolidar sua obra. Alm de sofrer de apnia, interrupo da respirao durante o sono, passando ento a no dormir mais, Raphael torna-se viciado em cocana e anfetaminas, vivendo em um ritmo alucinado contra seu prprio tempo em permeio as drogas. Apesar de ser soro positivo, no desenvolveu a doena, sua morte prematura aos 32 anos, seis anos aps a transfuso, foi atribuda a um enfarte durante o sono numa clnica para viciados em drogas.

    "No tem explicao pra isso. uma tragdia at hoje pra todos. Uma fatalidade sem

    conformao. Um erro imperdovel da medicina. Ele foi contaminado numa transfuso de sangue e

    nem ele nem ns pudemos conviver com isso nunca." (LUCIANA RABELLO, entrevista concedida, 2010)

    13 Palavra oriunda do francs que significa fabricante de instrumento de corda.

  • 10

    gnero tipicamente brasileiro, onde posteriormente o violo passa a ser integrante indissocivel. A partir da, o violo comea a ganhar espao de forma gradativa.

    Em 1917, dois violonistas em turn no Brasil assombram a crtica tocando violo de uma forma bem inusitada. O paraguaio Augustn Barrios e a espanhola Josefina Robledo eleva o instrumento e aos poucos ele vai ganhado notoriedade, Josefina permanece no Brasil e fomenta o mtodo de Francisco Trrega14.

    Dentre as boas tradies brasileiras, a que se relaciona ao violo , sem dvida alguma, uma das mais importantes e prolficas. Ao longo do ltimo sculo, o violo brasileiro traduziu de forma eficaz e particular os principais aspectos da nossa cultura musical, fazendo parte dos mais variados tipos de manifestaes culturais do nosso povo. De essncia fortemente popular, o violo brasileiro foi tambm, durante o sculo passado, um instrumento de expresso de idias musicais de grandes mestres eruditos como Heitor Villa-Lobos e outros. (PEREIRA, 2009).

    A partir de ento, cresce o interesse pelo instrumento, ainda que de uma forma autodidata pelo pas, sobretudo no eixo Rio / So Paulo. No Rio de Janeiro aparecem as figuras de Satyro Bilhar e Quincas Laranjeiras como um dos precursores do choro. Em So Paulo, destacam-se Amrico Jacomino (Canhoto) e Anbal Augusto Sardinha (Garoto).

    a. Os Transcendentes:

    No sculo XX, o Brasil se consolida como uma das maiores escolas de violo do Mundo, atravs daqueles que chamaremos de violonistas transcendentes. Eles contriburam com inovaes estilsticas e tcnicas, denotando uma peculiaridade inconfundvel ao introduzir tcnicas do violo erudito aos gneros tipicamente brasileiros. Essa escola de violonistas segue at os dias atuais, afinal, transcender elevar o instrumento dando possibilidades de novas tcnicas, expresso

    14

    Nascido em 1852 na cidade de Villareal (Espanha), Trrega, foi importante violonista. O mtodo

    Trrega est associado postura, uso de banquinho, toque com apoio, estudo de peas eruditas etc,

    porm, nada foi teorizado, ou seja, uma maneira Trrega .

  • 11

    musical, composio, arranjo, e fuso de estilos. Atributos que no faltaram aos violonistas brasileiros do sculo XX.

    O Choro, primeiro ritmo tipicamente brasileiro o alicerce do violo nas primeiras dcadas do sculo passado. Inicialmente o papel do violo limitava-se apenas como integrante dos conjuntos de chores15. Apesar desse papel secundrio, o choro influenciaria os maiores expoentes do violo brasileiro. Esses violonistas utilizaram os elementos do gnero para compor um repertrio relevante para o instrumento, sendo Joo Pernambuco o pioneiro. A partir de ento, o violo comea a elevar a sua importncia, deixando de ser um instrumento meramente de acompanhamento para se tornar tambm um instrumento solista.

    Joo Teixeira Guimares ou Joo Pernambuco nasceu em jatob, Pernambuco, em 2 de novembro de 1883. Ele era semi-analfabeto, e trabalhara como ferreiro. Aos 12 anos de idade, Joo comea a tocar viola por influncia dos cantadores e violeiros de Recife, cidade onde morava nesse perodo. Em 1904 passa a morar no Rio onde residiam dois irmos, levando consigo o violo.

    Joo Pernambuco deixou um legado indiscutvel, impossvel ser violonista sem tocar suas msicas, sua obra foi gravada por diversos violonistas do Brasil e do exterior, salientando msicas como Interrogando, Grana, Sonho de Magia e a ilustre Sons de Carrilhes16.

    Contemporneo a Joo Pernambuco, Amrico Jacomino o Canhoto, aparece tocando o violo com uma tcnica peculiar, o violo ao avesso. Canhoto tocava em violo para destro, porm sem inverter as cordas. As cordas agudas (Mi, Si e Sol) eram tocadas com o polegar da mo esquerda, enquanto que as graves (R, L e Mi) eram tocadas com os dedos anular, mdio e indicador.

    Canhoto divulgou o violo por todo o pas atravs de viagens, concertos, e inaugurao da primeira Rdio Educadora Paulista, posteriormente, Rdio 15

    Msicos que integram o Regional de Choro.

    16 Sons de carrilhes foi gravada por Rabello em seu primeiro lbum solo, Rafael Sete Cordas de 1982,

    no disco de 1991 com Dino 7 Cordas e no lbum Relendo Dilermando Reis.

  • 12

    Gazeta. Ele deixou aproximadamente cem composies de diversos gneros, destacando Marcha dos Marinheiros, Marcha Triunfal Brasileira e a clebre valsa (Abismo de Rosas) 17. Heitor Villa-Lobos, maior compositor brasileiro de todos os tempos, desbravador do perodo Nacionalista, agregou os elementos do folclore brasileiro a sua msica. Villa-Lobos um transcendente universal, sua msica atravessou as fronteiras, sua obra para o violo pequena, todavia, a mais sublime e executada do sculo XX, no total de vinte e trs. Villa-Lobos redimensionou o violo dando possibilidades tcnicas inusitadas poca. Seus doze estudos para violo, dedicados ao o violonista espanhol Andrs Segovia18, so objeto de estudo de todos os conservatrios no Mundo, Villa-Lobos o paradoxo do popular e o erudito! Sua obra colocou o violo em p de igualdade com qualquer outro instrumento, inserindo-o, as salas de concerto. Isaas Svio nasceu no Uruguai no ano de 1900, Svio sistematizou o ensino do violo no Brasil, incluindo o violo como cadeira no Conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo. Foi professor de ilustres violonistas em todo pas como: Marco Pereira, Luiz Bonf, Carlos Barbosa Lima, Toquinho, Paulo Bellinati e educadores como Henrique Pinto, que continuou o legado do Mestre, e hoje o maior pedagogo do violo no pas. Jaime Thoms Florence, conhecido como Meira, ajudou a divulgar o choro pelo pas ao integrar o Regional de Benedito Lacerda. Como professor, ensinou os caminhos do violo a dois dos maiores transcendentes deste pas, Baden Powell e Raphael Rabello. Como compositor, viu Molambo19, se tornar um clssico da msica brasileira.

    17

    Gravada por Rabello no lbum Relendo Dilermando Reis.

    18 Segovia, virtuose violonista que mudou o conceito do violo no Mundo, elevando o instrumento ao

    status de nobreza.

    19 Molambo foi gravada por Rabello no lbum flor da pele, e em verso solo de um cd coletnea

    intitulado, Os Bambas do Violo.

  • 13

    Anbal Augusto Sardinha, o Garoto 20, foi um dos maiores violonistas brasileiros. Compositor de elegncia altura do violo, o violo popular para a aristocracia, Garoto, mescla elementos do jazz com gneros como o choro e samba em forma homofnica, melodia com acompanhamento de acordes. Para muitos o precursor da bossa nova.

    Dilermando Reis, vituorse e compositor de prestgio, gravou inmeros discos, ficou conhecido em todo Brasil por ter sido tambm um violonista contratado pelas rdios, algo inusitado para um violonista, j que o rdio vivia sua poca urea de grandes cantores.

    Dino 7 Cordas, o maior expoente deste violo, que ampliou os horizontes dando novas possibilidades tcnicas, harmnicas e meldicas. Dino criou uma escola de violo de choro e samba que influenciou todas as geraes posteriores. Atualmente existe uma nao de seguidores deste violo, o chamado, 7 cordas tradicional.

    Paulinho Nogueira o paradoxo de simplicidade meldica e harmonia aristocrtica, a elegncia do violo brasileiro. Compositor de merecido reconhecimento destaque para Bachianinha n1 em homenagem a o compositor alemo Bach, inserida nos conservatrios internacionais.

    Baden Powell, mgico, inventor, desbravador? Predicados no faltam a esse Senhor das cordas. Baden o que chamamos de popular de concerto, aquele que conseguiu agregar os elementos da percusso em seu violo, criando possibilidades tcnicas impressionantes, Baden Powell a nova escola do violo brasileiro. Divisor de guas contribuiu em todas as vertentes para o violo do Brasil. Joo Gilberto, violonista de acompanhamento que influenciou todas as geraes posteriores com sua forma de tocar o violo. Joo assombra a crtica com o disco Chega de Saudade 1959, Um marco para a bossa nova, seu violo considerado uma pequena orquestra, devido aos movimentos das 20

    Garoto era uns dos compositores favoritos de Rabello ao ponto de ter gravado um disco totalmente

    dedicado a ele. Algumas de suas composies foram gravadas mais de uma vez como o caso de

    Lamentos do morro e Desvairada, quatro vezes cada.

  • 14

    vozes conduzidas em seus acordes. Joo deu ao ritmo a mesma importncia com os demais elementos musicais. Esses violonistas, direta ou indiretamente, tiveram relevante influncia na vida e obra de Rabello, ele agregar e mesclou a partir de sua genial percepo, uma peculiaridade em seu violo, transformando-se no mais importante violonista aps a era Baden Powell. Quando eu comecei, ele estava muito cado, com Baden fora do pas e a bossa nova esquecida. (Raphael Rabello, 1991)

    4. Contribuio Tcnica

    Rabello a singularidade no estilo que provm de um hibridismo tcnico concebido graas s influncias de Heitor Villa-Lobos, Augustin Barrios, Radams Gnattali, Garoto, Joo Pernambuco, Dilermando Reis, Dino 7 Cordas, Tom Jobim e Paco de Lucia e outros. Teve o choro como base musical onde se tornou um especialista ao ponto de ser apelidado como, Mozart do choro. Rabello redimensionou o choro com harmonias modernas, inserindo elementos da msica flamenca, concebendo uma esttica harmoniosa e significativa, no mbito at ento, tradicional. Ele utilizava o dedo polegar da mo direita com apoio, recurso caracterstico do gnero, recriando baixarias e inserindo os arpejos de extenso com ligados e cordas soltas, o que caracteriza Campanella, recurso bastante utilizado no violo erudito, principalmente por Villa-Lobos. Rabello soube utilizar com originalidade os arpejos de extenso, fazendo com que soassem como a prpria expresso da msica. Nos estudos de compositores do violo erudito, esses arpejos so mais caracterizados pela tcnica. (Dantas, 2003) Tocava diversos estilos com uma identidade inconfundvel. Alm de exmio solista, era gnio no acompanhamento, sendo para muitos o maior em todos os tempos, seja em duo com outro solista, ou em duo com cantor, afirmando o violo no mesmo patamar do cantor, sem ser demasiado, preenchia todas as lacunas com contracantos de uma beleza musical sublime,

  • 15

    dando um carter camerstico. Para Rabello, no h hierarquia entre solista e acompanhador.

    [...] Ele era capaz de ouvir uma Sute Barroca, por exemplo, e tocar em seqncia uma verso ornamentada, talvez no de acordo com interpretao histrica, mas, perfeitamente harmoniosa e integra [...] (Programa de Rdio do violonista Fbio Zanon)

    Borges (2008) salienta o hibridismo de Rabello na gravao de Retrato em branco e preto de Jobim, no lbum flor da pele. Nessa msica, citada a seo B do Preldio N 5 de Heitor Villa-Lobos, com baixos tocados com rigor, fazendo aluso ao choro, alm de tcnicas do flamenco. Suas inovaes tcnicas so atribudas ao samba de forma mpar, atravs da utilizao do polegar alternadamente para cima e para baixo na conduo dos baixos, nas acentuaes, articulaes, abafamentos e golpes, demonstrando sobremaneira seu hibridismo tcnico, caracterizando um efeito flamenco e percussivo. As tcnicas do violo flamenco foram introduzidas no violo brasileiro por Rabello no final dos anos 1980. Esta fuso estilstica criada por Rabello denota mais uma vez sua originalidade em se asseverar como violonista para posteridade. Os efeitos desta fuso so encontrados em diversos discos do msico, sobretudo no Todos os Tons 1992, que rene msica de Tom Jobim.

    O lbum foi um marco na carreira do violonista, sendo editado no mundo inteiro. Como se tratava de algo atpico em relao a seu estilo, Rabello recebeu inmeras crticas sobre suas aflamencadas21 ao estilo bossa nova de Jobim.

    (LUCIANA RABELLO, entrevista concedida, 2010) A influncia da msica flamenca na verdade j vinha desde a infncia. Nosso av materno era violonista e morvamos com ele na mesma casa. Ele era professor de violo tambm e, apesar de no ter tido tempo de dar aulas a Raphael (ele morreu quando Raphael tinha 7 anos - 1 anos antes dele comear a tocar violo), foi ele que apresentou a escola flamenca a ns todos. Temos uma irm, e

    21

    Acho que nego pode at no gostar de mim no, pelo menos quando eu toco a pessoa sabe que sou

    eu que estou tocando (RABELLO, apud BORGES, 1991)197.

  • 16

    Helena, que professora de dana flamenca tambm. Esse av, Jos de Queiroz Baptista, era paraibano. Sabemos que a influncia moura no nordeste foi imensa. Ficamos afastados dessa cultura por muito tempo, mas ela estava ali, no nosso DNA, nas informaes colhidas na infncia, nas nossas melhores lembranas. Quando Raphael conheceu o Paco de Lucia e ficaram amigos, essa memria foi reavivada. Entendo que essa admirao pela cultura flamenca inevitvel a umviolonista, pois entendo que o Brasil e a Espanha so os pases que mais aprofundaram o estudo e a tcnica desse instrumento.Mas, sua "passagem" pelo flamenco no lhe acompanhou at o fim dos seus dias por aqui. No ltimo disco que ele gravou - Cry My Guitar - essa presena jpa estava mais diluida.

    Para Lus Nassif:

    ...No momento, Rafael Rabello j o mais tcnico dos violonistas brasileiros e questo de idade prisioneiro de sua extraordinria tcnica. Algumas vezes o excesso de ranqueados cansa, o virtuosismo encobre o intrprete, maculando interpretaes antolgicas. Mas, mera questo de tempo para que Rafael deixe de ser perdulrio e descubra os mritos das pausas, da interpretao matizada, intercalando exploses e sentimentos. Falta apenas esse comedimento para transformar o mais tcnico no maior dos violonistas brasileiros. (Revista do cd, ano 1, n 2, PG 37, maio de 1991 Editora Globo).

    5. O Violo de Sete Cordas O violo de sete cordas foi introduzido no Brasil em 1920, pelo violonista

    China, irmo de Pixinguinha22, todavia, as primeiras gravaes do instrumento so atribudas a Tute. A partir dos anos 1950, o instrumento se consolida a partir da relevante contribuio de Dino 7 Cordas, maior expoente do instrumento, e que, influenciou todas as geraes posteriores, principalmente Rabello.

    Borges (2008) dividiu a trajetria musical de Raphael Rabello em duas fases. A primeira fase refere-se ao violo de sete cordas tradicional com cordas de ao e dedeira. Ele comea imitando as frases contrapontsticas de Dino 7 Cordas e em seguida suas prprias variaes, perodo este em que o discurso musical basicamente o choro. A segunda fase est associada ao violo 22

    Alfredo da Rocha Viana Filho, nasceu no Rio de Janeiro em 1897, compositor, flautista, saxofonista e

    arranjador, contribui decisavamente para que o choro se tornasse um dos mais importantes gneros

    musicais do Brasil.

  • 17

    solista de seis cordas e sua asseverao como precursor do Sete cordas concertista

    Em 1980, Luiz Otvio Braga encomenda ao luthier Srgio Abreu23 um violo de sete cordas cujas caractersticas sejam semelhantes ao violo de concerto, visando novos timbres para o conjunto Camerata Carioca de Radams Gnattali. A partir da, Rabello reinventa o referido instrumento j com cordas de nylon, empregando-lhe novas possibilidades tcnicas, asseverando o violo de sete cordas em salas de concerto. Eu vim com a misso, a que me propus, de colocar o violo no lugar merecido, porque a msica e o violo se confundem. (Raphael Rabello), entrevista concedida jornalista Bia Reis, Programa Choro Livre/ Rdio Nacional DF/1994.

    A influncia de Rabello no violo sete cordas, notvel em todo o pas, impressionante o nmero de jovens tocando esse instrumento da forma no tradicional, e, at tradicional com cordas de nylon.

    (LUCIANA RABELLO, entrevista concedida, 2010) Raphael abriu as portas pra essa nova forma de tocar o violo de 7 cordas que hoje to difundida no mundo todo. Mostrou todas as possibilidades do instrumento, tornando-se a sua referncia mxima. Cumpriu sua funo, sem dvida.

    6. O Compositor Raphael Rabello e a Concepo Idiomtica dos seus Arranjos

    Rabello comps dezoitos canes que ganharam letra de dois poetas da msica brasileira: Paulo Csar Pinheiro e Aldir Blanc. Essas canes, foram lanadas em cd pela Acari Records, no ano de 2001 a partir da gravao de fitas kassetes do projeto Dois por Quatro que aconteceu no Rio de janeiro em 1993. Intitulado Todas as canes, em duo com sua irm e cantora Amlia 23

    Srgio Abreu considerado um dos mais brilhantes violonistas brasileiros em todos os tempos.

    Formou com seu irmo Eduardo Abreu, o maior Duo de Violes do Mundo, entre os anos de 60 e 70.

    Sua gravaes so objetos de estudo e admirao em todo o planeta, e so comparadas s gravaes de

    Andrs Segovia e Julian Bream. A partir de 1980, Srgio comeou a construir violes, sendo atualmente

    um dos melhores luthiers do Mundo.

  • 18

    Rabello. Destaque para a valsa Sete Cordas24, composta quando tinha quatorze anos. Rabello comps tambm algumas msicas instrumentais como, Meu av e Pedra do Leme, esta em parceria com o violonista Toquinho.

    ...E a comeo a ver Que eu nunca fui sozinho

    Meu violo me acompanhou Por todo o meu caminho

    E isso eu quero agradecer Fazendo uma cano

    Falando de voc, Amigo violo,

    Que comigo estar At eu morrer.

    Sete Cordas ( Raphael Rabello e Paulo Csar Pinheiro)

    [...] A partir do poema Sete Cordas, que ele escreveu para uma valsa minha, eu fiquei estarrecido. Tomei gosto e vi, nessa poesia, a histria da minha vida sendo contada, e me vejo inteiro nesses versos at hoje. (Raphael Rabello em entrevista por ocasio do show dois por quatro).

    Como compositor, Rabello no teve tempo de consolidar sua obra, entretanto, como arranjador incomensurvel o seu legado. Rabello tinha uma tica genial de como transcrever para o violo, seja na escolha da tonalidade, insero de introduo, interldio, improvisao, citao, fuso estilstica, etc, o que corrobora sua singularidade ao estilo hbrido, seja em arranjo solista ou acompanhador.

    Seus arranjos so objetos de estudo para violonistas de gneros distintos. Muitas vezes considerado um co-autor devido a sua capacidade de reler sem caricaturar, introduzindo em alguns momentos, uma verso definitiva.

    (LUCIANA RABELLO, entrevista concedida, 2010) Realmente, todo grande interprete um co-autor. No caso de Raphael, isso ntido em todas as suas interpretaes. Assisti muitos

    24

    A valsa foi gravada seis vezes por Rabello nos lbuns: Rafael Sete cordas 1982, Amlia Rabello 1989,

    Leite de Coco 1994, Todas as Canes 2001 ,Cry, my guitar 2005, e no Programa Ensaio 1993, lanado

    em cd em 2003. A letra completa de Sete Cordas encontra-se em anexo.

  • 19

    momentos de criao dele porque comeamos a tocar juntos, morvamos juntos grande parte da vida. Ele criava seus arranjos (se que podemos chamar assim!) simplesmente tocando! No escrevia, apesar de saber escrever msica muito bem, porque no tinha sentido escrever pra ele mesmo tocar. Tocava horas e horas seguidas todos os dias. Passava a maior parte do dia com o violo na mo. Tocar pra ele era como falar, respirar. Criava todo o tempo, portanto. E era tocando que vinham as idias.

    Rabello transcreveu e releu obras de violonistas, como tambm de compositores da MPB, Noel Rosa, Tom Jobim, Caetano Veloso, etc. Alguns arranjos conceberam-se uma esttica avessa a original, como no exemplo de Sampa de Caetano Veloso, onde ocorre mudana de tonalidade, afinao da 6 corda em R, supresso do ritmo, tremulo, rasgueos, escalas e arpejos rpidos, ritornellos25 no meio da seo, coda26, o que denota mais uma vez o carter hbrido.

    A transcrio integral de peas para violo solo interpretadas por Rabello revelou a presena de elementos tradicionais e no-tradicionais, tanto em composies prprias como em arranjos. Algumas peas foram concebidas dentro de um universo musical hbrido enquanto outras mantiveram caractersticas predominantemente tradicionais, e outras ainda trouxeram elementos no-tradicionais pontualmente. Sob uma perspectiva ampla, destacamos que tal hibridez refletia um processo de transformao de uma cultura musical de uma gerao que estava buscando novas referncias musicais. (BORGES, 2008, pg 149)

    Exemplos de arranjos que asseverou Rabello como maior referncia para os violonistas, e at mesmo para msicos de outros instrumentos, devido s inseres de elementos concebidos, e a sua emocionante interpretao:

    Lamentos do morro, Desvairada, O vo da mosca, Conversa de botequim, Odeon, Ainda me recordo, Grana, Interrogando, Modinha, Luiza, Passarim, Garoto, Sampa, e verses antolgicas de acompanhamento para voz ou outros instrumentos.

    25

    Palavra de origem italiana que significa retorno.

    26 Oriunda do italiano, que em portugus significa cauda, expresso usada para trecho introduzido no

    final da msica.

  • 20

    7. As Escolas de Msicas Influnciadas por Raphael Rabello

    a. Escola de Choro Raphael Rabello

    Pioneira do gnero no pas, a escola est localizada na cidade de Braslia. Tinha Rabello ao lado de Henrique Filho, o Reco do bandolim, um de seus mentores. A escola foi criada em 1998, para sistematizar o ensino do choro no Brasil com paradigma da escola americana Berkeley, que focada no Jazz.

    b. Escola Porttil de Msica (EPM) Localizada no Rio de Janeiro, dirigida por Luciana Rabello e Maurcio Carrilho. Uma ideologia de Rabello junto a sua irm em consolidar um gnero de suma relevncia, o Choro. No era apenas um genial violonista, era tambm um empreendedor da cultura brasileira.

    (LUCIANA RABELLO, entrevista concedida, 2010)

    Tinhamos um sonho desde meninos de criar a Universidade de Msica do Brasil. Esse sonho nasceu quando tivemos que escolher um curso superior e no achamos nenhum que tratasse da msica popular do Brasil. No havia os cursos que hoje esto por a. Da esse nosso desejo de criar a tal Universidade. Hoje, existe a Escola Portatil de Msica, que considero uma consequncia desse mesmo sonho da nossa juventude. Realizo esse trabalho tambm como uma forma de homenagear meu irmo. Ele certamente estaria conosco nessa empreitada. Olhando os nossos mais de 800 alunos, quantas vezes penso como Raphael gostaria de ver o que conseguimos realizar nesses 10 anos de existncia da EPM!

    c. A Dinastia Rabelliana

    O estilo idiomtico de Rabello sobrepujou os tempos, dando seguimento fantstica escola do violo brasileiro. Rabello deixa uma orfandade de msicos que seguem corroborando sua escola. Os rfos: Rogrio Caetano, Marcelo Gonalves, Alessandro Penezzi, Yamand Costa, Euclides Marques, Fabiano Borges entre outros. (LUCIANA RABELLO, entrevista concedida, 2010)

  • 21

    Uma pessoa determinada, com inteligncia e talento acima da mdia, com a emoo flor da pele, meigo, doce com aqueles que amava, humanitrio, espiritualizado, emotivo, dono de grande intuio, profundo em tudo que fazia, perfeccionista ao extremo. Um ser humano denso. Meu irmo. Especial desde que nasceu. nico como todos ns, mas sem similares.

    8. Consideraes finais

    A presente pesquisa revelou a contribuio histrica, tcnica e esttica do violo brasileiro para a posteridade. Uma escola que teve sua origem no choro em meados do sculo XIX, como mero acompanhador, e posteriormente, da dinastia de violonistas iniciada por Amrico jacomino, o Canhoto. O violo e a msica popular se consolidaram no sculo XX como expoentes inseparveis a cultura do pas, seja atravs do choro, ou dos movimentos musicais como a Bossa Nova, que influenciou todas as geraes de msicos, inclusive Rabello.

    Apesar da relevante influncia de Raphael Rabello para o violo do Brasil e do Mundo, ainda vivemos sobre a insipiente cultura em relao escassez de material sobre o violonista, seja na edio de partituras, dvds, cds, livros, ou at mesmo no mbito educacional.

    Em relao s duas fases musicais de Rabello citada por (Borges) 2008, observamos a maturidade de um jovem violonista com ideais flor da pele. Sua carreira foi marcada pelo redimensionamento do choro e do instrumento.

    O legado deixado por Rabello incomensurvel, sobretudo no violo de sete cordas, solista e acompanhador. Suas inovaes revelaram sobremaneira a conjuntura de tcnicas que consolidaram seu estilo. Estilo idiomtico caracterizado pela fuso lograda por ele. Fuso esta que revelou um estilo hbrido oriundo do amplo conhecimento de gneros musicais.

    A pesquisa evidenciou tambm a trajetria de Rabello no mbito da MPB, revelando a nobreza dos seus acompanhamentos para asseverao do violo em dialogo a altura do cantor (a), corroborando uma vertente at ento pouco explorada pelos violonistas.

    Acreditamos que este artigo possa contribuir para a educao musical do pas, preservando e consolidando o legado musical de Raphael Rabello. O

  • 22

    educador musical poder introduzir nas instituies de ensino o legado de um dos mais brilhantes violonistas brasileiros, seja do ponto de vista histrico, tcnico ou artstico.

    Dedicado quele que me mostrou os caminhos do violo com sua genialidade e originalidade.

    (in memoriam) Ao maior violonista brasileiro de todos os tempos, Raphael Rabello.

  • 23

    9. Obra autoral de Raphael Rabello

    Anel de ouro (Raphael Rabello / Aldir Blanc) Aquela iluso (Raphael Rabello / Afonso Machado) C entre ns (Raphael Rabello / Luciana Rabello) Camar (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Choro em d menor (Raphael Rabello) Choro em l bemol menor (Raphael Rabello / Dininho e Cristvo Bastos) Choro em l menor (Raphael Rabello) Choro em si maior (Raphael Rabello) Cofre vazio (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Dois amores (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Flor do sono (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Galho de goiabeira (Raphael Rabello / Aldir Blanc) Insacivel (Raphael Rabello) Martrio (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Meu av (Raphael Rabello) Mineirinho atravessado (Raphael Rabello / Lus Moura) Moleque do Gantois (Raphael Rabello) Mulher da vida (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) O sorriso da Luciana (Raphael Rabello) Olho d'gua (Raphael Rabello) Ouro e fogo (Raphael Rabello / Aldir Blanc) Paixo (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Pedra do Leme (Raphael Rabello / Toquinho) Peito aberto (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Ponto de vista (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Retrato de saudade (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Salmo (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Serenata da saudade (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro) Sete cordas (Raphael Rabello / Paulo Csar Pinheiro)

  • 24

    10. 10. 10. 10. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BORGES, Lus Fabiano Farias. Trajetria estilstica do choro: O idiomatismo do violo de sete cordas, da consolidao a Raphael Rabello. Dissertao de Mestrado, UnB, 2008.

    COMPACT DISC, Revista do CD. Ano 1 - N 2, Maio de 1991. Tom no violo de Raphael Rabello. Editora Globo.

    DANTAS, Erivaldo. Jornal Tri Center ano 13. N 62, Setembro de 2006, www.tricenter.com.br. NUNES, Alvimar Liberato. "Interpretao, arranjo e improvisao de Rafael Rabello em Odeon de Ernesto Nazareth". Dissertao de Mestrado, UFMG, 2007.

    PEREIRA, Marco. Texto criado para Trio de Violes integrados por Marcos Csar, Marcos Bezerra e Erivaldo Dantas. Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2009.

    SANTOS, Turbio. Biografia. http://www.turibio.com.br. Acessado em 11/06/2010.

    SOUZA, Tarik. Rafael Rabello o Violo do Brasil. Jornal do Brasil, Domingo, ano 16, N 791, 30/06/1991.

    TAUBKIN, Myriam (org.). Violes do Brasil. Taubkin e Maria Luiza Kfouri, Turbio Santos, Maurcio Carrilo e Lus Nassif. Textos do captulo I, II e III: Maria Luiza Kfouri. So Paulo, 2007, Editora SENAC, So Paulo, 2 Edio.

    VIOLOPRO, Revista. N 27, 2010. Genialidade no choro, Raphael Rabello. Editora M&M.

    VENTURA, Rick. Raphael Rabello- O Fenmeno. Artigo disponvel em: http://brazilianmusic.com/articles/ventura.html. Acessado em: 10/03/2010, 2004.

    www.dicionariompb.com.br/raphael-rabello/obra. Acessado em maio de 2010.

    ZANON, Fbio. Programa de rdio em homenagem a Raphael Rabello. 26/11/2008, acessado em 17 de abril de 2010. http://vcfz.blogspot.com/2008/11/152-raphael-rabello.html

    ENCARTE DE LONG PLAY/COMPACT DISC E VDEOS CULTURA, TV (org.). Programa Mosaico: A Arte de Raphael Rabello, programa exibido na TV Cultura, 2008.

    CULTURA, TV (org.). Programa Ensaio com Raphael Rabello, programa exibido na Tv Cultura, 1993.

  • 25

    GUIMARES, Jos Pascoal. Vdeo amador de Raphael Rabello. Belo Horizonte, 1991.

    RABELLO, Raphael. Mestre Capiba por Raphael Rabello e convidados. BMG, 2002.

    RABELLO, Raphael. GNATTALI, Radams. Tributo a Garoto. Barclay(LP)/Funarte-Instituto Ita Cultural. (LP/1982), (CD/1999)

    RABELLO, Rafael. Interpreta Radams Gnattali. Vison, 1987.

    SBT, TV, Programa J Soares onze e meia: Entrevista com Raphael Rabello, 1990.

    ENTREVISTAS

    RABELLO, Luciana. Entrevista Concedida por e-mail, Rio de Janeiro. Em 4 de maio de 2010, 0:25:47, Salvador.

    SETE CORDAS, Edson. Entrevista concedida em sua casa, Salvador.