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O LADO CERTO DA VIDA ERRADA: um estudo sobre o tráfico de drogas sob o comando do Império Maria Elisa da Silva Pimentel Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social. Orientador: Giuseppe Mario Cocco Professor Titular da Escola de Serviço Social, UFRJ Rio de Janeiro Agosto, 2007

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O LADO CERTO DA VIDA ERRADA:

um estudo sobre o tráfico de drogas sob o comando do Império

Maria Elisa da Silva Pimentel

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social,

da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte

dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor

em Serviço Social.

Orientador: Giuseppe Mario Cocco

Professor Titular da Escola de Serviço Social, UFRJ

Rio de Janeiro

Agosto, 2007

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O LADO CERTO DA VIDA ERRADA:

um estudo sobre o tráfico de drogas sob o comando do Império

Maria Elisa da Silva Pimentel

Orientador

Professor Doutor Giuseppe Mario Cocco

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-

graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social,

da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Doutor em Serviço Social.

Aprovada por:

_______________________________

Presidente, Prof. Giuseppe Mario Cocco

_______________________________

Prof. Adriano Pilatti

_______________________________

Prof. Gerardo Silva

_______________________________

Prof. Marildo Menegat

_______________________________

Profª. Vera Malaguti Batista

Rio de Janeiro

Agosto, 2007

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FICHA CATALOGRÁFICA

Pimentel, Maria Elisa da Silva. O lado certo da vida errada: um estudo sobre o tráfico de drogas sob o comando do Império. Maria Elisa da Silva Pimentel - Rio de Janeiro: UFRJ/ ESS, 2007. xi, 260f.: il.; 31 cm. Orientador: Giuseppe Mario Cocco. Tese (doutorado) – UFRJ/ ESS/ Programa de Pós-graduação em Serviço Social, 2007.

Referências Bibliográficas: 1. tráfico de drogas 2. Guerra imperial. I. Pimentel, Maria Elisa da Silva. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social. III. Título.

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O LADO CERTO DA VIDA ERRADA: um estudo sobre o tráfico de drogas sob o comando do Império.

Nome do Autor: Maria Elisa da Silva Pimentel

Orientador: Giuseppe Mario Cocco

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social

Estuda-se nessa tese o espaço da venda de drogas ilícitas no varejo nas favelas cariocas, a partir de uma matriz teórica que permite inserir o fenômeno nas novas referências do capitalismo contemporâneo. As novas figuras produtivas que emergem no Império sob a dinâmica do capitalismo cognitivo deslocam as redes de produção industrial para territórios produtivos que se constituem sem passar pela disciplinarização do trabalhado manual e nem mesmo pelo tempo restrito de trabalho.

São agora as externalidades e a sociabilidade que se constituem em vetores de produção – são as habilidades intelectuais dos trabalhadores, costuradas pela cooperação, colaboração e comunicação, que produzem riqueza. Correspondentemente, é a capacidade para enfrentar ativamente o mundo e criar a vida social produzidas pelo trabalho (vivo) imaterial que valoriza a dinâmica capitalista, mas que também produz resistência. Assim, as favelas aparecem como novos territórios produtivos e os jovens integrantes do tráfico como figuras produtivas.

Ao corpo político global do capital se sobrepõe agora a multidão, corpo democrático que produz no comum e que por isso mesmo não pode mais ser capturado pelos instrumentos forjados na modernidade.

O tráfico de drogas se afirma então na sua dimensão de captura, mas também de resistência. São os jovens pobres moradores das favelas que vão enfrentar o poder de domínio do Império em toda sua violência e letalidade.

Palavras-chave: Tráfico de Drogas; biopoder; império; guerra imperial; capitalismo cognitivo; reservatórios de mobilização produtiva

Rio de Janeiro

Agosto, 2007

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THE WRIGHT SIDE OF THE WRONG LIFE: a study on the market place for illicit trading of drugs in the slums (favelas) controled by the Empire

Author: Maria Elisa da Silva Pimentel

Oriented by: Giuseppe Mario Cocco

Abstract

This thesis deals with the market place for illicit trading in the slums (favelas) of Rio de Janeiro, departing from a theoretical basis that allows the insertion of the phenomenon into new references of contemporary Capitalism. The new productive agents that emerge in the Empire under the dynamics of cognitive Capitalism displace the nets of industrial production to producive territories formed without the discipline of craft-work and are not limited by restricitive working hours.

Only now the externalities and sociability become vectors of production: the workers' know-how, sewed through cooperation, collaboration and communication, becomes a factor of production. It corresponds to actively face the world and creates social life made by live non-material work that evaluates the Capitalist dynamics, and engenders resistances as well. Thus, the favelas surge as new output territories and the young traffickers their agents of production.

Over the global and political capital body is now placed the multitude, a democratic response that cannot be apprhended by the instruments forged by Modernity.

Drug trafficking is then reaffirmed on its dimension of capture, but also of resistance. It is up to the young people of the favelas to challenge the Empire's dominant power in its entire violence and death.

Key-words: drug-trafficking, bio-power, empire, imperial war, cogniscent (or cognitive) Capitalism, reservoirs of producive mobilisation.

Rio de Janeiro

Agosto, 2007

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Aos jovens pobres das favelas que lutam cotidianamente pelo direito de viver.

Agradecimentos

Aos moradores das favelas, por partilharem suas vidas.

A Inaldo F. Pontes, pelos percursos que dividimos pelas favelas, pela assessoria no trabalho de pesquisa, pelas sugestões a esse trabalho de tese e, sobretudo, pelos nossos sonhos. Aos meus alunos de pesquisa que tornaram a experiência vivenciada tão especial Daniel Calfa, Douglas Habibe, Gisele Carpin, João Carlos Junior, Nadilson do Nascimento, Tiziana Zeloni e Vilson Machado. À professora Vera Malaguti Batista, pelas críticas (delicadas) que ajudaram a embasar esse estudo. Ao Giuseppe Cocco, pelo privilégio que tive de ter sua orientação intelectual – na sua precisão e requinte –, mas sobretudo pela possibilidade de reconstruir os caminhos da luta. À Caia, pela leitura, pelo carinho e por abrir o caminho para aprendermos a exercitar a nossa voz de multidão. Ao Lima, com todo amor que houver nessa vida. À minha mãe pela paciência e conforto e à minha irmã, por isso e mais as ajudas inestimáveis. Aos amigos que se dispuseram a partilhar idéias e me ajudaram a fazer frutificar o debate e a todos aqueles que estiveram na torcida, nas suas mais diferentes formas.

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“Se os caixões fossem transparentes, os túmulos translúcidos, as gavetas dos institutos médico-legais abertas e ao ar livre, não teríamos como ignorar a forma humana da morte. Se as vítimas da guerra ficassem lado a lado, seriam centenas de quilômetros de corpos estendidos que deveriam estar vivos, de pé. E se empilhados, a montanha da morte teria

uma base e uma altura de muitas centenas de metros” (Mir, 2004:22).

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: AQUI O CRIME COMPENSA?...................................................................................13 CAPÍTULO I: DESCONSTRUINDO OS DISCURSOS SOBRE O TRÁFICO DE DROGAS: drogas, tráfico e economia mundial ...........................................................................21 Introdução .............................................................................................................................................21

I.1) Buscando um ponto de partida para pensar o tráfico de drogas...........................................26 I.2) Narcofavela: encontro entre o local e o global.......................................................................31 I.3) Drogas e tráfico: desconstruindo o discurso dominante........................................................35 I.4) A criminologia crítica como ponto de partida .........................................................................38 I.5) Criminalização da Pobreza: papel do Estado e os modelos jurídicos de controle social .................................................................................43

CAPÍTULO II: AS FAVELAS COMO NOVOS TERRITÓRIOS PRODUTIVOS, ESPAÇO DE CONSTITUIÇÃO DA RESISTÊNCIA E DE PRODUÇÃO DE UM NOVO SABER .......................................................................................................50 Introdução .............................................................................................................................................50

PARTE I: A relação entre a constituição do território urbano e os fatores econômicos da globalização ........................................................................55

II.1.1) Fordismo e pós-fordismo ...............................................................................................55 II.1.2) Teoria do valor, afirmação e negação ...........................................................................58 II.1.3) A negação da subsunção real .......................................................................................61

PARTE II: Trabalho imaterial, consumo e externalidades: as novas relações constitutivas do capitalismo cognitivo ........................................................................68 Introdução.....................................................................................................................................68

II.2.1) O Consumo na Pós-Modernidade .................................................................................71 PARTE III: As favelas como território de mobilização produtiva..................................................83

III.1) O Trabalho Imaterial e os Espaços das Favelas.............................................................83 CAPÍTULO III: CONTRA-INSURGÊNCIA E RESISTÊNCIA.............................................................101 Introdução ...........................................................................................................................................101

III.1) A Questão étnica na conformação do capitalismo no Brasil e o Estado como agente de controle.........................................................................................104 III.2) AS NOVAS FIGURAS PRODUTIVAS....................................................................................112 III.3) Contra-Insurgência: a guerra como biopoder.........................................................................117 III.4) A FORÇA DO APARATO POLICIAL......................................................................................128 CASOS ...........................................................................................................................................130

CASO UM...................................................................................................................................130 CASO DOIS................................................................................................................................132 CASO TRÊS...............................................................................................................................134

III.5) O LADO ERRADO DA VIDA ERRADA ..................................................................................137 III.6) A Guerra do Império ...............................................................................................................141

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................146

Para a pesquisa futura....................................................................................................................152 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................................154 __________________________________________________

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INTRODUÇÃO: AQUI O CRIME COMPENSA?

O objetivo desse estudo é entender como a inserção dos jovens pobres moradores das

favelas no tráfico de drogas ilícitas pode se apresentar como uma dinâmica do capital para

capturá-los, mas também (e, sobretudo) como uma forma de resistência: como uma luta

contra o império.

Para apanhá-los nessa perspectiva – e resistência (mas também na de captura) – é preciso

fazer passar por eles o conceito de trabalho.

É o conceito de trabalho que desvenda as linhas da dominação imperial com que esse

comércio se inscreve, expressão das novas formas de controle que as relações produtivas

do pós-fordismo exigem.

A primeira direção dos nossos estudos toma assim o trabalho na dimensão que aparece em

Marx, como trabalho vivo. Só ao recuperar a premissa de que é o trabalho vivo o principal

elemento produtor das relações sociais e portanto da possibilidade de valorização do capital

(e não o trabalho morto, como julgam alguns marxistas ortodoxos) que Negri pode encontrar

o novo trabalho produtivo: o trabalho imaterial.

O sentido do trabalho como instituição do mundo e do sujeito que produz esse mundo, se

reafirma aqui, permitindo a Negri pensar a história na perspectiva de quem a produz.

É aqui a perspectiva marxista que prevalece: o sujeito revolucionário é necessariamente o

sujeito que produz o mundo. Assim que, para qualificar essa resistência, é preciso apanhar

esse jovens como trabalhadores e afirmá-los como figuras produtivas.

Esse desafio nos obriga assim a lançar mão de um corpo teórico que consiga atualizar o

modo de funcionamento da dinâmica capitalista deslocando o eixo estrutural do marxismo

para que se abram frentes para entender-se o que sejam essas novas relações sociais

produtivas no capitalismo cognitivo.

Há aqui uma inversão de método, pois para Negri são as lutas que têm a primazia na

construção da história. O novo estatuto do trabalho imaterial contém assim as histórias das

lutas dos trabalhadores. O trabalho imaterial transcende o trabalho manual fordista, pois

contém as lutas de libertação dos trabalhadores contra o trabalho disciplinador e

massificante do processo industrial.

É necessário portanto – e é sobretudo revolucionário – perguntar-se agora como se produz

a riqueza. A nova configuração do capitalismo se move numa perspectiva totalmente

diferente do capitalismo industrial moderno (ainda que também o contenha) e produz uma

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dinâmica valorativa que depende da circulação da informação e do conhecimento. A

invenção é, assim, o dinamizador de toda a criação, de todo valor que se processa nos

ciclos de produção imaterial. E é essa inovação que valoriza, inova o capital. O

conhecimento comum é igual a tecnologia – e Lazzarato contrapõe a idéia comum à

genialidade.

A criatividade, a inventividade, a afetividade se transformaram em produtos e aqueles que

os consomem se transformam em produtores, pois ajudam a valorizar o capital ao fazer

circular a mercadoria imaterial (o saber comum) da multidão.

Ao transformar a subjetividade em produção, a ideologia ganha definitivamente o reino da

estrutura econômica. Produzir as subjetividades se transformou na principal demanda ao/do

capital; assim, são as redes imateriais (bacias produtivas imateriais) que precisam funcionar

para que o capital se valorize.

Para entender o novo estatuto do trabalho e sobretudo o novo estatuto da dinâmica

capitalista é que, no capítulo II, a partir das referências da escola operaísta, tento configurar

o que seja o capitalismo cognitivo, tentando achar os elementos da expressão das lutas que

refizeram a natureza do trabalho.

Afirmo, portanto, que o trabalho ganhou um novo estatuto; e que, a partir disso, todas as

relações sociais de produção refizeram-se. Considerado o novo trabalho e demarcado um

novo ciclo produtivo, pode-se ver o morador da favela como figura produtiva.

Dessa forma, tento, na segunda parte do capítulo II, refazer a síntese entre trabalho e

território: deslocando o território de produção dos espaços, da fábrica para os espaços da

cidade; dos espaços internos ao capital, para os espaços externos; do tempo de trabalho,

para o tempo de vida; das relações subordinadas à máquina, ao trabalho criativo e

emancipado dos novos sujeitos produtivos. O pobre emerge então como a nova figura

produtiva, e as favelas como bacias produtivas imateriais.

No capítulo III posso então chegar ao nome comum do pobre na dimensão fantástica que

Negri o faz florescer. O pobre como potência: criação e resistência.

Quando ser produtivo é também, necessariamente, produzir o novo, a invenção, a negação

da ordem capitalista, é que, da figura produtiva do pobre, podemos chegar a multidão, como

o faz Lazzarato, em vários trabalhos. Isso porque, se a invenção é sempre uma

colaboração, uma cooperação, um co-funcionamento, é também uma ação que suspende

dentro do indivíduo ou dentro da sociedade aquilo que já está constituído, individuado, que

já se tornou habitual. A invenção é um processo de criação de diferença que coloca em

xeque, a cada vez, o ser em sua individuação. Toda invenção é ruptura das normas, regras

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e hábitos que definem o indivíduo e a sociedade. A invenção é um ato que transporta aquilo

que foi efetuado fora do tempo histórico, reintroduzindo-a na temporalidade do

acontecimento (Lazzarato, 2006:46).

Aqui é onde podemos perceber como os jovens das favelas se transformam em figuras

produtivas, pois que vivem uma materialidade que lhes impõe tantos limites, que precisam

potencializar todas as suas forças pra não se deixar superar pelas adversidades.

Assim é que a favela se transforma em território produtivo, porque a produção da vida nas

favelas passa pela produção do comum. São as suas existências que produzem uma

constante inovação. O novo ciclo produtivo é, assim, rizomático.

Ao contrário da mercadoria industrial, nas sociedades cognitivas o que valoriza o capital é o

compartilhamento. Assim, falamos de uma mercadoria que, quanto mais potência de

negação da ordem capitalista tiver, mais produtiva se torna.

O conceito de produção que lastreia essa afirmação não considera mais a fábrica ou a

empresa como modelo. A produção nas sociedades contemporâneas pressupõe, como nos

diz Lazzarato: “a articulação das relações de poderes múltiplos e heterogêneos (noopolítica,

biopolítica e disciplina). E não podemos tampouco apreender os ‘sujeitos’ desta produção a

partir do trabalho (seja cognitivo ou imaterial) Devemos, ao contrário, compreender os

agenciamentos dos consumidores, das populações e dos trabalhadores” (Lazzarato,

2006:128).

Lazzarato rompe a dimensão reguladora que existe na obra de Marx, mas rompe sobretudo

com a experiência política do movimento operário do período fordista. É assim, sobretudo,

que o sentido que Lazzarato dá ao conceito de trabalho permite-me sugerir que os jovens

pobres que vivem em favelas tornam-se figuras produtivas; ao mesmo tempo que nos

permite ver que, por isso, eles podem vir a constituir-se em figuras revolucionárias da pós-

modernidade. Para que esses jovens possam ser entendidos como figura produtiva, foi

preciso reconstruir toda a base de explicação da dinâmica capitalista pós-moderna; além

disso, foi preciso que o trabalho, que já havia adquirido um novo estatuto em Negri – que

propôs o conceito de “trabalho imaterial” – alcançasse o significado de “não-trabalho”. Ou,

nas palavras do autor: “Se, como dissemos, as instituições não são a fonte das relações de

poder, mas delas emanam, então não é mais das instituições que devemos partir para

poder descrever a cooperação entre cérebros (...). Se, por outro lado, o trabalho não é o

que constitui o mundo, mas é um modo de captura da cooperação entre os cérebros, não é

mais do trabalho, nem de sua exploração, que devemos partir para compreender o

capitalismo” (Lazzarato, 2006:98).

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A dimensão que queremos resgatar é aquela que nós coloca Negri: “O segundo, e

conseqüente, projeto de pesquisa desenvolvido por essa escola consiste na análise da

dimensão imediatamente social e comunicativa do trabalho ativo na sociedade capitalista

contemporânea, e com isso propõe insistentemente o problema das novas configurações de

subjetividade, em seu potencial de exploração e de revolução” (Negri, 2001:48).

Há um intrincado fluxo de novas formas de práticas e relações sociais sendo movido e

movendo esta rede que efetiva o comércio ilícito de drogas e que desfaz o sentido da

produção de valor na pós-modernidade, afirmando o tráfico como um fenômeno situado na

borda da modernidade e da pós-modernidade. Portanto, muito mais do que sua aparência

inicial pressupõe, o fenômeno do tráfico de drogas fala também de um novo sujeito social

que nasce atrelado às novas organizações sociais advindas da globalização.

Mas será principalmente quando Negri apresenta as novas formas de dominação política

desse modelo imperial, explicitando-as a partir do conceito de guerra imperial, é que a

caracterização do que seja o espaço das vendas de drogas ilegais pode ganhar um novo

sentido que o insere nas condições históricas assentadas pelo nosso modelo particular de

desenvolvimento capitalista e as novas formas de produção, organização e reprodução das

sociedades contemporâneas globalizadas.

O capital vê-se numa cilada; e ele precisa capturar a vida e tudo o que diz respeito à

subjetividade. Como capturar o que não tem forma e, ao mesmo tempo, pode assumir todas

as formas? Como pegar o que não está, o que é devir e potência? Essa dinâmica também

aparece como resistência, como a forma com que essa rede cria a desmedida, a potência

(conceito de multidão de Negri, e que “nos permite também”, dirá Negri, “fundar uma teoria

dos poderes, se por poder se entende a capacidade de os sujeitos livres e independentes

intervirem sobre a ação de outros sujeitos igualmente livres e independentes” (Negri,

2001:39). Assim é a saída possível para o capital passa a ser capturar a subjetividade,

mediante a guerra.

Nesse estudo, queremos resgatar a dimensão que Negri postula: “a dimensão

imediatamente social e comunicativa do trabalho ativo na sociedade capitalista

contemporânea, e com(o) isso propõe insistentemente o problema das novas configurações

de subjetividade, em seu potencial de exploração e de revolução” (Negri, 2001: 48).

Essa guerra, contudo, não são as guerra de instituição das soberanias modernas, mediante

as quais se construía o sentido de nação (do que é próprio para o outro, o externo). A

guerra que subjuga as subjetividades tem de interpor-se no processo da vida das figuras

produtivas; só assim se lhes pode impor limites, sugar-lhe a inovação. A guerra transforma-

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se em biopoder; e os traficantes transformam-se, de pobres, em multidão – idéia que

desenvolvo no capítulo III. E é quando a produção da subjetividade se transforma em

produção econômica, que o tráfico transforma-se em espaço produtivo.

O tráfico é uma das expressões biopolítica da resistência dessa população. Não há

separação entre narcofavela (O número de jovens que passam pelo tráfico!) e os moradores

das favelas. O tráfico é a expressão das possibilidades de resistência que essas

populações vão produzindo ao longo de sua existência, mas sobretudo ao longo dos

enfrentamentos violentos com que se vêm tendo de ater-se há séculos.

E as favelas aparecem afinal em toda a sua força produtiva e de resistência, abrindo espaço

para que os jovens do tráfico também possam emergir no seu potencial de resistência.

Podem-se portanto identificar os diferentes modos mediante os quais esses espaços do

tráfico apanham esses meninos, mas também os modos mediante os quais esses meninos

apanham o tráfico e resistem através dele. O tráfico resiste porque enfrenta e faz a guerra

em campo aberto.

Os conflitos permanentes que obrigam esses jovens a estar alerta dia e noite transforma-se,

assim, numa forma de vida no seu estado extremo de sobrevida e resistência. Essas formas

de vida produzem uma estética: suas maneiras de ver sua vida, de protestar sua vida, que é

capitalizado pelo capital. E se, por um lado, essa criação pode assim ser apropriada, ao

mesmo tempo essa estética tem nela incorporada as referências da favela e de suas lutas.

É aqui, afinal, o campo no qual esses jovens resistem; e dessas formas de vida também

nasce uma força: potência da resistência.

O tráfico incorpora e dissemina assim uma estética revolucionária, porque fala da

resistência, fala das lutas cotidianas com que essa população enfrenta o Estado na sua

‘negatividade’ – porque são os jovens que enfrentam efetivamente esse Estado na sua

faceta mais violenta. E aqui aparecem meus heróis, quixoteanos, que brigam contra

moinhos de vento; brigam na verdade para conseguirem ser incorporados ao sistema.

A forma como se dá essa incorporação ao sistema (pelo trabalho e pelo consumo) traduz-se

tanto no lugar de exploração extrema no qual se encontram esses meninos (todas as

formas de exploração se conjugam no espaço de trabalho do tráfico), como – e sobretudo –

é o ápice daquilo que a pós-modernidade traz, de subjugar toda a potência de vida possível

para esses jovens, que o tráfico lhes permite ter. Ao levá-los ao limite, a dinâmica capitalista

provoca uma desmedida, que será capturada pelo sistema comercial e que, ao mesmo

tempo, abre fissuras na ordenação da sociedade. Aos pobres, resta a possibilidade do

porvir; mas aos pobres que precisam defender a existência empunhando armas, nem isso

resta.

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Esse estudo tem assim o objetivo de apreender o momento em que esses jovens viram

quimera, o animal que não tem forma, tantas são as formas que pode assumir ou, na

definição do dicionário Houaiss, “qualquer representação de animal fantástico, composto de

partes de animais diferentes, sejam eles reais ou imaginários.1” Em termos generalizados,

pode-se dizer que, dentre todas as estratégias que essas populações têm de produzir para

a sobrevivência, o narcotráfico é a estratégia que mais rapidamente as levam para o limite.

Os jovens das favelas pegam em armas na continuidade e no acirramento de um processo

que os obrigaram durante anos, décadas e séculos a se protegerem contra a violência do

Estado e que hoje se transformou na violência do Império.

No capítulo I desenvolve-se a discussão que se faz no campo da criminologia crítica.

Para subsidiar essa discussão tomo como primeira referência os pensamentos de Michel

Foucault. É em Foucault que encontro a relação entre o poder, as regras de direito e os

discursos de verdade.

Para buscar essa relação, inicio o capítulo I com uma reconstituição da história do processo

penal – uma genealogia que vai me permitir, mais adiante, construir uma crítica do discurso

de combate às drogas ilícitas, considerando que “apenas os conteúdos históricos podem

permitir descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordenações funcionais

ou as organizações sistemáticas (no nosso caso as práticas penais) tiveram como objetivo

mascarar” (Foucault, 11:1999) pois, para Foucault, não há exercício do poder sem uma

certa “economia dos discursos da verdade que funcionam nesse poder” (Foucault: 1999:28).

Com isso, viso a resgatar a sociologia dos sistemas penais vistos como sistemas de

punição concretos e práticas penais específicas e a despir a “pena”, instituição social, de

um seu viés ideológico incorporado ao seu escopo jurídico.

Ou, dito de outra forma, essas referências teóricas trazem ao debate o modo como se

produzem os discursos de dominação (“mecanismos de produção da verdade”) sobre os

jovens das favelas a partir do tráfico de drogas ilícitas, capazes de produzir práticas de

dominação cujos efeitos são sempre muito potentes.

Após percorrer essa investigação teórica sobre a penalização, incluímos aqui os estudos de

Loïc Wacquant sobre a passagem da rede de segurança do Estado-provedor para a

constituição de uma rede disciplinar do Estado, através do que o próprio autor chama de

uma “política estatal de criminalização das conseqüências da miséria”. Pode-se dizer que

essa equação resume esse debate hoje, em termos de “desaparecimento do Estado

1 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, em http://biblioteca.uol.com.br/.

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econômico, diminuição do Estado social e glorificação do Estado penal” (Wacquant,

2003:147).

Em seguida, introduzo a discussão específica sobre o tráfico de drogas, como um elemento

fundamental de legitimação dos discursos subjacentes às práticas de repressão contra os

setores empobrecidos das sociedades; especificamente no caso do Brasil, onde o combate

ao tráfico de drogas vem-se constituindo como a forma mais efetiva de produção de um

discurso de justificativa para a contenção repressiva dos jovens pobres favelados, com

encarceramento maciço ou mesmo com execuções.

O terceiro momento do Capítulo I terá, como principal referência, Rosa Del Olmo. No seu

livro A face Oculta das Drogas, Del Olmo expõe o problema das drogas sob uma

abordagem social e econômica, traçando as transformações que a política criminal das

drogas sofreu em nosso continente dos anos 40/50 até a década de 80. Para a autora, os

discursos em torno das drogas vêm sendo simbolizados nas sociedades contemporâneas

mediante muitos preconceitos moralistas e dados falsos e sensacionalistas.

Após essa historização, em que acompanhamos Del Olmo, encontramos afinal a ponte que

leva esses estudos até a realidade brasileira, mediante o trabalho de Vera Malaguti Batista.

A partir de estudos feitos na 2ª Vara da Infância e da Juventude e no Juizado de Menores

do Rio de Janeiro, que demonstram que a droga é o principal fator de criminalização da

juventude, e que a maioria desses jovens vêm das favelas e bairros pobres, Malaguti pode

concluir que “o mercado de drogas ilícitas propiciou uma concentração de investimentos no

sistema penal, uma concentração dos lucros decorrentes do tráfico e, principalmente,

argumentos para uma política permanente de genocídio e violação dos direitos humanos

contra as classes sociais vulneráveis: sejam eles jovens negros e pobres das favelas do Rio

de Janeiro, sejam camponeses colombianos, sejam integrantes indesejáveis no Hemisfério

Norte” (Malaguti, 2003:135). Volto assim ao objetivo central dos meus estudos: comprovar a

premissa de que o tráfico de drogas tem servido para uma política permanente de controle

social e dominação política das camadas sociais empobrecidas. Essas são as formulações

da escola da criminologia crítica que me possibilitam uma nova síntese entre criminalidade

e pobreza, que explica a política de combate às drogas como uma política que se inscreve

nas formas de dominação e controle social.

Parto afinal dessa formulação – a política de combate às drogas como argumento que faz

emergir um potente discurso que amplia e mantém a segregação econômica e social nas

sociedades contemporâneas – para, no capítulo III, achar a interseção entre o debate

teórico mais amplo e as formas mediante as quais o tráfico vem sendo combatido pelo

Estado brasileiro, na perspectiva da guerra como biopoder, mostrando como esses

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discursos, que justificam o combate às drogas, produzem formas e práticas de controle

violentas para ampliar e manter a segregação dos espaços das favelas e, sobretudo, para

manter dominados os jovens negros e pobres.

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CAPÍTULO I

DESCONSTRUINDO OS DISCURSOS SOBRE O TRÁFICO DE DROGAS: drogas, tráfico e economia mundial

Introdução

O ponto de partida do debate que pretendo desenvolver nesse trabalho é o de que o

narcotráfico, para se efetivar, reconhece e utiliza os mesmos canais por onde se

estabelecem as dinâmicas de produção econômica, integrando-se nesse sistema global.

Dessa hipótese decorre outra, que afina ainda mais nosso campo de estudo: apostamos em

que a configuração com que essa comercialização ilegal toma nas favelas do Rio de Janeiro

corresponde não só aos mecanismos de produção mundial, mas, principalmente, revela

características da dominação posta nas novas bases de organização global marcada pelo

pós-fordismo.

Ao partir dessa premissa incorporamos portanto uma outra preocupação à nossa discussão:

o debate sobre o que seja essa nova dinâmica de produção econômica atual.

Preliminarmente, caracterizamos essa dinâmica como resultante das mudanças que se vêm

construindo nas últimas décadas e que dizem respeito a um novo padrão cultural. Esse

padrão emerge de uma nova constituição subjetiva que não pode ser pensada sem

referência às mudanças que têm seu cerne no mundo do trabalho. A pós-modernidade nos

impõe novos conflitos, frutos de diferentes ciclos de luta que incidem na década de 60 e

continuam até os encontros do Fórum Social Mundial; da aceleração tecnológica com a

disseminação de objetos técnicos cada vez mais presentes no nosso cotidiano; da

intensificação dos ritmos e de uma instantaneização generalizada que institui uma nova

relação tempo-espaço, pela qual o global passa a caber no local.

Buscamos, dessa forma, inserir o estudo do tráfico de drogas ilícitas numa perspectiva que

permita observar as interações entre várias flagrantes formas de exploração e as mais

contemporâneas formas de circulação, informação e comunicação, que dão suporte à lógica

imperial hoje dominante.

A primeira hipótese desse trabalho é, assim, a de que o narcotráfico se explica a partir da

relação que estabelece com a dinâmica de produção econômica, e que repete a lógica de

dominação e subordinação mundial capitalista.

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Mas a escolha de partir das referencias contemporâneas de explicação do mundo se

justifica, sobretudo, quando privilegiamos tratar o tema do narcotráfico através do estudo do

fenômeno específico com que esse se faz no momento da sua venda no varejo dentro das

favelas do Rio de Janeiro.

O encontro com os dados da realidade nos abre a possibilidade de identificar como essas

formas se compuseram: a materialidade cotidiana desses jovens conjuga-se a um mercado

mundializado que tende a desenhar seus contornos geográficos a partir dos interesses

econômicos. Assim, esses países periféricos só podem se conectar a partir das suas

vulnerabilidades históricas, oferecendo ao sistema um contingente de jovens, pobres,

estigmatizados, mas que, ao mesmo tempo, também se inscrevem no público consumidor

dos ‘mundos’2 produzidos na pós-modernidade.

O fator renovado que persiste aqui é o sentido de “vazar de volta”, de fazer com que – ao

jogar suas vidas ao limite – esses jovens tornem-se produtivos. O tráfico é ao mesmo tempo

criação e subjugação, vida e morte.

Essa conjugação de realidades sempre em conflito é o campo de explicação do

narcofavela3. Um contingente de jovens pobres, com baixa escolaridade e desqualificados

profissionalmente, aos quais o tráfico faz ascender a um lugar diferente daqueles aos quais

poderiam jamais ascender, consideradas as suas possibilidades ordinárias. O tráfico de

drogas – ao menos momentaneamente – lhes dá status, força, poder... Tudo que aqueles

jovens querem.

O narcofavela se transforma em um espaço produtivo não só porque conecta esses jovens

à rede do comércio internacional de drogas, mas também porque acaba por instituir um

simbólico que remete às formas extremas do tráfico: força e poder. O seu estilo de vida

produz novos simbolismos, além daqueles que o jovem deseja ostentar com as marcas que

usa. O tráfico tem uma linguagem própria, tem um mundo próprio, e a partir daqui

valorizam-se todas as conexões que passam por ele. O tráfico de drogas vende filmes,

programas de televisão, livros, pesquisas.

2 Para Lazzarato, “No capitalismo contemporâneo, a empresa não existe fora do produtor e do consumidor que a representam. O mundo da empresa, sua subjetividade sua realidade confunde-se com as relações que a empresa, os trabalhadores e os consumidores mantêm entre si”(Lazzarato, 2006 :99).

3 Ver adiante, sobre o termo “narcofavela”. Mas o termo já é necessário aqui, para diferençar o comércio global mediante o qual o narcotráfico se efetiva, da expressão que designa a venda de drogas ilícitas nas favelas cariocas.

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Mas o narcofavela também aparece como o lugar onde o biopoder se revela, emergindo

como a expressão mais particular das formas com que a pressão secular se exerce sobre

uma determinada população e, mais especificamente, se exerce sobre seu segmento mais

jovem.

O narcofavela será o espaço onde se evidencia a interseção dos mundos pré e pós-

moderno. O narcotráfico é uma possibilidade de esses jovens transitarem entre diferentes

identidades, quando lhes abre o acesso ao consumo e os torna figuras produtivas. Mas o

narcotráfico também explica a guerra que se move contra as populações empobrecidas.

Assim, o narcofavela é “a contradição última, com seu conteúdo particular ou exclusivo, do

funcionamento dinâmico global” (Zizek, 2003:54). É aqui também que o capital expõe sua

contradição, pois o que capital tem de negar a essas populações é ao mesmo tempo aquilo

de que o capital precisa hoje para se valorizar.

Assim é que esse espaço aparece como explicitação das contradições mais atualizadas do

sistema: do desenvolvimento tecnológico à reestruturação das relações salariais; da

exclusão social à democratização das informações. Ao mesmo tempo em que também é a

explicitação da forma mais atualizada com que a política aparece hoje, como biopolítica,

como dominação de toda a vida. Assim é que é a guerra ocupa todos os lugares. Uma

guerra particular, que se move por dentro do cotidiano dessas populações e lhes condiciona

as formas de vida, num cenário onde o projeto de dominação impõe-se na sua forma mais

violenta.

Numa recente pesquisa realizada sobre juventude e narcotráfico, o autor aponta para o fato

de que os índices de violência dos últimos anos no Rio de Janeiro podem ser considerados

equivalentes aos que se encontram em situações de violência extrema. Segundo dados

publicados em Dowdney (2003), as causas externas foram responsáveis por 54% de todas

as mortes de menores de 18 anos na cidade do Rio de Janeiro em 2000, sendo que 57%

dessas causas externas foram ferimentos provocados por balas. “Mais chocante ainda é o

fato de o número de mortes de menores de 18 anos provocadas por armas de fogo no

estado do Rio de Janeiro ser pior do que em algumas regiões do mundo que satisfazem a

definição tradicional de ‘conflito armado ‘ou ‘guerra’”(Dowdney, 2003:175).

Segundo esse estudo, que incluiu exércitos e grupos insurgentes que recrutam “crianças-

soldados”5, de dezembro de 1987 a novembro de 2001, 467 crianças e adolescentes

5 A classificação de crianças e jovens em situação de conflitos como “crianças-soldados”será posteriormente refutada pelo próprio Dowdney (2006) a partir de uma pesquisa em onze países que estudou a participação de crianças em situações de risco e

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morreram no conflito do Oriente Médio; e, no mesmo período, morreram 3.937 crianças e

adolescentes, por armas de fogo, na área do Grande Rio de Janeiro.

Na mesma publicação, fica demonstrado que há relação direta entre essas mortes e a ação

policial de repressão ao tráfico de drogas, como nos diz o autor: “acompanhando o

envolvimento crescente nos combates armados entre facções e com a polícia, crianças e

adolescentes também se tornaram alvos legitimizados de execuções policiais, sendo

alvejados abertamente durante os confrontos”(Dowdney, 2003:175).

Realizei, dessa forma, um percurso que buscou, inicialmente, distinguir essa análise que

aqui se constrói, entre outras análises que culpabilizam os jovens pobres integrantes do

tráfico pelo nível de violência que esse comércio tem produzido nos últimos anos,

principalmente no Rio de Janeiro. O que vimos e as estatísticas revelam é que, ainda que

sejam protagonistas, as maiores vítimas do tráfico de drogas ilícitas são os mesmos jovens

que acabam por ser protagonistas, sim, mas só da própria morte.

Esses jovens são atingidos por uma violência policial ostensiva, que acaba por resultar no

afloramento de algum tipo de resistência. O risco de morte a que estão necessariamente

submetidos, por ocuparem o lugar que ocupam na dinâmica social, e participem ou não

participem do tráfico, levam os jovens a buscar construir formas de defesa.

Para Peralva, um inevitável risco de morte ligado à violência urbana em geral, e

intensificado nas experiências de vida dos jovens favelados, os levaria a procurar alguma

espécie de “experiência controlada de risco”.

O fundamento que a autora atribui à necessidade de uma ‘experiência do risco’ seria,

sobretudo, o de uma contraposição ao sentimento do risco de morte produzido pela

intervenção arbitrária e violenta da polícia nos morros. Assim define a autora:

“Estamos profundamente convencidos de que essa forma de intervenção policial violenta ao

extremo, e também de uma enorme ambivalência, posto que sua outra face é a corrupção,

constitui um elemento fundamental na formação do sentimento de risco de morte que afeta

de forma constante todo jovem favelado. Ora, uma das modalidades possíveis de responder

individualmente a esse risco é justamente o engajamento no narcotráfico (Peralva,

2000:133).

fixou-se a sigla COAV. “COAV é a sigla em inglês, de Crianças e Jovens em Situação de Violência Armada Organizada’, termo que identifica crianças e jovens empregados ou participantes de grupos organizados que praticam violência armada fora das situações tradicionalmente reconhecidas como guerras e conflitos, mas com elementos de estrutura de comando e exercendo alguma forma de poder sobre território, população local ou recursos”(www.coav.org.br), quadro que corresponde ao do tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro.

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O que interessa a esse estudo é identificar os meios pelos quais o narcotráfico ganha forma

na realidade particular brasileira: mediante extermínio atroz dos nossos adolescentes e

jovens pobres e negros, deixando-os encurralados frente à vida sem alternativas que lhes

cabe como única vida possível.

A questão que se coloca portanto não é “por que uns jovens das favelas entram no tráfico e

outros não?”. A questão que se coloca é procurar e achar os elementos que explicam o

aparecimento do narcofavela como fenômeno urbano atual e como se entremeiam, por

dentro dele, vetores de dominação ao mesmo tempo global e local.

O que esperamos com esse trabalho é deslocar o olhar que atinge esses jovens, e os

condenam aos algozes da violência, para um outro que desvele os elementos que

constituem as entranhas desse fenômeno, na sua força de opressão profunda, com que

marca o desenvolvimento dos países da América do sul, nas marcas de um projeto de

dominação marcado pela exclusão, atualizado na passagem do fordismo para o pós-

fordismo. Para isso a análise se situa, num primeiro momento, no marco do modelo de

acumulação capitalista, mas numa perspectiva de entender como se dão as novas formas

de produção do mundo, tendo o conceito de trabalho imaterial e as formas com que os

sujeitos sociais vão se constituir nesse processo como uma premissa fundamental da

discussão.

Nossa perspectiva é a de que, ao desvendar essas novas formas de dominação, nas quais

essa ordenação mundial se afirma, possamos inscrever a discussão em referenciais

teóricos que partam do princípio de que as novas formas de produção imaterial originadas

no período pós-industrial acarretam, necessariamente, novos processos de subjetivação no

sujeito social que as vivenciam.

Mas, ao mesmo tempo, buscamos identificar nessa dinâmica também as particularidades

que levam os jovens a fazerem dessa atividade sua forma de vida, onde é preciso seguir

também um caminho que possa elucidar a constituição dessas manifestações do tráfico por

dentro das favelas.

Tentamos diferenciar a discussão em dois aspectos: a rede mundial de produção e

comercialização de drogas ilícitas, de um lado e, a forma com que esse comércio se

manifesta nas favelas do Rio de Janeiro, na sua venda a varejo, por outro. Só após o

desenvolvimento das questões gerais é que arriscaremos, ainda que de forma preliminar,

um olhar que nos leve para a realidade particular das favelas, primeiro buscando identificar

as formas com que essa atividade, da venda ilegal de drogas dentro das favelas, interage

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na produção das estratégias de sobrevivência de seus moradores, interferindo nas suas

práticas políticas e nas experiências de organização comunitária, na relação com o poder

público e em todas as manifestações culturais produzidas dentro das favelas.

Posteriormente, visando identificar até que ponto os jovens que integram o tráfico assumem

os interesses coletivos, que se gesta no cotidiano das favelas, para além do interesse

imediato com o seu lucro (do tráfico).

Nesse momento é que vamos incorporar, de forma mais direta, nossa vivência profissional.

O interesse pelo narcotráfico surge a partir da experiência profissional vivida, durante quase

dez anos, nas principais favelas do Rio de Janeiro. A possibilidade de entrar em contato

com essas populações - partilhando um cotidiano moldado em múltiplos processos de

construção das suas vidas, referências plurais, nas quais tecem suas estratégias de

sobrevivência em percursos singulares mas também marcados pelo repertório das favelas,

de imensa densidade cultural - tornou-se uma experiência definitiva na minha vida

profissional e, nesse cenário, a dinâmica das relações do narcotráfico com os processos de

produção dos espaços coletivos das favelas marca, de forma ainda mais contundente, esse

encontro.

As questões que foram aparecendo para mim ao longo do trabalho junto a essas

populações teve continuidade através do desenvolvimento de uma pesquisa de campo

realizada na comunidade do Tuiuti, em São Cristóvão

Os resultados advindos tanto das investigações informais produzidas no contato com os

moradores das favelas, como daquelas decorrentes da realização da pesquisa, serão

usados para o desenvolvimento do trabalho.

I.1) Buscando um ponto de partida para pensar o tráfico de drogas

Ao surgimento, consolidação e expansão do comércio ilegal das drogas e, sobretudo, diante

da forma específica com que uma faceta desse comércio irá se conformar: na composição

de pequenos grupos de jovens armados dentro das favelas e as conseqüências disso na

cidade, faz com que esse fenômeno se torne objeto de estudo de várias áreas do

conhecimento.

O narcotráfico pode, assim, ser identificado como um fenômeno atual (ainda que se pareça

como conseqüência de uma história da criminalidade que deita raízes em meados do século

passado6) que adquire relevância e conformação de fenômeno violento, da forma

extremada como o vemos hoje, a partir da década de 80.

6 Ver a esse respeito Cidade Partida de Zuenir Ventura.

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Dessa forma, inicio o trabalho com um resgate inicial da produção sobre o tema nos últimos

anos, onde já prevalece um notável avanço nos estudos, mas ainda transparece seus

limites.

Essas dificuldades se originam na dificuldade de entrar em contato com dados empíricos

confiáveis, tanto quando se trata da liberação de dados pelos órgãos oficiais do governo,

cujo acesso é controlado e limitado, quanto pela dificuldade de coletar dados nas fontes

primárias - que requer o contato direto com o universo do crime - empreitada que

necessariamente apresenta inexatidões e riscos inevitáveis para seus pesquisadores. A

tendência da maioria dos pesquisadores de generalizar fatos e deduções que são de uma

realidade particular, como características do narcotráfico em geral e, a acentuada

compartimentalização das abordagens e visões teóricas sobre o tema, muitas vezes

descaracterizando a complexidade no qual o mesmo está submergido, também aparecem

como limites nos estudos que vêem se produzindo. E, por fim, a especulação generalizada,

sobretudo depois que esse passa a se constituir como assunto predominante da grande

imprensa (jornais, telejornais, revistas), dificulta uma triagem mais rigorosa sobre a

veracidade do conteúdo das informações.7

Também entre as pesquisas desenvolvidas sobre a economia das drogas há muita

discrepância em relação a números e resultados, na maior parte das vezes havendo

contradições entre as quantidade de drogas que aparecem estando referidas a produção e

ao consumo e mesmo em relação às cifras que esse mercado movimenta. Entre esses

estudos cito Kopp (Kopp: 1998), cujo maior qualidade é a de conseguir analisar os fatores

7 Para Kopp, a ilegalidade na qual as mercadorias circulam acarreta numerosas dificuldades

metodológicas (Kopp, 1998:15). Mesmo quando se trata de dados sobre a economia das

drogas, vários limites vão aparecer. Para o autor “A comparação entre as cifras de consumo e

de produção é perturbadora. A produção mundial de drogas é muito claramente superior ao

consumo. No caso da cocaína em 1990, a primeira cifra é o dobro da segunda. Já no da

heroína, 400 toneladas seriam produzidas a cada ano e apenas 20 toneladas consumida apenas

nos Estados Unidos, sem que sejam conhecidos outros países capazes de absorver o resto de

toda essa heroína (Kopp, 1998:16). Dessa forma, explica o autor, após descontar a quantidade

consumida na europa e nos estados unidos, restariam cerca de 300 a 400 toneladas de heroína

‘cujo destino permanece misterioso.’(20) Kopp parece concordar com os estudos de Labrouse

(Labrousse, Alain. Géopolitique de la drogue. Les contradictions des politiques de guerre à la

drogue. Futuribles, n. 185, pp. 9-23, mars 1994) que aponta para que esse consumo esteja

acontecendo nos paises de terceiro mundo, sobretudo o Paquistão, onde se calcularia um

número de um milhão e meio de consumidores. Contudo, para o autor pode estar acontecendo

uma superestimativa das cifras do NCIS (International Narcotic Control Strategy Report)

sobre a produção das drogas. Segundo Kopp, a má qualidade dessas estatísticas relativas às

drogas tem a ver com o descrédito do NCIS, onde “...as grandes diretrizes da política externa

são tomadas sem que o NCIS seja consultado (Kopp, 1998:20).

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que dificultam mapear com precisão o mercado das drogas no mundo hoje, contestando,

inclusive, algumas das constatações mais homogênea que aparecem nesses estudos,

como por exemplo que a produção das drogas só se realiza (ou de forma preponderante )

na América Latina, colocando os Estados Unidos como o terceiro maior produtor de

maconha do mundo. Assim o autor assiná-la entre outras dificuldades a de se computar os

mercados in-doors (dentro de casa) como os existentes na Holanda, a produção residual de

cocaína de pequenos países, além dos limites de se aferir as transações de matérias-

primas pelos canais ilícitos.

Em que pese esses limites, vários estudos irão identificar a importância do surgimento

desse fenômeno nos grandes centros urbanos e suas conseqüências sociais e várias

abordagens teóricas diferentes irão se construir na busca de explicá-lo.

Dada a completude do trabalho realizado por Lima; Misse e Miranda (2000), sobre a

questão da violência e criminalidade dentro do campo das ciências sociais, escolhemos

partir desta fonte para empreender nossa revisão bibliográfica.

Os autores identificam que as primeiras pesquisas publicadas que inauguram o campo

temático no Brasil ocorrem na 1ª metade dos anos 70, e nos seus estudos irão classificar as

principais produções de todo o período até 2000, em áreas e subáreas temáticas, a partir de

uma abordagem sistemática que considerou variáveis seletivas como autores mais citados

nas resenhas e as relações bibliográficas e indicações de novas bibliografias por estes

autores. Excluem-se deste apanhado trabalhos não acadêmicos e trabalhos de outras áreas

de conhecimento que não as ciências sociais. A pesquisa que resultou na classificação

exposta a seguir foi feita nos principais programas de pós-graduação que incluem linhas de

pesquisa sobre o tema e junto ao Urbandata (Universidade Candido Mendes).

Classificação da temática em áreas e subáreas, segundo os autores:

A Temática da Delinqüência e da Criminalidade Violenta

1.a) delinqüência infanto-juvenil e a categoria de ‘menor’

1.b) aumento da criminalidade urbana, mudanças de padrão e perfil social dos acusados e

seus efeitos de violência

1.c) a questão do crime organizado e do tráfico de drogas

A Temática da Polícia e do Sistema de Justiça Criminal

A Temática das Políticas de Segurança

A Temática da Violência Urbana (Imagens, Práticas e Discursos).

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Podemos, a partir desta classificação, fundar várias relações com os assuntos propostos

pelos autores e a nossa temática específica, tendo em vista que o tráfico de drogas guarda

uma interseção com todas estas subáreas, como nos diz o autor: “a grande maioria dos

estudos (...) tende a confirmar e deslindar um complexo dispositivo de produção da

violência nas grandes cidades brasileiras, envolvendo delinqüência convencional, tráfico de

drogas, grupos de extermínio, corrupção policial e de agentes penitenciários, arbitrariedade

e violência da polícia e práticas de justiçamento em acertos de conta entre traficantes, de

traficantes com informantes da polícia ou com delinqüentes convencionais ou traficantes”

(idem, 50).

As perspectivas de abordagem do tráfico podem passar por diferentes campos de estudo,

mas como já assinalado, não nos interessa abordar esse fenômeno nem numa perspectiva

que abra mão das questões particulares, nem tão pouco uma que prescinda dos aspectos

gerais. Aqui, mesmo considerando apenas a subárea da “a questão do crime organizado e

do tráfico de drogas”, já percebemos o quão extensa torna-se a subárea, ao incorporar

todos os seus possíveis vieses.

A vasta área de interlocução do tráfico com os aspectos da questão social e da relação de

poder, inclusive na sua dimensão institucional, implica que direcionemos ainda mais a

dimensão do que podemos trazer nessa revisão, buscando o sentido dela.

Fato é que o olhar que debrucei por sobre vários estudos, nas mais diferentes abordagens

sobre o tráfico de drogas, pouco me ajudaram a construir o percurso que pretendo nesse

trabalho, haja vista a direção teórica que escolhi trilhar. O que não significa desconsiderar o

papel que esses precursores tiveram na construção do debate no Brasil.

Michel Misse é um dos precursores da discussão da criminalidade no Brasil, mantendo sua

produção sobre o tema até hoje, passando por um enfoque sociológico que aborda desde o

perfil social dos infratores (Misse et alii, 1973) até a abordagem da mudança de padrão na

criminalidade urbana (Misse, 1997). Na sua abordagem sociológica Misse enfatiza a

dimensão mais abrangente da violência nas desigualdades sociais do Brasil, o que o autor

vai chamar da acumulação social da violência (Misse, 1999, 2003). Além disso, os estudos

de Misse alcançam análises de outros autores do campo da violência e criminalidade, nos

oferecendo um panorama, em sua maioria crítico, da produção temática no Brasil nos

últimos anos (Misse, 1995 1995a, 1996), além das discussões específicas sobre o tráfico de

drogas (1997, 2003 a).

Mas a pesquisa pioneira que marca o estudo da organização social do tráfico nas favelas e

morros cariocas encontra-se, contudo, em Alba Zaluar, realizada na Cidade de Deus, em

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1985. É na tentativa de buscar o contexto social específico onde à venda no varejo das

drogas ilícitas se desenvolvem, a partir de uma abordagem antropológica que Alba Zaluar

(1995, 1994, 1997, 1999) desnuda o universo destas relações.

Contudo, se hoje os estudos sobre o narcotráfico já se tornaram campo consolidado de

pesquisa, esses ainda tendem a assumir ambigüidades suficientes a ponto de não ajudar a

consolidar um campo de atuação, para além das tenções explícitas do confronto aberto que

se produz nas favelas, que possa instituir novas correlações de força mais favoráveis a

esses jovens.

Dentre as matrizes teóricas sob as quais esses estudos vão se produzir podemos distinguir,

ainda que inicialmente, pelo menos quatro vertentes. Uma dessas vertentes é o campo que

busca inserir essa discussão na estrutura mais geral da lógica capitalista, associando

diretamente esse modelo de acumulação à possibilidade do surgimento e consolidação do

narcotráfico. Dentro desse campo destacam-se as análises de matrizes marxistas e

estruturalistas, incluindo as que irão enfocar o narcotráfico pelo viés econômico, buscando a

configuração geopolítica desse comércio e valendo-se das cifras de produção,

comercialização e rotas do tráfico em nível mundial, associada àquelas elaborações que

entendem a participação desses jovens moradores das favelas nesse comércio ilegal como

resultado direto das desigualdades sociais, sendo vista como uma alternativa à exclusão

quase absoluta a que esses estarão submetidos. Inclui ainda os estudos que buscam traçar

uma relação entre a produção das drogas ilícitas e o processo de exploração e violência

dos trabalhadores do campo.

O segundo campo refere-se à discussão do narcotráfico conjugada à discussão da

criminalidade brasileira, inserida nas teorias sociológicas em geral, passando pelo

surgimento e pela história das principais organizações do crime. Alguns desses estudos têm

como pressuposto as “teorias da criminalidade”, cujas formulações, sobretudo européias e

norte-americanas, datam do início do século XX e trazem um vasto leque sociológico e

antropológico para descrever e explicar o crime e a criminalidade. No Brasil, essa produção

da criminalidade se torna relevante apenas a partir da década de 70, adquirindo por isso,

matizes mais progressistas postas pela influência nesse período das formulações críticas

sobre as teorias existentes, a partir das elaborações de Michel Foucault.

Na terceira distinção, ainda fundamentada na discussão da estrutura socioeconômica,

identificamos aqueles autores que vão trabalhar o tráfico de drogas na sua relação mais

específica com o Estado. Essa composição ganha contornos não só como expressão da

lógica do tráfico como comércio ilegal e todas as implicações disso, como essa composição

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também engloba a discussão sobre política nacional antidrogas e sobre política de

segurança pública.

O quarto e último campo refere-se àqueles estudos que buscam a conformação singular

que o tráfico de drogas ganha nas favelas e periferias dos grandes centros urbanos. Esse

campo incorpora fundamentalmente as análises de matrizes antropológicas, definindo o

narcotráfico como uma complexa conjunção de diversos fatores, especialmente a expressão

mais particular e múltipla dos espaços das favelas e periferias. Dessa forma, o tráfico

adquire contornos desse quotidiano particular: espaço da privação e ao mesmo tempo de

uma multiculturalidade, de relações coercitivas, mas também de estratégias e acordos de

sobrevivência.

Podemos incluir nesse campo tanto as discussões que incorporam o debate sobre as

possibilidades de organização política e social das populações de baixa renda nos centros

urbanos e as conseqüências da interferência do tráfico nessas práticas, como também o

estudo mais contemporâneo sobre a juventude, os processos de construção de identidade e

das questões simbólicas, que apontam para uma legitimação, nas suas construções, das

ações do tráfico e da violência em geral.

Há ainda outras abordagens que aparecem na discussão do tema, como aquelas que se

referem às descrições da estrutura organizativa do tráfico, à realização de pesquisas

empíricas com o levantamento de dados sobre mortalidade de jovens; e as que exprimem a

relação direta com o Estado, ditada pela política nacional antidrogas (de caráter

proeminente repressivo e seus efeitos) e, também, na relação com as políticas sociais em

geral. De forma menos predominante podemos encontrar ainda discussões específicas,

como: interseções do tráfico e educação, interseções do tráfico com a cultura popular,

interseções do tráfico com análises psicológicas e, por fim, os estudos de caso.

Os estudos sobre o tráfico de drogas se intensificam nos últimos cinco anos, impulsionados

pela necessidade que emerge, sobretudo no Rio de Janeiro, de atender a um crescente

grau de violência associado ao comércio ilegal das drogas.

Essa profusão de pesquisas e publicações sobre o tema chega mesmo, em alguns

momentos, a parecer excessiva, mas, ainda assim, se vêm mostrando ineficazes na

capacidade de subsidiar propostas que ajudem a enfrentar o problema.

I.2) Narcofavela: encontro entre o local e o global

O que é central nesse percurso, para sairmos do campo das especulações e entrar no

âmbito da constituição subjetiva, é a tentativa de dar maior exatidão ao termo narcotráfico.

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O principal problema que vimos identificando no uso do termo é a tendência a considerar-se

toda a grande teia e extensão desse comércio ilegal, a partir de apenas uma de suas

manifestações, como se a cadeia do narcotráfico iniciasse e terminasse dentro das favelas.

Esse enfoque reduz a totalidade da realidade a uma de suas expressões particular, o que

induz todos a desassociar as formas distintas pelas quais esse comércio das drogas se

efetiva. Para usar com mais precisão o termo narcotráfico, é necessário perceber o conceito

dentro de rede produtiva global, como espaço de trabalho (valoriza o capital), mas também

de vida e de luta. Ou seja o termo narcotráfico deve ser usado, necessariamente, de modo

que inclua (não que apague ou tente apagar) a relação indissociável que há entre esse

comércio ilegal e a lógica de produção global capitalista, com todas as implicações advindas

dessa relação.

O termo narcotráfico aparece então numa perspectiva que permite abordar o fenômeno na

sua totalidade: uma intrincada teia que se emaranha no ciclo de produção global, mas sem

que isso oculte as particularidades e de modo que permita estabelecer uma diferenciação

nominal entre o que estaremos chamando “narcotráfico” e o que se entenderá, aqui, como

uma das expressões – particular e conjuntural – desse fenômeno: o modo como o comércio

de drogas ilegais se faz no varejo da venda das drogas nas favelas do Rio de Janeiro, tendo

como protagonistas os seus jovens pobres, alvo prioritário da política pública de repressão

às drogas.

A manifestação particular do tráfico de drogas ilícitas, como a vemos hoje nas favelas, tem

assim o cerne da sua explicação numa dinâmica produtiva que exclui esses jovens da

possibilidade de compartilhar de forma efetiva a produção coletiva material e espiritual

realizada globalmente e, por outro, a possibilidade de incorporá-los ao sistema integrando-

os, subordinadamente, nessa rede, mas impondo-lhes, mais uma vez o custo dessa

dinâmica.

Historicamente, a possibilidade de continuidade do sistema capitalista monta-se num

decurso que se efetiva na combinação produtiva dos meios de produção (capital fixo) e da

força de trabalho. Relação esta que permite de forma concomitante à criação de riquezas a

concentração dessa pelas classes detentoras do poder econômico e político,

retroalimentando a lógica capitalista. Mas também esse sistema apresenta pontos de

esgotamento que têm sido respondidos e superados nesse um século e meio de

capitalismo, engendrando diferentes manifestações dessa dinâmica. Formas cada vez mais

complexas, à medida que causas e conseqüências ascendem em formas novas e

indistinguíveis. Nesse momento de transição, vivemos mudanças paradigmáticas e

conceituais que incidem de forma arrasadora na lógica anterior, admitindo formas inéditas

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de valorização do capital, mas que, por sua vez, não acabam com a relação de

subordinação ao capital de grande parcela da população mundial.

O conceito de globalização interfere definitivamente na forma como dá-se essa

subordinação, fazendo emergir contextos inusitados na possibilidade da interação do global

com o local. Assim, essa manifestação mais evidente (e estereotipada) do narcotráfico se

combina com a nova dinâmica produtiva global, para gerar novas estruturas, objetos e

prática, e que têm por isso elementos que vão para além ou aquém de uma ou de outra

realidade separadamente. Na tentativa de não desconsiderar nem essa especificidade nem

a complexidade que emana dela como uma cultura híbrida que conjuga características

díspares da realidade, cunhamos uma nova expressão para designar o fenômeno

encontrado nas favelas, diferenciando-o do narcotráfico em geral (ainda que como vimos

esse só adquira sentido a partir dele); esse termo é narcofavela8.

Parece válido supor que o narcofavela – como fenômeno social datado no tempo e inserido

numa história – é uma manifestação importante que decorre dos processos de apropriação

e expropriação da riqueza material e imaterial, ao longo de desenvolvimento dessas

nações, como se sucedeu no Brasil, ainda mais quando identificamos hoje vários

fenômenos como esse, ao redor do mundo, com características semelhantes, tanto na

composição das populações protagonistas do processo, como na reação do Estado frente a

essas “composições de jovens armados” (COAV), como veremos adiante. A escolha desse

termo posta-se, assim, no desafio de conseguir imprimir uma conceituação que o tome na

forma com que o geral se manifesta no específico, sem colocá-los necessariamente em

oposição.

É preciso inscrever o narcofavela a partir de uma rede de produção que se estende e se

articula mundialmente, amparada em estados-nação cada vez mais rasos nas suas

construções e funções, ao mesmo tempo corroídos pela corrupção e incapacidade de

gestar um modelo participativo de representação política. O que buscamos é exatamente a

possibilidade de interseção – que não é justaposta nem dialética – desse global com o local,

8 Também não ignoramos aqui as considerações que alguns autores fazem sobre a inadequação do termo narco, como nos coloca Vilela: “ Existe também uma confusão em relação às palavras “narcótico”, “entorpecente”, “estupefaciente” e “tóxico” utilizadas para se referir às drogas proibidas. Narcótico, estupefaciente e entorpecente são sinônimos, termos genéricos para substâncias que produzem torpor, estupor ou letargia, e que também podem ser usadas como analgésico. No entanto, a cocaína, que produz uma sensação de euforia, que é exatamente oposta ao torpor, também é chamada de entorpecente, conforme uma linguagem imprecisa usada popular e oficialmente. Já o álcool, que pode levar ao sono comatoso, jamais foi chamado de narcótico, pois é uma das drogas sacramentadas pela civilização judaico-cristã ocidental. “(.”Vilela,Jaime. COCA, NARCOTRÁFICO E RECOLONIZAÇÃO. In: MARXISMO VIVO 6 - DEZEMBRO DE 2002)

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do universal com o particular, do tráfico como um comércio capitalista mundial com a

realidade singular das favelas.

Santos, por exemplo, propõe duas categorias para entender o que ele denomina “processo

de globalização hegemônica”: as categorias de localismo globalizado e de globalismo

localizado (Santos, 1995).

Sob o conceito de “localismo globalizado” Santos reúne as características abstratas de

certas sociedades, em particular a européia e a norte-americana, que se estendem ao longo

do globo terrestre: “Aí é possível identificar uma série de características que parecem estar

presentes globalmente: a prevalência do princípio do mercado sobre o princípio do Estado;

a financeirização da economia mundial; a total subordinação dos interesses do trabalho aos

interesses do capital; o protagonismo incondicional das empresas multinacionais” (Santos,

2001:55).

Por outro lado, nos dirá Avritzer, referindo-se à Boaventura Santos: “os localismos

globalizados, isso é, os abstratos oriundos da categoria mercado que se internacionalizam

não vigoram de modo homogêneo ao longo do planeta e se combinam tanto no campo do

mercado quanto no campo do Estado, com certos concretos, que Boaventura denomina

“processo de localização dos globalismos”, dentre os quais caberia destacar: a trajetória

histórica do capitalismo nacional; a estrutura de classes; o nível de desenvolvimento

tecnológico; o grau de institucionalização dos conflitos sociais. Ou seja, ele procura mostrar

que a globalização é um processo abstrato que se encontra com processos concretos, em

três níveis principais, o da economia, o da política e o da cultura” (Avritzer, 2002:13).

O narcotráfico aparece assim pela homogeneização e pela universalidade da organização

da economia; e o narcofavela aparece como continuidade de elementos específicos de

assimilação do global pelo local, inclusive na sua relação com o Estado.

Para Negri, não há, assim, como negar a existência de um desenvolvimento capitalista

subordinado, mas essa relação de subordinação não se dá mais pela dinâmica do

imperialismo, o que não quer dizer que não exista uma “tentativa do centro capitalista, e em

particular das monarquias estadunienses, de submeter as multidões chinesas, indianas e

latino-americanas ao projeto imperial” (Negri, A.; Cocco, G. 2005:37).

Negri, no entanto, ressalva que muitas vezes esses elementos que aparecem como

antimodernos são também referências importantes para a resistência ao domínio capitalista.

A favela se reveste de suas expressões de enfrentamentos de classe, como espaço de uma

“cidadania incompleta” ao constituir o cenário onde a política de repressão ao tráfico será

efetivada.

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I.3) Drogas e tráfico: desconstruindo o discurso dominante

A tentativa trazer o conceito de droga para o debate, acaba por tornar visível o modo com

esse conceito vem sendo construído a partir de indefinições que ajudam a amoldá-lo aos

interesses particulares de segmentos sociais e seus projetos de dominação, legitimando

ações violentas contra as populações vulneráveis, que se ocultam sob o discurso da droga.

A própria definição do que seja droga, segundo a Organização Mundial da Saúde, aparece

de forma imprecisa, dado que se classificam como “droga” toda uma série de substâncias

muito distintas entre si, dificultando a conceituação e implicando que, para ser considerada

“droga proibida”, baste que a substância figure numa lista editada mediante ato

administrativo da autoridade sanitária que complementa a norma penal. Como nos dirá

Batista, “a lista [tem a] função de complementar concretamente a norma penal (que

criminaliza, de modo genérico, o comércio e o uso de algo tão vago quanto “substância

entorpecente”, “substância que determina dependência física ou psíquica” etc.) (Batista,

Nilo. In: Del Olmo, 1990: 9).

Constata-se assim, logo de início, que para o fim a que nossos estudos visam, pouco ou

nenhum sentido fará aprofundar-nos ou estender-nos sobre as classificações das drogas,

suas composições ou mesmo seus efeitos para o organismo.9 Não nos interessa aqui,

portanto, um estudo sobre os efeitos físicos ou psíquicos das drogas. O que nos interessa é

entender como a obscuridade que há no próprio conceito de “droga” contribui para que se

produza um discurso difuso e moralizado, sobre tudo o que dela decorre. Trata-se aqui de

entender por quê, como nos dirá Del Olmo (1986), “a palavra droga funciona mais como

estereótipo do que como conceito, como crença do que conhecimento, onde o negócio das

drogas tem uma face oculta que o transforma em mito” (Del Olmo, 1986: 22). O que

almejamos, portanto, é desvelar os diferentes discursos que se constroem sobre as drogas.

Tenciono assim abordar o fenômeno no plano de consistência das suas multiplicidades,

mapeando as diversas articulaçőes que perpassam os diferentes interesses e atores do

contexto macro no qual os discursos sobre as drogas se produzem. Desfaz-se aqui a idéia,

como nos coloca Del Olmo, de quę a situação de cada país e de cada droga sejam

semelhantes, como se os condicionantes estruturais e as formações sociais nada tivessem

a ver com o tema, como se, sobre o comércio e uso das drogas (de qualquer droga)

9 A classificação mais usual considera droga toda substância que tem efeito psicoativo, isto é, capaz de provocar algum tipo de transtorno no sistema nervoso central que altere o estado de consciência. As drogas classificam-se a partir dessa definiçăo, em diversas categorias: os entorpecentes, como o ópio e seus derivados; os alucinógenos, como a maconha e o LSD ou os estimulantes, como a cocaína e a anfetamina.

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recorressem sempre as mesmas conseqüências para todas as formas de seus

envolvimentos. Buscamos desfazer o caráter dissimulador que fundamenta as políticas de

combate às drogas e sua execução, desfiando um novo discurso sobre o tema.

Partimos assim do pressuposto de que os discursos que se vêm construindo sobre as

drogas são discursos genéricos, que se pretendem universais, atemporais e a-históricos.

Um discurso inespecífico e estereotipado que acaba encobrindo as relaçőes

socioeconômicas e políticas que se articulam ao problema. A droga aparece assim como

um mal em si, em definições muitas vezes incoerentes, com indicações fragmentadas e

contraditórias. O que almejamos é ao desvelar os diferentes discursos que se constroem

sobre as drogas para esconder as práticas de dominação que se instalam a partir deles,

buscando entender as relações que se vão construir entre estes discursos e os interesses

econômicos e políticos.

Partimos do pressuposto então que este discurso da droga foi sendo articulado, ao longo

da história, a interesses dominantes. Queremos assim entender como esses discursos –

que aparecem de forma estereotipada e emocional – na verdade se articulam às políticas

criminais que tratam a questão das drogas, tentando explicitar os objetivos dessa política ao

identificar o caráter dos discursos que as fundamentaram.

Para Rosa Del Olmo, droga “[é] uma palavra sem definição, imprecisa e de uma excessiva

generalização, porque em sua caracterização não se conseguiu diferenciar os fatos das

opiniões nem dos sentimentos. Criam-se diversos discursos contraditórios que contribuem

para distorcer e ocultar a realidade social da ‘droga’, mas que se apresentam como modelos

explicativos universais” (Del Olmo, 1990:22).

Dessa forma esses discursos só ganham sentido quando inseridos no contexto macro onde

se produzem, possibilitando a visibilidade dos diferentes interesses e atores que os

articulam, superando o caráter fragmentado e contraditório que esses trazem.

Estes discursos não são em si, portanto, suficientes para se entender a importância do

caráter de ilegalidade das drogas, haja vista que estes também se modificam a partir de

várias variantes.

Na primeira impressão a ilegalidade das drogas não interessa nem ao Estado nem a

sociedade, vide o enorme montante de recursos que deixam de ser pago aos governos em

impostos e as vultosas somas gastas na repressão ao tráfico.

Contudo, se a ilegalidade não interessa ao Estado no seu caráter geral, interessa a vários

segmentos desse estado que ganham dinheiro com esta ilegalidade, possibilitando

engendrar um mercado de movimentos financeiros fomentado na alta lucratividade de uma

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mercadoria ilícita (relação de oferta e procura), assim como em todo o mercado paralelo

que se cria no em torno por conta de sua ilegalidade. O cunho da ilegalidade dá, portanto,

características especiais a esta mercadoria drogas no mercado.

A partir dessa premissa pelo menos duas questões se colocam aos nossos estudos.

A primeira é entender qual é a natureza econômica da mercadoria ilegal.

Para Kopp essa repressão provocaria uma alta nos preços. Na primeira vertente, ainda que

reconhecendo os limites do seu tratamento, teríamos então que entender como variam as

demandas a partir da criminalização e quais suas conseqüências, ou de forma mais

específica: “E, mais ainda, mercadorias que circulam em mercados ilegais. Ora, o caráter

clandestino da distribuição da droga dá origem a mercados paralelos nos quais os

comportamentos econômicos de fornecedores e compradores são determinados por

modalidades específicas de funcionamento do mercado.”(KOPP, 1998: 8)

Esse percurso nos permite identificar que diversas mercadorias desempenham

historicamente este mesmo papel, sempre ligadas de uma maneira ou de outra aos pólos

mais avançados do capitalismo, “o que sugere hipóteses sobre a função da criminalização e

penalização de certas mercadorias a serviço da solução das crises periódicas de

acumulação do capital” (Del Olmo, 1990:18), reflete Del Olmo, acrescentando: “...vinculando

uma periodicização das crises de acumulação à sua própria periodização do discurso e da

penalização da cocaína e da maconha” (idem).

Na segunda vertente vamos buscar revelar a face oculta dos discursos criminológicos que

legitimam as práticas penais. Como, a partir deste discurso sobre as drogas, nascem os

discursos sobre os traficantes e sobre os consumidores, que implica sempre em focalizar de

forma diferenciada os mecanismos punitivos do Estado.

Quais são os discursos no Brasil que legitimam as práticas penais e o extermínio dos

traficantes?

Para Del Olmo os estereótipos que se criam em torno da droga servem para organizar e dar

sentido ao discurso em termos dos interesses das ideologias dominantes. Em suas

palavras:

“Estes discursos ajudam a estabelecer a polaridade entre o bem e o mal, que o sistema

social necessita para criar consenso em torno dos valores e normas que são funcionais

para sua conservação. Por sua vez, desenvolvem-se novas formas de controle social, que

ocultam outros problemas muito mais profundos e preocupantes” (Del Olmo: 1986:23).

O desmonte de qualquer discurso se faz na prática: por forças sociais coletivas que

questionem ativamente a carga moral e legal atribuída a uma relação (todos os movimentos

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de denúncia contra a opressão policial e contra o desrespeito aos direitos humanos dos

segmentos empobrecidos pelo Estado: torturas, execução, cerceamento da liberdade,

expropriação de bens, etc.); por rupturas históricas que revertam o sentido dessas cargas.

O debate sobre as drogas vai estar assim encoberto por uma classificação preconceituosa e

estigmatizada que justifica o tratamento de exceção que são direcionados para esses

jovens. Seja quando aparece efetivado pelo Estado formal, que vai se amparar na

excepcionalidade que encontra base na sociedade para legitimar as violentas execuções

das quais esses jovens vão ser vítimas.

O que podemos observar é assim que, ao mesmo tempo que tem crescido de forma

bastante significativa o numero de pesquisas, assim como a complexidade dos estudos e a

amplitude dos enfoques em relação a questão das drogas e principalmente sobre o tráfico

de drogas, esses estudos tem servido, no mais das vezes, apenas como uma nova base de

parâmetro acadêmico, pouco tendo ajudado a refletir avanços nas políticas públicas e no

debate sobre a criminalização, ou não, das drogas.

Principalmente esses estudos pouco têm contribuído para a realização de mudanças na

realidade de vida desses jovens que vivem do comércio das drogas ilícitas (assim como de

outros segmentos que são afetados diretamente por esse comércio: índios colombianos, os

peruanos cultivadores da coca, os pequenos produtores brasileiros, etc.)

Ao contrário, o que temos visto surgir como decorrência desses pesquisas e estudos,

muitas vezes só afirmam os padrões ideoculturais que mencionamos anteriormente.

Essa afirmação torna a análise de Del Olmo imprescindível e bastante atual. Pois, se ela

guarda os limites da escassez de produções sobre o tema em sua época, ela ganha por ter

conseguido mostrar o quanto o discurso que se produz de forma majoritária (seja pelos

meios de comunicação, pelo Estado, seja pelas concepções e debates em torno da

segurança pública, violência e drogas) estão ceifados de interesses particulares e de

classe.

Dessa forma, considerando principalmente o trabalho de Del Olmo é que vamos buscar

identificar no próximo item a forma com que esses discursos vêm-se construindo desde a

década de 50 até hoje.

I.4) A criminologia crítica como ponto de partida

Para apreender a questão do narcofavela sob uma leitura totalizante, precisamos buscar a

forma na qual o consumo e a comercialização das drogas vão-se inserir num contexto

macro, onde referências socioeconômicas e políticas devam ser relacionadas.

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Para isso vamos buscar, principalmente nos trabalhos de Rosa Del Olmo, uma análise que

traga “as transformações que a política criminal das drogas sofreu em nosso continente, dos

anos 50 – quando o problema era circunscrito à perspectiva da subcultura – até hoje –

quando se enfrenta um problema econômico transnacional; acrescido e complexificado por

novas questőes emergidas dos fenômenos atuais ligados ao tráfico de drogas que se

produzem nas cidades contemporâneas: hiper-urbanizadas, hipermodernas, globalizadas e

ligadas em redes, dominadas por uma nova forma de poder global (o império) e os modelos

e estereótipos construídos em função de tais transformações” (Batista, 1990:9).

A construção dos estereótipos da droga está relacionada com a sua periodização e nos

ajudam, ainda que de forma sintética, a identificar os discursos preponderantes que a

questão ganha ao longo da história, hegemonizados pelas políticas implantadas pelos

Estados Unidos e seus desdobramentos na América Latina.

Segundo Gonzáles (1983), são três os tipos de estereótipos historicamente construídos em

torno das drogas: o médico, o cultural e o moral. O primeiro remete à questão da

dependência e torna o problema das drogas uma questão de saúde pública. O estereótipo

cultural liga as drogas invariavelmente à juventude e ao sentido de drogado, sendo

reforçado neste aspecto pelo discurso moral.

Para Del Olmo, então, estes três estereótipos se reforçam com a narrativa jurídica que vai

produzir um discurso de ilegalidade das drogas “não por suas qualidades farmacológicas,

mas porque se percebe como ameaça socioética, apesar de no fundo a razão de sua

ilegalidade ser econômica” (Del Olmo, 1990:24).

Essas construções substanciam e desembocam no quarto tipo de estereótipo, agora

definido por Del Olmo, o estereótipo criminoso. Esses estereótipos serviriam assim “para

organizar e dar sentido ao discurso em termos dos interesses das ideologias dominantes;

por isso, no caso das drogas se oculta o político e econômico, dissolvendo–o no psiquiátrico

e individual” (idem, 25).

Colocar as drogas na concretude do contexto material é, assim, a forma possível de

desvelar o caráter demoníaco consensual que esta foi adquirindo, e resgatar os interesses

econômicos e políticos que se subsumem na discussão.

Por muito tempo o consumo de drogas estará restrito aos guetos e subculturas, não

aparecendo, por isso, como problema, ainda que seu uso já trouxesse uma forte carga

negativa que o associava aos segmentos empobrecidos e marginalizados ligados à

criminalidade e à delinqüência, mas, ainda assim, vistos como possíveis de serem

controlados e que coexistiram socialmente.

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Com a saída do consumo dos grupos marginalizados e dos guetos e sua ampliação para a

sociedade em geral, atingindo os jovens brancos de classe média, a questão das drogas

começa a ganhar amplitude. A mudança dos protagonistas, sobretudo o uso coletivizado da

maconha associado aos movimentos contraculturais (movimentos hippies, Woodstock etc.)

que se opunham ao sistema americano, coloca as drogas como problema nacional. Ao

mesmo tempo, será justamente a ampliação do consumo que fará emergir a necessidade

de uma nova moldagem na qual se possa enquadrar este consumidor de classe média. Se

até a década de 50 prevalece o estereótipo moral, a década de 60 marca um duplo discurso

em relação às drogas: a difusão do modelo médico-sanitário, onde o consumidor translada

do papel de delinqüente para o de doente. Assim, à afirmação do estereótipo moral que

criminaliza os empobrecidos (de frágil cidadania e poucos recursos jurídicos) de fácil

identificação, se agrega e fortalece o estereótipo da dependência, aplicável no caso do

jovem branco de classe média. Esta distinção não repercute, contudo, da mesma forma nos

países dependentes, que não possuem a estrutura de serviços de tratamento, o que acaba

por significar na prática que esta diferença entre o consumidor e o traficante ou entre o

doente e o delinqüente acaba por tornar ainda mais arbitrárias as medidas do sistema.

Assim nos dirá Del Olmo: “o consumidor era privado de liberdade e da capacidade de

escolha ou vontade, e portanto sujeito a um controle muito mais forte. Outra alternativa era,

como ocorreu por exemplo com a reforma do artigo 367 do Código Penal Venezuelano em

1965, a falta de precisão na definição entre posse e consumo, que deu lugar a múltiplas

sentenças condenatórias à prisão de possíveis consumidores” (idem, 38).

Assim, ainda que o próprio contexto da veiculação e do uso da droga se faça de forma

diferenciada (não havendo, por exemplo, no contexto da América Latina uma vinculação tão

estreita do uso da maconha e os movimentos contraculturais), a ofensiva do discurso

antidrogas dos Estados Unidos e sua conformação jurídica vão influenciar bastante estes

países. Mas será, segundo a autora, principalmente com o aumento do uso da heroína nos

EUA e suas nefastas decorrências, que incluem inclusive um expressivo crescimento da

criminalidade, que se consolidará um padrão mundial de combate às drogas e seu

necessário aporte ideológico.

Será na era Nixon que “começa a se exportar a aplicação da lei em matéria de drogas, isto

é, a legitimar o discurso jurídico-político e o estereótipo político-criminoso das drogas além

das fronteiras dos Estados Unidos” (idem: 44).

Estão dadas as bases para a construção de um discurso político que qualifica a droga como

o inimigo público e ameaça à ordem, e que nas décadas subseqüentes irá justificar muitas

das intervenções americanas nos países da América Latina, ou sobretudo, como vimos, a

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adequação por parte destes estados de uma política antidrogas ligada aos interesses

específicos dos seus projetos dominantes.

Podemos assim resumir da seguinte forma os discursos produzidos sobre a droga: nos

anos 50 esse consumo ainda aparece ligado a um universo misterioso, próprio de grupos

marginais, aristocratas ou guetos que consumiam heroína ou maconha, produzindo um

estereótipo moral de um modelo religioso e ético-jurídico.

Na década de 60 o que o modelo médico-sanitário (dependência) de tratamento e punição

pressupõe é uma luta entre o bem e o mal. A droga é vista como um vírus contagioso, que

diferencia no entanto, o consumidor, igual a doente, e o traficante, igual a criminoso.

Quando começa a cair a produção de heroína e crescer a de cocaína, na metade da década

de 70, se cria, inicialmente, um estereótipo cultural positivo, onde o consumo da cocaína

não é considerado problema, mas droga social e recreativa. Na década de 80, acontece

uma mudança na imagem e nos padrões de consumo (de 1-4g/mês para 1-3g/semana) e

uso misturado a maconha (policonsumo) seguido de um aumento generalizado por todos os

grupos sociais. Em 1974 existem 5 milhões de consumidores de cocaína no mundo e em

1982 esse número já atinge a cifra de 21 milhões de consumidores.

O que vai possibilitar a mudança no padrão de criminalidade ligada ao tráfico de cocaína e

reestruturação do discurso para guerra contra as drogas e instituição do inimigo externo,

onde as vítimas aparecem como aqueles países cuja população consomem cocaína (por

exemplo, os EUA) e os agressores aparecem como aqueles países cujos camponeses

cultivam a coca como estratégia de sobrevivência, realidade encontrada na América Latina,

já que a cocaína é produzida exclusivamente nesta região.

Esse percurso é o que possibilita que na entrada dos anos 90 a questão das drogas se

assente num discurso político-jurídico transnacional que cumpre a função ideológica de

encobrir o impacto econômico-social que a cocaína produz nas relações internacionais de

poder (império).

Podemos identificar, ao trazer as drogas por esse viés, que diversas mercadorias

desempenham historicamente este mesmo papel, sugerindo novas formulações sobre a

função da criminalização e penalização de certas mercadorias a serviço da solução das

crises do capital. Dessa forma é que, as hipóteses que Rosa Del Olmo formula, vinculam

uma periodicização das crises de acumulação à periodização do discurso e da penalização

da cocaína e da maconha, em modelos que serão universalizados pelos principais

organismos internacionais, entre eles a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a

Organização das Nações Unidas (ONU).

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Vemos assim como esses discursos servem principalmente para justificar as políticas de

ocupação aos países da América Latina, consolidando a política de guerra fria

implementada pelos Estados Unidos simbolizada na figura do inimigo externo, abrindo

espaço para a consolidação do estereótipo político–criminoso, mas também para toda uma

normativa jurídica internacional. Em 1971, a Organização das Nações Unidas vai aprovar

um Convênio sobre substâncias Psicotrópicas e em 1972 a aprovação do Protocolo que

modifica a Convenção Única sobre estupefacientes (1961) para incluir na lista outras

substâncias, ratificado por 104 países, abrindo espaço para que os EUA comece a intervir

em outros países para combater a droga.

Ressurgem o discurso médico e o discurso jurídico que leva a reformular a legislação na

América Latina sobre a cocaína. Cria-se o estereótipo da cocaína e uma cooperação

internacional contra o tráfico de cocaína que inclui a Bolívia (1976) e o Peru (1978). Os EUA

criam um discurso de sanar o problema antes de chegar aos consumidores americanos

(inimigo externo). Na síntese de Del Olmo: “Nos últimos anos vários discursos foram tecidos

em torno das drogas, muitas vezes contraditórios entre si, mas que servem para criar uma

série de estereótipos cuja principal finalidade é dramatizar e demonizar o problema. Com

isto se escondem o alcance e suas repercussões econômicas e políticas atrás de um

discurso único de caráter universal, atemporal e a-histórico que só contribui para a

consolidação do poder das transnacionais que manejam o negócio.”

Os EUA é o ator principal no cenário internacional no trato da questão das drogas. Desde

1906, quando promove a I Conferência Internacional sobre o Ópio, na China até 1988, com

a Convenção contra o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas em

Viena, na Áustria. Neste ínterim, os EUA promoveram várias conferências, convênios e

tratados sobre as drogas. Nos últimos 25 anos, a atenção mundial sobre o fenômeno das

drogas tem estado voltada para a América Latina e Caribe – onde se produz a cocaína que

é transferida para os países desenvolvidos e sobretudo os EUA. O balanço da política de

repressão as drogas não é boa, pois apesar dos esforços, os negócios das drogas se

consolidou e diversificou. Multiplicou várias vezes a quantidade produzida no mundo de

cocaína e maconha e as organizações do tráfico cresceram e se modernizaram, assim

como a corrupção entre as autoridades policiais e judiciais, com substâncias cada vez mais

potentes e mais baratas.

Tudo parece indicar que para uma possível compreensão e posterior solução se faz

necessário realizar uma análise mais profunda que coloque o fenômeno dentro do complexo

e contraditório cenário geopolítico que apresenta o continente americano, detectando seus

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principais determinantes na relação entre crise econômica, guerra contra revolucionária e a

consolidação da democracia e guerra contra as drogas.

Cabe, por fim, destacar como a constante da crise econômica permite explicar de maneira

realista o desenvolvimento e a consolidação da indústria das drogas no continente sul

americano na década de 80 e, em especial, o fato de que amplos setores da população

tenham tido que se dedicar a atividades produtora, exportadora e de manutenção e apoio

logístico a esse negócio.

Essa análise relaciona assim a relação de dependência dos países da América Latina, crise

da década de 80, as condições de vida (subemprego e desemprego) e o aumento do

mercado das drogas, onde, camponeses empobrecidos e trabalhadores agrícolas sem

emprego optam pelo cultivo das drogas ilícitas.

I.5) Criminalização da Pobreza: papel do Estado e os modelos jurídicos de controle social

A questão das drogas ilícitas e do seu comércio varejista nas favelas cariocas exige,

portanto, uma análise transdisciplinar que possa desatar os nós dessa problemática por

vários dos fios que incidem na sua composição. Um desses olhares encontra-se no âmbito

da criminologia crítica. Para isso vamos recorrer às análises construídas por Loïc Wacquant

e Vera Malaguti Batista.

Para Wacquant (2003), a crise referente ao modelo fordista e suas conseqüências assinala

a crise do modelo de Estado social que irá conformar-se na década de 90, nos EUA, selada

em 1996 com a efetivação da reforma da assistência social. Assim, ao mesmo tempo em

que a crise econômica aumenta as questões sociais, vai haver gradativamente um

deslocamento do modelo de Estado social - restringindo cada vez mais a extensão dos

cidadãos elegíveis para os serviços e a durabilidade dos mesmos - para o modelo de

Estado penal. A principal afirmação na análise do autor é a de que: “na medida em que se

desfaz a rede de segurança (safety net) no Estado caritativo, vai se tecendo a malha do

Estado disciplinar (dragnet) chamado a substituí-lo nas regiões inferiores do espaço

americano” (Wacquant, 2003:27).

A afirmação deste modelo de Estado disciplinar se manifesta quando se triplica o número

de detentos nos principais estados americanos nas últimas décadas do século passado,

tanto como no significativo investimento público estatal no sistema penitenciário, após se

conhecer praticamente uma estabilidade nos índices de detenções que previa, inclusive, a

paralisação da ampliação do sistema para os dez anos subseqüentes.

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Para Wacquant, o desdobramento desta política estatal de criminalização das

conseqüências da miséria estaria se efetuando de duas formas: a primeira transformando

os serviços sociais em instrumentos de vigilância e de controle das novas ‘classes

perigosas’; e a segunda seria exatamente esse recurso ao encarceramento.

Mas o que é, para nós, especialmente interessante observar no estudo do autor é a análise

do cruzamento dessa política com a questão das drogas ilícitas. Para ele: “A causa-mestra

deste crescimento astronômico da população carcerária é a política de guerra à droga,

política que desmerece o próprio nome, pois designa na verdade uma guerrilha de

perseguição penal aos vendedores de rua, dirigida contra a juventude dos guetos para

quem o comércio a varejo é a fonte de emprego mais diretamente acessível. É uma guerra

que não teria razão de ser, visto que o uso de estupefacientes está em descenso desde o

final dos anos 70 e que era perfeitamente previsível que se abateria de maneira

desproporcional sobre os bairros deserdados: neles a presença policial é particularmente

densa, o tráfico ilícito é facilmente identificado e a impotência dos habitantes permite à ação

repressiva toda a liberdade” (Idem, 29).

As análises e os dados apresentados por essa linha de investigação ajudam, assim, a

desvelar um discurso hegemônico. Esse consenso tenta encobrir a brutalidade do sistema,

fomentado sobre um discurso jurídico que criminaliza esses jovens e os coloca como

algozes de uma violência que na verdade se produz pelas dinâmicas próprias às

sociedades capitalistas, e que têm feições muito semelhantes em todo ocidente, como fica

ainda mais acentuado na passagem a seguir: “... foi essa política que entupiu as celas e

“escureceu”seus ocupantes. Em 1979, um preso federal em cada quatro tinha sido detido

por violação da legislação sobre os estupefacientes; em 1991, esta taxa ultrapassava 56%.

A diferença entre as taxas de detenção de negros e brancos por delitos de crimes ligados à

droga era de dois contra um em 1970 e de cinco contra um em 1991. Em relação aos

objetivos financeiros fixados por seus estrategistas a “guerra às drogas”foi um fracasso

retumbante: o preço de revenda de cocaína não parou de cair, as quantidades em

circulação não pararam de aumentar e o número de pessoas encarceradas não parou de

inchar – ou seria essa uma de suas missões não confessadas?” (Idem, 30).

O discurso sobre o uso e a comercialização destas substâncias têm sido incorporados ao

longo da história como pretexto para consolidar procedimentos arbitrários e repressivos

direcionados a determinados segmentos sociais. É inegável a relação das políticas contra

as drogas e dos mecanismos de dominação fomentados pelos estados-nação.

Mas, se o autor pode falar, ao tomar como base os Estados Unidos, do deslocamento de

um modelo de estado caritativo e de seguridade social para outro, que tem a penalização

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como principal recurso de enfrentamento às questões sociais, no Brasil a questão aparece

de forma ainda mais complexa. Primeiro por que afirmamos a ausência de consolidação de

uma rede de seguridade social no Brasil, pelo menos de forma extensa e ou contínua que

lhe forneça um caráter universal. O que é central para a nossa análise é entender que a

consolidação desses estados provedores nos países centrais hierarquizou-se em função da

relação salarial. Pertencer a ela era a condição de ter ‘direito aos direitos’, mais do que um

princípio geral de acesso universal a um determinado sistema de bens e serviços. O

Welfare-States teve assim, como fator decisivo, a emergência de uma dinâmica virtuosa,

alimentada pelos modos de repartição dos ganhos de produtividade, entre acumulação e

salários reais, na análise de Cocco (2001). A relação salarial fordista tornou-se a base

objetiva da constituição material do intervencionismo estatal, isto é, da constituição

trabalhista desses estados’.

Contudo, se nos países centrais, ainda que em processos distintos, esse acesso à

cidadania real foi fortemente subordinado à integração na relação salarial, no Brasil, o

modelo de substituição de importação que, de um lado, permitiu a construção do maior

parque industrial da América Latina, por outro, nunca chegou a constituir-se num verdadeiro

mercado interno, ou seja, a determinar um ciclo virtuoso de consumo, como aconteceu na

Europa e nos Estados Unidos.

Ao contrário, o crescimento industrial do Brasil, que se dará de forma rápida e intensa entre

as décadas de 40 à 70 não vêm acompanhados de uma redistribuição de renda ou social,

deixando como conseqüência um imenso contingente de segregados.

Esse processo nos obriga a buscar entender o modelo de Estado de Bem Estar Social que

irá se caracterizar na América Latina em geral e, sobretudo, no Brasil, inserindo-o na marca

dessa dicotomia do desenvolvimento econômico e do desenvolvimento social. Neste

quadro, os limites dos WS são reais, principalmente se esse modelo for visto sob a

perspectiva de ser um mecanismo que opera como barreira ao mercado, inibindo seu curso

desenfreado, mas não absolutos, se o mesmo for entendido como um processo engendrado

por múltiplas determinações e que se constrói em embates e correlações de força. Vários

autores analisaram a forma da constituição dos modelos de WS na AL e no Brasil.

Draibe (1989), por exemplo, designa, ao definir o modelo conservador ou meritocrático

particularista, dois conjuntos principais de motivos pelos quais as estruturas básicas desses

WS se construíram deformadamente, os estruturais e os institucionais.

Além do mais, as contradições do Estado de Bem Estar se manifestam em todas as suas

institucionalidades. E, dessa forma, o narcotráfico não se desenvolve por fora dos

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interesses do Estado ou de suas instituições. Ao contrário, o estado é uma estufa para as

necessidades do tráfico: corrupção, tráfico de influência, ineficiências e falta de legitimação.

No Brasil, o caráter de controle dos aparatos jurídicos do Estado vai aparecer conjugado à

ausência de políticas públicas e às teias de corrupção e repressão do Estado, alimentadas

pelos mais de vinte anos de ditadura militar. A predominância absoluta da manifestação do

Estado que chega até essas populações é a violência.

Um estudo embora superficial do Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito,

destinada a investigar o avanço e a impunidade do tráfico, bem como as outras atividades

ilícitas e lucrativas, nos mostra a grande ocorrência – quase de forma sistemática – da

circulação das drogas por um trânsito que passa por dentro das teias do estado.

Segundo pesquisa (Dowdney, 2005) “Em todos os países onde os grupos armados foram

investigados, o Estado tem um papel direto ou indireto na atividade dos grupos.

Envolvimento indireto é entendido aqui como a corrupção de alguns representantes do

Estado, como policiais ou funcionários de governo de baixo escalão. Envolvimento direto é

considerado como sendo o estado trabalhando diretamente com um grupo armado ou

apoiando indiretamente suas atividades (Dowdney, 2005:46).

Assim, se o discurso do ‘bem contra o mal’ que subjaz às práticas de extermínio que se

abatem cotidianamente sobre as populações afrodescendentes e moradora das favelas tem

ambigüidades, essas não são suficientes para que essas práticas possam abrir fissuras

definitivas no discurso do uso legítimo da força pelo Estado. A violência silenciada é

imposta a esses jovens; nas palavras de Chaui:

“Em resumo, no Brasil, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo

onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda idéia que

reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de alguém,

que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais

do que isto, a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas

porque está cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade

brasileira, que, em sua violência cotidiana, reitera, alimenta e repete o mito da não-

violência” (Entrevista concedida ao portal do PT, www.pt.org.br).

Assim é que, de forma congruente, passamos dos estudos de Wacquant cuja referencia são

os EUA, para os da socióloga Vera Malaguti Batista, cuja referência é o Brasil.

Batista (2003) também irá trabalhar essa dimensão disciplinar e de controle social que se

esconde por trás do discurso estatal de combate as drogas. Os diferentes discursos de

criminalização justificam, em diferentes períodos históricos brasileiros, um ataque

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sistemático a determinados segmentos sociais que se estendem dos ex-escravos aos atuais

jovens moradores das favelas. Para a autora: “Esses setores vulneráveis, ontem escravos,

hoje massas marginais urbanas, só conhecem a cidadania pelo seu avesso, na ‘trincheira

auto-defensiva’ da opressão dos organismos do sistema penal” (Malaguti, 2003:57).

A cidadania é vivenciada apenas através da faceta coercitiva do Estado. Sob a expressão

‘atitude suspeita’, justificam-se as medidas punitivas de segurança voltadas para esses

segmentos. Assim, dirá a autora: “Analisando a fala dos policiais o que se vê é que a

‘atitude suspeita’ não se relaciona a nenhum ato suspeito, não é atributo do ‘fazer algo

suspeito’ mas sim de ser, pertencer a um determinado grupo social; é isso que desperta

suspeitas automáticas. Jovens pobres pardos ou negros estão em atitude suspeita andando

na rua, passando num táxi, sentados na grama do aterro, na Pedra do Leme ou reunidos

num campo de futebol” (idem, 103).

Este fenômeno, de uma tensão permanente entre os jovens pobres das favelas e a policia,

faz saltar aos olhos as faces mais antagônicas das institucionalidades estatais.

O Estado se revela para estes jovens apenas nas suas experiências de cidadania negativa

(Nilo Batista, 1997). Não há, por isso, nem a necessidade de destruir referências anteriores

do Estado como provedor, protetor ou promotor da justiça, porque, para essas populações,

ele nunca o foi. A evidencia da predominância de relações repressivas com estes

segmentos revela os limites deste Estado. Esses limites denunciam não só o caráter do

Estado brasileiro, mas este fenômeno denuncia o limite da própria configuração do modelo

de estado-nação, nos colocando frente à frente com a necessidade de avaliar os processos

históricos de construção destes estados (nação) na América Latina. Nas palavras de Cocco,

esse debate aparece atualizado.

“Nos motins dos jovens franceses encontramos muitos elementos que caracterizam, há

muito tempo, as periferias metropolitanas brasileiras. A exclusão sistemática de gerações

inteiras de adolescentes “estacionados” em zonas de “trânsito sem saídas” (bairros

degradados, escolas de baixa qualidade, altíssimas taxas de desemprego, exposição aos

abusos sistemáticos por parte das forças de polícia) produz um estigma, uma identidade

completamente negativa que lhes cola à pele e atualiza tristemente a noção de campo. As

vidas das nações que mantêm uma forma de apartheid interno se organizam em resposta à

contínua revolta contra aquela exclusão e aquela divisão: os campos desempenham um

papel central nessa ordem incapaz de encontrar suas bases de legitimação. Depredando e

queimando o sistema de objetos que designam o campo da exclusão, os jovens na

realidade se insurgem contra as cercas do campo, contra essa identidade negativa que a

ordem do mercado e do Estado gravou, como uma hedionda tatuagem de triste memória,

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em suas peles. Com efeito, os jovens sabem o que não querem, mas ainda não sabem o

que querem. Mas, na insurreição das periferias francesas - ou brasileiras, a fuga do campo

já desenha horizontes radicalmente abertos e novos: as insurreições das periferias nos

mostram que os habitantes dos campos são a matéria viva, a carne da multidão de que é

feito o mundo globalizado (Negri, Antonio; Cocco, Giuseppe. A insurreição das periferias,

Valor Opinião 23-25/12/2005).

O fenômeno narcotráfico nas favelas cariocas salienta assim a forma preponderante de

interlocução dos segmentos empobrecidos com o Estado brasileiro.

A viabilidade de esses segmentos armarem-se, mas também a necessidade que sentem de

armarem-se, reflete a tolerância das suas teias de corrupção. É essa teia que faz com que

estes armamentos se desloquem das esferas oficiais para a mão destes jovens, como

também possibilita o surgimento de uma política predominante de ataque arbitrário a estas

populações, surgindo daí a necessidade de se protegerem de um Estado que

historicamente os agride reiteradamente.

Para esses segmentos sé se asseguram vivências e práticas que afirmam a concepção de

cidadania negativa, em cujo contexto esses segmentos “só conhecem o avesso da

cidadania através dos sucessivos espancamentos, massacres, chacinas e da opressão

cotidiana dos organismos do sistema penal” (Batista, 1997:133).

Portanto, de forma arraigada na estrutura que conforma o modelo de desenvolvimento

brasileiro, à questão social no Brasil correspondem formas jurídicas de disciplinarização e

controle, tendo a questão das drogas também servido como aporte justificador para a

intervenção violenta do Estado.

Também no Brasil a droga é um dos principais fatores de criminalização da juventude

pobre. Cerca de 50% dos adolescentes que entram no sistema estão envolvidos com

drogas.

Este campo de estudo abre, assim, a possibilidade de evidenciar este embate, um jogo no

qual o discurso consensual de combate às drogas justifica a força repressiva do aparato

penal para o enquadramento das classes sociais vulneráveis, ou nas palavras de Malaguti,

no seu âmbito específico o mercado de drogas revelaria assim: “(...) argumentos para uma

política permanente de genocídio e violação dos direitos humanos contra as classes sociais

vulneráveis: sejam eles jovens negros e pobres das favelas do Rio de Janeiro, sejam

camponeses colombianos, sejam imigrantes indesejáveis no Hemisfério Norte” (Malaguti,

2003:135).

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Ao privilegiar o enfoque da criminologia crítica, busco suporte para anunciar o tipo de

abordagem que aqui se adota e que visa a desmascarar o embate social que se esconde

por detrás da discussão das drogas e, sobretudo, que quer desvelar o lugar e a condição

destes jovens que vão integrar as fileiras do tráfico.

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CAPÍTULO II

AS FAVELAS COMO NOVOS TERRITÓRIOS PRODUTIVOS, ESPAÇO DE CONSTITUIÇÃO DA RESISTÊNCIA E DE PRODUÇÃO DE UM NOVO SABER

Introdução

A favela não é um tema novo e se constitui há muito tempo em objeto de reflexão de vários

campos de conhecimento, sobretudo das ciências sociais. A partir da bibliografia analítica

realizada por Valladares (2003) podemos identificar que no início do século já aparecem os

primeiros trabalhos que vão caracterizar a descoberta das favelas como tema de estudo, ou

o ‘período da gênese’, que vai até o final dos anos 1940. Esses estudos influenciam os

futuros debates sobre as favelas, nascendo dele, inclusive, a noção da dualidade favela-

cidade. Para Valladares, nesse ciclo, os autores estariam, assim: “Adotando um recorte

racionalista/higienista/sanitário, propõem (propondo) uma visão moralista desses

aglomerados, acompanhada de propostas de caráter político-administrativo, assistencialista

e educativo. A dualidade favela-cidade tem aqui o seu ponto de partida (Valladares,

2003:10).

A década de 50 marca um novo período para os estudos e o entendimento das favelas

brasileiras. “O Recenseamento Geral de 1950, fornecendo dados sobre as características

socioeconômicas da população favelada, passou a evidenciar uma realidade social e

urbana bem mais complexa do que se imaginava, dirá Valladares” (Valladares, 2003:11).

Essa virada ascende/eleva a discussão das favelas ao plano do debate sobre a mudança

social e a teoria do subdesenvolvimento, e inaugura os estudos de campo de forma mais

sistematizada e de maior duração.

De forma resumida, posso dizer que Valladares apresenta três marcos distintos de investida

das ciências sociais nesse segundo ciclo de estudos, pós 1950. Assim, o ano de 1969

simboliza a consolidação do tema pelas ciências sociais, o segundo momento se

caracteriza pela fase das remoções (expressando as mudanças instadas pelo cenário

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político da época), com ênfase nas experiências de urbanização das favelas e sobre os

conjuntos habitacionais e, o último momento, correspondendo à década de 90, se

caracteriza por uma explosão de estudos nos mais diferentes aspectos. Para a autora,

esses estudos estão relacionados às intervenções promovidas pelo poder público e pelas

Ongs e à percepção da violência urbana nas favelas do Rio de Janeiro. Para Valladares,

“Transformadas em lócus da pobreza, [as favelas] se tornaram locais privilegiados de

estudos referentes não só à habitação popular, mas à pobreza urbana em suas várias

dimensões, às desigualdades e à exclusão social, temas que as ciências sociais integraram

e passaram a valorizar. Tornaram-se também cenário ou palco onde o estudante ou o

pesquisador passou a investigar questões de interesse próprio ou de interesse direto dos

órgãos públicos e das Ongs que os financiaram” (Valladares, 2003:12, apud Valladares

1999).

O mais importante no trabalho realizado por Valladares é a possibilidade que esse abre de

identificar o que é que se tem estudado sobre as favelas nos últimos cem anos.

A autora começa por destacar a grande quantidade de campos diferentes de saberes que

se interessam pelo tema (ainda que, talvez por isso mesmo, apenas um número reduzido

tenha as favelas como tema de estudo de forma contínua).

As áreas predominantes ainda são a sociologia e a antropologia urbana, seguida do

planejamento urbano e da arquitetura e, ainda, da geografia urbana, do serviço social, da

ciência política, da medicina social, do jornalismo, da história urbana e outras menos

significativas.

Mas essa fragmentação é ainda maior quando tomamos os trabalhos pelos assuntos, sendo

interessante observar que a maior parte desses estudos se concentra sobre as experiências

institucionais de intervenção nas favelas (favela-bairro), e reúnem, além desses, estudos na

área do associativismo, cidadania, participação popular, habitação e mercado imobiliário,

aspectos simbólicos, manifestações culturais, aspectos históricos das favelas, além

daqueles relacionados à violência, criminalidade e segurança pública.

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Para Valladares, isso revela que: “(...) considerando-se a totalidade de assuntos presentes

em cada uma das publicações, nota-se que essa literatura é extremamente diversificada. O

índice de Assuntos (com seus 173 assuntos!) permite supor, inclusive, que as favelas vêm

sendo tomadas muito mais como cenário de processos sociais, do que propriamente

enquanto objeto de análise em si. O pesquisador a elas se dirigem pra estudar de tudo um

pouco: a incidência de várias doenças e epidemias, a gravidez na adolescência, o

desajustamento familiar, o trabalho infantil, a formação de galeras, a opção pelo mundo do

crime e pelo narcotráfico, o trabalho das creches, as escolas e os CIEPS etc, acabando as

favelas por se constituir uma espécie de síntese de todos os problemas sociais” (Valladares,

2003:20).

A necessidade de trazer a favela para nossa discussão aparece assim inicialmente nessa

perspectiva apontada por Valladares, ou seja, como cenário de processos sociais (no caso,

o narcotráfico), mas ganha um sentido muito mais conceitual na medida em que o trabalho

se desenvolve. A favela vai deixando de ser apenas o cenário onde a venda do comércio

das drogas ilícitas se realiza, para se transformar em elemento que constitui e explica essa

realidade.

Dessa forma, ainda que o meu objetivo nesse capítulo II seja o de estudar as favelas, adoto

aqui uma perspectiva mais ampla do que aquela que se constitui pelas suas dimensões

históricas e sociais. O que intento é entender as favelas entremeadas das relações de

poder que deram ao espaço a sua configuração e, portanto, necessariamente também

entremeadas das clivagens econômicas (as formas de os homens se organizarem para

produzir e se reproduzir).

Nessa perspectiva é que não faz, portanto, nenhum sentido privilegiarmos o resgate

histórico da constituição das favelas, ainda que não desprezemos a idéia de as favelas

serem vistas como resultado do modelo concentrador e antidemocrático do

desenvolvimento brasileiro. O que pretendo, contudo, é perceber como os elementos de

força se arrumam e se deslocam através do desenvolvimento das dinâmicas capitalistas e

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de afirmação de modelos de controle social. A favela aparece aqui como elemento de

disputa e de resistência da classe que vive do trabalho e vai, por isso, ganhar um sentido

muito mais amplo do que apenas o de e ser o espaço de exclusão social.

Se as favelas, assim, por um lado, se afirmam historicamente no cenário da cidade

enquanto positividade desse modelo de acumulação movidas pela necessidade de resolver

os problemas de reprodução da força de trabalho (custo com o qual o capital não arca, no

modelo de industrialização brasileiro), por outro lado o caráter ambíguo, de funcionalidade e

desfuncionalidade, já estará presente na origem desse fenômeno e, será ainda mais

acentuado nas sociedades contemporâneas.

Entender a especificidade da constituição das favelas como fenômeno atual exige, portanto,

trazer o próprio entendimento da constituição das cidades como uma expressão da pós-

modernidade. Para que a favela ganhe, então, um sentido para além daquele identificado

por Valladares – de cenário onde se manifestam os objeto de estudo – é preciso incorporá-

la como manifestação das novas formas de organização pós-fordistas e entendê-la na sua

expressão concreta. Assim se, por um lado, o desenvolvimento urbano e o ordenamento

físico das cidades brasileiras não podem ser vistos separados dos elementos históricos

onde se inscreve a segregação espacial no Brasil – nos marcos da conformação do nosso

modelo de desenvolvimento econômico10 –, por outro lado, para buscar reconhecer alguns

dos aspectos dos novos elementos centrais que vão aparecer nos territórios urbanos

(incluindo aqui o narcotráfico) é preciso buscar também construir uma explicação sobre os

mecanismos da globalização e os novos conflitos do capital globalizado.

Reconhecer a existência de mudanças estruturais no capitalismo contemporâneo é,

portanto, o ponto de partida para inscrever o entendimento das favelas por sob essa nova

perspectiva. Perspectiva que aparece marcada pelo papel que as cidades vão ganhar nas

10 Para Cassab (2001) a característica mais saliente da urbanização brasileira é seu caráter de não incorporação da pobreza urbana. Os pobres estiveram, durante todo esse processo, segregados nas dinâmicas espaciais constituintes do espaço da cidade, expressando-se também nelas as características mais marcantes do desenvolvimento do capitalismo no país (Cassab, 2001:98).

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sociedades contemporâneas. A ordenação, ou a desordenação, desses espaços reflete,

assim, as características de uma dada sociedade em seu tempo histórico, considerando-se

a premissa de que a cidade se constitui como expressão das relações sociais, existindo

uma vinculação entre os estágios de acumulação do capital e a forma com que esses

territórios se constroem. Esses territórios expressam assim os dispositivos de poder que

circulam por um conjunto de mecanismos e de procedimentos que se instalam nas cidades.

Dessa forma, desenvolvemos neste capítulo II uma discussão que visa a reconstruir

teoricamente os espaços das favelas (não só como uma construção da segregação espacial

que reflete o modelo de conformação do capitalismo brasileiro, mas) principalmente como

um espaço que se refaz na perspectiva das novas relações globais de produção, a partir de

um breve resgate da passagem do fordismo para o pós fordismo, explicando as ordenações

das cidades por essa clivagem da produção e de suas ordenações políticas. A partir desse

trajeto, pois, que pretendo capturar a favela naquilo que ela guarda de novo, buscando

entender como essas mudanças exprimem e interagem com o fenômeno do tráfico de

drogas, afirmando que também as favelas só podem ser explicadas se vistas a partir da

forma com que essa ocupação do espaço urbano responde as novas necessidades do

capital globalizado – “onde as cidades se reorganizam para formar sistemas transnacionais,

onde os fatores financeiros de localização das novas atividades e as questões de custo

global vão-se tornar cada vez mais importantes” (Boutang, Caderno Lugar Comum, p. 31).

A primazia, na nossa análise, da explicação das favelas (e das cidades) a partir das

transformações situadas nessa esfera econômica se justifica, portanto, somente porque

entendemos que essa dinâmica, como veremos, repercute cada vez mais em toda

organização social, acabando por se constituir no principal vetor da passagem de um

modelo para outro.

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PARTE I

A RELAÇÃO ENTRE A CONSTITUIÇÃO DO TERRITÓRIO URBANO E OS FATORES ECONÔMICOS DA GLOBALIZAÇÃO

II.1.1) Fordismo e pós-fordismo A referência teórica que nos possibilita reconstituir a relação entre a constituição dos

territórios urbanos e o momento histórico, ainda em curso, do surgimento de um novo

paradigma de produção e constituição societária será aquela que começa por apanhar o

fordismo como um modelo onde a dinâmica acumulativa do capital faz do conflito (capital

versus trabalho) o vetor de sua sustentabilidade.

A possibilidade da instituição de uma dinâmica de integração do conflito faz do fordismo o

momento de maior êxito da lógica capitalista, marcando o ápice da maturidade do capital:

de exercer sua exploração e ao mesmo tempo não impedir os avanços em relação aos

chamados direitos sociais dos trabalhadores.

O fordismo se constitui assim pela articulação de um regime de acumulação taylorista de

alta produtividade e da regulação da repartição desses ganhos a partir de um estado

intervencionista que se afirma como o dispositivo de integração do conflito social. Dessa

forma a dinâmica de incorporação da tensão inerente as relações capitalistas faz funcionar

um sistema de acesso a ‘cidadania’ através da relação salarial, garantindo um nível de

distribuição de renda pela manutenção de ganhos reais de salário e também pela garantia

dos direitos sociais. O fordismo se regula na integração da crise, mediado por um Estado

intervencionista cuja principal característica é a de conseguir integrar esse conflito

reconhecendo-o e transformando-o no próprio vetor de crescimento econômico (ver a esse

respeito Cocco, 2001)

Caracterizar o fordismo sem mascarar a natureza de sua dinâmica capitalista (marcada pelo

caráter antagonista da relação capital versus trabalho), implica assim em abrir a

possibilidade de fazer emergir, na análise desse período, também os elementos da

exploração e da dominação implicados nesse processo. No fordismo, como em qualquer

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outra dinâmica de produção capitalista, o capital para produzir precisa estabelecer uma

relação com a força de trabalho, relação esta que necessariamente adquire (para que o

capital realize seu lucro) um caráter de dominação/subordinação.

Incluir a dominação como elemento fundamental para entender o fordismo não é assim

incompatível com o reconhecimento de sua extensa política de direitos. Ao contrário, a

disciplinarização, como forma prática dessa dominação da força de trabalho é, no período

industrial, condição sine qua non de sua produtividade (condição necessária aos altos

lucros do fordismo).

A importância de reconhecer os elementos com que essa dominação se exerce, partindo de

uma análise que incorpora o caráter disciplinarizador requerido na relação, possibilita

enunciar a subjugação do trabalho (e do trabalhador) em todos os seus aspectos, abrindo a

possibilidade de reconhecer também como produção deste período, ainda que na sua

antítese, o caráter de emancipação instituído pelas lutas contra essa disciplinarização.

Assim, se podemos reconhecer um avanço nas condições necessárias para a

democratização da sociedade pela efetivação dos direitos do trabalho, por outro,

reconhecemos nesse período também o auge do processo de subjugação do trabalhador.

Para que a sociedade funcione, na perspectiva dos interesses do capital, é preciso que se

exerça uma constante vigilância corporal, moral e estética desses trabalhadores, práticas

que se inscrevem por sob a matriz disciplinarizadora da modernidade. A subjugação do

trabalhador começa no processo de produção e se estende para todos os outros aspectos

da sua vida. É o seu corpo que é subjugado continuamente.

Nessa perspectiva é que Walter Benjamim (1984) afirma que “a construção da cidade

moderna, que começa no século XIX, vai cumprir principalmente duas funções: atender ao

capital financeiro pelo florescimento da especulação imobiliária, e controlar a emergente

classe operária urbana, não só em seu tempo destinado à produção, mas também em seu

tempo livre, em suas moradias. Esse controle tem em vista dois objetivos principais: o

primeiro é seu disciplinamento como trabalhador, através da regularização de seu modo de

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vida; o segundo, tão relevante como o primeiro, é que em seu tempo livre o trabalhador se

torne um consumidor” (Benjamim apud Cassab, 2001:114).

Mas será Foucault, melhor que qualquer outro quem irá deslindar os meandros desse

paradigma da disciplinarização, debulhando as relações sociais até achar nela as formas de

poder, destrinchando os campos institucionais até encontrar neles os ritos e exercícios

dessa subjugação ao capital, descobrindo que todas as instituições que nascem desse

modelo industrial se parecem com a fábrica. A escola se parece com a fábrica, o quartel se

parece com a fábrica, a família se parece com a fábrica, dirá Foucault. Todas as

instituições11 e os modelos que vão nascer desse paradigma têm dentro deles, embutida, a

questão da disciplinarização e, portanto, a subjugação desse trabalhador pela máquina ou a

subjugação do homem pelo capital.

Para Pelbart, aludindo aos estudos de Foucault, o fazer viver característico desse período

se faz principalmente numa disciplina corporal que está “Baseada no adestramento do

corpo, na otimização de suas forças, na sua integração em sistemas de controle, as

disciplinas o concebem como uma máquina (o corpo-máquina), sujeito assim a uma

anátomo-política” (Pelbart, 2003:57). Essa forma de constituição da vida, característica

desse período, irá resultar no que Foucault se refere como a docilização e disciplinarização

do corpo.

Escolher ler esse período a partir dessas referências é, assim, abrir frentes para entender o

surgimento do pós-fordismo não só pelo viés do capital e das saídas que esse vai buscar,

como a flexibilização e o neoliberalismo, mas principalmente entender o esgotamento desse

modelo como resultado das lutas sociais que vão se constituir nesse período, marcadas na

11 O próprio movimento sindical, que aparece de forma fundamental no processo de garantias (de afirmação e ampliação) dos direitos, também aparece assim, ao mesmo tempo, como produto desse paradigma, resultante das condicionantes que essa subjugação impôs ao trabalhador e a sociedade, fazendo com que Boaventura de Souza Santos, aponte para a perda do caráter emancipador desses movimentos, que estariam submersos a dimensão de regulação dessas instituições que nascem do auge desse processo de industrialização do mundo.

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luta contra o trabalho e também nas lutas contra esse paradigma disciplinar opressor

fordista que se reflete nas relações que se constroem a partir e para além do trabalho.

Ao buscar a passagem do fordismo para o pós-fordismo pelo viés econômico busco, assim,

afirmar, primeiro, que o principal trabalho que valoriza o capital no ciclo produtivo atual não

está subordinado à máquina, estando, portanto, a força de trabalho cada vez menos

subordinada ao capital e, segundo, que esse trabalho requer cada vez menos as

habilidades manuais que eram postas pra produzir no fordismo e se objetiva pelas

qualidades imateriais do trabalhador.

Assim, se podemos identificar no pós-fordismo elementos que falam das estratégias do

capital na sua necessária busca pelo lucro, encontramos também elementos que dizem dos

enfrentamentos para superação da forma com que essa relação capital versus trabalho se

institui. Essa inversão de perspectiva permite voltar o olhar ao que de fato importa,

reinstituindo as lutas no processo de constituição da história. O que está sendo colocado

em evidência aqui é a forma com que a força de trabalho constrói o mundo, tanto na sua

dimensão subordinada, de valorização do capital, como na sua dimensão criativa

transformadora.

II.1.2) Teoria do valor, afirmação e negação Dessa forma é que a categoria clássica do trabalho aparece como o eixo que estrutura o

nosso debate.

Para Marx o trabalho aparece como a força motriz em todas as formas de organização

construídas na história, nos indicando (sob o viés dessa análise marxiana), que essa

tendência também se afirme no ciclo produtivo atual. A teoria do valor, na dimensão

primeira do seu conceito12 não perde sua validade, ao contrário, o estágio de acumulação

12 A teoria de valor enquanto categoria teórica está presente já nos economistas clássicos -– Benjamim Franklin reconhece a verdadeira natureza do valor em seu primeiro ensaio de 1729 –, mas é na obra de Marx que essa concepção aparece como uma força capaz de refazer todo o sistema interpretativo de produção da realidade. Para Marx, é a potência da atividade humana que cria valor e determina, no seu processo produtivo, toda a

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atual afirma cada vez mais essa teoria através da acentuada relevância do trabalho vivo

nessa produção global.

A atualização da teoria do valor (a partir do trabalho imaterial)l não pressupõe, portanto, um

enfrentamento com a dimensão fundante do trabalho na obra de Marx. Ao contrário, para

Negri, a idéia da abstração real13 é um dos elementos primordiais do método marxiano.

Para o autor o trabalho (sua potência) continua sendo (e o é cada vez com mais

intensidade) a origem de todo o valor e de toda a riqueza. Ou seja, para o autor “o trabalho

efetivamente continua a ser a fonte essencial de valor na produção capitalista, isto não

muda, mas precisamos investigar que tipo de trabalho estamos tratando e quais são as

suas temporalidades” (Negri, 2005:193 ).

Assim, se Negri reafirma com vigor o sentido da imanência no entendimento da construção

da história, é com o mesmo vigor (e com os mesmos elementos) que também afirma o

esgotamento da teoria de valor como medida válida de enunciação da exploração do

capital.

A relação, possível até aqui, entre o trabalho e o valor em termos quantitativos, (onde) “uma

certa quantidade de tempo de trabalho abstrato equivale a uma quantidade de valor”(Negri,

página 193, multidão) não mais se realiza nas sociedades pós-industriais “A unidade

temporal de trabalho como medida básica de valor não faz (mais) sentido hoje em dia14

(Negri, 2005:193) exatamente porque falamos de um tipo de trabalho onde a quantidade de

organização social que o sustenta, incluindo aqui a própria dimensão ontológica que emerge dessa construção social.

13 A idéia que está presente aqui não é a idéia do trabalho na sua dimensão individual, mas daquilo que os diferentes tipos de trabalho têm em comum; um trabalho independente da sua forma física. Falamos do trabalho abstrato, ou nas palavras de Negri: “Esse trabalho abstrato, explica Marx, é fundamental para entender o conceito capitalista de valor. Se, como dissemos, na sociedade capitalista o trabalho é a fonte de toda riqueza, o trabalho abstrato deve ser a fonte do trabalho em geral” (Negri, 2005:193).

14 Em Marx veremos que, ‘uma mercadoria tem um valor por ser uma cristalização de um trabalho social. A grandeza de seu valor, ou seu valor relativo, depende da maior ou menor quantidade dessa substância social que ela encerra, quer dizer, da quantidade relativa de trabalho necessário à sua produção. Portanto, os valores relativos das mercadorias se determinam pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, realizadas

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tempo necessário para exercê-lo deixa de ser um elemento significativo da sua realização e

produtividade.

A possibilidade de uma relação direta entre tempo e valor, quando a valorização da

mercadoria se faz a partir de habilidades cada vez mais subjetivas dos trabalhadores,

apresenta um limite muito maior do que quando essa relação se efetiva no processo de

produção clássica do capitalismo.15

Isso se dá porque no período do capitalismo industrial a valorização do trabalho se

processa por atividades autônomas e repetitivas, onde o trabalhador precisa passar por

cima de sua subjetividade para executar seu trabalho. Portanto, ao precisar apenas de uma

força de trabalho adestrada para se valorizar é possível, ao capital, submeter essa força em

quase toda sua potencialidade, sobretudo através do tempo em que a coloca para produzir.

Contudo, sob um ciclo produtivo cuja principal forma de valorização é um tipo de trabalho

que nega essa dimensão instrumental (o trabalho manual e autônomo do operário fabril), ou

seja, que nega a dimensão mesma subordinada do trabalho e afirma, cada vez mais, a

natureza de um trabalho criativo e emancipado do capital, fica cada vez mais difícil capturar

essa potência valorizadora, ainda mais se tivermos como medida principal o tempo em que

se coloca essa força de trabalho para produzir.

plasmadas nelas. As quantidades correspondentes de mercadorias que foram produzidas no emso tempo de trabalho são iguais (Marx, “Salário, preço e lucro”. O capital, p. 75).

15 No período industrial a quantidade do tempo de trabalho é a medida mesmo da quantidade de valor médio que o trabalho pode gerar. O conceito de mais valia absoluta aparece como a expressão mais clara dessa relação direta entre tempo de trabalho e produção de valor. Contudo, essa relação se torna possível por se tratar de um período onde a força de trabalho está quase que totalmente subordinada ao capital. Se, o processo produtivo depende da força de trabalho, essa também depende do capital para se efetivar. Não à toa, Marx identifica a contradição fundamental das relações capitalistas nessa polaridade, entre a produção social e a apropriação privada, decorrência de uma transmissão histórica que deixa aos primeiros apenas sua força de trabalho e aos segundo os meios de produção. No pressuposto dessa possibilidade de medição da força de trabalho o que se encontra é a possibilidade do capital de disciplinar esses trabalhadores por sob um paradigma que vai se sustentar historicamente no modelo regulador do Welfare State, mas também no modelo, tão regulador quanto, de organização sindical que vai emergir nesse período. A organização técnico-científica do trabalho (OCT) seria a outra ponta de sustentação desse modelo produtivo.

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Ao desenvolver um debate que recoloca a teoria do valor, primeiro na perspectiva de sua

afirmação, onde a força de trabalho resplandece em toda a sua dimensão de construção da

história, segunda na sua negação, invalidando o tempo (e a subordinação/disicplinarização

da força de trabalho a esse tempo) como elemento capaz de garantir a produtividade do

capital, sedimento o caminho para o entendimento das características do novo ciclo de

produção imaterial, que passa pela negação da subsunção real e pela necessidade, por

isso, do surgimento de novas formas de controle social, achando o gancho para entender as

dimensões de poder presentes na construção dos espaços das favelas e do narcotráfico.

II.1.3) A negação da subsunção real

A assertiva que chegamos, a de que não é mais o tempo de trabalho a medida da

exploração nos estágios de acumulação flexível pós-industriais, abre nossa discussão para

uma segunda superação em relação ao entendimento das formas de re-produção das

sociedades industriais, o pressuposto de que o trabalho que valoriza o capital na atualidade

não está subordinado à máquina, estando, portanto, a força de trabalho cada vez menos

subordinada ao capital.

A tentativa de distinguir as características fundamentais nas transformações das sociedades

contemporâneas pós-modernas não passa, assim, pela discussão da centralidade, ou não,

do trabalho na produção, mas sim da natureza desse trabalho, de sua nova constituição e

da constituição de um novo território produtivo.

Negri institui aqui uma inversão em relação ao campo de análise marxista ortodoxo. Para

esses autores as mudanças no mundo do trabalho se explicam pela subjugação cada vez

maior da força de trabalho ao capital. O eixo central de explicação dessas mudanças é

assim a substituição da força de trabalho (trabalho vivo) pela máquina (trabalho morto). A

explicação da realidade cunhada por esse campo limita-se, necessariamente, a um

entendimento de mundo por sob o ponto de vista do capital, destituindo a possibilidade de

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entender a globalização também como resultado de um processo de lutas contra a

automação do trabalho e sua subordinação à máquina16.

Para Negri, ao contrário, são essas lutas que acabam por provocar mudanças na natureza

desse trabalho. A nova síntese que aparece aqui entre o capital e o trabalho é, assim,

bastante diferente do que a síntese de subordinação apontada pelos marxistas ortodoxos.

Abre se aqui a enunciação de uma nova contradição que supera, na sua própria natureza, o

caráter dialético da contradição anterior que coloca em oposição unicausal os conceitos de

capital e o de trabalho, gerada nas sociedades industriais.

Quando a relação social capitalista só acontece pela associação dos meios de produção e

da força de trabalho; estão, pois, ambos condicionados (e condicionantes) a uma

determinada formação social. Aqui o capital e o trabalho formam uma unidade necessária.

O conceito de trabalho incorre assim na probabilidade de apresentar-se apenas na sua face

subordinada, de trabalho instrumental que tende a subordinar-se cada vez mais as

máquinas e se diluir no processo de produção e constituição do mundo.

Para sair desse viés analítico voltamos, assim, à afirmação marxista de que é o trabalho

vivo (e não o trabalho morto) que impõe a dinâmica de desenvolvimento da história. Pois é

essa a única perspectiva que nos possibilita chegar ao primordialmente novo nas relações

contemporâneas: a forma como um novo tipo de trabalho emerge e transforma as relações

sociais de produção e toda a vida societária que se ergue dessas relações.

Será assim que Negri, ao achar o trabalho vivo como elemento essencial da dinâmica atual

de acumulação capitalista, consegue também retomar a acepção do trabalho como

fundação ontológica dos sujeitos.

16 Diferentemente, inclusive, do que vão constatar os marxistas ortodoxos, de que as sociedades pós-industriais teriam no seu processo produtivo cada vez mais a subjugação da força de trabalho às máquinas, Negri afirma a relevância cada vez maior do trabalho vivo no atual processo de acumulação global Pouco importa, assim, se esses marxistas ortodoxos afirmem a centralidade do trabalho, se não conseguem vê-lo senão na sua dimensão subordinada, ou seja, a centralidade, para esses autores, na verdade está no trabalho morto, daí as análises que explicam a constituição da história sempre pela determinação do capital. Para esses autores ortodoxos, o enunciado de todo um corpo social se limita as explicações particulares das novas formas do trabalho se organizar.

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Assim nós dirá Negri, que “O conceito de trabalho vivo é a chave, seja para analisar e

compreender a produção, seja para apreender o sujeito revolucionário. O mesmo conceito

mantém juntos trabalho e ação. A lógica materialista da exposição científica representa, ao

mesmo tempo, a solução do problema da constituição do sujeito que se emancipa” (Negri e

Lazzarato, 2001:76).

Estamos, portanto, como dizíamos, em face da abertura da enunciação de uma nova

contradição que supera o caráter dialético da contradição anterior e recoloca a dimensão do

sujeito no processo de constituição da história.

A superação teórico-conceitual, da impossibilidade da força de trabalho se efetivar a não ser

pela sua junção subordinada ao capital, só pode aflorar nos enunciados da escola operaísta

quando está, também sendo gestada na realidade. Quando emerge nas sociedades pós-

modernas um tipo de trabalho que, quanto menos subordinado ao capital mais produtivo se

torna, a negação conceitual da subsunção real afirma a perspectiva marxiana da teoria

como uma construção circunscrita num tempo determinado refletindo a materialidade

histórica.

Ao negar algumas das proposições de Marx, o que o campo teórico da escola operaísta faz

é atualizar o entendimento das formas com que os enfrentamentos entre o capital e o

trabalho se colocam hoje, ou seja, atualizar (diferentemente dos marxistas ortodoxos)

justamente o potencial crítico e revolucionário da obra de Marx, devolvendo o sujeito pra

história. Assim é que “a teoria social deve ser modelada segundo os contornos da realidade

social”, dirá Negri.

Dessa forma também é que seguir o método de Marx pode significar portanto “nos afastar

das teorias de Marx, na medida em que o objeto da sua crítica, a produção capitalista e a

sociedade capitalista como um todo mudou. Em termos simplificados, para seguir os passos

de Marx temos realmente de ultrapassa-lo, desenvolvendo com base em seu método um

novo aparato teórico adequado a nossa atual situação (Negri, 2003:189).

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Será, portanto, a constituição material efetivada pelo trabalho vivo que nos revela a

possibilidade de sair desse antagonismo dialético em que a modernidade se amarrou.

Serão assim as lutas sociais que se defrontaram com a disciplinarização do trabalho e da

vida, entre as décadas de 60 a 70 17 que fazem emergir novas relações sociais de produção

sintetizadas num novo tipo de trabalho que tem como principal natureza não mais precisar,

para se realizar enquanto valor, (imanência do ato em si da vida, efetivação da construção

material do mundo) passar pelo capital (pelo trabalho morto, pelas máquinas, pelo capital).

É o trabalho vivo que protagoniza a história.

Dessa forma é que Negri precisou sair da armadilha em que se meteram muitos marxistas

ortodoxos, de acreditar que o trabalho subordinou e, subordina-se cada vez mais as

máquinas, para encontrar nesse processo o que de fato se constituía como vitalidade

histórica, o trabalho vivo, ou mais especificamente um trabalho vivo que se qualifica pela

sua condição de produzir mercadorias imateriais, com o uso de qualidades imateriais, como

o intelecto, a afetividade e a criatividade.

O que Negri faz, assim, é levar ao limite histórico possível a afirmação marxiana de uma

síntese nova que não é mais a de subordinação do trabalho ao capital (ainda que falemos

cada vez mais de um biopoder).

A identificação que o desenvolvimento das forças produtivas apontariam para o

favorecimento de relações produtivas de nova ordem, a partir da criação das condições que

admitissem novas relações entre o trabalho e o capital, está presente em Marx: “Uma vez

conseguida, a separação entre o trabalhador e seus meios de trabalho subsiste e

prossegue a uma escala sempre crescente, até que uma nova revolução, que agite o

sistema de produção de um extremo ao outro, restaure a unidade primitiva sob uma forma

histórica nova” (Marx, Salário, Preço e Lucro, p. 55).

17 Para Pelbart a “recusa do trabalho industrial que se manifestou através das lutas operárias dos anos 60-70 suscitou o desenvolvimento de um noo-trabalho, o trabalho mental.”(Pelbart, 2003:94)

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O que Negri identifica são as formas e as possibilidades de estar sendo gestadas as

condições para que o trabalho aconteça de forma autônoma ao capital, ou, como coloca

Marx, que essa unidade primitiva entre trabalho e capital adquira uma nova forma.

A superação dessa relação capitalista se manifesta assim quando olhamos para o espaço

da construção material e identificamos um novo tipo de trabalho (que tende a hegemonizar

todos os outros e, assim, subordinar toda a lógica de acumulação capitalista) cuja principal

característica consiste em ser um trabalho que, quanto mais livre estiver do espaço e do

tempo disciplinado da produção fabril, mais produtivo se tornará, um trabalho que se

constitui por fora (a margem) do processo produtivo e por isso tem características que o

transcende.

Um ciclo produtivo que praticamente prescinde do capital não precisa (nem pode) mais,

portanto, impor uma disciplina subordinante à força de trabalho. Ao contrário, dirá Negri:

“A época em que o controle de todos os elementos da produção dependia da vontade e da

capacidade do capitalista é superada: é o trabalho que, cada vez mais, define o capitalista,

e não o contrário” (Lazzarato e Negri, 2001:31-2).

Na direção inversa da força de trabalho no fordismo que, quanto mais agregada ao capital

mais produtiva se tornaria, a dinâmica valorativa do capital assume aqui uma nova

configuração. Estamos em face da revolução, que nós fala Marx.

A possibilidade do trabalho imaterial se efetivar por fora do capital vem junto com um

processo que também lhe confere novas exigências e qualificações.

O que emerge hoje é, assim, a natureza de um trabalho que tende e precisa ser cada vez

mais cooperado e subjetivo para ser produtivo.

É, pois, ao encontrar o trabalho vivo no processo produtivo atual que a escola operaísta

pode distingui-lo na sua indeterminação, como elemento do novo, de criação e de

transformação do mundo.

A lógica da dialética anterior é quebrada quando a superação do conflito capital versus

trabalho não se encontra mais nessa antinomia que se abre apenas para um antagonismo

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irresolúvel, mas como uma alternativa que passa por fora dessa relação e esvazia o sentido

histórico (de subordinação) da mesma.

A superação do conceito marxiano de subsunção real desloca, assim, necessariamente,

todo o eixo marxista de explicação da realidade.

Assim, é exatamente por que as condições do desenvolvimento das forças produtivas

(possibilitadas pela inovação que surge desse encontro da força de trabalho e da máquina)

permitiram, é que se pode abrir a possibilidade para novas relações sociais.

Ou seja, é exatamente como fruto do processo de construção do mundo pelo trabalho,

açambarcado na sua dimensão subordinada, mas principalmente na sua dimensão criativa

(trabalho vivo) que devemos buscar entender as relações sociais atuais.

Quando a materialidade histórica nega a subsunção real e, a força de trabalho não mais

precisa para produzir e se reproduzir subjugar-se à máquina, é o capital que precisa

descobrir novas formas de subordinar esse trabalho, pois é justamente a subjetividade do

trabalhador (aquilo que extrapola, que vaza da máquina) que se torna produtivo. É

justamente a dimensão transformadora e revolucionária da força de trabalho que explode na

atualidade.

Encontramos aqui o conceito de multidão na sua dimensão de classe: abrangendo todos

aqueles que brigam contra a exploração dominante, emergida da dinâmica constitutiva da

materialidade. Dessa forma é que podemos entender a afirmação de Negri de que:

“A particularidade do método marxiano consiste no fato de que suas categorias apreendem,

ao mesmo tempo, a objetividade da produção e a subjetividade dos agentes da

transformação, consentindo uma tradução em ambos os sentidos, entre estrutura e sujeito”

(Lazzarato e Negri, 2001:76).

A polarização entre capital e trabalho implicou, na modernidade, também uma subsunção

necessária do sujeito à estrutura. Na concepção moderna de soberania, a dialética entre

capital e trabalho se refaz também na relação sujeito versus sociedade.

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Essa conformação implica na emergência de um sujeito que é também fruto dessa negação

(dialética) e, portanto, um sujeito que limita sua existência a essa antítese, levando ao

estrangulamento o projeto de emancipação nos marcos regulatórios instados pela

modernidade.

A dialética sujeito e estrutura impossibilita o surgimento de um sujeito, a não ser

subordinado a essa ordem (ainda que na sua negação).

A possibilidade de romper com a dialética clássica entre capital e trabalho abre assim a

possibilidade, de também, nas sociedades pós modernas, se refazer a dialética entre sujeito

e estrutura. O surgimento, na pós-modernidade, da multidão é a possibilidade dessa

superação.18

É, pois, quando Negri identifica que, para se valorizar o uso atual da força de trabalho

precisa ser cada vez mais imaterial, cooperado e socializado é que ele pode também

afirmar a constituição de uma nova eticidade advinda desse trabalho vivo na sua dimensão

de construção do mundo presente. Assim é que, a partir de Negri, reafirmamos o marxismo

e podemos trazer de volta a história para o plano das lutas, pois é, nas sociedades

contemporâneas, mais do que nunca, que coincidem o tempo de produção com o tempo de

vida e o tempo de luta.

São os enfrentamentos que permitem aos trabalhadores experimentarem novas práticas

sociais do comum; novas formas de produção de vida. Formas que configuram os territórios

urbanos das sociedades contemporâneas, e falam de um novo tempo, de uma nova forma

de fazer e de conceber o mundo.

18 Negri traz para esse debate um novo conceito de síntese, a multidão. “(...) uma das verdades recorrentes da filosofia política é que só aquilo que é uno pode governar, seja o monarca, o partido, o povo ou o indivíduo; sujeitos sociais que não são unificados, mas múltiplos não podem governar, devendo pelo contrário ser governados. (...) para Negri, no entanto, o conceito de multidão desafia esta verdade consagrada da soberania. a multidão, embora se mantenha múltipla e internamente diferente, é capaz de agir em comum, e portanto de se governar. Em vez de um corpo político com uma parte que comanda e outras que obedecem, a multidão é carne viva que governa a si mesma (Negri, 2001:140-1).

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Tempo e espaço ganham novas dimensões, não mais do chão fabril, mas principalmente

não mais daquele tempo fabril: seriado, ritmado, disciplinado. Falamos assim de um tempo

que é o tempo da vida: das possibilidades de socializar, interagir. Falamos de um tempo

que é o da circulação, da rede. Falamos de um novo tempo e de um novo espaço.

PARTE II Trabalho imaterial, consumo e externalidades: as novas relações constitutivas do capitalismo cognitivo

Introdução

O propósito de entender a configuração dos territórios urbanos na possibilidade de

identificar os vetores de dominação -mas principalmente de resistência- que os tecem, foi o

que abriu a exigência de um referencial teórico que atualizasse as contradições do

capitalismo para suas expressões contemporâneas, me levando (ao querer partir das

mudanças societárias para explicar as favelas) a abarcar esse universo através de

categorias que pudessem imprimir sentido a essa nova organização global.

Pensar as favelas como expressão do atual modo de produção exige, assim, que partamos

de (novas) categorias que se inscrevem a partir do pressuposto inicial de que a hegemonia

do trabalho imaterial reestruturou toda a base material de produção, fazendo com que

dentro das cidades as favelas apareçam como uma complexa expressão do rompimento

com esse modelo industrial, onde, desde a sua origem, as favelas se instituíram (também)

no avesso da dinâmica constitutiva/afirmativa desse sistema disciplinar, na medida em que

nascem como território ilegal, informal e ilegítimo.

Quando afirmo a hegemonia do trabalho imaterial e busco a nova ‘natureza’ desse trabalho

me reporto assim a um processo que nasce como fruto da negação do trabalho fabril e se

afirma como expressão de um período de lutas que tem sua démarche ‘por fora’ do

processo de transformação material da mercadoria, até chegar a ponto de subordiná-lo,

onde esse fora passa a estar dentro, ou melhor, já não há um fora.19

19 Para Negri, a própria concepção do que é fora (exterior) e o que é dentro (interior) aparece como característica do pensamento moderno visto sob diferentes discursos; que podem ser identificados a partir da noção de soberania, da noção do consciente e

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A tentativa de olhar as favelas por sob esse viés econômico é alçá-las a essa mesma

demarche; se antes as favelas apareciam como um território por fora da constituição dos

espaços da produção e, portanto, por fora da constituição formal das cidades e suas

funcionalidades, hoje ela aparece por dentro dessa produção.

O território pós-moderno expressa, assim, a necessidade da incorporação dos espaços da

sociabilidade humana como condição da valorização do capital, causando o que Cocco vai

chamar da ‘desarticulação das dimensões espaço temporais do fordismo’ pois, diferente da

disciplinarização, que tornava no fordismo o trabalhador produtivo, nas sociedades pós-

industriais o que se torna produtivo é a sociabilidade e suas externalidades.

É assim que a emergência desse novo ciclo produtivo produz, conseqüentemente, uma

nova configuração do espaço: nova síntese entre trabalho e território.

Na continuidade do debate o que pretendo agora é mostrar como, quando o trabalho

imaterial se torna central na produção e na acumulação capitalista, e opera um

deslocamento territorial que traz a vida (e sua constituição) para o centro da produção, o

espaço da favela também ganha novos contornos e sentidos.

Assim é que, para perceber porque no capitalismo cognitivo são as externalidades que se

tornam produtivas é necessário, portanto, perceber a nova forma de organização da

produção em sua totalidade, partindo de um novo entendimento do trabalho (agora

transformado em trabalho imaterial), mas também partindo de um novo entendimento das

inconsciente e da noção da natureza como algo externo e independente do processo civilizatório. Para Negri assim, a soberania moderna sempre se concebe a partir dos territórios “Os primeiros teóricos sociais modernos, por exemplo, de Hobbes a Rosseau, entenderam a ordem civil como um espaço limitado e interior, oposto à ordem externa da natureza ou em contraste com ela. O espaço confinado da ordem civil, seu lugar, é definido pela separação dos espaços externos da natureza” (Negri, 2001:207). O que vivemos hoje é asssim a internalização do fora ao ‘civilizarmos’ a natureza, ou ainda nas palavras de Negri “Certamente continuamos a ter florestas e grilos e tempestades em nosso mundo, e continuaremos a julgar que nossas psiques são movidas por instintos e paixões naturais;mas não temos natureza no sentido de que essas forças e esses fenomenos já não são entendidos como exteriores, isto é, eles não são vistos como originais independentes do artifio da ordem civil. Num mundo pós-moderno todos os fenômenos e forças são artificiais, ou, como diriam alguns, parte da história. A moderna dialética do dentro e do fora foi substituida por um jogo de graus e intensidades, de hibridismo e artificialidade (Idem, 207).

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relações que circundam esse trabalho, até chegar ao ponto de poder afirmar que subordinar

a força de trabalho a um espaço ou a um tempo produtivo restrito não garante mais ao

capital a sua valorização, pois, para produzir o capital precisa agora subjugar toda a vida do

trabalhador, todos os seus modos de existência, ele precisa interferir em tudo, ele precisa

incorporar para dentro de si o fora, e tornar tudo dentro. Quando nos direcionamos para

uma sociedade cuja reprodução exige mecanismos de comando cada vez mais imanentes

ao campo social, numa dinâmica onde “O poder agora é exercido mediante máquinas que

organizam diretamente o cérebro (em sistema de comunicações, redes de informações etc.)

e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas etc.) no objetivo de um

estado de alienação independente do sentido da vida e do desejo de criatividade” (Negri,

2001:42) é que novas manifestações no território urbano emergirão.

As cidades passam assim a ser a expressão de relações e formas de produzir cujo

paradigma societário se afirma no controle, muito mais do que na disciplina. A função mais

elevada desse poder é envolver a vida totalmente, e sua tarefa primordial é administrá-la.

São portanto agora os espaços da vida que são chamados a intervir.

O ordenamento físico das cidades não pode, assim, ser visto separado da funcionalidade

que essas adquirem em cada modelo econômico, sobretudo em um momento em que “as

grandes potências industriais e financeiras produzem, desse modo, não apenas

mercadorias mas também subjetividades. Produzem subjetividades agenciais dentro do

contexto biopolítico: produzem necessidades, relações sociais, corpos e mente - ou seja

produzem produtores (Idem, p. 51).

O fluxo desse novo ciclo produtivo efetiva múltiplas conexões de ordem diversas. Ao se

constituírem, essas conexões deslocam os espaços das cidades de suas funções e ou de

suas forças, nova síntese de espaço e tempo que reconstrói o sentido de territorialização,

fazendo com que os espaços de produção se desloquem ainda mais para os centros

metropolitanos (espaço da sociabilidade), cuja capacidade de fluxo é uma das suas

principais características.

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Dessa forma dirá Negri: “...quando o poder se torna inteiramente biopolítico, todo o corpo

social é abarcado pela máquina do poder e desenvolvido em suas virtualidades. Essa

relação é aberta, qualitativa e expressiva. A sociedade, agrupada dentro de um poder que

vai até os gânglios da estrutura social e seus processos de desenvolvimento, reage como

um corpo só. O poder é, dessa forma, expresso como um controle que se estende pelas

profundezas da consciência e dos corpos da população e ao mesmo tempo da totalidade

das relações sociais (Negri, 2001:44-45).

Assim é que a mudança que incide sobre a produção sintetiza o deslocamento que vai se

constituir como base dessa nova organização, revelando a dimensão onde a favela pode se

tornar produtiva: enquanto conhecimento coletivo e cooperado.

Dessa forma é que precisamos, para afirmar o que aponto como um fenômeno que permite

colocar os espaços de reprodução20 da vida social no centro da produção, obter uma

totalização do atual ciclo produtivo, abrindo com isso para a possibilidade de capturar as

relações de dominação que emergem dessa nova dinâmica, buscando entender como as

favelas (e o narcofavela) sobressaem numa perspectiva de resistência e de luta, pois,

apenas a partir dessa atualização é que posso conformar as favelas como espaço produtivo

e mostrar como o tráfico de drogas interfere nessa rede de produção imaterial subjetiva.

Aqui se abre a nossa primeira perspectiva teórica, a nova forma com que o sentido do

consumo vai aparecer nas sociedades pós-modernas, mas que já tem sua base conceitual

de explicação na teoria marxista.

II.2.1) O Consumo na Pós-Modernidade O consumo como categoria econômica está presente nas formulações de Marx (portanto no

período da modernidade) já numa perspectiva bastante ampliada do seu entendimento na

relação produção-consumo-distribuição. Nos seus estudos sobre economia política, Marx

20 Em Lazarato podemos encontrar o novo sentido da dinâmica produtiva e reprodutiva atual do capital, assim: “A economia capitalista contemporânea segue à risca o ciclo de valorização descrito por Tarde: a invenção, enquanto criação de possíveis e atualização destes possíveis nas almas (dos consumidotres e dos trabalhadores), é a verdadeira

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parte da distinção desses momentos, a partir das categorias de mercadoria e seus

decorrentes, que explicam o processo de produção e através dele, explicam o caráter

próprio e irrefutável do modo de produção capitalista. Aqui o entendimento de consumo já

está clivado por vários sentidos e não apenas como o uso do produto em si.

Em seus estudos do livro II do Capital Marx vai acentuar inicialmente, a inflexão produtiva

do consumo, o consumo produtivo.

Para Marx: “Primeiro do ponto de vista subjetivo o indivíduo ao produzir consome-se, gasta

suas próprias faculdades para efetivar o ato de produzir. Segundo, ao produzir ele gasta os

meios de produção utilizados no processo que, em parte, transferem-se para o novo

produto. “O próprio ato de produção é, pois, em todos os seus sentidos, também ato de

consumo” (Marx, 1978:108), e que será denominado de consumo produtivo.. Assim, “a

produção é também imediatamente consumo. Consumo duplo, subjetivo e objetivo” (idem,

ibidem).

Para o autor assim se a produção em si é necessariamente consumo, o consumo é

necessariamente produção. Assim é que o consumo já aparece como uma das etapas

necessárias para a realização da mercadoria.

Na fórmula básica D-M >M’-D’ Marx apresenta um ciclo de produção industrial que não se

completa enquanto a mercadoria não chega ao seu consumidor e o dinheiro não retorna às

mãos do produtor. “A importância e influência desses movimentos no processo de

acumulação – tanto intra quanto interfirmas – está devidamente registrada em Marx

(sobretudo no livro II de O capital), que não os confunde com a transformação material em

si. São processos distintos, mesmo quando realizados no local da fábrica, causando pois

efeitos diversos e até contraditório na valorização capitalista” (Dantas, 1999:223).

Assim dirá Marx: “o produto só estará pronto para o consumo assim que tiver completado o

movimento entre as suas várias fases de transformação, e entre a fábrica e o mercado

(Marx, 1983:II, apud Dantas, 1999: 233).

produção, ao passo que aquilo que Marx e os economistas chamam de produção é, na

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Assim é que, no processo de produção clássica do capitalismo industrial, ainda que o ciclo

total da mercadoria só se efetive com o consumo, ainda podemos distinguir seus

momentos. A produção da mercadoria incorpora o consumo, mas não se mistura a ele.

Na pós-modernidade é justamente (ou só) no momento do consumo que o valor de uso (e

conseqüentemente a possibilidade de se efetivar o valor de troca) se faz, tornando,

portanto, não distinguível o momento da produção do momento de consumo.

O que é importante observar nessa discussão é que como categoria econômica o consumo

já aparece na obra de Marx (não só como uma das etapas do processo produtivo da

mercadoria, mas já) transparecendo o sentido com que vai emergir, quase um século

depois, nas sociedades pós-industriais.

Assim é que o sentido que quero depreender do consumo já vai estar presente no

pensamento de Marx. Para o autor, além de o consumo impulsionar uma nova produção,

criando e reproduzindo a necessidade, o produto só se torna produto efetivo senão no seu

consumo. Nas suas palavras: “De fato, cada um não é apenas imediatamente o outro, nem

apenas intermediário do outro; cada um, ao realizar-se cria o outro. É o consumo que

realiza plenamente o ato da produção ao dar ao produto seu caráter acabado de produto,

ao dissolvê-lo consumindo a forma de coisa independente que ele reveste, ao elevar à

destreza pela necessidade de repetição, a disposição desenvolvida no primeiro ato da

produção; ele não é somente o ato último pelo qual o produto se torna produto, mas

também o ato pelo qual o produto se torna produtor” (Marx, 1978:111).

É esse o entendimento que irá se acentuar como condição histórica e como categoria

teórica de explicação da realidade nas sociedades pós-fordistas, pois, essa afirmação

conceitual marxiana só ganha visibilidade quando o esgotamento da espiral produtiva de

produção em massa e do consumo em massa obriga o capital à estratégias que se

direcionam cada vez mais para fora desse processo de produção material. (privilegiando a

venda e a relação com o consumidor).

verdade, reprodução (Lazzarato, 2006:108).

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Assim Negri, referindo-se ao processo produtivo pós-fordista, dirá: “um produto, antes de

ser fabricado, deve ser vendido (também na indústria pesada, como aquela de automóvel,

em que um veículo é colocado em produção só depois que a rede de venda encomenda).

Esta estratégia se baseia sobre a produção e o consumo de informação. Ela mobiliza

importantes estratégias de comunicação e de marketing para reaprender a informação

(conhecer a tendência do mercado) e fazê-la circular (construir um mercado)” (Lazzarato e

Negri, 2001:43-4).

É esse o processo histórico que obriga o capital a deslocar seu aparato produtivo para fora

da produção, deslocando-se da produção em massa para uma produção direcionada. O

capital só vai produzir agora o que já estiver previamente vendido, até chegar ao ponto em

que toda a sua base vai sofrer um deslocamento significativo que vai arrastar a dinâmica

produtiva do espaço da produção material para um novo processo cuja intenção é a de

captar o consumo/consumidor, causando um redirecionamento (e uma transformação) nas

forças produtivas, para produzir o próprio mercado (do que vai ser consumido).

A reportagem publicada no Jornal “O Globo”, no encarte da Revista de Domingo, sob o

título “Eles são você amanhã”, de Bruno Natal, dá bem a dimensão de como são agora os

espaços da vida que se tornam produtivos. A reportagem nos possibilita, ainda que de

forma parcial, o entendimento da constituição dessa rede produtiva ao mostrar quem são

aqueles profissionais que identificam a tendência do mercado.

“Ele agora ganha dinheiro para descobrir –antes mesmo de você- o que você vai falar, o

que você vai comprar e, principalmente, o que você vai ser amanhã” (O Globo, Revista de

Domingo, 1/4/2007, p. 18).

Para isso “As grandes marcas acabaram percebendo que estar misturado ao público-alvo é

a maneira mais prática de identificá-lo. É a forma mais confiável de acertá-lo” (idem, p. 20).

A dimensão imaterial desse processo aparece já na estrutura organizativa do trabalho. Uma

agencia de pesquisa, como por exemplo, a BOX 1824 que tem entre clientes a UNILEVER

(em 20 países incluindo os Estados Unidos, a Inglaterra e o México) a Nokia (no Brasil, na

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Índia, na China e na Tailândia) e a Nike (em toda a América Latina), não tem sede nem

nenhuma estrutura física e os funcionários só se comunicam virtualmente. O importante

nesse caso é a possibilidade de capturar a vida para o processo produtivo, como aparece

abaixo: “Caçadores de tendências é a tradução para coll hunters, expressão criada em 1997

pela revista americana New Yorker e usada, inicialmente, para designar profissionais que

trabalham com moda. O conceito evoluiu. Os caçadores de tendências saíram das bordas

das passarelas e montaram seus próprios negócios. Como Rony. Eles trabalham também,

com observadores contratados, pessoas antenadas que podem estar na praia, nos

botequins, nos pagodes, nas festas, nos escritórios, comprando alimentos orgânicos na

feira, dançando nas boates moderninhas ou coçando o dedão do pé e vendo televisão em

casa, o importante é que personifiquem um segmento” (idem, ibidem).

Mas, o que de mais importante se pode observar nesse processo produtivo atual é que,

mais do que esse trabalho imaterial que envolve o ciclo produtivo, é o fato de que todos nós

hoje somos chamados a produzir.

Assim, ainda segundo a reportagem – traduzindo os resultados das pesquisas e estudos

oriundos dessas empresas – as pessoas (consumidores) poderiam ser divididas em dois

segmentos: “Alfa seriam aquelas inovadoras, com comportamento totalmente individual em

relação a determinado produto ou serviço. Beta são os disseminadores, aqueles que

percebem logo a inovação, mastigam e acabam fazendo com que ela chegue ao restante

da população” (idem, 21).

Voltando as nossas incursões teórica, podemos perceber assim como o desenvolvimento

das forças produtivas torna o trabalho cada vez mais uma atividade de ‘supervisão das

máquinas’ e a atividade produtiva como um todo uma atividade de informação e

comunicação.

Ao olharmos as dinâmicas produtivas atuais podemos identificar, portanto, como o

capitalismo veio concentrando o trabalho vivo “nas atividades de processamento da

informação enquanto a transformação material passa a depender fundamentalmente do

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trabalho mecânico”, nos sinaliza Dantas (Lastres, Helena (org.) Informação e Globalização

na era do conhecimento,1999:227), sendo essa a tendência que já aparece nos Grundrisse,

onde Marx antevê que “o trabalho se torne cada vez mais imaterial, isto é, dependa

fundamentalmente das energias intelectuais e científicas que o constituem”. O trabalho que

alcançou a qualidade imaterial e é organizado por energias intelectuais e científicas torna,

segundo Marx, inessenciais e não-efetivas, isto é, destrói as condições reais nas quais a

acumulação anteriormente se desenvolvia (Negri, 2003:92).

Nesse sentido é que para desvelar do consumo a sua nova forma precisamos distinguir a

própria natureza da mercadoria que se produz; pois só posso entender a verdadeira

dimensão que o consumo ganha ao entender que o que está a se produzir nas sociedades

contemporâneas são as formas de vida, sendo, portanto, no ato de consumo (de vida) que

se afirma o caráter do ciclo produtivo pós-moderno: a produção das relações sociais e da

própria subjetividade do consumidor (a nova mercadoria).

Para garantir a acumulação capitalista (e toda uma organização societária subordinada a

esses interesses) num ciclo onde o que se está a produzir são mercadorias intangíveis -

serviços, conhecimentos, informações e tecnologia - é que o trabalho manual e mecânico se

torna cada vez mais inócuo.

Assim é que voltamos aqui à questão do uso da força de trabalho, pois para produzir a

subjetividade (e garantir a dinâmica capitalista) o trabalho manual (e adestrado) tem cada

vez menos funcionalidade, como nos diz Negri: “.... cada aumento da produção nasce da

expressão de atividades intelectuais, da força produtiva da descoberta científica e sobretudo

da estreita aplicação da ciência e da tecnologia à elaboração da atividade de transformação

da matéria “ (Negri, 2003:92-3). Dessa forma, quando se considera o conjunto da produção

da sociedade capitalista, o tempo de trabalho torna-se não essencial, afirma Negri.

Mas, se não se trata mais da aplicação de uma força de trabalho objetiva (da versação de

um tempo de trabalho objetivo) ainda se trata, no entanto, da aplicação de uma força de

trabalho, só que agora requerida toda naquilo que ela tem de subjetividade: sua

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intelectualidade, sua criatividade e suas emoções são qualidades essenciais para que a

nova mercadoria imaterial se efetive, como nos coloca Perbalt: “E quando dizemos que eles

exigem de quem os produz sua subjetividade, queremos dizer que eles requisitam sua

forma de pensar, imaginar, viver isto é, suas formas de vida. “O que caracteriza o trabalho

imaterial, tendencialmente predominante no capitalismo de hoje, é que por um lado, para

ser produzido ele exige a subjetividade, sobretudo a subjetividade de quem o produz, no

limite até os seus sonhos e crises são postos para trabalhar, e por outro que os fluxos que

ele produz, de informação, de imagem, de serviço, afetam e formatam sobretudo a

subjetividade de quem os consome” (Pelbart, 2003:147).

Dessa forma é que também o próprio tempo de trabalho vai se tornar não essencial, pois

agora, mais do que nunca, o que conta para o processo produtivo (adquirir o uso da força

de trabalho na sua forma mais lucrativa) são os espaços onde circulam o conhecimento; o

que importa para o ciclo produtivo atual é, assim, o tempo onde as relações sociais se

processam, o tempo onde a vida se constitui nas suas relações subjetivas. São agora os

espaços onde circulam os afetos, onde se instituem comportamentos, linguagens, enfim, o

espaço-tempo onde o cotidiano se constitui e produz suas manifestações é que se torna o

espaço fundamental da produção no capitalismo cognitivo. Chegamos ao ponto onde é o

consumo que precisa ser produzido, e onde é esta produção que se torna o principal

dinamizador desse processo produtivo.

A necessidade e a continuidade da produção de bens materiais estará, portanto,

subsumida/hegemonizada pela dinâmica da produção das mercadorias imateriais.

Como aparece ainda na reportagem citada: “O mercado entendeu a necessidade de se

tentar antecipar os movimentos culturais e descobrir, através de uma verbalização ou de

uma experiência de consumo, uma idéia que sirva para criar um novo produto ou serviço,

explica Rony (idem, ibidem). Também nas palavras de Lazzarato o mesmo entendimento

vai aparecer. Para esse autor: “O serviço não satisfaz uma demanda prévia, mas deve

antecipá-la, ou melhor, fazê-la acontecer. Essa antecipação se faz inteiramente no campo

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virtual, mobilizando os recursos da linguagem, da comunicação, dos enunciados, das

imagens” (Lazzarato, 2006:111). Ou ainda: “O mercado, tal qual entende a economia

política não existe: aquilo que chamamos de mercado é, na verdade, a

constituição/captação da clientela. Dois elementos são essenciais nessa estratégia: a

fidelização da clientela e a capacidade de renovar a oferta através da inovação. Captura e

fidelização de clientes significa, sobretudo, capturar a atenção e a memória, capturar os

cérebros; constituição e captura de desejos e crenças, constituição e captura de redes: “O

mercado desaparece, o público se afirma“ (Lazzarato, 2006:110). Resgatamos, dessa

forma, a trajetória do deslocamento que a passagem do fordismo para o pós-fordismo

produz.

Quando as lutas sociais conseguem finalmente romper com as amarras que prendem os

trabalhadores as máquinas (e torna seu trabalho produtivo) o capital precisa se apropriar

exatamente do novo que essa resistência produz: um novo tipo de trabalho (de uso da força

de trabalho) que não passa mais pela máquina, mas que está articulado em redes que

conectam um conhecimento e um tipo de comunicação de forma cada vez mais global.

Ao pegar o ciclo de produção imaterial na sua globalidade vemos então, que esse, para se

valorizar, afirma a constituição de uma dinâmica produtiva que permite captar, pelo

processo de trabalho, os elementos inovadores da vida social que produzem valor,

incorporando ao produto uma inovação constante o suficiente para garantir sua

comercialização.

Dessa forma é que “Nesta época cognitiva a produção de valor depende sempre mais de

uma atividade intelectual criadora que não só se situa além da acumulação de massa, de

fábrica etc. A originalidade do capital cognitivo consiste em captar, em uma atividade social

generalizada, os elementos inovadores que produzem valor” (Negri, 2001:95). “A inovação

não é mais, dirá Negri, subordinada somente à racionalização do trabalho, mas também aos

imperativos comerciais. Parece então que a mercadoria pós-industrial é o resultado de um

processo de criação que envolve tanto o produtor quanto o consumidor. “A ativação seja da

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cooperação produtiva, seja da relação social com o consumidor, é materializada dentro e

através do processo comunicativo” (Lazzarato e Negri. 2001:44).

Aqui, a comunicação aparece como elemento que garante o gerenciamento da informação

necessária para garantir a produção material, mas, sobretudo, aparece como elemento que

institui o caráter comum da mercadoria.

A comunicação aparece como elemento que permite que a subjetividade se expresse mas,

sobretudo, se transforme em mercadoria pela integração em tempo real dos

comportamentos de consumo ou quando os consumidores são integrados na produção

enquanto figura produtiva.

Assim o consumo ultrapassa completamente o sentido moderno, onde o valor da

mercadoria considera ainda a escassez e o desgaste (que justifica a apropriação privada) e

aparece, nas sociedades pós-modernas, como uma mercadoria que, não só não se

desgasta ao ser consumida, mas que, ao contrário, se afirma, se valoriza objetivamente

com o consumo.

Essa nova ‘natureza comunicativa’ das forças produtivas e do trabalho exige,

necessariamente, novas competências no ciclo econômico. Para fazer funcionar um sistema

tão particular como esse é que: “As novas competências no pós-fordismo devem ser

capazes de propor inovações técnicas e soluções comunicacionais adequadas a uma

organização do trabalho cuja mecânica implica níveis cada vez mais importantes de

cooperação e de subjetividade nos locais de produção, mas sobretudo entre esse locais e

as redes de comunicação e consumo que estruturam os territórios metropolitanos” (Cocco,

199:273).

Quando a comunicação se torna o elemento novo, hegemônico e ativador do processo

produtivo, ela exige relações sociais diferenciadas, sustentadas na cooperação, pois como

nos mostrou a reportem é o lugar do convívio, do comum, que cada vez mais se torna

produtivo.

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O que valoriza o capital hoje (possibilita o seu lucro e a sua efetivação enquanto fluxo) é

assim essa atividade comunicacional que vai (precisar, historicamente) emergir para

garantir a interação entre o processo produtivo e a vida (ou seja, entre o que vai ser

produzido e o que vai ser vendido, entre a produção e o consumo). Assim que, quanto mais

conectada, quanto mais aberta, mais fluida estiver essa ‘força de trabalho comunicativa’

mais produtiva ela será, quanto mais ela se sociabilizar, incorporar esse conhecimento geral

que circula numa rede mundial, mais produtiva essa força de trabalho se tornará, onde as

relações de produção passam cada vez mais por fora do capital.

Esse trabalho comunicativo, ainda que não seja condição exclusiva do ciclo produtivo atual,

pois que já está presente no processo de industrialização, se sobrepõe agora

qualitativamente sobre o trabalho manual.

Assim, continua Cocco: “Emerge um tipo de trabalho, fruto da recomposição do trabalho

intelectual e manual e, ao mesmo tempo, da superação desses dois termos. Suas

competências não levam apenas em conta a reorganização dos processos de trabalho. Elas

viabilizam também a integração produtiva, a montante, nos territórios e nas redes sociais

que os desenham, dos comportamento de consumo (Cocco, 1999:21). Dessa forma é que,

nas sociedades pós-industriais o momento do consumo e o momento da produção passam

a ser um só, da mesma forma que não se distingue mais o momento do trabalho do

momento da vida, onde o “produto serviço torna-se uma construção e um processo social

de concepção e inovação (Lazzarato e Negri, 2001:44) .

Essa singularidade é o que nos permite afirmar que hoje os consumidores (ou o ato de

consumir) se transformaram em figuras produtivas (em produção).

E será a emergência dessa característica na economia pós- moderna o que me apresenta a

possibilidade de achar a clivagem com as favelas. Falamos de novas figuras produtivas que

participam da produção quando instituem, no feito mesmo de criação das suas vidas, atos

criativos, lingüísticos, comunicativos.

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O que aparece aqui é o conceito de Integração Produtiva do Consumo, e é Cocco que com

as suas palavras apresenta o debate de forma elucidativa. Para Cocco o novo ciclo

econômico qualifica-se pela integração produtiva dos consumidores, assim:

“Eles participam da produção desde o momento de sua concepção, em dois níveis: pela

integração em tempo real dos comportamentos de consumo; e pela proliferação

disseminada dos atos criativos, lingüísticos e comunicativos. Duas são as maiores

conseqüências desse deslocamento. Por um lado, os consumidores são integrados na

produção não enquanto tais, mas enquanto novas figuras produtivas. Portanto,

contrariamente às teorias pós-modernas, esse tipo de hibridação das figuras sociais do

consumidor e do produtor não se traduz no desaparecimento do trabalho, mas em sua

difusão social. Ao mesmo tempo que ele se torna imaterial, o trabalho penetra de maneira

pervasiva todos os espaços e os tempos de vida. Por outro lado, a disciplina fabril entra em

crise e a valorização do capital deve encontrar novas combinações produtivas, novos

instrumentos de controle” (Cocco, 1999:24).

A natureza de um ciclo produtivo que intensifica sua valorização ao incorporar os momentos

de vida ao processo produtivo, até o seu limite, faz com que o ato mesmo do consumo -de

serviços, informações, - se torne um ato também de produção, pois é só no ato de consumo

que a mercadoria também se consuma: ganha forma, se conecta a uma produção comum e

cooperada que produz uma determinada materialidade, (uma subjetividade).

A dinâmica capitalista se transforma, dessa forma, numa dinâmica (ciclo produtivo imaterial)

cuja direção é a produção das relações sociais.

Assim que produção significa cada vez mais produzir a própria vida, significa produzir as

formas com que os sujeitos vão estar no mundo, onde esse ‘estar no mundo’ aparece

mediado, necessariamente, pelo o que esse sujeito vai consumir ao longo da sua

existência.

O consumo aqui é a interface do processo, é ele que materializa o produto e dinamiza a

relação capitalista. Se, já não fazia nenhum sentido, mesmo no processo de produção

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industrial, prescindir do consumo (para que produzir mercadorias se essas não forem

vendidas?) ainda assim esses momentos se distinguiam. Hoje a mercadoria imaterial

comunicativa que é produzida só se consuma no ato em si do consumo.

Dessa forma é que “No ato de consumo, enquanto o suporte material da mercadoria é

destruído, seu conteúdo informacional e comunicacional participa tanto da produção do

ambiente ideológico e cultural do consumidor quanto da reprodução das condições de

produção. Uma dinâmica que submete tanto os produtos tangíveis como os produtos

intangíveis” (Cocco, 2001:107).

A indústria de produção de bens intangíveis e de serviços não distingue mais os seus

espaços e tempos de produção. (como no modelo industrial onde no espaço de

transformação material a mercadoria estava sendo produzida e no espaço da reprodução

da vida a mercadoria estava sendo consumida.). O tempo e o espaço de produção se

fundiram na atualidade no momento do consumo.

O que identificamos aqui é a forma como a produção da subjetividade sai da esfera da

superestrutura e ganha a estrutura econômica criando uma nova síntese entre estrutura

econômica e superestrutura; entre tempo de trabalho e tempo de vida e entre produção e

consumo. Ou, como nos diz Negri: “Na esfera biopolítica, a vida é levada a trabalhar para a

produção e a produção é levada a trabalhar para a vida. É uma grande colméia na qual a

abelha rainha supervisiona continuamente produção e reprodução. Quanto mais profunda a

análise, mais ela descobre, em níveis crescentes de intensidade, a construção interligada

de relações interativas (Negri e Hardt, 2001:51). Ou ainda: “É, portanto, tanto produção

como reprodução, tanto estrutura como superestrutura, porque é vida no sentido mais pleno

e política no sentido mais próprio” (Negri e Hardt, 2001:49).

Essa nova dimensão que a produção social adquire, numa inseparabilidade da produção e

da reprodução, do tempo de trabalho e do tempo livre - na expressão mais efetiva da

biopolítica foucaultiana – expressa sobretudo uma “nova configuração da autoprodução do

capital, da produção da mais-valia capitalista. Estamos, nos dirá Lazzarato, ‘em face de

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uma reviravolta e um deslocamento da dialética produção/consumo, assim como descrita

por Marx nos Grundisse de 1857: “A necessidade de consumir, a capacidade de consumir,

a pulsão a consumir não são mais produzidas indiretamente pelo objeto (produto), mas

diretamente por dispositivos específicos que tendem a identificar-se com o processo de

constituição da comunicação social. A publicidade e a produção da “capacidade de

consumir, do impulso ao consumo, da necessidade de consumir, transformaram-se num

“processo de trabalho. O trabalho imaterial produz acima da tudo uma relação social (uma

relação de inovação, de produção, de consumo) e somente na presença desta reprodução a

sua atividade tem um valor econômico. Esta atividade mostra imediatamente aquilo que a

produção material ‘escondia’ – vale dizer que o trabalho não produz somente mercadorias,

mas acima de tudo a relação de capital (apud Negri e Lazzarato, 2001:43l).

Quando afirmamos que o processo de constituição das favelas se liga diretamente à

questão econômica, não estamos, portanto, reduzindo as suas determinações. Ao contrário,

ao associar o território urbano das favelas (e, dentro dela, as atividades do comércio no

varejo da venda de drogas ilícitas) ao ciclo produtivo global estamos tomando essa relação

pelo ponto mais complexo desse processo: a forma como essa produção econômica se

instituiu hoje como relação social, pressupondo assim que, cada vez mais, essa produção

econômica é hoje produção de produtos imateriais, ou ainda, produção de subjetividade. A

subjetividade adquire aqui, assim, necessariamente sua dimensão social e comunicativa,

onde buscamos visualizar também os potenciais de exploração e de revolução que essa

dinâmica adquire nas favelas e no tráfico de drogas.

PARTE III: AS FAVELAS COMO TERRITÓRIO DE MOBILIZAÇÃO PRODUTIVA

III.1) O Trabalho Imaterial e os Espaços das Favelas

Para conseguir fazer as clivagens entre as formas atuais de produção com a emergência

das favelas como bacias produtivas imateriais foi necessário distender os sentidos que

carregam os termos força produtiva e tecnologia, circunscrito ao modelo industrial clássico,

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reconhecendo que, quando os enfrentamentos históricos produzem um estágio de

acumulação cuja valorização passa pela incorporação dos momentos da reprodução da

vida ao processo produtivo, toda a base estrutural dessa economia está mudada.

Na impossibilidade de obter uma definição melhor desse ciclo capitalista, poderia sintetizá-

lo,então, como um novo paradigma que diz respeito à constituição de uma sociedade ‘que

se assenta numa forma desmaterializada de produzir mercadorias e de construir o mundo’

(Negri, 2003:91).

A tendência da produção a assumir a forma imaterial (seja no uso da força de trabalho, seja

no seu produto) recoloca sob novas bases toda a configuração histórica de organização

societária, criando as bases para emergência do capitalismo cognitivo21. Assim é que o

período atual de acumulação capitalista tende a afirmar o conhecimento e a informação

como condições cada vez mais necessárias para a produção, ou como nos diz Gorz, “Isso

porque as profundas alterações no capitalismo, a partir de meados do séc. XX, elevaram a

ciência e o conhecimento tecnológico à condição de forças produtiva direta...(Gorz, apud

Amadeu, 2005:9).

Dessa forma é que, só é possível entender esse deslocamento das favelas para o espaço

da produção e a transformação dos seus moradores em figuras produtivas, a não ser

entendendo que falamos de uma nova economia.

Essa economia ainda pressupõe a transformação e a criação de mercadorias tangíveis,

mas se dinamiza e se valoriza pela produção de mercadorias não tangíveis.

É a produção de bens imateriais, que se constroem a partir da circulação da informação e

do conhecimento, que definem a produção e a reprodução social.

21 Alguns autores vão problematizar o termo capitalismo cognitivo, haja vista, segundo por exemplo Dantas, que o caráter cognitivo sempre esteve presente no capitalismo industrial, preferindo por isso o uso do termo capitalismo da informação. Contudo optamos em manter o termo cognitivo pois na mesma linha de raciocínio a informação e a comunicação também foram elementos importantes do capitalismo industrial. Assim, recorrendo a Dantas é que encontramos a afirmação de Marx: ”Existem, porém, ramos autonomos da industria. nos quais o processo de produção não é um novo produto material, não é uma mercadoria. Entre eles, economicamente importante é apenas a indústria da comunicação, seja ela

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Dessa forma é que o trabalho imaterial remete ao debate da teoria do valor: afirmação do

conceito marxiano de abstração e negação do conceito marxiano de subsunção real,

situado historicamente na passagem do fordismo para o pós-fordismo.

As externalidades se tornam fundamentais na produção, o espaço externo à produção: o

espaço das cidades; os espaços onde as relações sociais de reprodução acontecem.

Quando incorporamos o termo Bacias Produtivas Imateriais estamos fazendo referencia,

assim, as elaborações de Cocco, que se aproxima do entendimento das cidade no pós-

fordismo a partir dos conceitos de general intellect e de trabalho imaterial, numa perspectiva

que não desconsidera a relação entre globalização e redes produtivas locais. Assim para

Cocco “Ao mesmo tempo não seria possível limitar a análise do papel econômico do

território no pós-fordismo às suas dimensões logísticas. Se trata de um território humano,

lugar de desenvolvimento dos recursos produtivos sociais, ou seja, das formas de vida dos

trabalhadores imateriais ‘produtores-consumidores-usuários. Ora por definição, o território

humano mais intenso e portanto o lugar com maior produtividade social, de expressão e de

acumulação de formas de vida é a cidade” (Cocco, 1995:13).

A integração das favelas no (des)ordenamento físico das cidades expressa assim a

importância dessa população na rede de consumo-produção, ou seja, expressa

principalmente a forma com que as formas de vida produzidas nesses espaços se

transformam em matéria prima do ciclo produtivo global imaterial, considerando que a

produção nas sociedades pós-industriais consiste justamente em captar os elementos

inovadores da vida social que produzem valor. É portanto no espaço da vida (e, em

especial, da vida precária) que se potencializa a inovação e, é também no espaço da vida

onde se garante a difusão dos comportamentos de consumo.

O processo produtivo atual aparece como um processo difuso que consegue transformar

parte das energias intelectuais, afetivas e criativas que são despendidas pelos moradores

indústria de transformação de mercadoria e pessoas propriamento dita, seja ela apenas de transmissão de informações, envio de cartas, telegramas etc. (Marx, 1983:II,42).

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das favela no equacionamento de suas vidas, sejam apreendidas e valorizadas sob a

perspectiva da dinâmica capitalista.

Pois a possibilidade que tenho de relacionar as favelas como expressão de um novo

paradigma produtivo é entendendo que, o que se está a produzir hoje são as formas como

os homens vão interagir, conviver, e transitar num universo -cuja dinâmica principal é a

comunicação- onde as próprias formas de vida se tornam produtivas.

Cocco vai apontar assim como a reterritorialização do pós fordismo se alimenta ‘seguindo

os eixos de desenvolvimento das redes ao longo das quais se afirmam as novas formas de

cooperação criativa e produtiva’. Assim para o autor: “A passagem ao pós-fordismo é de

certa forma o resultado de transformações na natureza da produção industrial devido ao

fato que o local de produção é cada vez menos capaz de concentrar o conjunto das funções

complexas de um processo de concepção-inovação-criação amplamente socializado. É

portanto o paradigma da socialização do processo de produção que é necessário estudar

para compreender as transformações do pós-fordismo” (Cocco, 1995:6)

O que tem de novo, portanto, nessa clivagem entre a produção econômica e a constituição

do território das favelas é que, o que está em jogo aqui é a produção da vida social. A

produção econômica se torna, assim, sob muitos aspectos, ao mesmo tempo cultural e

política e o trabalho imaterial expande seu hemisfério produtivo para todas as facetas da

organização da vida. Assim nos fala Cocco: “No cruzamento da nova relação que liga a

produção e o consumo, o trabalho imaterial pode ser justamente definido como a interface

que torna ativa e organiza a relação criativa produção-consumo inovando continuamente as

condições de comunicação” (Cocco, 1995:11).

A construção da vida, em especial, nas favelas, demanda práticas sociais que exigem,

permanentemente, o uso de estratégias que desenvolvem uma multiplicidade de

habilidades. Assim que essas formas de vida produzem novas formas de ‘estar no mundo’,

inovações que valorizam o capital.

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Mas, se essa afirmação (que as favelas são espaços produtivos porque a produção hoje

aparece como produção das relações sociais) sedimenta uma premissa importante para o

nosso debate, ela também nos abre o desafio de identificar à materialidade dessa

afirmação, desvelando a forma com que as favelas vão aparecer nesse processo.

Desnecessário lembrar aqui que falamos de uma mercadoria intangível cuja propriedade se

define apenas ao ser efetivada na relação de consumo. Se entendo o consumo-produção

como uma produção de subjetividade entendo que essa mercadoria-produção precisa ser

fluída, imaterial e intangível. Mas, não viso querer encontrar nas favelas os ‘centros físicos

da produção imaterial’: industrias fonográficas, cinematográficas, editoriais, etc. O que

preciso é comprovar como a produtividade desse ciclo de produção pós-industrial passa

pela potência de vida.

Os conflitos permanentes que obrigam esses jovens a estarem alertas dia e noite

transforma-se, assim, numa forma de vida ‘no seu estado extremo de sobrevida e

resistência’. Essas formas de vida produzem uma estética: ‘suas maneiras de ver sua vida,

de protestar sua vida’, que é capitalizado pelo capital. Mas, se por um lado, essa criação

pode assim ser apropriada, ao mesmo tempo essa estética tem nela incorporada as

referencias da favela e de suas lutas. Assim que dessas formas de vida também nasce uma

força: potência da resistência.

O tráfico incorpora e dissemina assim uma estética revolucionária, por que fala da

resistência, fala das lutas cotidianas com que essa população enfrenta o Estado na sua

‘negatividade’. Assim que são os jovens que enfrentam efetivamente esse Estado na sua

faceta mais violenta.

Falamos da produção de uma mercadoria imaterial que ao mesmo tempo que é produzida é

consumida (ou que só se produz no momento de consumo) O processo de acumulação é

definido por essa circulação da informação/conhecimento; assim que quanto mais é

consumido mais valorizada essa mercadoria se torna. Valorização que se dá em diáspora,

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que abre para a possibilidade da inovação, da criação, daquilo mesmo que foge, vaza de

qualquer possibilidade de valorização (da potência do ser como aparece em Spinoza).

Dessa forma é que ao se constituir como território produtivo as favelas adquirem uma nova

forma de ocupar o espaço (das cidades), forma que é mais do que uma nova configuração

espacial (urbanização, integração à malha urbana etc.) é a forma com a qual as expressões

das favelas matizam o território urbano na sua correlação de forças. Assim nos dirá Cassab:

“Do mesmo modo os sujeitos interferem no desenho das cidades impondo sua presença. A

ocupação do espaço urbano pelos assim chamados excluídos desenha na cidade feições

que estão fora das demarcações de territórios feitas na cartografia dominante” (Cassab,

2001:34-5). Continuando nessa linha a autora afirma ainda: “Através da noção de

negociação podemos ver como os sujeitos utilizam-se de variados recursos na tentativa de

impor seus interesses nas lutas sociais. Na negociação cotidiana de seu espaço no tecido

da cidade, esses segmentos adquirem certa visibilidade e tramam uma determinada cultura,

presente nos circuitos de uma outra, tida como oficial e veiculada, por exemplo, através dos

meio de comunicação de massa. Nesse sentido pode-se falar em uma negociação entre

elas” (Cassab, 2001:35).

Mas o caráter de disputa, negociação e mesmo de ubigüidade ganha um novo sentido

quando deslocamos esse entendimento – da nova forma como esses segmentos

redesenham os espaços das cidades por uma intervenção política e cultural – para o de

que, essa intervenção se faz agora no espaço da produção. O que tem de novo nessa

disputa assim é que são agora esses os territórios que valorizam a dinâmica do capital.

Assim, mesmo os meios de comunicação precisam se curvar a uma estética nova que

encontra passagem e conexão através de meios de comunicação mais interativos e mais

socializados(internet). A negociação é agora um desafio que se abre ao capital para que

possa capturar essas forças.

Pois ao serem difundidas, essas formas de vida amparadas na pobreza, faz com que a

estética (a produção do mundo) das favelas se torne uma referencia entre os jovens de

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todas as classes sociais e, mais ainda, se torne interesse de toda a sociedade, produzindo

um deslocamento das forças. Partilha-se, de alguma forma, desse universo, ao consumi-lo.

Assim também que esse movimento obriga que esses segmentos façam parte da mesma

rede. Ao se tornarem consumidores esses se tornam necessariamente produtores.

Quando um determinado segmento social consegue desnaturalizar a forma com que seus

espaços foram sendo representados ao longo de séculos, enunciando os sentidos de

dominação que reside nas relações sociais, esses segmentos estão difundindo uma nova

estética, uma estética revolucionária. A estética da multidão se faz imperiosa.

Encontramos aqui a relação apontada por Pelbart (2003) entre as formas de vida e as

formas de valorização da dinâmica capitalista, ou especificamente entre o que o autor vai

chamar de ‘vida precária’ e ‘prática estética’. Para o autor: “Um grupo de presidiários

compõe e grava sua música: o que eles mostram e vendem não é só sua música, nem só

suas histórias de vida escabrosas, mas seu estilo, sua singularidade, sua percepção, sua

revolta, sua causticidade, sua maneira de vestir, de ‘morar’ na prisão, de gesticular, de

protestar sua vida. Seu único capital sendo sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e

resistência, é isso que eles capitalizam e que assim se autovaloriza e produz valor” (Pelbart,

2003:146).

Quando alçamos as favelas a espaço produtivo, falamos, assim, da importância que suas

formas de vida passam a ter para o resto da sociedade. Ainda que capturadas

(ressignificada pelo capital, ou seja, transformada em mercadoria) essas mercadorias são

incorporadas (consumidas) pela sociedade.

Assim é que o processo de construção da subjetividade expressa, na era pós-fordista, por

um lado, o limite máximo da capacidade de subjugação do capital, pois, afinal, agora, é a

própria vida que é posta a produzir.

Mas, exatamente por isso, quando toda a vida (e não apenas sua parte adestrada, manual,

instrumental, aquela que está amarrada à máquina) está submersa no processo produtivo,

ou seja, justamente quando o capital consegue integrar a produção de subjetividade no

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processo de construção material (a superestrutura submerge na estrutura econômica) é

que, também, a desmedida aparece.

A dimensão que queremos resgatar com esse debate é a “dimensão imediatamente social e

comunicativa do trabalho ativo na sociedade capitalista contemporânea, e como isso propõe

insistentemente o problema das novas configurações de subjetividade, em seu potencial de

exploração e de revolução” (Negri, 2001:48). Como controlar esse trabalho sem esvaziá-lo

da sua dinâmica valorativa? E, ao mesmo tempo como capturá-lo, na perspectiva da

valorização do capital, e não afirmá-lo hegemonicamente?

O capital ao construir uma subordinação -não mais do tempo da força de trabalho- mas de

sua afetividade, de sua criatividade, de sua intelectualidade ( da estética que advém dessas

habilidades) o capital se abre um novo limite, pois se a estética é hoje um vetor de

produtividade, ela só se torna objetivamente valorizável para o capital ao ser difundida. Ou

seja, para que o produto se valorize ele precisa necessariamente ser consumido, já que

aqui o consumo tem o sentido inverso daquele que teve na modernidade, pois “Ocorre que

as características essenciais dos bens intangíveis são a ausência de escassez e de

desgaste no uso, dirá Amadeu. Aqui é o consumo que agrega valor ao mesmo, que traz a

inovação (e, portanto, a valorização) para o produto ao torná-lo comum (consumido por

muitos).

O fator que destacamos é a necessidade premente que as condições de vida das favelas

implica aos seus moradores, e as formas com que esses coletivizam e produzem inovações

ao lidar com essas precariedades.

Assim é que algumas condições aparecem associadas a essa necessidade da mercadoria

de se tornar comum (de circular e de se comunicar), como o trabalho cooperado.

Como posso desenvolver a linguagem, a comunicação ou mesmo a informação a não ser

colocando-as em cooperação, em conexão, instituindo-as numa rede que se irradia em

todas as direções e sentidos e que, quanto mais usufruímos (consumo) mais ela se

alimenta (produção)?

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Temos, assim, um trabalho que se efetiva, necessariamente, na cooperação.

A qualidade aqui é marcada pela sociabilidade, pela possibilidade de agregar o maior

numero possível de idéias, de pensamentos que se debruçam (ao consumir) sobre aquele

código (seja ele de fonte binária, seja artística, seja estética). Assim a arte aparece como a

instalação - a intervenção de muitos signos, de muitas referencias que ganham uma nova

perspectiva a partir de um novo local. A tecnologia é cada vez mais a cooperação entre os

cérebros, portanto tecnologia viva (arte), que o capital não pode apreender, pelo menos não

na sua dimensão criadora, apenas como resultado dela e, assim mesmo sob um custo de,

toda vez que essa potência produtiva é apreendida cessa, automaticamente, seu valor

criador.

O que se coloca na antítese marxiana da relação capital trabalho agora é a trabalho

cooperado, de um lado e a propriedade intelectual, de outro. Para Amadeu então: “é nesse

momento, exatamente ao desmaterializar o capital mercadoria que o capitalismo vai permitir

que a eficiência econômica seja cada vez maior no interior das redes colaborativas

baseadas no compartilhamento do conhecimento. O ótimo de Pareto, expressão máxima do

conceito de eficiência no capitalismo industrial, torna-se um equívoco em uma sociedade de

bens imateriais...bens imateriais e conhecimento não sofrem escassez, nem desgaste,

sendo reprodutíveis ao infinito” (Amadeu, 200622).

O que o capital precisa capturar/apreender/ordenar agora são os espaços da vida e o

capital faz isso ao produzir os padrões de consumo desse sujeito. Para produzir o padrão

de consumo a industria de produção imaterial (editorial, cinematográfica, fonográfica,

televisiva etc.) determina o que esse sujeito vai ler, vai ouvir, etc. mas também que tipo de

mundo esses sujeitos vão partilhar. Para esse ciclo funcionar o capital precisa tirar da vida

os elementos inovadores, ou seja, o capital precisa estar conectado na experiência e mais

inovadora com que esse sujeito vai consumir o produto. É exatamente o ato de consumo (a

22 Em texto de palestra, enviado pelo autor por mensagem de e-mail.

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forma que ele consome) que atribui um novo sentido aquela mercadoria e, por conseqüente,

também um novo valor é agregado a ela.

Como dinamizar o atual ciclo produtivo sem incorporar a ele justamente os espaços da vida,

onde esses sujeitos estabelecem essa linguagem, essa comunicação, onde esses sujeitos

consomem e ao mesmo tempo se tornam produtores ao fortalecerem a rede de

comunicação. Aqui o consumo adquire seu caráter ‘positivo’. É o ato de consumo que

difunde e, ao mesmo tempo, possibilita - ao comungar o produto- que alguma inovação se

faça. Assim é que para Amadeu (2006): “Quanto mais se compartilha o conhecimento mais

ele cresce. Por dois motivos: porque a base do conhecimento é comum e a comunidade

científica ao trabalhar colaborativamente um problema agrega mais inteligência em sua

solução. O capitalismo em sua fase informacional vive o conflito e enfrentamento de forças

poderosas. De um lado, temos a velha, mas ainda gigantesca indústria construída no

capitalismo industrial tentando conter as possibilidades tecnológicas da comunicação

imaterial em redes distribuídas. Querendo ampliar o universo de escassez induzida dos

bens imateriais para sobre eles exercer sua propriedade e manter seus fluxos de riqueza.

No lado oposto, temos as diversas forças que exploram as características inerentes à rede

e aos bens imateriais para crescer”.

Os mercados mais lucrativos da economia (internet-Bill Gates; setor de entretenimento:

indústria fonográfica, cinematográfica e televisiva; setor financeiro, etc.) o que deve ser

desprendido não são rituais mecânicos comandados por uma máquina e sim o momento de

criação.

O que o capital não pode evitar, assim é que a estética que nasce das favelas e toma a

sociedade, é a estética da luta. O processo de gênese das favelas se identifica com o

próprio sentido da luta pois na sua possibilidade de existência, as favelas já nascem sob o

signo da resistência, visto que a sua própria constituição pressupõe algum nível de embate

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e enfrentamento.23 Esses enfrentamentos instituem novas práticas, novas formas de estar

no mundo que, exatamente pelo seu caráter de precariedade, de sobrevivência, de vida

nua, vão se tornar rentáveis para o sistema capitalista que para isso precisa se apropriar

desses signos de forma a torná-los lucrativos. Não é só o comércio das drogas que se

tornou rentável, mas todo o mercado que se constrói dele. Assim como na contradição

clássica do capital, onde esse engendra sua própria destruição, no capitalismo cognitivo

também ‘não resta saída’ e o capital se vê novamente face a face com seu limite.

A principal contradição que se abre agora para o capital é que, para se tornar produtivo ele

precisa de algo que, cada vez mais, foge a ele, se institui independente dele. Assim, “a

contradição mais aparente, as possibilidades de compartilhamento do conhecimento versus

a crescente restrição de acesso aos conteúdos e instrumentos do conhecimento. quanto

mais amplas e distribuídas são as redes que viabilizam os fluxos de capital...mais permitem

as práticas colaborativas, de expansão de uma riqueza não capitalista e do ativismo

sociocultural compartilhado (Amadeu, 2006).

Ao consumir-produzir esses jovens estão colocando na rede a sua forma de construir e

estar no mundo. Em ultima instancia, o que esses jovens estão ‘fazendo circular é o seu

conhecimento. Assim que esse conhecimento aparece como criação e, na mesma medida,

como espaços de resistência.

Há uma relação direta e antagônica entre as formas de resistir e a valorização comercial. Ao

resistir essa população inventa formas de vida que trazem uma inovação que rapidamente

pode ser capturada pelo capital, mas também institui a afirmação ética presente nas

estratégias coletivizada de sobrevivência que culturalmente vão se instituindo nos espaços

das favelas.

23 A característica principal da favela é a da invasão e subversão da propriedade (privada). A ocupação das áreas que vão se constituir em favelas ja carregam, assim, processos coletivizados (organização e movimento sociais) de resistência no seu cotidiano, inclusive para fazer valer a maior parte dos serviços que necessita, precisa percorrer um percurso avesso àquele que define a sociedade democrática e o Estado de direito.

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A constituição dos campos da sociedade passam por um domínio de forças que não se

inscreve apenas nos aspectos econômicos e políticos, mas também na perspectiva estética.

O que esse novo capitalismo faz é colocar a estética como vetor de produtividade.

“As novas possibilidades de vida entram em choque com os poderes organizados e

constituídos, mas também com aquilo que estes mesmos poderes tentam organizar a partir

da abertura constituinte (Lazzarato, 2006:13).

A estética da precariedade, da resistência e da luta, rapidamente é assim ressignificada,

esvaziada de seu sentido de conflito e permeada por um sentido de mercado. Mas, ainda

que essas ‘formas de partilhar a estética’ que advém dessas formas de vida gere, nada

mais do que outros atos de consumo, o consumo aqui se vitaliza nesse compartilhamento

(nesse uso da mercadoria).

O trabalho imaterial é assim também um ato de consumo, de compartilhamento (no valor de

uso) de colaboração entre os cérebros.

A favela inventa assim um sentido de coletivização necessário a sua sobrevivência, mas

que realimenta a manifestação de práticas permeadas por esse sentido comum. Brotam,

assim, experiências de solidariedade, de compartilhamentos, de socialização etc., que

frutificam um novo sentido humano. E que nós permite também, dirá Negri: “fundar uma

teoria dos poderes, se por poder se entende a capacidade de os sujeitos livres e

independentes intervirem sobre a ação de outros sujeitos igualmente livres e

independentes” (Lazzarato, p. 39 Trabalho Imaterial).

Ou seja quando as forças produtivas se tornam cada vez mais imateriais e dependem cada

vez mais de um saber geral, essas forças também aparecem, historicamente, na sua forma

mais comum: ‘o excedente imediato e contínuo do saber’. Ao construir as relações sociais a

multidão a constrói por sob a perspectiva da resistência (quem produz luta -

necessariamente- contra o capital).

Se o nome comum é, como vimos, evento da multidão, então o comum é produzido pela

multidão. Mas só quando a pobreza se coloca como topos (lugar e motor) do abrir-se da

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multidão no processo teleológico do ser comum, é que qualquer tautologia (pós-moderna)

do comum é eliminada. Dessa maneira, o fazer comum da multidão dos pobres introduz,

necessariamente, na desmedida do eterno, a figura do comum, e a imprime neste desmedir-

se. Nesse sentido, o pobre é o comum do comum” (Negri, 2003:121).

A construção dessa resistência, mais do que nunca, se expressa no território da vida (cada

vez mais o espaço de trabalho coincide com o espaço da luta). Ao alinhavar a relação do

trabalho imaterial e multidão é que posso entender como o trabalho imaterial se alimenta (e

alimenta) as formas de vida. Como aparece em Negri:

“Quando estamos diante da reatividade dos sujeitos implicados na exploração, então o

método deve nos permitir estar dentro da totalidade do processo. Em particular, deve

integrar determinações cooperativas e, ao mesmo tempo, conseguir colher o excedente

imediato e contínuo do saber (que, provavelmente, mas isso veremos mais tarde, chama-se

também ‘resistência’)” (Negri, 2003:101).

É, assim, só ao apreender o consumo nessa perspectiva pós-moderna que o encontro da

favela com o processo produtivo pós industrial pode emergir inteiro, no seu sentido de

captura mas também de revolução, no seu sentido de afirmação da ordem mas também no

sentido daquele que causa rupturas, possibilidades de fugas, desmanchamentos.

É só a partir do entendimento do consumo enquanto produção que posso criar o sentido

que faz as favelas aparecerem como espaços de produção e também de resistência.

Aqui se efetiva o sentido negriano de convergência entre o espaço de(re)produção

(produção da vida) e a luta.

A favela inventa assim um sentido de coletivização necessário a sua sobrevivência, mas

que realimenta a manifestação de práticas permeadas por esse sentido comum. Brotam,

assim, experiências de solidariedade, de compartilhamentos, de socialização etc., que

frutificam um novo sentido humano. E que nós permite também, dirá Negri: “fundar uma

teoria dos poderes, se por poder se entende a capacidade de os sujeitos livres e

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independentes intervirem sobre a ação de outros sujeitos igualmente livres e

independentes” (Lazzarato, 2003:39).

Quando a favela institui relações sociais, essas relações são agora estritamente produtivas

e, ao mesmo tempo, no processo de instituir esse mundo pela criação se institui também

um movimento de resistência. Resistência que aflora quando faz valer o lugar de classe de

onde essa narrativa se constrói: o comum que nasce das experiências de resistências e

lutas.

Encontramos uma das possíveis clivagens, entre o novo paradigma produtivo e as favelas;

que é quando a natureza desse novo trabalho que estamos investigando se constitui na sua

verdadeira novidade. O que essa dinâmica capitalista precisa para se valorizar é de uma

inovação que se constitui entre os cérebros.

Inferimos a idéia de que os moradores das favelas são figuras produtivas pois que - para

torná-los consumidores, a industria precisa construir seus comportamentos de consumo a

partir das suas realidades equivalentes. Quando o ato de consumir se transforma também

em ato de produção, precisa construir suas vidas, ao mesmo tempo em que as torna

produtiva. Pois o que valoriza o capital hoje é a inovação que nasce das relações afetivas,

intelectuais, e criativas exigidas no ato de produzir a vida.

É, pois, só ao conceber esse terreno das relações sociais como a expressão mais viva do

trabalho imaterial que posso, também, encontrar as favelas como espaços de produção.

Mas é principalmente quando Lazzarato produz um deslocamento no que nos referimos até

então como produção de riqueza, ou ainda do próprio conceito de valor cunhado por Marx

que, de fato, as favelas emergem como território produtivo.

Para Lazzarato: “A constituição dos valores não se explica, como faz a teoria econômica,

pela classe, ou como em Marx, através do trabalho e da produção, mas pelo agenciamento

da invenção e da imitação, pela criação e efetuação de possíveis” (Lazzarato, 2006:44).

Essa afirmação é assim o que faltava para constituir as favelas em territórios produtivos.

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Ao afirmar que as novas bacias de produção imaterial se estenderam o suficiente a ponto

de incorporarem esse espaço (das favelas) ao seu ciclo produtivo, o faço, portanto, na

perspectiva da sua virtualidade, e não numa perspectiva material, ainda que a criação

dessa virtualidade seja o verdadeiro processo produtivo.

Ao trazer as favelas como redes de serviços, de informação e de comunicação

reencontramos o sentido do conceito de Cocco de Bacia Produtiva Imaterial: “Esse espaço

é aquele da Bacia de Trabalho Imaterial (BTI), ou seja, a dimensão espacial e concreta do

trabalho imaterial, espaço de redes estruturadas pelos fluxos comunicacionais. Neste

sentido, a cidade é implicada duplamente na organização pós-fordista da produção: por um

lado, ela participa à reestruturação-transformação do BTI; por outro, é sempre na cidade

que as formas de vida se constituem e se transformam. O BTI contém as PME, as escolas e

outras instituições de formação, as agencias de publicidade, os escritórios de estilo, isto é o

conjunto de nos que estruturam o espaço produtivo pós-fordista que produzem as trocas

informacionais e comunicacionais que nutrem o trabalho imaterial. Lugar de crescimento de

relações, de atividades de trabalho e culturais, o BTI é a metrópole enquanto sistema

informacional, expressão da subjetividade e das formas de vida dos trabalhadores imateriais

(Cocco, 1995:14).

Assim é que a dinâmica inerente à produção do trabalho e da vida dos moradores da favela

necessita da circulação de informação, se constituindo “num imenso território de

assimilação, gerenciamento e de criação de conhecimento’, as favelas também vão se

constituir em “fontes de poder político, econômico, e cultural, como nos coloca Amadeu.

(Amadeu, tese doutorado, página 09).

Há um deslocamento de forças, por exemplo, quando os moradores das favelas fazem

chegar, de forma pirateada e, portanto, barateada, os serviços de comunicação, como as

tvs a cabo. Assim, que a potência democratizadora de um ciclo produtivo que tem como

base o trabalho comum, possibilita que esses segmentos partilhem dessa rede - mesmo

que nem sempre ou quase nunca acessem a internet - ao partilharem o que circula nessa

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rede, ou ao fazerem parte da produção dessa circulação: a estética da internet está

presente também na vida desses jovens.

O hibridismo que marca essa inovação é assim resultado de campos de força que não se

anulam, ao mesmo tempo que imprime uma nova configuração a ideologia dominante

quando esse segmento interfere no padrão de consumo vigente e faz emergir outros.

Os desmanchamentos que efetuo para poder identificar o trabalho como trabalho imaterial

esgarça-o o suficiente para fazer caber nele o novo sentido que as reflexões de Lazzarato

carregam.

Essa afirmação de Lazzarato afirma as favelas como espaço de produção. Identifico como a

profusão da invenções (e a rápida imitação do novo) aparece necessariamente na

constituição das vidas precárias: marcadas cotidianamente pela ‘criação e efetuação de

possíveis’ inscrevendo definitivamente, com essa abordagem, as favelas como

manifestação/ expressão da fase atual pós-moderna.

O último ponto de relevância, quando trago as favelas para compor o campo de explicação

do narcotráfico, é entender em que perspectiva me inclino a apanhá-la, quando se trata

dessa universalidade abstrata em que (a favela) se transformou.

Como trazer as favelas para essa discussão sem incorrer em reducionismos que a relação

criminalidade e pobreza ensejam, seja quando subordina a criminalidade à pobreza, seja

quando distancia uma da outra à ponto de apagar os elementos de dominação, como vimos

no capitulo i, que vão servir para lançar mão das práticas repressivas em nome do combate

à criminalidade em geral e ao tráfico de drogas em especifico, para justificar o controle e a

repressão sobre as demandas (a potência) das camadas empobrecidas da sociedade.

Como barrar a potência que eclode desse território (que produz uma comunicação em rede

e coletiviza (comum) o cotidiano das práticas pela sobrevivência; práticas que incluem

formas de luta nas suas mais diversificadas expressões e das quais emerge a potência da

multidão.

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Assim para Lazzarato “A constituição do mundo é pensada como produção, como fazer,

como exteriorização do sujeito no objeto, como transformação e dominação da natureza e

do outro pela objetivação das relações subjetivas (Lazzarato, 2006:15). O espaço da vida se

torna concretamente o espaço de luta e advinda dessas experiências que o ser Spinozista

aparece. Essas práticas de sobrevivência com que os moradores efetivam as suas vidas

são aquelas, muitas vezes, que joga continuamente suas vidas ao limite, assim essas

também aparecem revestidas de seu reverso, de sua potência.

“Exposta, em sua nudez, à desmedida, a pobreza rompe a aporia pós-moderna da

produção e dá sentido à teleologia materialista do comum. De fato, a pobreza não pode

girar no vazio: só pode caminhar para frente, e andar para frente de modo comum. Se não

nos movêssemos a partir da pobreza, não nos moveríamos completamente, ou seja, a

produção de ser poderia existir ou não, pois a força que a rege e promove não seria

definível como necessária. E, portanto, o processo teleológico não se daria (e, em espécie,

nem a teleologia do comum) se a pobreza não o colocasse, pois pobreza age,

necessariamente, a desmedida do produzir ao longo da flecha do tempo, um instante depois

do outro (ali onde Káirós é experimentação biopolítica.) Portanto, se não houvesse essa

potência de pobreza, a teleologia do ser material não se daria, tampouco o ser eterno se

produziria” (Negri, 2003:120-121).

A nova síntese que quero buscar entre a favela como espaço da pobreza e da criminalidade

é, assim, atualizada. Uma síntese que não incida em nenhuma dessas polaridades (relação

de subordinação ou inexistência de relação), mas que possa revelar por onde passa as

relações de poder que vai, no Brasil, estar inscrita na relação que se estabelece entre a

pobreza e a criminalidade.

Assim é que o tráfico também resiste, porque ressignifica a vida (irrompe o limite em que a

vida se expõe:surge novos comportamentos, novas afetividades, novas sexualidades; uma

outra estética). A estética das favelas, das vidas precárias, improvisadas, desmedidas.

O tráfico assim também vai além, transcende, é desmedida.

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Aparecendo como a condensação daquilo que se torna produtivo na vida das favelas. É o

tráfico que vende filmes, notícias, livros, pesquisas, conceitos, pois é a sua forma de vida,

colocada no limite que justamente, vira produto, inova o capital. Será o tráfico uma das

mais importantes conexões que a favela institui com o processo produtivo global, como

veremos no próximo capítulo.

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CAPÍTULO III: CONTRA-INSURGÊNCIA E RESISTÊNCIA

INTRODUÇÃO

Meu objetivo neste capítulo III é trazer os dados de realidade para compor a nossa análise.

Pretendo assim voltar o olhar para o narcofavela a partir das perspectivas que foram se

construindo ao longo desse trabalho, mas também propor que a essas questões se enrede

ainda outra, fundamental: a questão étnica24 como elemento que renova o sentido de

opressão presente nestes espaços.

A perspectiva que vamos adotar passa então pela afirmação do caráter étnico da

dominação que recai sobre as favelas.

24 Não existe base científica para afirmar uma diferenciação na espécie humana que justifique o termo ‘raça’, conforme comprovado pelo Projeto Genoma Humano, assim a perspectiva da étnia aqui considerada não pretende renovar esse sentido e deve ser entendida na perspectiva construída por Marilena Chauí: “Os antigos gregos falavam em etnia e genos, os antigos hebreus, em povo, os romanos, em nação; e essas três palavras significavam o grupo de pessoas descendentes dos mesmos pais originários. Alguns dicionários indicam que, no século XII, usava-se a palavra francesa haras para se referir à criação de cavalos especiais e pode-se supor que seu emprego se generalizou para outros animais e para vegetais, estendendo-se depois aos humanos, dando origem à palavra raça. Outros julgam que a palavra se deriva de um vocábulo italiano, usado a partir do século XV, razza, significando espécie animal e vegetal e, posteriormente, estendendo-se para as famílias humanas, conforme sua geração e a continuidade de suas características físicas e psíquicas (ou seja, ganhando o sentido das antigas palavras etnia, genos e nação). Quando, no século XVI, para seqüestrar as fortunas das famílias judaicas da Península Ibérica, a fim de erguer um poderio náutico para criar impérios ultramarinos, a Inquisição inventou a expressão limpeza de sangue, significando a conversão dos judeus ao cristianismo. Com isso, a distinção religiosa, que separava judeus e cristãos, recebeu pela primeira vez um conteúdo étnico. É interessante observar, porém, que a palavra racial surge apenas no século XIX, particularmente com a obra do francês Gobineau, que, inspirando-se na obra de Darwin, introduziu formalmente o termo raça para combater todas formas de miscigenação, estabelecendo distinções entre raças inferiores e superiores, a partir de características supostamente naturais. E, finalmente, foi apenas no século XX que surgiu a palavra racismo, que, conforme Houaiss, é uma crença fundada numa hierarquia entre raças, uma doutrina ou sistema político baseado no direito de uma raça, tida como pura e superior, de dominar as demais. Com isso, o racismo se torna preconceito contra pessoas julgadas inferiores e alimenta atitudes de extrema hostilidade contra elas, como a separação ou o apartamento total - o apartheid - e a destruição física do genos, isto é, o genocídio. Seja no caso ibérico, seja no da colonização das Américas, seja no de Gobineau, seja no do apartheid, no do genocídio praticado pelo nazismo contra judeus, ciganos, poloneses e tchecos, ou o genocídio atual praticado pelos dirigentes do Estado de Israel contra os palestinos, a violência racista está determinada historicamente por condições materiais, isto é, econômicas e políticas. Em outras palavras, o racismo é uma ideologia das classes dominantes e dirigentes, interiorizada pelo restante da sociedade (Chauí, s/d, entrevista concedida por Marilena Chauí e publicada no Portal do PT, em www.pt.org.br).

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A trajetória que permite essa afirmação aparece a partir de uma leitura que vê o processo

civilizatório como a supremacia de uma única etnia em regiões multiétnicas. Esse processo

passa a ser, então, a trajetória de uma civilização vitoriosa sobre as outras e, a história,

uma narrativa construída sob o ponto de vista da etnia civilizadora, que mascara os

bárbaros custos que a humanidade pagou em nome dessa supremacia. O processo

civilizatório se realiza com o emprego sistemático da força.

Para que a favela tome o sentido de resistência é necessário entender o que foram os

processos civilizatórios que se deram na América Latina e no Brasil, em especial, e as

formas de dominação que esses trouxeram. Nas palavras de Mir:

“O Brasil é uma criação colonial recente, com tudo o que isso pode representar de herança

conflitiva e memória histórica trágica. Começamos com o genocídio dos índios, evoluímos

para o massacre e exploração escravocrata, ascendemos ao republicanismo com

segregação territorial e econômica e alcançamos o extremismo étnico e o apartheid com a

modernidade. Uma estrada de horrores. E nos tornamos incompatíveis, ou seja, as

diferenças étnicas e sociais impediram, afastaram, negaram qualquer coexistência de

população que estão lado a lado, desde séculos” (Mir, 2004:33).

Mir constrói assim uma base explicativa para desenvolver uma análise da civilização

moderna que interroga justamente a maneira com o as elites intelectuais se tornariam o

guia da nova nação. Para o autor:

“Essa ordem legítima do passado se tornou durável e presente no processo de

institucionalização e desenvolvimento do país. A escravidão, enquanto modelo social e

econômico, formou um núcleo de país, de identidade, de opressão e humilhação, que está

ainda muito ativo na composição nuclear da sociedade brasileira. Introjetamos a formação e

vocação escravocrata como modelo econômico, domínio social e sistema político” (Idem,

38).

Quando vista na composição da história, a dominação étnica não só aparece na sua faceta

a mais destrutiva, como emerge de forma inquestionável. Só ao considerarmos o viés étnico

presente na dominação brasileira que podemos de fato entender por onde se constroem as

teias de domínio e as formas de sua atualização.

Se são múltiplas e complexas as formas com que as dimensões econômicas, sociais,

étnicas e religiosas se compuseram para legitimar o poder (de uma só etnia, de uma só

religião, de uma só história), na América Latina, naturalizando e universalizando as práticas

de dominação exercidas há séculos por uma mesma elite, o resultado dessa dominação é

bastante claro: “Trata-se, de fato, da única região do mundo que, no decorrer de todo o

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século XX não conseguiu diminuir a desigualdade e manteve-se sempre como o continente

mais desigual do mundo” (Cocco e Negri, 2006:19).

O conceito étnico ascende aqui na complexidade com que Mir o apresenta. Pois, se

podemos falar que esses (conflitos étnicos) prevaleceram em toda a trajetória civilizadora

que se institui na América Latina, também falamos nas possibilidades de hibridações que a

esses vetores étnicos se promoveram.

A instituição de um poder que se faz sobre a cor se exacerba justamente quando não

precisa mais desse elemento para exercer suas práticas opressoras.

A questão étnica aparece como um elemento de poder que já não pode mais ser definido

em si mesmo, e ganha sentido a partir dos arranjos com que costura as teias do seu

domínio. A questão étnica ganha, assim, particularidades a partir da forma como esses

processos se inserem nos espaços e nos tempos, mas aparecem de forma quase

homogênea se vistos ao longo da história. Assim que o domínio étnico ganha sua

expressão transpassado pela exclusão econômica e pela opressão cultural. Assim que: “A

autoridade de etnia substitui a de raça, como coletividade de indivíduos que se diferencia

por sua especificidade sociocultural, refletida na língua, religião e modo de agir (Mir,

2004:18).

O que caracteriza a identidade étnica é a emergência de uma potência que nasce das lutas

seculares que se levantam contra a opressão de um domínio segregador, dizimador,

bárbaro. São gerações e gerações que vão se constituindo, como um corpo sem órgão, nas

adversidades com que esse domínio se impõe. Assim essa ‘identidade’ étnica não se

expressa na cor da pele.

O que importa é estar submetido as mesmas condições impingidas as etnias afro-

descendentes historicamente. Nas favelas são todos negros porque são todos filhos da

opressão cotidiana que se abate sobre essas populações há séculos.

Para Mir: “Dentro da balcanização brasileira há múltiplos vetores atuando isoladamente ou

em conjunto. Temos o separatismo étnico e socioeconômico imposto aos afro-brasileiros e

os separatismos não étnicos e exclusivamente econômicos, - tão ou mais insidiosos e mais

perturbantes para a ordenação social-, penalizando grandes massas urbanas isoladas e

confinadas em espaços urbanos infra-humanos. Como autodefesa, a réplica dos

segregados e marginalizados é um separatismo de raiz étnico-religiosa (Mir, 2004:43).

O desenvolvimento do capitalismo no Brasil se marca por uma dominação que se, por um

lado, se distancia cada vez mais do vetor cor de pele, nem por isso desmonta as práticas de

dominação que se assenta por sob esse viés étnico-religioso. Dessa forma vamos buscar

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entender, no próximo item, como a questão étnica funciona como prática de controle,

presente nos antigos modelos de dominação, mas também nos recentes (Mir, 2004:25)

III.1) A questão étnica na conformação do capitalismo no Brasil e o Estado como agente de controle

As elites brasileiras vão conseguir conjugar (e atualizar continuamente) vários vetores de

dominação contra as populações produtivas ao longo do desenvolvimento do país. O

sentido de nação aparece aqui como elemento de homogeneização e universalização dos

interesses específicos dos grupos étnica e economicamente dominantes.

Assim podemos identificar que a origem da formação social brasileira se insere no quadro

de desenvolvimento do modo de produção mundial, numa articulação entre os interesses

internos e externos, onde o modelo de desenvolvimento dependente que se institui não é

apenas fruto de uma submissão, mas fruto do amadurecimento de uma dinâmica que

conjuga os interesses universais do capitalismo a um modelo nacional desenvolvimentista

que sustenta seu crescimento na exclusão/segregação econômica, social e política da

maior parte da população trabalhadora, onde a iniqüidade atravessa todas as fases dos

diferentes planos econômicos adotados no Brasil, perpetuando e naturalizando as

desigualdades.

São as palavras de Cocco que melhor sisitematiza o que foram os processos de

desenvolvimento do capitalismo na América do Sul e analisa as expressões da soberania

nacional que desses emergiram.

“A construção do Estado na periferia tem trabalhado, na realidade, através de processos de

hibridação entre formas de autoridade política e/ou de soberania colonial de um poder

patriarcal e/ou oligárquico-escravista e formas desenvolvimentistas de um poder

25 Cocco atualiza essa discussão ao analisar a oposição de setores da sociedade aos programas de cota que ampliam a entrada dos segmentos carentes e dos negros nas universidades. Segundo Cocco as oposições, sejam de esquerda, sejam de direita, ganham o mesmo sentido conservar e antidemocrático, em suas palavras: “O segundo (e bem mais importante) bloco, o “liberal”, mobiliza uma retórica “meritocrática”e, invocando supostos critérios de eficiência, opõe-se à democracia. Para essa tipologia de “liberais”, o mérito é um ponto de partida (que necessariamente reproduz o violento status quo) e não aquele resultado que somente a excelência democrática permite alcançar. Direita e “esquerda”neo-arcaicas e corporativas se juntam em um único bloco conservador. O velho medo aristocrático transforma a democracia em monstro. Não é por acaso que os supostos liberais e a suposta “esquerda”condenam as cotas anti-racistas: é contra os movimentos dos que estão de fora das universidades por causa de sua renda e portanto de sua cor e, vice-versa, por causa de sua cor e, pois, por causa de sua renda que as elites neo-escravocrata e corporativo-tecnocrática se reproduzem” (Cocco, Giuseppe. Bloco conservador. O Globo, RJ, 28/6/2007).

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tecnocrático-corporativo, que se atribuíam os títulos de moderno e nacional. Vale dizer que,

na passagem de uma para outra dessas formas, dentro das mil modulações dos processos

de hibridação, a figura dessa continuidade é uma mistura de alianças e de interpretações

propriamente ditas que dão lugar a uma espécie de oligarquia composta (fundiária e

tecnocrática), de um lado, e a estratificações socioeconômicas de tipo neo-escravista de

outro” (Cocco e Negri, 2006:47).

O Estado brasileiro pode ser visto como uma grande logística cujo principal (ou único)

objetivo é o de sustentar a dominação econômica de uma camada minoritária da sociedade.

O preço da exclusão da maioria se assenta assim na necessidade de um estado

extremamente violento capaz de sufocar qualquer resistência.

O que queremos subtrair desse Estado, ao trazê-lo para esse estudo, são as práticas com

as quais esse exerce seu domínio sobre esses segmentos, demonstrando a universalidade

contida nessas formas, que pendulam desde a colonialização até os projetos

desenvolvimentistas calcados na exclusão quase absoluta de grande parte da população

brasileira.

Mas o que vem subjacente a essa exclusão é ainda pior, um discurso de naturalização que

se perpetua o suficiente para, ainda hoje, justificar o extermínio que se pratica nas favelas

cariocas, naturalizando e o tornando invisível.

O desenvolvimento do capitalismo no Brasil esteve condicionado a uma feroz apropriação

do Estado brasileiro, sobretudo nas suas funções político-ideológicas, por composições que

correspondiam apenas aos interesses das forças dominantes presentes nos modelos

econômicos vigentes, servindo como principal mecanismo de consolidação dos diferentes

segmentos da burguesia. O resultado disso é a pobreza endêmica que permeia a vida

dessas populações. Como afirma Cocco: “Ora, se podemos entrever nesta generalidade

latino-americana um paradigma da desigualdade que se reproduz no tempo atravessando

todos os ciclos econômicos e políticos, a particularidade brasileira nos leva ao coração

desse paradigma. Se o continente latino-americano é o mais desigual do mundo, o Brasil é

o país mais desigual da América latina e manteve-se nessa triste posição ao longo de todo

o século XX, embora seu crescimento econômico tenha sido, no mesmo período, um dos

mais elevados do mundo. (Negri, Cocco, 2005:19).

O Estado brasileiro amolda-se a esse jogo, transformando-se cada vez mais num aparato

de onde reflui o jogo de dominação, criando para isso uma governabilidade que garante a

perpetuação daqueles que já ai se instalaram e excluem as grandes parcelas às quais os

seus serviços deveriam incidir.

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O Estado passa a ser o espaço privilegiado de disputa e afirmação dos interesses de

diferentes segmentos dominantes.

Assim, à governabilidade do Estado, perpassam níveis diretos e indiretos de corrupção que,

no seu limite, expressam uma redistribuição de rendas as avessas, pois é o Estado o

principal mecanismo de sustentação do enriquecimento das camadas dominantes do país.

Claro há que, nesse cenário, as políticas sociais não podem chegar até a sua população

destinatária, prefigurando, historicamente, um Estado que nunca atendeu as demandas dos

segmentos empobrecidos. Assim que, para essas populações, freqüentar os serviços

públicos significa decifrar uma infinidade de formalidades, mas sobretudo decifrar códigos

que se produzem sob a justificativa do caráter seletivo e restritivo dessas políticas.

O que vai se caracterizando, dessa forma, é o caráter de controle com que essas políticas

vão incidir sobre a população usuária, fomentando a base de constituição de um projeto de

poder calcado num estado repressor e paternalista.

Os códigos que emergem desses programas (e precisam ser acatados pela população

usuária caso queiram usufruir daquele serviço) vem camuflado de critério de universalidade,

mas objetiva, sobretudo, normatizar as condutas de comportamento e pensamento dessas

populações.

Serão os estudos de Malaguti (2003) que vão demonstrar que o caráter repressor das

políticas sociais serve para legitimar um discurso que sustenta também a parcialidade dos

aparatos de justiça do Estado frente as populações usuárias dessas políticas. Malaguti

busca base de sustentação no trabalho de Wacquant, que fará um esforço de demonstrar

justamente essa passagem da rede de segurança para a rede disciplinar do Estado

americano, como observa a autora: “O ineditismo na obra de Wacquant é a demonstração

da passagem da rede de segurança do Estado caritativo para a montagem da rede

disciplinar do Estado numa “política estatal de criminalização das conseqüências da miséria

do Estado”. Os serviços sociais vão sendo transformados em instrumentos de vigilância e

controle das novas ‘classes perigosas’ (Prefácio de Malaguti para Wacquant, 2003:10).26

As práticas de dominação que se construíram ao longo do último século no Brasil assumem,

assim, várias facetas diferentes, desde a perspectiva apontada por Malaguti, efetivada

nessa forma seletiva, clientelista e restritiva com que as políticas sociais sempre se

efetivaram até hoje no Brasil (NOTA governo Lula) e pode chegar a forma extremamente

26 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000; Revan, 2003.

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violenta com que as forças militares tem se abatido sobre as populações faveladas nos

últimos anos.

A violência instalada hoje nas favelas cariocas é síntese das inúmeras variantes que foram

se conjugando no processo de constituição da sociedade brasileira, com matizes atuais que

associa elementos oriundos da recente globalização econômica e política.

Agora são as palavras de Wacquant que resumem, fazendo referencia aos estudos de

Malaguti, a relação de subordinação histórica presente no fenômeno do tráfico de drogas:

“Os vinte anos de criminalização de jovens pobres no Rio por tráficos de drogas no varejo

são ao mesmo tempo uma história recente e uma história antiga. Como história antiga

começa com a abolição da escravidão e com o processo de urbanização, quando as

cidades ganham um novo perfil, com a remoção dos bairros pobres do centro para a

periferia. As grandes obras de modernização assumiram o significado de operações de

higiene social, exprimindo bem o ‘medo branco’ e o projeto de exclusão e de marginalização

dos libertos, a representação burguesa do que seria a cidadania negativa das classes

subalternas” (Prefácio de Wacquant para Malaguti, 2003:21).

A segregação espacial que se constrói no processo de constituição das cidades brasileiras

é, assim, reminiscência de um processo de exclusão generalizado, onde a violência é um

elemento constitutivo marcado pelo fenômeno da escravidão. ‘O sentido histórico da

crueldade’ 27 vai persistir se atualizando em sucessivas novas práticas de violência e

massacres étnicos.

Malaguti assim visualiza uma relação entre as práticas que instituíram o regime

escravocrata, expressas em ações cotidianas que confirmam um poder cuja principal

justificativa é a diferença étnica e as práticas que se instituem recentemente na relação do

Estado e das populações moradoras das favelas.

Analisar os acontecimentos que a venda de drogas ilícitas nas favelas promove, se

transforma também num exercício de análise dos discursos que se associam as práticas

repressivas que a sociedade impõe a esses jovens pobres. Através de uma perspectiva

27 Ver a esse respeito as formulações de Roberto Shcwarz como aparece em Malaguti. Para a autora: “O fenômeno da escravidão desenvolve uma realidade social absolutamente violenta. Ou melhor, a violência é elemento constitutivo da realidade social brasileira. Ao trabalho compulsório do negro soma-se a despersonalização legal do escravo: o escravo era mercadoria, não era sujeito. Temos aqui o que Roberto Shcwarz chama de ‘sentido histórico da crueldade’ (Malaguti, 2003:38).

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Foucaultiana, a formação dos discursos e a genealogia do saber devem, assim, ser

analisadas a partir das táticas e estratégias de poder.

Nos valemos dessa forma dos estudos de Malaguti (2003) para entender como tenderam os

aparatos legislativos do estado brasileiro no que tange a se posicionar a favor da

manutenção da ordem e da garantia dos interesses das camadas dominantes que se

alteraram (mas sempre se sucederam) ao longo do nosso processo de industrialização.

Nas palavras de Foucault: “Em suma tentar estudar a metamorfose dos métodos punitivos a

partir de uma tecnologia política do corpo onde se poderia ler uma história comum das

relações de poder e das relações de objeto. De maneira que, pela análise da suavidade

penal como técnica de poder, poderíamos compreender ao mesmo tempo como o homem,

a alma, o indivíduo normal ou anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos de

intervenção penal; e de que maneira um modo específico de sujeição pôde dar origem ao

homem como objeto de saber para um discurso com status ‘científico.28

A partir da investigação de processos que transitaram no Juizado de Menores do Rio de

Janeiro entre os anos de 68-8829, Malaguti observa a recorrência com que a expressão

elemento suspeito aparece nos processos pela fala dos policiais, mas sobretudo identifica

que não são suspeitos aqueles que praticam algum ato suspeito, mas sim aqueles que se

identifiquem num determinado segmento social. Assim, a forma como essa dominação

étnica vai se constituindo através dos instrumentos do estado que faccionam a sociedade

numa segregação econômica e social - que recai historicamente sobre as populações das

favelas - ganha sentido no trabalho de Vera Malaguti. Em suas palavras:

“(...) Referimos-nos anteriormente às medidas de segurança, que na virada do século XIX

foram criadas para impor ao sistema jurídico-penal medidas que punissem independente da

prática de crime. O artifício da atitude suspeita faz parte do universo dessas medidas. Se

estas medidas apontam para a contenção de uma periculosidade difusa, a atitude suspeita

28 Foucault, M. Vigiar e Punir, Petrópolis: Ed. Vozes, 1977, pp. 26 e 27.

29 A autora analisou 180 processos do arquivo do Juizado de Menores, entre os anos de 1968 até 1988, em suas palavras: “Trabalhamos com cento e oitenta fichas elaboradas a partir de processos do juizado de menores entre 1968 e 1988. Esses processos, escolhidos por intervalos aleatórios e recorrentes, foram distribuídos entre o começo, o meio e o fim de cada ano. A partir desses dados e com a amostragem aleatória que tínhamos, desenvolvemos estatísticas que utilizaremos durante a descrição do período e que se encontram entre os anexos do trabalho.

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aponta para a seletividade nas práticas da implementação dessas medidas” (Malaguti,

2003:102).

A base moral que sustenta a legitimidade da ‘atitude suspeita’ aparece no capítulo I, quando

resgatamos os discursos que se construíram sobre as drogas no século passado. A

possibilidade de associar essas populações à questão da criminalidade tem assim um

sentido econômico-político que se esconde por sob o discurso moral e demoníaco com que

as drogas são representadas nas sociedades modernas. (ou ao menos na ambigüidade e

obscuridade com que ainda são tratadas até hoje).30

A droga aparece como um elemento extremamente funcional (constituída por entre os

discursos moral e médico) para a criminalização dessas populações. Se constituindo como

um vetor ainda mais eficiente quando se trata da população jovem e adolescente,

oferecendo ao sistema condição de uma maior seletividade e um foco quase preciso na

aplicação do seu caráter punitivo, a partir de políticas de controle bastante focadas, numa

relação que tem as drogas como o pretexto mais legitimo para se conter essas populações

jovens e pobres.

Assim é que, para a autora: “Se o Código Penal não previa pena para a posse com

finalidade de uso, o Código de Menores utiliza ‘medidas’ que impõem, na prática, aos

adolescentes aquilo que o Código Penal não impunha aos maiores de idade. Assim, temos

que, em doze processos (sem que haja reincidência) os meninos são encaminhados para

internações no sistema (Malaguti, 2003:86-7).31

30 Segundo Vilela, assim: Alguns pesquisadores consideram todos esses termos mencionados acima inadequados por insuficiência conceitual, assim como o termo droga não seria tecnicamente apropriado. Sugerem a utilização do termo psicotrópico - uma substância ou produto que age sobre o cérebro, modificando suas reações psicológicas - como designação técnica específica. Quem sabe uma das soluções para começar a resolver efetivamente o “problema das drogas” não estaria em passar a usar esse termo e aposentar a palavra droga. A adoção de um outro significante poderia servir como o começo de um processo de educação pública, despindo o significado da palavra droga de toda a equivocada carga semântica geradora de medo, de aversão e de pânico. Sem essa compreensão do engodo da palavra “droga”, os trabalhos de educação, de prevenção, de tratamento de dependências, assim como as pesquisas nesse universo, continuarão a produzir resultados insuficientes e controversos. Um novo significante acabaria com o equívoco da separação das drogas em permitidas e proibidas (Vilela, Jaime. Coca, narcotráfico e recolonização. In: marxismo vivo 6, dez. 2002).

31 É o casa de P.C.A.C., pardo, 15 anos, morador da Favela do Cantagalo, detido em 25/06/68 com dez cigarros de maconha. Ele é internado no instituto Padre Severino em junho de 1968, onde ficará até novembro de 1969”(Malaguti, 2003: 86). Há ainda aquelas situações onde a cidadania negativa a que esses jovens estão submetidos fica ainda mais evidenciado, como aparece no relato abaixo: N.C.S., uma menina de 15 anos, detida após ronda na quadra de ensaios da Mangueira em 3/3/68 (“ao submetê-la a uma revista, foi encontrado no interior do sutien(?) um vidro pequeno, contendo substância nociva à saúde, conhecida por cheirinho da loló) foi internada no Instituto Coração de Maria em 06/03/68, onde ficou até comunicação de sua fuga, um ano e meio depois!” (Malaguti, 2003:86-7).

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Assim que ser negro, jovem e pobre coloca automaticamente essa população como

suspeita.

Transitar pela cidade se transforma em ato de subversão, rapidamente punida. Dessa forma

que esses jovens são identificados pela sociedade como em ‘atitudes suspeitas’ quando

transitam pelas vias públicas, passeiam pelos parques ou estão nas praias.

Em seus estudos Cassab (2001) também identifica o que chama das ‘forma de vigilância’

que incide a partir de certos estereótipos, revelando os limites impostos para os jovens

(pobres e negros) ao transitarem nas cidades. Os relatos que aparecem no trabalho de

Cassab revelam assim como os percursos da cidade vão sendo construídos a partir das

relações de domínio e arbitrariedade a que estarão submetidos esses segmentos. Como

aparece a seguir: “(...) Igual outro dia na Central. Eu desço do ônibus, ai o cara (um policial)

chega no meu ouvido, ei, tem alguma coisa aí - não senhor - então vamos sentar ali nós

dois, você vai mostrando seus documento devagarinho,(...) aí, pum, tinha um dinheiro

dentro da carteira. Ai ele - está vindo de roubo, né - não senhor- tá vindo de roubo, oh,

vamos fazer um negócio, para eu não te levar pra dura você me dá seu relógio, seu dinheiro

e vai embora - que que é isso, eu não tô vindo do roubo, to vindo do trabalho - pra cima de

mim - ai, pum, pegou meu relógio, meu dinheiro, me mandou embora” (Cassab, 2001:44).

Assim é que este Estado sai do abstrato e aparece na sua concretude. Concretude que nos

mostra que, em suas dinâmicas ele não interage da mesma forma com todos os segmentos

da sociedade e, se aparece para as classes dominantes como fonte de privilégios, aparece

para os segmentos empobrecido nas experiências de ‘cidadania negativa’ onde o Estado se

revela sobretudo na sua faceta coercitiva. Como nos diz Batista, onde estes setores,

principalmente os jovens e negros: “só conhecem o avesso da cidadania através dos

sucessivos espancamentos, massacres, chacinas e da opressão cotidiana dos organismos

do sistema penal” (Batista, 1997:133).

As favelas se transformam em grandes senzalas, guetos onde os negros se escondem do

aparato repressivo de um Estado Étnico, seja enquanto escravos ou enquanto jovens

urbanos. O sentido étnico se eleva, dessa forma, em sua dimensão de biopoder, traduzido

pela questão do racismo, como explica Pelbart: “Pois se o racismo existia muito antes do

surgimento do biopoder, foi este o responsável pela introdução do racismo nos mecanismo

de Estado. Focault chega a dizer que isso que faz com que quase não haja funcionamento

moderno do estado que, em certo momento, em certo limite e em certas condições, não

passe pelo racismo. Basta evocar algumas características do racismo: um corte entre o que

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deve viver e o que deve morrer, a consigna de que para viver é preciso fazer morrer, mas o

que era uma injunção guerreira, torna-se biológica (a morte do outro, da raça ruim, inferior,

degenerada, é o que vai deixar a vida em geral mais sadia, mais pura); trata-se de eliminar,

não os adversários, mas os perigos, em relação à população e para a população” (Pelbart,

2003:59).

Mas, se a favela pode ser vista como um espaço de segregação onde segmentos são

entrincheirados a partir das violências que sobre eles se abatem, também aparece como

espaço onde se tecem novas resistências a essa opressão.

A favela é o espaço onde as redes de solidariedade funcionam, condicionadas por uma

necessidade muitas vezes vital. As práticas sociais revelam assim a flexibilidade necessária

para lidar com o imprevisível, a criatividade para lidar com a escassez e as habilidades para

superar as adversidades.

Mas é exatamente quando emerge na sua vitalidade que a favela vai também se revelando,

paulatinamente, como o espaço privilegiado onde o embate direto contra essas populações

pode acontecer e que não deixa dúvida dos rastros ancestrais que essa violência carrega.

“São práticas de extermínio que integram um projeto de sociedade baseado na exclusão

econômica e social e, no limite, na própria exclusão da vida” (Verani, Sergio. Discursos

Sediciosos nº e página 133).

Assim podemos colher todo o sentido de opressão com que a supremacia étnica se impõe

na história. A partir da experiência da dor tantas vezes repetidas nos grandes genocídios

que a história conheceu é que se constitui o elemento comum que ajuda, no trabalho

realizado por Mir, a desenhar uma linha que vai de Auschwitz as favelas cariocas. Assim

nos fala o autor: “A favela-campo de concentração é um espaço sem tempo. O momento

humano dos favelados, em sua dimensão biográfica e histórica, é literalmente abolido. Não

existe nem passado nem futuro, somente um presente contínuo de sofrimento crescente.

Parece que ai não só se assassina de forma brutal, mas, definitivamente, o humanismo

clássico que configurou o homem como um animal racional, político ou lingüístico foi

destruído. É como se as grandes conquistas que propiciaram a civilização ocidental - a

liberdade e o indivíduo - deixassem de ser valores eternos. Nesse recinto só vive um

animal, um não homem, um espectro sem rosto encerrado em pesadelos e delírios atrozes,

um corpo vazio ao que finalmente lhe furtam até a aptidão de padecer humanamente (Mir,

2004:28).

A possibilidade de avançar no debate sobre o narcotráfico implica portanto em perfilar

elementos que possam distinguir a grande rede do comércio global do tráfico de drogas no

mundo, de sua expressão particular que o transforma em ‘narcofavela’; para assim

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conseguir desfiar a teia histórica que levou esses jovens a virarem protagonistas dessa

violenta realidade.

Dessa forma é que posso inscrever o narcofavela nas raízes da segregação econômica e

social -com que as dinâmicas de desenvolvimento capitalista se implementaram na América

Latina-, achando nesses fenômenos um viés étnico de dominação presente até hoje.

Justificando a dinâmica repressiva às favelas e aos seus moradores o tráfico aparece como

a expressão mais contundente da continuidade desse domínio, mas também se revela - a

partir dos novos elementos presentes na economia pós-fordista- como espaço de

resistência e de luta, como veremos a seguir.

III.2) AS NOVAS FIGURAS PRODUTIVAS

Nos capítulos que antecederam tentei mostrar como as favelas adquirem um sentido novo

nas sociedades pós-modernas, quer porque, ao se socializar, o capital se expande para a

vida e o que era periférico se torna central, quer porque nas sociedades pós-moderna o

sujeito revolucionário pode ascender como multidão.

Os moradores das favelas se tornam, portanto, novas figuras produtivas quando o que se

está a produzir são as relações sociais, é o mundo.

Nas favelas a produção é, ao mesmo tempo, vida e resistência. Essa é a síntese das

favelas.

Quando o que está submetido a dinâmica capitalista é a própria vida, o capital abre sua

última contradição. O espaço de produção se torna externo ao capital, a re-produção não

precisa mais passar por dentro do capital. O capital precisa criar novas estratégias para

acumular. Nas sociedades pós-modernas o eixo de sustentação do capitalismo moderno se

desloca da propriedade privada dos meios de produção para a propriedade intelectual. É,

pois, quando o capital consegue subjugar toda a vida que ele também se vê capturado, ao

precisar do próprio veneno para se alimentar. Pois agora o capital se alimenta do que vaza

em forma de vida, da inovação, ou seja, o capital se alimenta daquilo que se faz resistência.

Assim é que a lucidez revolucionária de Negri permite apanhar o pobre naquilo que ele tem

de revolucionário (de comum, de criação vital). A multidão é, ao mesmo tempo, o que

valoriza o capital e o que produz a desmedida, o comum. O pobre é visto assim pelo autor

como a condição de toda produção. Ou seja: “Aqui, dentro deste reino de produção global, o

pobre já não se distingue apenas por sua capacidade profética mas também por sua

presença indispensável na produção de riqueza comum, sempre mais explorado e sempre

mais estreitamente indexado ao salários do mando. O pobre é, em si mesmo, poder. Existe

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uma pobreza mundial, mas existe acima de tudo um possibilidade mundial, e só o pobre é

capaz disso” (Negri, 2000:175).

Aqui é onde a dimensão marxiana na obra de Negri se impõe. O sujeito revolucionário, está,

antes de mais nada, inserido na produção social da vida e é figura fundamental desse

processo.

Se antes o sujeito revolucionário - proletariado- precisa dividir o cenário com o capital, já

que sua própria constituição está ligada a existência desse: capital e trabalho aparecem

como uma unidade dialética; agora o trabalho se libertou e se tornou pobre!

Dessa forma é que posso trazer aqui o nome comum de pobre como ele aparece em Negri

e Hardt. Para o autor, historicamente livres da servidão e dos meios de produção, ‘o

proletariado foi obrigado a tornar-se pura possibilidade de riqueza’. Mas, diferente do pobre,

o proletariado guarda ainda a disciplina da fábrica e a disciplina necessária para a

construção do socialismo. Será apenas na pós-modernidade que esse proletariado se

transforma em pobre, porque na pós-modernidade o subjugado absorveu o explorado. Ou

pelo próprio autor: “Em outras palavras, o pobre, cada pessoa pobre, a multidão de pobres,

comeu e digeriu a multidão de proletários. Só por esse fato os pobres já se tornaram

produtivos. Mesmo o corpo prostituído, a pessoa indigente, a fome da multidão – todas as

formas do pobre se tornaram produtivas. E os pobres tornaram-se, portanto, cada vez mais

importantes: a vida do pobre cobre o planeta e o envolve com seu desejo de criatividade e

liberdade” (Negri, 2000:176).

É a concretude material apresentada para o pobre que lhe exige uma potência sempre

renovada, assim o pobre é a desmedida, o futuro. Assim dirá Negri, quem senão o pobre

para constituir o comum. O pobre nessa medida (na sua desmedida) é o comum dos

comuns.

Dessa idéia aflui a imagem da primeira vez que parei na entrada da Rocinha 32e vi a

multidão de pessoas num movimento de ir e vir, de entrada e saída da favela.

32 A Rocinha é a maior favela do Rio de Janeiro contando com cerca de 56.000 habitantes, embora algumas fontes afirmem que há bem mais. Com o intuito de regular o seu crescimento desordenado, a prefeitura da cidade implantou em 2001 um projecto urbanístico, designado Eco-limites, que delimitou a zona onde é permitida a construção com estacas de ferro unidas por cabos. Actualmente a Rocinha continua com forte crescimento devido ao forte influxo de migrantes de outros estados, tradicionalmente da Região Nordeste do Brasil mas cada vez mais do interior do estado. Atualmente conta com um grande aparato comercial instalado na própria favela, como redes de Fast-food, Lan Houses, bancos e empresas que levam os turistas para um tour pela favela. A favela, que atualmente possui status de bairro, está localizada entre os bairros da Gávea e São Conrado, dois dos bairros com IPTU mais alto do Rio de Janeiro. A proximidade entre as

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Ao longe parecia um corpo pulsando, boca escancarada do monstro, com dentes e garras a

vista. Multidão de gente comum, produzindo suas vidas na precariedade.

O corpo sem órgãos33 aparece assim na plenitude da multiplicidade com que se constitui a

movimentação da escassez: conexão de esforços, criatividades, habilidades, linguagem e

corpos!

As práticas cotidianas revelam a potência desse organismo que prolifera na pobreza: são as

necessidades e carências urgentes que mobilizam esforços e transforma o privado em

comum. Nas favelas a produção do comum é atualizada cotidianamente. A favela é assim o

lugar da potência que emerge da pobreza, do pobre. Assim, nos dirá Negri: “finalmente

hoje, nos regimes biopolíticos de produção e nos processos de pós-modernização, o pobre

é uma figura subjugada e explorada, mas apesar disso uma figura de produção. (....) Mas

quem é o sujeito que produz ‘transversalmente’, que dá um significado criativo à linguagem

– quem senão os pobres, que são subjugados e ávidos, empobrecidos e poderosos, sempre

mais poderosos?”(Negri, 2000:175).

Dessa forma os pobres reinventam a realidade em práticas de vida que, se refletem suas

carências materiais, também as superam, as reinventam. É na impossibilidade que se

constrói o cotidiano das favelas.

Quando os segmentos que foram acuados (nos diferentes processos de massacres de etnia

inteiras) se tornam figuras produtivas fundamentais para a economia capitalista, a potência

da multidão falou mais alto do que seu silenciamento histórico. E, é agora o capital que

precisa se interrogar das possíveis formas de continuar comandando os corpos e

residências de classe alta desses dois bairros com a Rocinha cria um profundo contraste urbano na paisagem da região. Vale destacar o Largo do Boiadeiro, feira dominical com produtos Nordestinos na beira do asfalto e a bem sucedida ação do banco popular que empresta dinheiro de ONGs em baixas quantias (até mil reais) a pequenos comerciantes e ambulantes, com uma baixíssima taxa de inadimplência. A comunidade também conta com 4 linhas de ônibus, cooperativas de vans, serviços de moto-táxi, um posto de saúde, uma agência dos correios, duas agencias bancárias, serviços de internet, TV a cabo, rádios comunitárias, uma casa de show, três escolas públicas e várias creches comunitárias (Wikipédia, a enciclopédia livre. www.wikipédia.com.br).

33 Nas palavras de Deleuze corpo sem órgão aparece como: “É uma multiplicidade - mas não se sabe ainda o que o múltiplo implica, quando ele deixa de ser atribuido, quer dizer, quando é elevado ao estado de substantivo. Um agenciamento maquínico é direcionado para os retratos que fazem dele, sem dúvida, uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma determinação atribuivel a um sujeito, mas ele não é menos direcionado para um corpo sem órgãos, que não pára de desfazer o organismo, de fazer passar e circular partículas a- significantes, intensidades puras, e não pára de atribuir-se os sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de intensidade (Deleuze, 2000:12).

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controlando as mentes, quando as amarras foram desfeitas e o trabalho emerge no seu

sentido mais pleno.

A produção da subjetividade engoliu todo o ciclo econômico e refez as bases da produção.

A natureza do trabalho mudou tanto quanto a natureza do seu produto. Dessa forma

falamos de uma riqueza que já não se mede pelos mecanismos clássicos do tempo de

trabalho, da mais -valia. A externalização do sujeito no objeto permite a materialização da

subjetividade. A mercadoria não se assenta mais na escassez e no desgaste do uso. Ao

contrário, a comunicação valoriza a mercadoria, produz valor. É a sociabilidade de um

trabalho comum que produz riqueza. A riqueza adquire um novo significado:

“Interrogar sobre a nova natureza da riqueza é um ato político, uma vez que, como dizia

Marx, se trata de ‘despi-la de sua forma burguesa’, ou seja, reconhecer que não é fundada

unicamente no ‘trabalho produtivo’ (no trabalho subordinado que produz o capital), mas

também na atividade qualquer, na ação livre; significa dizer que a riqueza não tem a ver

somente com atividade, mas que também diz respeito à capacidade de se subtrair (o tempo

vazio, o ócio de Paul Lafargue); que pressupõe não apenas a subjetivação, mas também a

ação da dessubjetivação, a fuga dos papéis e das funções predefinidas e dadas (Lazzarato,

2006:140).

Lazzarato tira, assim, definitivamente, o trabalho de dentro da fábrica e da sua formatação

disciplinada e o faz se expandir na sua dimensão criativa. Ontologicamente o homem

continua subordinado ao trabalho, só que a (rel)ação que antes oprimia, agora,

potencialmente liberta. Na verdade Lazzarato desloca todo o sentido de trabalho e traz as

referencias Leibnsiniana, seguido de Tardin, para pensar que a produção da riqueza não

deriva mais da conversão de uma atividade subordinada, como o trabalho aparece na

perspectiva marxista do século XX, rompendo definitivamente com essa perspectiva.Não é

preciso mais olhar a filosofia do sujeito por sob à luz da economia política.

Como aparece em suas palavras: “Não se trata aqui de negar a pertinência da análise

marxiana da relação capital trabalho, mas muito mais sua pretensão de reduzir a sociedade

e a multiplicidade de relações de poder que a constituem em termos das relações de

comando e obediência que se exercem no interior da fábrica ou na economia. As relações

econômicas, devem, ao contrário, ser integradas a um quadro mais amplo, o das

sociedades disciplinares e sua dupla técnica de poder: a disciplina e o biopoder” (Lazzarato,

2006:63-4).

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Aqui o nosso circulo se fecha, pois a natureza produtiva da multidão tem, ao mesmo tempo,

o sentido de captura e de fuga, de valorização e de resistência, de biopoder e de biopolítica.

É, assim, a partir de um novo entendimento do que passam a ser as atividades produtivas,

rompendo inclusive com o conceito marxiano de trabalho, que Lazzarato traduz, com

precisão, o que podem ser as dimensões produtivas das favelas. Lazzarato supera o

conceito do trabalho e compreende o ciclo produtivo como atividades de invenção e difusão.

Será esse o conceito que nos permite visualizar as novas figuras produtivas no pós-

fordismo. Assim que as infinitas e contínuas conexões dos moradores são a imanência de

onde vão emergir inúmera invenções, mas sobretudo onde a difusão se produz em rede,

nos permitindo visualizar as favelas como espaço de produção. Para Lazzarato: “Dito de

outra maneira, na cooperação dos ‘cérebros reunidos’, a invenção não é obra de grandes

homens, e não é representada exclusivamente pelas grandes idéias; é sobretudo o

resultado de uma colaboração e da coordenação de uma infinidade de agentes, ao mesmo

tempo sociais e infinitesimais, e de suas idéias ‘raramente geniais, em geral anônimas, ‘que

muitas vezes aparecem como pequenas idéias de pequenos homens, inovações

infinitesimais que cada um aporta à obra comum’ (Lazzarato, 2006:145-146).

O comum é vigorosamente atualizado no dia a dia das favelas. Assim as favelas se

constituem em mananciais de produção. Bacia produtiva imaterial: rizomas de

subjetividades quaisquer postas a favor da vida (do equacionamento e da produção da

vida). A favela se torna então uma rede contínua de difusão das inovações que emergem na

produção de vidas potencializadas pela precariedade.

Mas, quando a produção social se torna uma atividade da invenção (ao invés da

subjugação do tempo de trabalho) e da difusão (o compartilhamento valoriza a mercadoria)

as formas clássicas de seu aprisionamento também se esfacelaram.

O processo agora é completamente imprevisível, dirá Lazzarato, por que ‘não se pode

comandar a invenção nem sua difusão social’ (Lazzarato, 2006:46).34

Assim que a mudança paradigmática recente não nos permite mais apreender a sociedade

a partir do conceito de trabalho ou da práxis, pois esse conceito não dá mais conta do que o

trabalho se tornou (não-trabalho) na sua efetivação e constituição de mundo.

34 Para o autor: “Os efeitos da invenção e da criação, diferentemente dos efeitos do trabalho, são infinitos. A invenção pode se efetuar nos agenciamentos espaço-temporais, mas sua efetuação não a esgota. A invenção insiste, pela eternidade. Ela pode sempre participar de novas combinações, de novos agenciamentos, agora e para sempre. Infinita no tempo, ela é também infinita no espaço. Ela se derrama até os pontos mais distantes, seguindo a distribuição das subjetividades quaisquer” (Lazzarato, 2006:47).

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Ao romper com a dimensão disciplinadora do trabalho que existe na obra de Marx,

Lazzarato rompe sobretudo com o caráter regulador que a experiência política do

movimento operário do período fordista, e amplia os eixos de identificação dos conflitos e

resistências para além dessa relação capital e trabalho, entendendo assim que, quando a

‘potência de criação das multiplicidade é a fonte de constituição do real’ (Lazzarato,

2006:259) também as formas de controle e capturação dessa riqueza se modificam, como

veremos no próximo item.

III.3) Contra-Insurgência: a guerra como biopoder

Como paralisar a multidão que caminha potente por sobre o chão da história? Vida que

persiste por sob as adversidades, que abre caminho, que inventa possibilidade, que inventa

o impossível. Como controlar um corpo que não se amolda mais as máquinas, que não se

submete mais aos ritmos ou aos tempos marcados pela produção. Como capturar o corpo

do comum: rizoma que se regenera em qualquer uma das suas partes?

Assim que à disciplina se sobrepõe o controle e, por sobre esse, a guerra.

É a guerra que aparece então como forma de manter a ordem social. Nas palavras de

Negri: ‘Em outras palavras, a guerra transforma-se na matriz geral de todas as relações de

poder e técnicas de dominação, esteja ou não envolvido o derramamento de sangue. A

guerra transformou-se num regime de biopoder, vale dizer uma forma de governo destinada

não apenas a controlar a população, mas a produzir e a reproduzir todos os aspectos da

vida social. Essa guerra traz morte mas também, paradoxalmente, deve produzir vida. Isto

não significa que a guerra foi domesticada ou que sua violência tenha sido atenuada, e sim

que a vida cotidiana e o funcionamento normal do poder passaram a ser permeados pela

ameaça da violência da guerra (Negri, 2001:34).

Para que a guerra se torne de fato um elemento que perpasse os funcionamentos da vida –

‘controle que invade a profundidade das consciências e dos corpos da população,

atravessando as relações sociais e as integralizando’ (Pelbart, 2003:83) –, ela precisa

traduzir-se numa ação contínua e invasiva no cotidiano dessas populações. A guerra

precisa ser uma ameaça que ronda continuamente sua existência, lhes impondo limites e

regras.

Será assim a existência de um comércio de drogas ilícitas, tomado na forma de jovens

armados, submergidos num contexto de conflitos que geram diferentes formas de violência,

a melhor justificativa para o estado de exceção permanente que recai sobre as favelas hoje.

Negri encontra a interseção entre o discurso que justifica a guerra imperial e o discurso de

combate as drogas, que ajuda a construir o sentido de exceção. Em suas palavras, assim

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“(...) esses discursos de guerra servem para mobilizar todas as forças sociais e suspender

ou limitar as trocas políticas normais” (Negri, 2005:35).

Ao reconhecimento de que os instrumentos de soberania interna, eficazes até então, já não

dão mais conta de controlar a dinâmica capitalista, pois essa invadiu todos os espaços,

novas dinâmicas se impõem. Dessa forma dirá Negri: “O Império está surgindo hoje como o

centro que sustenta a globalização de malhas de produção e atira sua rede de amplo

alcance para tentar resolver todas as relações de poder dentro de uma ordem mundial - e

ao mesmo tempo exibe uma poderosa função policial contra novos bárbaros e escravos

rebeldes que ameaçam sua ordem” (Negri, 2003:37-8).

O narcofavela aqui é apanhado, a partir dessa perspectiva conceitual, pelo sentido do

biopoder, ou seja, a guerra que se trava contra os traficantes é também uma guerra contra

essas populações (novos bárbaros). Por isso essa guerra é uma guerra interna que visa

conformar as populações. Falamos de uma guerra que intercepta essa população no

instante mesmo em que essa está a produzir sua existência comum. Pois é justamente no

momento da reprodução da vida (que é agora produção), onde esses se tornam figuras

produtivas que precisam ser capturados.

A guerra aparece assim como uma modalidade de controle ainda mais sofisticada, que, se

tem dentro de si a disciplina e o controle, vai para além deles. Ou seja, à potência

desmedida da multidão precisa corresponder uma necessária antipotência.

É a desmedida que precisa ser capturada, abafada, controlada.

E, só a guerra, agora, pode lhe dar medida, por que só um poder que se interponha junto a

vida pode deter, de alguma forma, a força dessa multidão que foi se conformando nas

periferias das cidades fordistas (longe dos bairros projetados para serem continuidade da

fábrica.) A favela é a antítese de todo a disicplinarização que o fordismo impôs as

sociedades, se constituindo no espaço da informalidade, da improvisação, da

descontinuidade, da fuga (suas ruelas e becos dão em qualquer e toda parte). Mas se o

espaço da favela é descontínuo e fugidio é, ao mesmo tempo, comum. Há, nas favelas, um

partilhamento do espaço que se constitui no comum. É o comum que pulsa na vida das

favelas, fazendo com que o viver da favela esteja carregado de arte.

Para Lazzarato, assim: “Se o poder de totalização do processo econômico, se a unidade do

regime político, se o único mundo possível da economia e do político são cotidianamente

minados pela proliferação de mundos possíveis, o estado de exceção é a única maneira de

controlar a fuga, a experimentação, a criação conflitual de individualidades e movimentos

políticos pós-socialistas” (Lazzarato, 2006:260).

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Se a justificativa da guerra se explica, inicialmente, no combate ao tráfico de drogas, a partir

disso ela se enraíza na vida dos moradores.

Ao elemento suspeito, que vai do traficante ao suposto traficante, se agrega o ‘acobertar’ ou

‘auxiliar’ como justificativa recorrente para que o aparato estatal se sinta legitimado a invadir

casas ou agredir os moradores. Assim todos são suspeitos, os jovens podem ser mortos ou

agredidos por que são traficantes, se não, suspeitos. Os moradores coniventes ou

apoiadores do tráfico de drogas.

Justificado pelo discurso das drogas o Estado pode exercer o controle contínuo dessas

populações.

São muitos os relatos que denunciam a atuação violenta dos policiais nas favelas cariocas.

Mas também são muitos os mecanismos de silenciamento, desqualificação e

deslegitimação com que a sociedade recebe essas denuncias, sobretudo se partem dos

próprios moradores e, poucos são os mecanismos oficiais pelos quais essas populações

podem se valer para disputar os canais formais da democracia brasileira.

Numa entrevista concedida a Revista ‘Isto É’ o Presidente da Associação de Moradores do

Morro do Andaraí denuncia a forma violenta de atuação da polícia nas favelas. Após a

pergunta do repórter, de como seria a atuação da polícia no morro, segue a resposta: – Eles

chegam, batem e espancam. Não percebem que estão criando um clima desfavorável. Uma

criança de sete anos que ver uma pessoa ser espancada – sendo ou não do tráfico – jamais

vai achar que a polícia está certa. Afinal, quem vive o dia-a-dia com ele dentro da favela é o

cara que está apanhando. Isso vai formando a mentalidade da criança. No morro, a polícia

não respeita nem um milímetro da Constituição. Se os policiais entram na casa de um

morador e encontram um vídeo, sempre acham que foi conseguido através do tráfico.

Entram nas casas sem pedir licença. Gostaria que um burguês saísse de seu meio para

viver no morro do Andaraí por um dia. Então veria o tipo de tratamento que se dá aos

favelados (Filho, Francisco Alves. Revista Isto é nº 1.426, 29/01/97).

Dessa forma é que, por sobre os discursos que se constroem amparados na existência de

uma violência generalizada, começam a passar elementos que transformam essa

universalidade numa violência focada, produzida por dentro do Estado e que recai sobre um

determinado segmento social, ressaltando a idéia de que a violência produzida nessa

‘guerra’, que se institui amparada pelo combate ao tráfico de drogas, representa a forma

hegemônica das práticas de poder que há muito se instalaram no Brasil e se atualizam

nesses confrontos.

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O combate ao tráfico aparece como a principal forma de domínio do Estado à essas

populações pobres e, por isso mesmo, potencialmente revolucionárias.

Essas práticas de domínio imperial deixam centenas, e até milhares de mortos todo ano no

Brasil.

Mas a afirmação de que o controle do tráfico de drogas se transformou na forma de controle

social pós-moderno se confirma assim quando identificamos que não é toda a sociedade

que está submetida aos óbitos dessas incursões policiais. Como se poderia explicar - em

condições que não a da excepcionalidade - os números de homicídios em decorrência das

operações policiais? Como justificar que no Brasil, por exemplo, no ano de 2003, 1195 civis

foram mortos em decorrência das ações policiais (agravado pelo fato de que 50% dos

mortos em decorrência das ações policiais terem sofrido execuções sumárias35) a não ser

inscrevendo essas ações como expressão do biopoder?

Segundo o Escritório Regional do UNODC no Brasil36, nas duas décadas entre 1980 e

2000, 2,07 milhões de brasileiros morreram de causas não-naturais. Dentre essas causas,

os homicídios lideram as estatísticas. Em 1980, estima-se a ocorrência de 13.910

homicídios. Os homicídios aumentaram para 31.989 em 1990 e alcançaram 45.343 em

2000.

Segundo Dowdney (2005) a partir de uma comparação internacional em taxa de homicídios,

o Brasil só aparece atrás de Colômbia, El Salvador e Rússia, aparecendo portanto como um

das mais altas taxas de homicídio do mundo. Mas a relação de domínio que os altos índices

de homicídios no Brasil revelam só se configura, contudo, se a ele se agregam novos

indicadores, como: causa da morte, tipo das áreas mais atingidas, idade, gênero e etnia.

Identificamos, dessa forma, que a concentração desses homicÍdios ocorrem nas cidades

com uma maior densidade demográfica. Segundo o DATASUS assim, menos de 1% dos

municípios brasileiros concentram 50% dos homicídios e 25% da população nacional em

2000.37

35 Vale ressaltar que um estudo realizado por Ignácio Cano sobre a letalidade da polícia indicou que em aproximadamente 50% dos casos por ele pesquisado, as vítimas apresentavam quatro ou mais perfurações à bala, com tiros pelas costas ou na cabeça, indicando claramente execuções sumárias.In Cano, Ignacio: Letalidade da Ação Policial no Rio de Janeiro, ISER, 1997, Rio de Janeiro.

36 Nações Unidas Escritório Contra Drogas e Crimes - Relatório Perfil do País - Brasil 2005, (www.unodc.org.br)

37 Vale aqui acentuar que as favelas, entre todos os espaços das metrópoles, é o que possui a maior densidade demográfica, registrando-se em algumas favelas brasileiras um dos mais altos índices populacionais do mundo.

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Mas sobretudo o que para nós interessa observar é a forma absurdamente discrepante com

que esses homicídios se dividem entre os espaços das cidades, como aparece abaixo: “O

crime não afeta todas as pessoas da mesma maneira. O risco de se tornar uma vítima é

influenciado pela idade, pelo gênero, pela renda e pelo local de residência. Por exemplo, em

áreas turísticas do Rio de Janeiro (como Copacabana e Ipanema), a taxa de homicídios é

de cinco para cada grupo de 100 mil pessoas, semelhante à registrada nas cidades mais

seguras da Europa. Nas favelas, situadas a apenas dois ou três quilômetros dessas áreas

turísticas, a taxa de homicídios chega a 150 para cada 100 mil pessoas. A incidência de

furtos, roubos em lojas e contravenções é maior em áreas de renda alta, como ocorre em

países desenvolvidos. (RELATÓRIO PERFIL DO PAÍS - BRASIL 2005, p. 5, Nações Unidas

- escritório contra drogas e crime (www.unodc.org.br).

Vale ainda observar que nesses homicídios há um alto percentual de ocorrências

envolvendo o uso de arma de fogo. Segundo o DATASUS, em 1998, mais de 60% dos

homicídios que ocorreram no Brasil foram efetuados por armas de fogo.

Além disso os números também nos revelam uma acentuada concentração em relação às

vitimas de homicídio na Brasil entre as pessoas com idade entre 17 e 23 anos, como

também o fato que os homens são muito mais vitimados que as mulheres.

Os números revelam assim a acentuada desproporção no número de homicídios entre a

população total e entre os jovens e, sobretudo, entre os jovens do sexo masculino.Assim

que “De 1993 a 2002, o número de jovens entre 15 e 24 anos assassinados no Brasil

cresceu 88,6%. Na população geral, o crescimento foi de 62,3%, índice mais de quatro

vezes maior que o aumento da população no mesmo período.”38

Assim que os jovens do sexo masculino entre as idades de 15 e 29 anos são o grupo mais

afetado da população. Dos homicídios registrados em 2000, mais de 16.000 afetaram

jovens do sexo masculino - 75% dos quais vítimas de armas de fogo.

A pesquisa conduzida por Dowdney (2005) pode concluir assim que, “O Brasil é o 3° país

onde mais jovens morrem por armas de fogo, atrás de Venezuela e Porto Rico (57 países

foram analisados na pesquisa).”Assim, em 2002, 39,1% dos adolescentes que morreram no

Brasil foram vítimas de arma de fogo (Datasus).

38 Brasil: Taxa de homicídios entre jovens quase dobrou nos anos 90. Redação COAV.

39 No período entre 1979 e 2003 segundo a UNESCO (2003) foram assim os regsitros do número de mortes por armas de fogo no Brasil entre 1979 e 2003: morreram no Brasil mais 550 mil pessoas vítimas de arma de fogo. Deste total, 205.722 tinham entre 15 e 24 anos. Em 1979: 2.208 jovens foram mortos com armas de fogo. Em 2003: 16.345 jovens foram mortos com armas de fogo.

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Se, a evidência de que estamos falando de uma violência que se exerce por sob o domínio

do império, aparece quando juntamos às estatísticas gerais esses indicadores específicos,

essa fica ainda mais acentuada se sobrepomos aos números também a questão étnica.

Identificamos que a taxa de homicídios de afrodescendentes é de 68,4 mortos por 100 mil

habitantes, 74% maior do que a média de brancos da mesma idade, de 39,3 (Dowdney,

COAV).

Assim que ao mensurar a guerra, mas principalmente ao identificar quem são os seus

mortos, o caráter étnico dominador desse Estado explode, respingando para todos os lados.

Quando revelam o caráter étnico dessa ‘matança’ os números fissuram o âmago de um

discurso que apresenta a violência no seu caráter universalizante: como se estivéssemos

todos sujeitos a mesma violência e, como se ela atingisse a todos os segmentos da mesma

forma.

A impropriedade desse discurso que generaliza a violência no Brasil aparece também

quando analisamos a situação específica da cidade de Niterói, município do Rio de Janeiro.

Niterói apresenta um alto índice de desenvolvimento humano, IDH (maior que 0,80), além

de ostentar o 51º lugar em violência, ao ser comparada as outras cidades brasileiras,

enquanto a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, aparece em segundo lugar.

Contudo, ao focar o olhar nos índices de mortalidade decorrentes dos confrontos entre

policia militar e população civil (pegando o número de mortos em confrontos com a polícia

no ano de 2004) teríamos no Rio de Janeiro uma relação de 0,98 para cada cem mil

habitantes, enquanto em Niterói essa relação sobe para quase três vezes esse número.

Segundo reportagem publicada no Jornal ‘O Globo” (Lima, Ludmila, em 8 /01/2006) usando

como fonte o Instituto de Segurança Pública (ISP), Niterói, assim, apresenta uma das

maiores proporção de mortes em confronto com a Policia Militar.

A aparente contradição entre o baixo índice de violência e o alto índice de mortos em

confrontos policiais se explicaria, segundo o Coronel Marcus Jardim, comandante do 12º

Batalhão da Polícia Militar, pela existência do que ele mesmo denomina ‘ áreas de conflito

na região’, que segundo estimativas do 12º BPM seriam 78, todas situadas nos morros e

periferias da cidade. Essas áreas de conflito se caracterizariam pela presença do tráfico de

drogas. Ainda segundo o Coronel “as principais facções do tráfico de drogas do Rio de

Janeiro estão presentes também em Niterói. A presença de grupos armados é

especialmente marcante nos morros do Caramujo, Nova Brasília e Vila Ipiranga, todos

localizados na Zona Norte e dominados pelo Comando Vermelho, que está presente

também nas comunidades da Região Oceânica (Itaipu, Pendotiba e Piratininga). O grupo

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rival, Terceiro Comando, controla a venda de drogas no Morro do Estado, no Centro. Assim

que, para o Coronel, devido a justificativa do tráfico de drogas, segundo suas palavras:

“Temos que combater o crime todos os dias nesses lugares.” Isso explica o fato do 12º

Batalhão Polícia Militar (Niterói e Maricá) registrar a mais alta taxa de homicídios no Estado.

“Nós somos a polícia que mais matou marginais no estado. No mês passado foram 13

bandidos mortos”, dirá o Coronel responsável pelo comando do Batalhão.

O professor Roberto Kant, coordenador do Núcleo da Universidade Federal Fluminense,

avaliando esses dados, dirá: “A tradição da polícia brasileira, tanto a militar como a civil, é a

manutenção da ordem por meio da suspensão dos conflitos e da punição – extra-oficial –

dos envolvidos. (...) Daí decorre que a polícia brasileira ainda está marcada pela idéia de

que somos uma sociedade composta de grupos e indivíduos dotados de direitos desiguais,

em que a tarefa de manter a ordem é a manutenção dos privilégios (...) Quanto mais

aumenta a aparente qualidade de vida da cidade, quer dizer, quanto mais visível fica a sua

camada privilegiada, mais invisível se torna a sua camada desprivilegiada e mais repressão

se aplica para a manutenção do status quo” (O Globo, Niterói, 8/1/2006).

O discurso que se institui na cidade do Rio de Janeiro a partir da década de 90 sobre

‘violência’ traz - de forma hegemônica pelos meios de comunicação e autoridades públicas-

a premissa de que esta decorreria da disputa entre as diferentes facções do tráfico de

drogas ilícitas, associada a idéia de um tráfico fortemente armado - com armas cada vez

mais modernas e letais - como justificativa principal das causas da mortalidade dessa

guerra. Pelo discurso do senso comum, quem aparece sitiada assim não é a favela e, sim, a

cidade.

Novos hábitos vão sendo adquiridos também pela população que vive nas cidades, fora das

favelas, redesenhando seus contornos a partir de uma geografia do medo. Esse discurso

que se constrói em cima do medo40 é um dos principais elementos de solidificação da

legitimidade do Estado de Exceção.

40 Em entrevista concedida ao Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (publicação mensal do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), a historiadora e socióloga Vera Malaguti Batista resume a trajetória dos seus estudos que a levaram a concluir que o medo é um dos principais elementos de manutenção da ordem social, construindo uma mentalidade de criminalização da pobreza que justifica as ações conservadoras sobre os segmentos populares, como também sobre os movimentos sociais e suas demandas legitimas. Segundo a autora: “Por tudo isso o medo é um instrumento fundamental para se manter a hierarquia da sociedade. No século 19, não existia nada mais legítimo do que a rebelião escrava, dada a condição que estas pessoas viviam. No entanto, a imprensa naquela época se referia aos quilombos da mesma forma com que hoje os meios de comunicação mostram a favela, o baile funk, o comércio de drogas, os camelôs. Os grandes nós que existem na sociedade brasileira, como o acesso à terra e à educação, tem sua

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Uma análise dos principais jornais dos últimos anos, sobretudo os do Rio de Janeiro, revela

a forma com que esses jovens vão sendo personificados pela imprensa. Além do caráter de

sanguinários cruéis o tráfico aparece como uma rede bem organizada, com um exército

bem armado, chegando a se constituir, não só para a imprensa mas também para alguns

teóricos como ‘um poder paralelo’, quase tão forte como o Estado.

Dessa forma é que esses personagens vão se transformando na encarnação do mal,

permitindo que todos os atos de violência contra essa população possam ser justificados,

até os mais injustificáveis.

A imprensa vai definindo uma nova moralidade que se conforma de modo tão funcional ao

interesses do império, (inclusive economicamente) que se produz/adere n/aos discursos da

classe média e alta. Esse discurso é o que permite a imprensa vender (e lucrar) jornais com

noticias diárias dessa guerra, da sua brutalidade e covardia, sem causar nenhum

movimento de adesão social favorável as suas vítimas. Ao contrário, a legitimação do

discurso é tão acentuada que pode conseguir, inclusive, produzir um retrocesso significativo

nos poucos avanços que se conseguiu na área dos direitos humanos para essas

populações41 (como, por exemplo, conseguir a aprovação da diminuição da maioridade

penal).

origem na maneira com que o Brasil se construiu: excluindo seu povo das riquezas. O medo é uma ferramenta fundamental para manter este mecanismo porque ele é paralisante e torna a sociedade conservadora. Uma população que teme a favela vai querer que se extermine seus moradores. Por isso, a morte diária dos jovens de lá é vista como algo natural. Da mesma forma com que no século 19, os capoeiras eram exterminados porque representavam uma ameaça à sociedade escravocrata. Quando olhamos para a realidade atual, percebemos que as questões do século 19 permanecem” (Entrevista concedida ao Jornal dos Trabalhadores Rurais).

41 A reprodução dos comentários emitidos na seção de cartas de um jornal de grande circulação nacional explicita a opinião hegemônica desses setores sobre a questão do tráfico associada diretamente a pobreza e as favelas, como aparece a seguir nos textos publicados na seção do jornal O Globo (19/07/2005). “Até quando assistiremos aos marginais fechando ruas, transformando ônibus em barricadas e jogando granadas nos nossos veículos? Por que a polícia não conseguiu interceptar os comboios se tinha informação sobre a festa na Rocinha? Onde está a tropa federal treinada que deveria ter aproveitado esta manifestação de poder dos traficantes? (Ricardo Egypto, por e-mail Globo Online, 18/7/2005, Rio de Janeiro).

E ainda “A remoção das favelas próximas às principais rodovias do Rio é inevitável. Os confrontos armados, traficantes x traficantes e traficantes x polícia, nas proximidades dessas vias, vêm expondo cada vez mais a vida dos moradores dessas comunidades e a dos motoristas e passageiros. Há quem seja contra essa proposta, alegando as falhas ocorridas no passado, quando foram adotadas no então Estado da Guanabara. Para tanto, basta evitar que os erros se repitam. Outra providência vital é aumentar o efetivo das forças federais - Polícia Federal e Forças Armadas - visando à repressão inteligente à entrada de

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O poderio paralelo do tráfico, que justifica essa guerra, no entanto, está muito longe de se

constituir na forma com que a imprensa e o discurso hegemônico o produziram.

O discurso recorrente -nos meios de comunicação, pelas autoridades públicas e na

sociedade em geral- de que se trata de jovens fortemente armados e extremamente

violentos, como aparece abaixo na Reportagem da Revista Isto É, serve de base para a

legitimação de um intervenção sustentada na idéia do Estado de Exceção.

“Em muitas execuções os governantes da bandidagem não se contentam em usar as armas

pesadas de seu poder bélico, que na avaliação do superintendente da Polícia Federal no

Rio, Marcelo Itagiba, chegaria a três mil peças. As mais comuns são os fuzis AR-15, Ak-47,

Fal e Rugger, além de granadas, morteiros, lança-rojões e bazucas. Segundo a PF, há

pontos de tóxicos de morros cariocas com 300 fuzis, ou seja: um poder de fogo superior ao

de duas companhias de fuzileiros de um batalhão de infantaria do Exército. É esse arsenal,

sobre o qual as Forças Armadas e a Polícia Federal não têm nenhum controle, que torna o

tráfico do Rio peculiar e mais assustador do que o de qualquer outra grande cidade no

mundo (Revista Isto É n. 1.426, 29/01/97).

É Mir (2005) quem ajuda a desmontar a associação utilizada freqüentemente para vincular o

binário drogas/armas pesadas com o grau de letalidade da violência. Dessa forma o autor

refuta, ao mesmo tempo, tanto as associações que colocam armas e drogas como

resultantes e provocadoras de um mesmo mal: ‘um só produto causa um mesmo mal e

dano’; quanto os discursos que afirmam estarem esses jovens armados com armas

modernas e letais, de grosso calibre, que ultrapassariam, inclusive, os próprios aparatos do

Estado.

A primeira refutação se refere a associação das drogas e armas.

Para o autor os trajetos cumpridos pelas armas e pelas drogas são bastante distintos. No

primeiro caso as armas começam num mercado legal e chegam à ilegalidade na fase de

comercialização, seja pelo varejo do comércio doméstico ou pela triangulação com

comerciantes de países vizinhos. Essa trajetória constitui um circuito diferente do das

drogas, que tem todos os seus ciclos na ilegalidade, permitindo, sobretudo na sua

comercialização varejista, que a ação do estado aconteça, como coloca o autor: ‘ Já as

drogas, a partir de um estudo do ISER, vêm do Norte e do Nordeste brasileiro, países

andinos e amazônicos. E é nesse comércio de vidas e mortes que aparece a mão pesada

do Estado permitindo e intensificando a violência. As drogas são clandestinas nas fases do

drogas e de armamentos no estado (Paulo Fernandes da Silva, por e-mail, 18/7/2005, Rio de Janeiro).

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seu ciclo (produção. comercialização e consumo); já as armas começam legais e migram

para a ilegalidade durante a comercialização. O primeiro passo para o controle da oferta de

morte seria a investigação dos caminhos e processos de comercialização das armas leves

produzidas no Brasil (Mir, 2005:284).

O mito em relação a esses jovens que vai sendo construído diariamente nas informações

produzidas pelos monopólios dos meios de comunicação e da grande imprensa, são, assim,

desconstruídas pela fala de Mir: “A informação de que a violência brasileira se sustenta em

armas de guerra importadas é uma falácia pesada. Das armas que mataram, assaltaram e

feriram dezenas de milhares de pessoas no Rio de Janeiro, na última década, 83% são de

fabricação nacional (...) 72% das armas apreendidas no Rio de Janeiro entre 1994 e março

de 1999 (total de 32.143 armas) foram produzidos por um único fabricante, a Taurus &

Rossi, instalada no Rio Grande do Sul (Mir, 200:284).

A refutação que pretendo fazer, portanto, não vai de encontro as afirmações de que esse

comércio se enraíza pela sociedade e produz uma grande lucratividade. Ainda que não se

tenham dados tão seguros e coerentes sobre a economia das drogas, é consensual entre a

totalidade dos pesquisadores que este comércio ocupe uma posição importante em relação

a economia contemporânea globalizada. O que busco é contudo diferenciar o papel que

esses jovens vão assumir nessa rede, que está muito longe de se constituir no poderio de

uma organização do crime. Ao contrário, como vimos construindo até aqui, essa conexão

com o tráfico é também uma forma de capturar esses jovens e justificar uma guerra de

domínio contra esses segmentos sociais.

O que podemos depreender desses números é, assim, a forma com que as redes do

aparato do estado se emaranham com as redes da criminalidade e conduzem essa guerra

na perspectiva do controle social. Para Negri, na medida em que a autoridade dos Estados-

nação vem declinando, a guerra transforma-se num fenômeno geral, global e interminável

(Negri, 2001:21). O discurso das drogas é suficientemente forte – moral e universal – para

legitimar a caçada a esses jovens-meninos. O Estado de exceção justifica a guerra e, a

guerra justifica o Estado de exceção.

Assim que – por sob a legitimação do combate ao tráfico – a guerra se torna biopoder, e

pode se estender, entranhando-se e perpassando a vida e as relações sociais da favela. A

população é invadida na sua privacidade, violada nos seus direitos, violentada na sua

integridade. A guerra que se impetra a essas populações é, assim, uma guerra cotidiana,

que entra nas suas casas, arromba suas portas, rouba suas coisas.

Vários são os relatos sobre as formas com que os aparatos de repressão chegam até esses

moradores.

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Segundo reportagem de Ana Lucia Vaz (Rede Nacional de Jornalistas Populares) cerca de

300 moradores se mobilizaram em torno da Associação de Moradores da Grota a fim de

denunciar a violência do BOPE, por ocasião da ocupação do morro do Alemão, deflagrado

pelo assassinado do jornalista Tim Lopes, em outubro de 2005, no Rio de Janeiro, onde

faixas decoravam o local: “Os moradores do Complexo do Alemão pedem respeito das

autoridades policiais”. Ou pediam igualdade aos governantes, porque “o povo da favela é

igual ao da Zona Sul” ou porque “na favela também pagam-se impostos”.

Segundo a reportagem as denuncias feitas pelos moradores em relação as atitudes dos

policiais vão desde ameaças e humilhações até agressões e furtos. O desrespeito aos

direitos básicos aparece na fala desse morador, dono de um comércio no local: “Quando

começou o tiroteio, tinha que fechar as portas do comércio. No momento em que eu fechei,

os policiais arrombaram. E me fizeram colocar o rosto no chão, como se eu fosse um

bandido, como se eu não pagasse os meus impostos. Naqueles 15 minutos eu me senti

entre a vida e a morte. Eles começaram a invadir, a mexer nas coisas. E perguntaram o que

tinha no terraço, e eu disse que tinha a minha cachorra. E ele disse: se você não for lá

pegar ela, eu dou um tiro em você e nela. E ele me fez subir no terraço, no meio do tiroteio.

Depois desceu me carregando, como se eu fosse um escudo humano. Uma senhora pediu

pelo amor de Deus pra ele me deixar e eu acabei conseguindo sair e fui pra casa dela e

fiquei lá até às cinco horas. Isso começou às 9 horas da manhã. Eles ficaram usando minha

loja como base. Usaram a geladeira, vasculharam tudo, deixaram tudo sujo” (Renajorp, em

http://www.renajorp.net/).

A violência está por todo lado e atinge a todos, ainda que com letalidades diferentes, a

violência cumpre sempre a mesma função de controle. É assim que a guerra do tráfico de

drogas aparece como - ‘forma de poder que regula a vida social por dentro, acompanhando-

a, interpretando-a, absorvendo-a e a rearticulando’- na forma como é tomada por Negri.

Aqui, o sentido ainda ‘externalizado’ da guerra assume sua dimensão de subjetivação,

quando ‘adquire comando efetivo sobre a vida total da população” (Negri, 2001:43).

A guerra, enquanto violência cotidiana que modula os corpos das populações, tudo pode. A

política da guerra está em toda a parte, os grilhões são retomados. A guerra se transforma

assim em função integral, vital’ que toma a vida desses jovens, mas também de toda a

população. “O biopoder, portanto, se refere a uma situação na qual o que está diretamente

em jogo no poder é a produção e a reprodução da própria vida” (Negri, 2001:43).

Á favela, novamente se gruda a acepção histórica produzida para os campos de

concentração. A favela se torna um espaço onde a norma jurídica é suspensa e, onde essa

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suspensão vira regra. Assim dirá Pelbart: “A questão não é como se pôde cometer crimes

tão hediondos contra seres humanos, mas por quais dispositivos jurídicos e políticos seres

humanos puderam ser privados de seus direitos e prerrogativas a ponto de qualquer ato

cometido contra eles deixou de aparecer como delituoso” (Pelbart, 2003:64).

III.4) A FORÇA DO APARATO POLICIAL

Entre as pesquisas com as quais entrei em contato durante o percurso desse trabalho o

Relatório RIO: Violência Policial e Insegurança Pública, produzido pelo Centro de Justiça

Global (www.global.org.br) se distingui por apresentar um estudo na área da segurança

pública que apanha a violência oriunda dos aparatos estatais, possibilitando uma reflexão

sobre a forma como vem se definindo as estratégias na área da segurança pública no

Estado do Rio de Janeiro.42

Podemos perceber, por exemplo, que as ocorrências policiais que deixam os saldos de

homicídios como aparece na tabela I, é resultado de forças consensuadas na sociedade

que acreditam que os privilégios econômicos e políticos - e na sua antiface as

desigualdades sociais- devam ser garantidos por sob qualquer forma. Assim, ainda que

presumindo que as políticas de segurança pública se assentassem de fato na preocupação

ao combate ao tráfico de drogas, distinguiríamos as possibilidades desse combate

acontecer com um número ínfimo de mortes, haja vista serem esses pseudo exércitos de

traficantes completamente vulneráveis frente às forças do aparato estatal.

O primeiro ponto de relevo no estudo é, então, a identificação de uma relação direta entre a

violência efetuada pela polícia e as diretrizes vigentes da Política de Segurança Pública do

Estado. Dessa forma o relatório proporciona uma leitura dos diferentes posicionamentos

políticos na condução da política de Segurança Pública e o número de mortos pela polícia

correspondente no período, vistos também na relação com os discurso ideológico com que

essas ações vão sendo justificadas e ganham legitimidade na sociedade. Segundo o

relatório a aplicação de medidas institucionais como o ‘rigor nas investigações, o combate

aos casos de corporativismo, a resposta imediata das autoridades quando da ocorrência de

uma violação, o estudo de mecanismos de controle externo, entre outras.’(idem, 8) ou seja,

42 “A partir de um trabalho de pesquisa jurídica, acadêmica e jornalística – além de entrevistas com as vítimas e visitas in loco nas áreas atingidas pela violência do Estado - o Centro de Justiça Global obteve as fontes necessárias para a composição deste Relatório, cujo objeto refere-se justamente à crescente deterioração dos direitos humanos no Rio de Janeiro, em especial daqueles que, oriundos das camadas populares, constituem as

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medidas que visem reverter a conduta predominante de incentivo as ações violentas (houve

períodos em que se recompensava cada policial com um incremento salarial que variava de

50 a 150 % de seu salário sempre que fosse feita uma vítima letal 43) poderiam ocasionar a

diminuição da letalidade policial, como a que ocorreu, por exemplo, entre os anos de 1998

para 1999, com o decréscimo de 40% no número de civis mortos pela polícia.44

Tabela 1: Número de mortos civis e policiais, em decorrência de ações policiais, por ano

ANO CIVIS MORTOS POLICIAIS MORTOS45

1988 397 99

1999 289 92

2000 427 106

2001 592 91

2002 900 170

2003 1195 45

Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Instituto de Segurança Pública, ISP

Mas o que por fim me permite avançar -no sentido do entendimento da criminalização da

pobreza e da participação do Estado no extermínio desses segmentos- são os casos

emblemáticos da violência policial coletados pelo Relatório Rio: Violência Policial e

Insegurança Pública.(2004)46. Ainda que, como vimos, relatos semelhantes apareçam

constantemente nas narrativas dos moradores das favela47 a especificidade (extensão e

principais vítimas da violência policial” (Lyra, Diogo de Azevedo et al. RELATÓRIO RIO: VIOLÊNCIA POLICIAL E INSEGURANÇA PÚBLICA. Rio de Janeiro: Justiça Global, 2004.)

43 Soares, Luis Eduardo. Meu Casaco de General. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. Citado no Relatório.

44 “Como resultado direto deste início de reformulação, o balanço do primeiro ano foi a redução em 40% bem como a redução do número de policiais mortos, além de uma apreensão record de armas em poder dos criminosos: 9 mil. (RELATÓRIO RIO: VIOLÊNCIA POLICIAL E INSEGURANÇA PÚBLICA. Rio de Janeiro : Justiça Global, 2004, p. 9).

45 Ao número também absurdamente alto de policiais mortos deve-se, no entanto, ser considerado que “cerca de 70% desses policiais vieram a falecer fora do horário de serviço, na complementação salarial usual do segundo emprego – o bico’ ((Lyra, Diogo de Azevedo.;et al.RELATÓRIO RIO: VIOLÊNCIA POLICIAL E INSEGURANÇA PÚBLICA. Rio de Janeiro: Justiça Global, 2004, p. 25).

46 Para um quadro completo ver os relatórios anuais do Centro de Justiça Global. Direitos Humanos no Brasil 2000; Direitos Humanos no Brasil 2002; Direitos Humanos no Brasil 2003; e o relatório temático Relatório sobre Execuções Sumárias no Brasil 97-2003, 2003.

47 Apesar do pedido de Vagner, quem participou da reunião da comunidade, sexta-feira, dia 20, sem a presença da imprensa, garante que os relatos foram mais fortes. No boca-a-boca, dia 24, muitos falavam no rapaz que foi preso dentro do caveirão, onde os policiais urinaram nele. Houve até quem falasse em tentativa de estupro. Mas, diante dos jornalistas, as

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fragilidade) da democracia brasileira pouco tem fomentado instrumentos que permitam dar

visibilidade e conseqüências a essas denúncias.

Os acontecimentos escolhidos aqui para serem relatados ocorreram entre janeiro a

setembro de 2004 e, quando apanhados por esse relatório, se constituem como referencia

privilegiada, que munido de credibilidade, pode ajudar a desconstruir a base de sustentação

social que se forjou para legitimar o uso da força pelo Estado brasileiro aos segmentos

pobres da sociedade, afirmando o caráter sistemático com que tais violações se

apresentam no cotidiano do Rio de Janeiro, se tornando representativos de certos padrões

de ação policial.

Optamos então por reproduzir na íntegra pelo menos três dos 21 processos arrolados no

Relatório.

A escolha de reproduzir na íntegra os relatos - em que pese a extensão disso- vem da

convicção de que nenhuma análise que fizesse sobre esses substituiria a contundência que

a impressionante brutalidade desses acontecimentos provocam. Segundo o Relatório Rio

(2004) foram utilizados documentos e estatísticas oficiais, reportagens jornalísticas,

acompanhamentos processuais, além de um farto material obtido nas entrevistas realizadas

pela equipe do Centro de Justiça Global junto às vítimas, familiares e moradores das

principais áreas atingidas pela violência do Estado durante o ano de 2004.

CASOS

CASO UM

W. D. G. M., J. C. P. J., Flávio Moraes de Andrade, E. M. A. e José Manoel da Silva – Caju,

Rio de Janeiro.

Na noite do dia 06 de janeiro de 2004, os jovens W. D. G. M., 13 anos, J. C. P. J., 16 anos,

Flávio Moraes de Andrade, 19 anos, E. M. A., 17 anos e José Manoel da Silva, 26 anos

estavam reunidos jogando dominó, próximo a um mercado do Complexo do Parque da

Alegria, na comunidade do Caju, Rio de Janeiro, quando dois policiais militares chegaram

repentinamente atirando contra os rapazes, sem que eles pudessem reagir.

Segundo informações dos familiares, as testemunhas contam que os rapazes ainda

tentaram se identificar, solicitando que fossem levados até suas casas para que pudessem

mostrar seus documentos, mas não foram atendidos. Indícios provam que a execução foi

realizada ali mesmo, onde os rapazes estavam reunidos.

denúncias foram mais leves. Apesar das denúncias, a maioria afirmava que o movimento não era contra a polícia, mas contra o “abuso de poder”.Rede Nacional de Jornalistas Populares - Renajorp - http://www.renajorp.net/

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Houve ainda uma sexta vítima que sobreviveu: William Borges dos Reis também foi atingido

pelos disparos dos policiais, mas conseguiu fugir e ser socorrido por vizinhos.

Na manhã do dia 07 de janeiro, três dos cinco corpos foram encontrados em um lamaçal

que fica localizado na própria comunidade, atrás da garagem de uma empresa de ônibus.

Trata-se de um local ermo, onde certamente ninguém poderia presenciar o momento em

que os corpos foram deixados e, principalmente, por quem foram deixados. Os outros dois

corpos foram levados ao Hospital Souza Aguiar e identificados pelos policiais como

supostos traficantes que teriam morrido em troca de tiros com a polícia.

Os corpos das vítimas que foram deixados no lamaçal ficaram horas expostos no local

antes que fossem recolhidos ao IML – Instituto Médico Legal. Durante esse período, os

familiares esperaram ao lado dos corpos dos seus filhos e presenciaram a chegada de

policiais que pareciam estar ali para vigiá-los. Sem respeito à dor das famílias um dos

policiais disse: “Menos um porco para a gente prender”.

A ocorrência foi registrada e, segundo familiares, os policiais militares envolvidos na

execução continuam trabalhando na comunidade e teriam sido apenas alocados em

batalhões diferentes. De acordo com Elizabete Maria de Souza, irmã de W., onze policiais

militares se envolveram na ação daquela noite no morro do Caju. Informações fornecidas,

pessoalmente, em entrevista concedida ao Centro de Justiça Global em 31/05/04.

Após o crime, alguns policiais militares do 4° Batalhão da Polícia Militar visitaram

associação de moradores do bairro, onde Elisabete trabalhava. Antes das execuções,

policiais nunca haviam visitado a associação, o que leva a crer que essa foi mais uma forma

de amedrontar Elisabete para que ela desistisse de denunciar os policiais. Atualmente, ela

não trabalha mais na associação, preferindo proteger seus colegas de trabalho, que

justificadamente também se sentiam ameaçados pela situação.

O sobrevivente William prestou depoimento logo após o ocorrido. Inicialmente ele alegou ter

sido atingido por uma “bala perdida”, mas depois, a pedido das famílias das vítimas fatais,

voltou à 17ª Delegacia de Polícia e contou o que realmente lhe havia acontecido, ou seja,

que havia sobrevivido a uma execução realizada por policiais militares. Logo após seu

segundo depoimento, Willam e toda sua família se mudaram da comunidade. Eles disseram

que temiam a presença dos policiais. Na última vez que Willian foi visto, em fevereiro de

2004, foi possível notar que ele ainda mancava em função do tiro que havia levado na noite

da execução. Elizabete, irmã da vítima W., conta que três meses depois do assassinato,

durante uma passeata organizada pelas mães das vítimas, policiais do 4º Batalhão da

Polícia Militar, onde trabalham os envolvidos na execução dos garotos, tentaram atrapalhar

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a manifestação. Eles ameaçavam os vizinhos para que estes não aderissem à passeata e

arrancavam os cartazes afixados nos postes pelos manifestantes. O inquérito policial foi

iniciado na 17ª Delegacia Policial, mas foi transferido para a Delegacia de Homicídios, onde,

até o fechamento do presente relatório se encontrava processo de investigação. Os

familiares dos demais jovens executados continuam morando na comunidade do Caju,

convivendo com os policiais militares que executaram seus filhos, sem que o Estado tenha

garantido qualquer proteção às suas vidas e integridades pessoais.(páginas 38-9)

CASO DOIS

Nélis Nelson dos Santos - Morro da Coroa, Rio de Janeiro.

No dia 16 de fevereiro de 2004, aproximadamente às 7h30, motivados pela vingança do

assassinato de um policial do 1º Batalhão da Polícia Militar, um grupo de 11 policiais

militares do mesmo batalhão acompanhados de um informante encapuzado, deram início a

uma operação na favela Morro da Coroa, no Rio de Janeiro.

Por volta das 9h30, os policiais invadiram a casa de Nélis dos Santos a fim de obter

informações sobre a localização dos possíveis autores do assassinato do policial. Nélis

dormia no segundo andar de sua residência, local para onde se dirigiram quatro policiais e o

informante encapuzado, permanecendo o sargento Jorge e os familiares de Nelis no andar

térreo, enquanto os demais policiais aguardavam do lado de fora da casa. Como Nélis era

viciado em drogas, os policiais acreditavam que ele poderia fornecer as pistas que

procuravam sobre a morte do colega, pois acreditavam que o policial havia sido

assassinado por traficantes locais.

O grupo de policiais que abordou Nélis contava então com dois oficias caracterizados um 1º

tenente e um 2º tenente, um sargento, identificado por familiares como sargento Jorge P2,

que permaneceu conversando com o irmão de Nélis, um outro oficial cuja patente não se

pôde determinar e um homem trajando vestimenta semelhante a do exército (camuflada),

que portava uma arma de grosso calibre. O informante acompanhou os policiais que

dirigiram-se ao segundo andar. De acordo com o relato dos familiares, o sargento Jorge os

havia tranqüilizado, afirmando que “só queriam conversar”com Nélis - inclusive

surpreendendo o irmão da vítima ao demonstrar conhecer seu grau de parentesco, bem

como a igreja que este freqüentava.

Seguiu-se uma conversa entre o irmão de Nélis e o sargento quando, do andar de cima,

ouviu-se um forte barulho seguido de gritos da vítima. Seu irmão pediu então que não o

espancassem mais, pois toda a família estava presente, incluindo uma criança de cinco

anos de idade.

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O sargento subiu ao cômodo onde se encontrava Nélis e os outros quatro policiais, além do

informante. Pouco tempo depois, os policiais foram descendo um a um, advertindo os

familiares de que deveriam ir embora dali para não “serem prejudicados”.

Por fim, desceu o 1º tenente, ofegando bastante, dirigindo-se diretamente ao irmão da

vítima, pedindo “para dar um jeito”em Nélis. O irmão argumentou que estavam

providenciando uma clínica de recuperação para ele, mas que Nélis não queria se internar.

Diante desta resposta, retrucou dizendo que “agora ele (Nélis) vai querer ir para a clínica”.

Quando os policiais se retiraram, os familiares dirigiram-se até o quarto onde ocorreu a

tortura e encontraram Nélis desacordado no chão, sangrando muito, enrolado em um lençol.

Ao recuperar os sentidos, contou que foi brutalmente espancado pelos policiais, tendo estes

lhe pisoteado os órgãos genitais, aplicado-lhe eletrochoques, enforcamento, inserido um

cabo de vassoura em seu ânus, furado sua língua, dedos e nariz com um alicate, além de

desferir-lhe um golpe na cabeça com uma pesada balança de ferro. A sessão de tortura

durou aproximadamente três horas e resultou, além dos ferimentos por todo o corpo, na

destruição da bexiga e do canal retal de Nélis, reconstituídos posteriormente pela equipe de

médicos do Hospital Miguel Couto.

O Centro de Justiça Global reuniu-se com membros da Secretaria de Segurança Pública do

Estado do Rio de Janeiro que afirmaram sobre a suspensão das incursões policiais naquela

comunidade, a transferência da investigação para a Corregedoria Interna de Polícia e a

proteção da vítima e de seus familiares pela Coordenadoria de Recursos Especiais da

Polícia Civil (CORE).

A vítima reconheceu 5 policiais envolvidos na tortura, por meio de um álbum de fotografias

da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O auto de reconhecimento foi feito no hospital onde

Nélis estava internado e foi anexado ao inquérito que apura a responsabilidade dos policiais

agressores. Também foi anexado o depoimento da vítima, prestado no hospital, sob

autorização de Nélis, onde este confirma as três horas de tortura sob o poder dos policiais

do 1º Batalhão da Polícia Militar.

Nélis também foi submetido a exame de corpo de delito, feito pela perita Regina D’Onofre,

do Instituto de Criminalística Carlos Éboli. De acordo com o laudo da perita, ficou

constatada a caracterização de maus tratos, com ferimentos compatíveis à tortura.

Embora a delegada responsável pelas investigações, Valquíria Lucas, da 6ª Delegacia de

Polícia, tenha solicitado a prisão preventiva dos 11 policiais, o Tribunal de Justiça do Estado

do Rio de Janeiro negou o pedido sob alegação de “falta de provas”, mesmo tendo o

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Inquérito Policial Militar, instaurado por determinação do 1º BPM, concluído que os 11

policiais tiveram participação direta ou indireta na tortura de Nélis.

Ainda assim, conforme notícia publicada pela imprensa, a delegada afirmou que reiterará o

pedido de prisão quando tiver fatos novos a acrescentar.

Segundo informações fornecidas pelo Sub-Secretário, Paulo Baia, foi decretada a Prisão

Preventiva dos policiais envolvidos no fato acima narrado. Os policiais foram indiciados por

crime de Tortura. Até o fechamento do presente relatório os policiais encontravam-se

detidos. (página 41-2)

CASO TRÊS

E.A. M. e Ricardo Marques de Freitas – Manguinhos, Rio de Janeiro

No dia 04 de junho de 2004, aproximadamente às 12h, E. A. M., na companhia

de seu irmão, W. E. A. M., de 09 anos, alimentava seu cavalo em um campo de futebol

conhecido como “Coreia”, nas proximidades de sua casa.A Sra. Ana Cristina, tia de E., que

mora próximo ao campo de futebol, estava em casa quando ouviu um forte barulho de moto

e saiu para ver o que estava acontecendo, uma vez que da laje da sua casa pode-se ver

todo a extensão do campo de futebol.

Ela relatou para a família que avistou uma moto entrando no campo em alta velocidade com

dois homens, não fardados, e mais três carros da polícia, que vinham logo atrás. Um dos

policiais se aproximou de E. e atirou sem que o mesmo pudesse ao menos saber o que

estava acontecendo. Foram três tiros, um em cada braço e um no peito. Seu irmão, W. E.

M., 09 anos, não resistiu à cena que presenciou e desmaiou, despertando somente algumas

horas depois.

Neste momento, Ricardo, que também estava no campo de futebol “Coreia”soltando pipa

com seu irmão M. A., 08 anos, presenciou a chegada dos policiais e a execução de E.. Ele

ficou assustado com a cena e correu. A partir de então foi perseguido pelos mesmos

policiais à paisana que atiraram em E., que encurralaram-no em um beco. Eles ordenaram

que Ricardo ficasse de joelhos. Uma moradora, que assistia a tudo da porta da sua casa, foi

ameaçada para que entrasse e não contasse a ninguém o que estava presenciando.

Marcos, irmão de Ricardo, que estava voltando do trabalho, assistiu a cena do seu irmão

que, de joelhos e de costas para os policiais, pedia para que não o matassem. Sem dar

ouvidos ao que Ricardo falava, os policiais desferiram dois tiros nas suas costas.

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Diante do irmão da vítima, os policiais vestiram luvas cirúrgicas e colocaram uma arma na

mão de Ricardo já morto, e ameaçaram Marcos dizendo que se contassem algo do que

estava vendo seria o próximo da família a morrer.

Depois de ouvir os tiros, a família de E. correu para ver o que tinha ocorrido.

Muitas pessoas e também a mãe da vítima começaram a chamar os policiais de

assassinos. Um deles se aproximou da mãe de E. colocou uma arma próxima a sua cabeça

e efetuou vários disparos para o alto, tentando desta forma assustá-la. Após o tumulto, os

policiais levaram os corpos para o hospital de Bonsucesso, zona norte do Rio de Janeiro.

Marcos seguiu para a 21ª Delegacia de Polícia. No caminho, ele viu o carro da polícia em

que estavam os corpos, e acredita que os policiais estavam se certificando se os rapazes

estavam realmente mortos, pois notou marcas no rosto do irmão, que não eram visíveis no

momento dos disparos. Com medo, Marcos não se aproximou do carro, mas afirma que

este ficou pelo menos 20 minutos parado na rua.

Na delegacia ele contou tudo o que viu para o delegado, este tomou seu depoimento e

depois o colocou em uma sala para aguardar alguns procedimentos. Nessa sala entraram

dois policiais militares que o ameaçaram. Ao sair da sala, Marcos queixou-se ao delegado

sobre a ameaça que havia recebido dos policiais, ao que o delegado apenas afirmou: “…É

assim mesmo!”

E. A.. M. e Ricardo Marques de Freitas já chegaram sem vida ao hospital. Andréa, irmã de

E., conta que foi até o hospital, porque acreditava que o irmão ainda pudesse sobreviver.

No hospital, ela reconheceu os policiais que haviam levado seu irmão e disse que ouviu

quando eles comentaram que haviam matado a pessoa errada. Segundo Andréa, seu irmão

estava usando um corte e uma cor de cabelo que muitos rapazes na comunidade também

costumavam usar, fato que teria confundido os policiais, mas que certamente nunca

justificaria a abordagem utilizada por eles e a execução sumária efetuada.

Marcos foi até à Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil (CORE) e fez o

retrato falado dos policiais. Depois de efetivar a identificação, o depoente conta que policiais

que estavam presentes no dia do assassinato do seu irmão, têm ido constantemente até

seu trabalho na Fundação Oswaldo Cruz, e ficam rondando o local como se o estivessem

vigiando. Andréa, que trabalha no mesmo local, afirmou que também está sendo vigiada

pelos policiais.

E., tinha apenas 16 anos, morava com a irmã há 04 anos, havia estudado até a 1ª série do

ensino médio, e fazia trabalhos informais para ajudar a família. Ricardo tinha 26 anos,

trabalhava como gari comunitário, no momento em que foi executado estava uniformizado,

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deixou dois filhos, um de 03 meses e um de 07 anos, do seu primeiro casamento. A sua

atual esposa tem sustentado seu filho com o aluguel da casa em que eles moravam.

A ocorrência foi registrada na 21ª Delegacia de Polícia no mesmo dia, 04 de junho de 2004,

por ambas as famílias, porém, até a conclusão do presente relatório, Andréa e outras

testemunhas, assim como os familiares da segunda vítima, não foram chamados a

delegacia para prestar depoimento ou qualquer esclarecimento sobre a morte dos dois

rapazes.

Segundo informações fornecidas pelo delegado de polícia, Dr. Flávio Loureiro, existe um

inquérito policial, IP n° 021/04 132/2004, em andamento e algumas pessoas já foram

chamadas para prestar depoimento. Entretanto, as informações fornecidas acerca do

conteúdo do inquérito policial descrevem fatos muito diversos dos que foram descritos pelos

familiares das vítimas. Contrariando os depoimentos de moradores da comunidade, a linha

de investigação parte da idéia de que duas pessoas teriam roubado uma moto e entrado na

comunidade para matar os rapazes, não reconhecendo até o fechamento deste relatório,

que estas duas pessoas na motocicleta eram policiais à paisana e estavam acompanhadas

de outros policiais fardados em viaturas. (páginas 51, 52, 53) A favela é tomada pela guerra.

Uma guerra cruel que assassina, por sob o olhar conivente da sociedade, centenas, e até

milhares de pessoas por ano. Dessa forma nós dirá Negri, ainda buscando a relação da

guerra imperial que se instala com o estado de exceção e a narrativa do combate ao tráfico

que se embute como justificativa para vários desses conflitos: “(...) E no entanto essas

guerras não são assim tão metafóricas, pois, como no caso da guerra tradicional, envolvem

combates armados e força letal. Nessas guerras, é cada vez menor a diferença entre o

exterior e o interior, entre os conflitos externos e a segurança interna. Passamos, assim,

das invocações metafóricas e retóricas da guerra para guerras reais contra inimigos

indefinidos e imateriais (Negri, 2001:35).

O território já segregado da favela ganha formato de guerrilha, se constituindo num cenário

da guerra. Ir e vir não é um exercício ordinário ou as vezes nem mesmo possível.48 Há

barricadas nas ruas e vielas. Há mortos pelo chão das favelas.

48 “As pessoas perderam seu direito de ir e vir”por causa do medo imposto pelas incursões do caveirão. Jorge Ribeiro contou que já viu o blindado entrar atirando mirar no transformador de luz, deixando a comunidade sem luz. As crianças têm medo de ir ou voltar da escola, os comerciantes têm medo de abrir suas lojas. “Estamos sitiados!”,desabafou um morador.(Renajorp - http://www.renajorp.net/).

Ou ainda como aparece na pesquisa divulgada pela página da Universidade Federal Fluminense.Cerca de 44% das entrevistadas revelaram já terem sido impedidas de subir o morro e quase 50% informaram já terem sido impedidas de voltarem para suas casas.

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É assim que a guerra contorna as formas de produção da existência. A guerra impõe uma

ocupação de guerrilha que redefine as relação sociais da população e a sua relação com o

espaço. O controle do espaço é fundamental em qualquer guerra. É preciso delimitá-lo,

fechá-lo: sufocar o monstro que nunca se acaba.

Assim que, para Negri, na medida em que a autoridade dos Estados-nação vem declinando

a guerra vai se transformando num fenômeno geral, global e interminável (Negri, 2001:21).

III.5) O LADO ERRADO DA VIDA ERRADA

É o sentido de guerra, constituído na sua conceituação de biopoder, que se afirma aqui para

explicar também a violência com que esses jovens vão produzir suas relações sociais.

Não seria exagero afirmar que as gerações mais novas já nasceram e permaneceram, em

todo o curso de suas vidas, sob o domínio da guerra, como aparece na fala do Presidente

da Associação de Moradores: “Pergunte a qualquer criança de quatro anos que more aqui

no morro se já viu alguém ser assassinado. A maioria das respostas será positiva. As

crianças de nossa creche se divertem fazendo revólveres com biscoito ou então com

pedaços de tijolo. Eu não posso dizer que toda a culpa por isso seja do tráfico. (Filho,

Francisco Alves. Revista Isto É n. 1.426 – 29/01/97).

Assim que o lado mais perverso dessa dominação é quando a guerra do império produz,

entremeada à violência do Estado, uma brutalidade ainda maior com a disseminação de

atos violentos entre os próprios jovens e entre esses e as populações das favelas.

Não são poucos os relatos das crueldades que o tráfico de drogas infringe aos moradores,

como também são conhecidas as barbaridades com que vão tratar os considerados

inimigos na divisão do mercado das drogas ou mesmo para impor disciplina com corretivos

impostos aos próprios integrantes, com um grande número de mortos.

Segundo o Relatório da Pesquisa: “Caminhadas de crianças, adolescentes e jovens na rede

do tráfico de drogas no varejo do Rio de Janeiro, 2004-2006. (Coordenação Jailson de

Souza Silva - Observatório de Favelas, nov./2006) são extremamente altos os números de

parentes dos adolescentes e jovens, que participaram da pesquisa, mortos (com ou sem

envolvimento no tráfico) no período de decorrência da mesma.

Como aparece no trecho a seguir: “Outro dado que merece destaque são as menções à

morte e a prisão de diferentes membros da família. Como vimos ao longo deste relatório,

Dentre as que se declararam impedidos de subir o morro, 7% foram impedidas pela polícia, 14% pelo tráfico e 79% em razão dos tiroteios. (www.UFF.gov.br. Matéria: UFF divulga pesquisa realizada no morro do Vidigal, no Rio em 6/7/2007)

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um fator marcante na vida dos adolescentes e jovens empregados no tráfico é a

proximidade com a morte em vários níveis, inclusive no âmbito familiar. (Observatório das

Favelas, 2004-6:44).49 Na guerra a violência se dissemina e vira uma banalidade.

Aqui a guerra como regime de biopoder atinge sua expressão máxima e se reproduz,

enquanto força de extermínio, de forma veloz e indistinta. A espiral de violência perpetrada

pelos traficantes demonstra também a fragilidade de recursos que esses possuem para

enfrentar a guerra. O episódio narrado em Barcellos (2003)50, sobre a morte violentamente

bárbara de uma jovem grávida, executada ‘por engano’ e a repercussão de outros atos de

violência decorrentes disso, explicitam bem essa condição.51

Como analisar os inúmeros casos de barbaridade com que esses jovens instituem seu

comércio (produção) e suas vidas, senão entendendo que falamos de uma subjetividade

que se produz na guerra?

49 Assim, segundo a pesquisa, 104 parentes dos adolescentes e jovens que participaram da pesquisa foram mortos pelo tráfico, no que o autor classifica como ‘familiares mortos por envolvimento no tráfico’. Este dado vem seguido do número de familiares mortos pelo tráfico, apesar de não ter nenhum envolvimento com esta rede. Segundo o autor, então, 41 parentes dos traficantes foram mortos sem nenhum envolvimento com o tráfico. Ainda que não tenha conseguido distinguir exatamente o que poderia ser considerado como parentes com envolvimento com o tráfico e parentes sem envolvimento com o tráfico é, de qualquer forma, extremamente elevado o número total de 145 parentes dos traficantes mortos, como revela a pesquisa.

50 Considerei aqui o trabalho de reportagem investigativa realizado por Caco Barcellos durante os quatro anos em que pesquisou sobre o tráfico de drogas no Morro Santa Marta, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Ainda que considerando a falta de preocupação teórico-investigativa nos estudos de Barcellos, cujo resultado aparece de forma romanceada no livro “Abusado. O Dono do Morro Dona Marta”. Entendi que essas referências podiam ser consideradas quando retratavam acontecimentos comprovados em outras pesquisas, podendo dessa forma ser apanhado também como fonte para o entendimento da dinâmica do tráfico de drogas na realidade das favelas cariocas.

51 “Pressionado por todos os lados, Juliano buscou uma punição simplória e, ao mesmo tempo, cruel, para marcar o seu poder: a execução das funkeiras. Da cadeia mandou avisar a Henrique, por carta, que elas teriam um prazo para se redimir, uma semana para pagar o valor da carga que venderam ou devolver os dois quilos de pó ao Turano. Caso contrário, vencido o prazo, ele mandaria da cadeia a ordem de fuzilamento, por meio de uma senha de duas palavras.”(Barcellos, 2003:546) Mas, “Quem estava na casa era Berenice, uma jovem do Turano que tinha ido visitar a irmâ funkeira. Sem saber o motivo da invasão, ela foi arrastada pelos cabelos para fora do barraco. Em seguida foi levada pelo grupo para a área do lixão, perto da Pedra do Xangô. Surrada pelo caminho pediu ajuda aos moradores do morro. (...) Grávida de cinco meses obrigada a se ajoelhar, Berenice cruzou os dois braços sobre a barriga para se proteger. (...) Depois de Faquir, quase todos dispararam suas armas e erraram muitos tiros porque Berenice lutava, se debatia. (...) Quando o frente chegou ao lixão, Berenice ainda agonizava e já estava sendo enterrada para acabar de morrer mais depressa. (...) - Mas que é isso cara. Essa mulhé não tem nada a vê com isso, porra....Ela é a mulhé do Tonhão, caralho! Caralho! Tu ficou maluco” (Barcellos, 2003:549).

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139

No Império, a constituição da subjetividade - seja na produção, seja na guerra- é material

(produção imaterial). É a guerra que produz essas subjetividades. A subjetividade é uma

produção e também um domínio.

Assim, se os jovens do tráfico de drogas passam a maior parte do seu tempo empunhando

armas, tensionados pela possibilidade de um ataque da polícia ou dos grupos rivais, criando

estratégias para realizar a venda das drogas, mas sobretudo se esses jovens passam a

maior parte do seu tempo criando estratégias para estarem vivos, é essa materialidade que

vai subjugar todas as outras.

A morte assola esses jovens desde a hora que acordam até a hora que dormem e é o

ingrediente predominante na forma de instituição das suas vidas.

Quando o território da favela se torna um território ocupado, o que vai prevalecer nas

formas com que seus moradores vão instituir suas práticas de existência, invadindo e

contornando todas as formas de relacionamentos, é a política da guerra.

São assim as relações violentas, mas também corruptas (e, por isso mesmo, ambíguas)

que se instituem em relação ao Estado que se propagam e acabam também se impondo.

A dimensão de uma ‘rede organizada’ não tem nenhum outro sentido para esses jovens do

que a de estender as relações de guerra produzidas nas experiências com o Estado, no

âmbito da corrupção, da extorsão e da violência.

Como aparece na fala do presidente da Associação de Moradores do Andaraí sobre a ação

do Estado junto a esses grupos. “– Como eu sei disso? Os policiais aqui cobram caro.

Como no dia que mataram Ciro (antigo chefe do tráfico do morro do Andaraí) no início do

ano passado. Depois que o prenderam, os policiais pediram dinheiro para que ele fosse

solto. A turma do Ciro levou uma bolsa cheia. Segundo as pessoas que presenciaram o

fato, os policiais disseram que era pouco dinheiro para uma cabeça tão importante. E

acabaram matando o Ciro. Esses casos de policial pedindo dinheiro a traficante são

comuns. Filho, Francisco Alves. REVISTA ISTO É Nº1426 – 29/01/97).

É a necessidade de enfrentamento à repressão do Estado – quase sempre pela sua faceta

corrompida que obriga esses jovens a se armarem e transformam todas as relações em

relações de guerra.

Como produzir práticas de sobrevivência -seja com os moradores, seja com os outros

pontos de venda- que sejam de paz, em um tempo e um estado de guerra? A natureza

preponderante das relações que vão ser produzidas pelo tráfico se marcam assim também

no caráter de excepcionalidade.

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140

A vida das favelas está pautada nessa premissa da guerra.

Assim esse viés da brutalidade do tráfico não esvazia, ao contrário, fortalece as afirmações

que vimos produzindo até aqui: a guerra como um regime de biopoder.

A guerra imperial impõe um poder difuso e não-identificável, produzindo uma violência

generalizada que incide diretamente nos corpos e nas vidas dessas populações.

Da mesma forma que a própria relação com o Estado ganha matizes contraditória, que ora

passa pelo papel clássico de legitimidade do uso da força, outras pelas relações

corruptíveis com que esse estado se conformou, mas outras ainda se constroem nas teias

de estratégias de sobrevida que esses atores produzem numa guerra particular.

Logo quando chegamos ao Morro do Tuiuti (ainda que durante a aplicação dos

questionários e nas entrevistas esse episódio não tenha sido relatado, assim como nenhum

outro caso de violência por parte do tráfico) havia uma visível insatisfação por parte dos

moradores que se traduzia em rumores que por fim nos foi relatado da seguinte forma.

Cerca de três meses antes o tráfico havia executado um morador local muito bem quisto

entre a população, sob a alegação de que este teria ido dedurar os traficantes para a

Polícia. O mais inusitado da história, era porém, que quem havia ido contar aos traficantes

que o morador os havia dedurado teria sido o próprio policial. A história terminava, assim,

num reconhecimento (depois da pressão da comunidade) por parte do tráfico que havia

cometido um erro e, num sentido de se redimir, jurava o policial delator de morte.

A relação que se estabelece entre o tráfico e os moradores é uma relação fracionada por

muitos interesses, que se rearticulam continuamente a partir do lugar com que esses atores

se encontram. Quando o território da favela se torna um território ocupado, o que vai

prevalecer nas formas com que seus moradores vão instituir suas práticas de existência,

invadindo e contornando todas as formas de relacionamentos, é a política da guerra.

Dessa forma que o narcofavela não é apenas o lugar da resistência - biopolítica-, mas

também o lugar onde a guerra estrangula a possibilidade de vida, e o massacre violento

ocorre em todas as formas. Aqui a violência subjaz na sua forma mais capturada. Temos a

guerra imperial no seu sentido o mais restrito: guerra continua que conforma as práticas

cotidianas de grandes segmentos populacionais, onde o inimigo é cada vez mais indefinido.

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Negri desloca o sentido da guerra, como aparece na modernidade, para a guerra pós-

moderna. Para o autor agora a dominação se sustenta sobretudo em ações de guerra, mas

não mais contra inimigos externos nem guerras de soberania. A guerra agora é uma guerra

policial que visa à disciplina e o controle. É a guerra agora que garante as hierarquias

sociais, sobretudo em modelos tão esgarçados como os que vigeram todo esses séculos na

América Latina. O fenômeno narcofavela conjuga fatores antimoderno e modernos na sua

composição, expressão do modelo excludente de desenvolvimento econômico brasileiro

submergido no processo de globalização mundial. Assim é a guerra a principal forma de

manter o domínio econômico, social e político sobre essas populações.

III.6) A Guerra do Império

A guerra que se processa cotidianamente nas favelas cariocas não é a única expressão de

como o tráfico de drogas ilícitas tem servido como justificativa para as práticas de domínio

do império.

O objetivo desse item é afirmar (me valendo dos resultados da pesquisa coordenada por

Dowdney: 2005), que a guerra imperial se faz presente em diferentes países no mundo

hoje, em fenômenos muito semelhantes a esse do narcofavela que vivenciamos no Rio de

Janeiro, confirmando a hipótese de que se trata de formas com que esse encontro do local

com o global vai expressar os contornos das características de dominação vivenciadas por

essas regiões e das formas com que esse discurso das drogas vai ser apanhado -ainda que

em circunstâncias diferentes-, mas cumprindo o mesmo papel de legitimação da opressão

violenta dos Estados por sob segmentos empobrecidos, atingindo sobretudo os jovens. 53

52 Nas palavras de Negri: “O que é específico da nossa época, como indicamos anteriormente, é que a guerra deixou de ser o elemento final das sequências de poder - a força letal como último recurso- para se tornar o primeiro e fundamental elemento, constituindo a base da própria política. A soberania imperial não cria a ordem pondo fim à ‘guerra de cada um contra todos’, como pretendia Hobbes, e sim propondo um regime de administração disciplinar e controle político diretamente baseado em contínuas ações de guerra. Em outras palavra, a aplicação constante e coordenada da violencia torna-se condição necessária para o funcionamento da disciplina e do controle. Para que possa desempenhar este papel social e politico fundamental, a guerra deve ser capaz de desempenhar uma função constituinte ou reguladora: terá de tornar-se ao mesmo tempo uma atividade processual e uma atividade reguladora, de ordenação, criando e mantendo hierarquias sociais, uma forma de biopoder voltada para a promoção e a regulação da vida social (Negri, 2001:44-5).

53 Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, de 2002, demonstra que, nos últimos dez anos, jovens de 15 a 24 anos são as vítimas mais frequentes de homicídios em todo o mundo.

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Não pretendo, nessa afirmação, dar conta da totalidade do que sejam as expressões das

lutas que se travam hoje de forma contínua em todo o mundo, muito menos restringir esses

conflitos as expressões particulares que esses fenômenos ligados as drogas revelam.

Assim, sem nenhuma pretensão de alinhar o tráfico de drogas como fator determinante

nesses processos, busco apenas identificar como esse comércio aparece no capitalismo

cognitivo como elemento, ao mesmo tempo, mercantil e funcional as necessidades do

Império.

O inicio do estudo, realizado por Dowdney, começou com uma investigação sobre o tráfico

de drogas no Rio de Janeiro visando, inicialmente, a discutir “a história, a estrutura e a

organização das facções do tráfico de drogas, baseada nas favelas do Rio de Janeiro”

(Dowdney, 2005:13). A partir desse estudo preliminar é que se tenta chegar a uma

categorização para as crianças e jovens envolvidos em violência armada, refutando, após

algumas reflexões, tanto as aproximações que os designam como crianças-soldados, como

aquelas que tentam inserir esses jovens como delinqüentes. Para o autor, “apesar de

semelhança com ambas as categorias semânticas, definições como ‘ criança-soldado’ ou

‘delinqüente’ não representam corretamente o número crescente de crianças e jovens, no

Rio de Janeiro e no mundo, que participam de grupos armados organizados, atuando fora

de zonas de guerra tradicionalmente definidas” (Dowdney, 2005:14).

Instados a encontrar uma resposta para essa problemática conceitual é que, durante o

‘Seminário sobre crianças afetadas pela violência Armada Organizada’, realizado pelo Viva

Rio em 2002, ‘ os participantes internacionais concordaram sobre uma definição de trabalho

para os jovens e adolescentes que trabalham nas facções do tráfico de drogas, do Rio, e

para aquelas em grupos armados semelhantes de outros lugares. (idem )

Dessa forma a pesquisa consegue parametrar o tipo de fenômeno que se pretende estudar,

que inclui crianças e jovens até 18 anos (excetuando aqueles que se envolveram antes) em

atividades com algum tipo de remuneração ou não, e que, em função disso, faça uso de

armas leve e de pequeno porte (revólveres) possibilitando com isso ‘um certo nível de

dominação sobre a população (Dowdney, 2005:17) além de confrontos armados nos quais

armas de fogo são disparadas.

Usando a definição de trabalho com envolvimento de violência armada organizada54, o

estudo fará uma comparação entre os grupos armados selecionados em diferentes países,

54 Na pesquisa aparece a sigla COAV - crianças e jovens empregados, ou participando de outra forma, em Violência Armada Organizada, em que haja elementos de uma estrutura de comando e de poder sobre território , população ou recursos lociais (Dowedney, 2005:16).

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onde a pesquisa irá encontrar fenômenos semelhantes em pelo menos dez países. (Brasil,

Colombia, Equador, El Salvador, Honduras, Jamaica Nigéria, Filipinas, África do Sul, EUA

(Idem, 24-5.).

O que podemos identificar de similaridade em todos esses fenômenos é a perfilação de

elementos antimodernos e modernos na composição desses grupos em todo o mundo.

Assim que as decorrências de processos civilizatórios excludentes e violentos aparecem

como pano de fundo em todas as realidades onde a organizações armadas foram

encontradas.

Como aparece na análise do autor: (...) “esses grupos são específicos de certas áreas

dentro de centros urbanos, de zonas socioeconomicamente marginalizadas, diferentes das

cidades que as cercam, com nomes como favelas, comunas, colônias, distritos ou guetos.

As populações locais das áreas de estudo em Medellín, San Salvador, Lagos, Rio de

Janeiro, Guayaquil e Cidade do Cabo são originalmente compostas por uma alta

porcentagem de migrantes urbanos que chegam em busca de trabalho. A migração rápida

resultou em habitações não planejadas e muitas vezes provisórias, em locais que não eram

legalizados e careciam de infra-estrutura e urbana suficiente. Em muitos casos, essas

comunidades continuam sendo subdesenvolvidas hoje e diferenciadas dos bairros vizinhos,

devido a serviços públicos inadequados. Esses enclaves de pobreza são também

encontrados em Chicago, onde muitos bairros permanecem racialmente divididos e a

pobreza está concentrada nos guetos afro-americanos. Em North Lawndale, por exemplo, a

população é composta de 99% de afro-americanos e mais da metade das crianças da área

vivem na pobreza (Dowdney, 2005:27).

Mas o dado mais importante para a nossa hipótese é o de que quase a totalidade desses

grupos, mesmo aqueles que inicialmente não se originaram a partir do envolvimento na

criminalidade, têm hoje alguma vinculação com o tráfico de drogas, como aparece a seguir.

“Em nove dos dez países envolvidos no estudo, os grupos investigados estão atualmente

envolvidos no mercado ilícito do varejo de drogas nas áreas que dominam. Seis desses

grupos não estavam originalmente envolvidos no tráfico de drogas. A venda de drogas

ilícitas forneceu a muitos grupos a chance de se tornar autofinanciáveis. Além disso, como

os jovens que constituem o grosso das gangues de rua, das maras, facções do tráfico de

drogas, bandas delincuentes e area gangs possuem tipicamente pouca escolaridade e são

marginalizados socioeconomicamente, eles se tornaram uma força de trabalho pronta para

esse tipo de negócio “ (Dowdney, 2005:32).

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Dessa forma que o envolvimento na criminalidade, a partir do comércio mundial de drogas

ilícitas, é a forma como o império captura esses jovens, justificando a forma com que as

práticas do estado, sobretudo na sua força policial, vai aparecer frente a esses fenômenos.

Assim que em todos os países estudados aparece a presença do Estado. Em sete dos

países onde esses grupos foram estudados o Estado tem um papel indireto nas atividades

desses grupos e em três um papel direto; incluindo, na primeira situação, venda de armas,

propinas e extorsões. Como aparece no relatos abaixo: “Vender de volta drogas

confiscadas a membros de grupos por policiais foi relatado em três países. Em Manenberg,

moradores da comunidade entrevistados contaram terem visto policiais vendendo drogas

para membros de gangue. Membros de gangue em Chicago também relataram

envolvimento da polícia com o mercado de drogas ilícitas (Idem, 47).

Consideramos aqui como envolvimento indireto a corrupção e direto quando o estado

trabalha diretamente com um grupo armado ou apoiando indiretamente suas atividades,

como define o autor (Idem,46).

Ainda que a presença do estado, a partir da classificação do que o autor chama de

‘confrontos armados com forças do estado’, só apareça em quatro dos países estudados,

(entre eles Nigéria, Filipinas e Brasil), as conclusões do estudo apontam para: “Em todos,

ou na maioria dos estudos de caso, os estados são responsáveis por tentarem lidar com

grupos armados por meio principalmente de policiamento e políticas legislativas reativos e

repressivos. Na pior das hipóteses, isso inclui prisão arbitrária, tortura e execuções

sumárias. Os estados não podem ser considerados responsáveis pela violência que os

grupos armados investigados perpetram. Entretanto, seu foco sobre a repressão vem

fracassando, em muitos casos, na redução da presença dos grupos ou dos níveis de

violência em que estão envolvidos. Em alguns casos, táticas repressivas pioraram

consideravelmente o problema, na medida em que alguns grupos reagiram, tornando-se

cada vez mais organizados, armados e dispostos a enfrentar diretamente as forças do

Estado (Dowdney, 2005:69).

Dessa forma é que, resguardadas as especificidades das regiões, dos processo históricos

sofridos em seus desenvolvimentos, dos tipos de economia e do nível de consolidação de

governos democráticos aonde esse novo vetor das drogas vai se entremear, posso afirmar

que o mesmo acaba se transformando em elemento que reconfigura e aproxima todas

essas manifestações. O tráfico de drogas aparece, então, como elemento de resistência,

mas também como elemento que possibilita o domínio do capital, junto as populações

segregadas e empobrecidas.

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Dessa forma podemos identificar que todas as manifestações dessa violência armada

estudadas pelo autor se produzem em grupos cujos processos históricos implicaram em

características de vulnerabilidade social, (exclusão e subordinação econômica e política);

demonstrando como esses fenômenos repetem a violência histórica e institucionalizada das

relações de poder sob essas camadas populacionais.

A guerra aparece como elemento da ordem imperial, interferindo de forma direta na

constituição da política global. Diferente das guerras modernas - que se travavam como

conflitos entre as políticas soberanas dos Estados-nação - a guerra se transforma agora

num fenômeno de constituição da vida, como dirá Negri, não há como fugir do estado de

guerra no interior do Império.

Para Negri então: “Não se trata aqui de guerras isoladas, portanto, mas de um generalizado

estado de guerra global que de tal maneira torna menos distinta a diferença entre guerra e

paz que já não somos capazes de imaginar uma paz verdadeira ou de ter esperança nelas”

(Negri, 2001:23).

A guerra parece, então, como elemento da ordem imperial, interferindo de forma direta na

constituição da política global.

O saldo dessa guerra só nos revela assim o abismo social que nossa história produziu,

tornando inviável qualquer possibilidade de conciliação ou reabilitação desse processo.

Assim que o Brasil é hoje um país segregado, cuja segregação se abate de forma continua

e constante sobre as populações afro-brasileiras através das ações de extermínio

perpetradas pelos aparatos de Estado. Assim que a sociedade democrática brasileira se

sustenta (e a suas regras, normas, moral, leis) por sob uma guerra desumana e cruel por

sobre aqueles que são as figuras mais produtivas da nossa sociedade, o coração do

monstro, a alma da multidão: os jovens, negros e pobres que vivem nas favelas.

E são esses jovens que estão na linha de frente dessa resistência.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: abrindo novas possibilidades

O percurso transcorrido até aqui engloba várias experiências diferentes, seja na dimensão

específica dos momentos vivenciados em campo, seja nos caminhos teóricos que fui

experimentando para achar possibilidades conceituais que me ajudassem a inscrever o

tráfico de drogas nas favelas cariocas por sob uma perspectiva diferente daquela que vem

predominando na literatura acadêmica.

O percurso, portanto não se fez, em nenhuma possibilidade, de forma linear e num

crescente. Ao contrário, constrói-se a partir de muitas bifurcações e incertezas.

O acúmulo dessa trajetória se produziu nas possibilidades de intersecção entre os

estímulos provocados pela vivência prática e os encontros teóricos. E seria muito difícil,

consideradas as exigências de metodologia, afirmar qual desses elementos predomina no

resultado desses estudos que sistematizo nesta tese.

A possibilidade de um convívio intenso (antes mesmo da realização da pesquisa de campo)

provocado por diferentes trabalhos realizados nas favelas suscita, a priori, uma percepção

do espaço da venda das drogas e, sobretudo, dos jovens traficantes que vivem desse

comércio, muito diferente daquelas que aparecem nos discursos dominantes e

predominantes na sociedade.

Ao partilhar a vida cotidiana das favelas, as narrativas e práticas específicas que falam dos

modos de funcionamento do tráfico, chegam-me pela voz daqueles que estão submetidos a

essas dinâmicas, por dentro. São, assim, as vozes dos moradores que me apresentam a

problemática do tráfico na concretude do que isso significa na efetivação das suas vidas.

Dessa forma, essas narrativas relativizam a carga moral com que a questão da droga e de

suas variantes costuma inscrever-se na história, e revelam como essas práticas estão

entremeadas nas relações sociais que se produzem nas favelas.

O que me levou a privilegiar este espaço como interesse de estudo é, num primeiro

momento, a impressão de que ‘todas’ as relações sociais que se produzem nas favelas

guardam uma conexão com o tráfico de drogas, sendo algumas dessas experiências

emblemáticas nessa primeira aproximação empírica com o tema e que me induzem para

esse caminho.

Assim poderia citar, por exemplo, a vez que ouvi uma senhora, que reclamava de

problemas com a vizinhança, compor uma narrativa que se referia ao espaço do tráfico de

forma tão doméstica, que supus que ela falasse sobre o marido, quando na verdade ela

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falava de um ex-traficante já falecido. O mesmo aconteceu em outros depoimentos, como o

do rapaz que foi chamado pelo tráfico para dar explicação sobre um serviço que prestara de

forma insatisfatória a um outro morador; ou quando presenciei o momento em que uma

moradora dirigiu-se à associação de moradores para reclamar de que o marido a estava

agredindo, na expectativa de que o tráfico pudesse intervir e ajudá-la. Assim, longe de

desconsiderar o caráter autoritário que aparece em todas essas relações, o que me chama

a atenção é a capilaridade com que as mesmas aparecem nesse cotidiano e, por isso

mesmo, a infinidade de possibilidades que essas relações carregam.

A proximidade que o espaço determina e aproxima tudo, fez-me assistir, também, a uma

senhora brigando veementemente com um jovem, seu filho ou neto, enquanto o rapaz, de

cabeça baixa, tentava esconder a arma. E também estava na casa de uma moradora,

convidada para o almoço, quando os filhos chegaram para almoçar, cada um deles

carregando o seu ‘instrumentos de trabalho’, um fuzil.

Toda a precariedade dessas vidas e as transformações que o comércio de drogas ilícitas

ocasiona nas muitas interesessões em que se cruzam, se conjugam em muitas facetas

diferentes que cruzam e entrecruzam nas estratégias de vida dessas populações.

As relações que esse espaço produz são assim tão múltiplas e contraditórias que levam

muitos desses jovens traficantes – que enfrentam cotidianamente a letalidade do aparato

violento do Estado que deixa milhares de vítimas por ano – a se mostrarem intimidados

pelos pais, dos quais ocultam as suas atividades ilegais.

Desde a primeira tentativa de aproximação teórica com esse espaço, conheci os limites do

instrumental teórico com o qual teria de trabalhar. Se a teoria social marxiana me ajuda a

identificar a favela como resultado do modelo excludente e segregador que se institui nos

processos de desenvolvimento do capitalismo no Brasil e pode justificar, inclusive, que

esses jovens construam alternativas de sobrevivência e que encontrem no tráfico uma

alternativa válida conformada exatamente na falta de qualquer outra possibilidade, a teoria

social marxiana não consegue, por outro lado, explicar a extensão e a variedade das

relações que se constroem no dia-a-dia.

Por isso, já no percurso do mestrado, identifiquei uma complexidade na instituição do

fenômeno do tráfico de drogas que já ali provocou um primeiro deslocamento das

referências com as quais iniciei minha pesquisa.

No mestrado, consegui apenas intuir caminhos novos, mas duas questões incitaram-me a

buscar novos ângulos para tratar o problema e provocaram um primeiro exercício de

experimentação teórica.

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Primeiro, a exuberância de vida que, na antiface da pobreza, identifico nas favelas e discuto

na dissertação de mestrado: “A possibilidade de desvelar a riqueza do universo das vidas

que se produzem nas favelas; as desesperanças permeadas de ilusões, as dificuldades

permeadas de potencialidades, a falta de horizonte permeada ao fluir constante das

manifestações festivas, do senso-comum permeado ao bom-senso do pragmatismo no

equacionamento de suas vidas. (...) Como não se contagiar com manifestações sempre tão

intensas que emanam das favelas? Como entender e dar sentido a essa gama contraditória

de manifestações? Como conciliar, para entender e explicar, a miserabilidade de famílias

inteiras vivendo em pequenos cubículos com esgotos passando dentro de suas casas,

crianças infestadas de vermes, que morrem desnutridas e que excluem de qualquer poesia

essa realidade, com a exuberância de vida que (des)cobre-se nas favelas?

Foram inúmeros os momentos, nas mais diferentes formas, que esse contato se fez.

Permeado por trabalhos variados, que me colocava frente a essa população de forma

diversa, construí anos de contato direto com as mais surpreendentes formas que a vida

assume. Como ignorar a dimensão de uma construção coletiva, do estabelecimento de

redes de solidariedade – necessárias à sobrevivência diária – que fazem desse espaço

uma profusão de riqueza cultural construída no tecer coletivo de suas vidas.

Como não instigar-se com uma forma que, na busca pela sobrevivência, insiste em

renascer carregada de criatividade, de musicalidade, de profusão de gestos e de novos

entendimentos do mundo?”55

A segunda das duas questões que, ainda no mestrado, incitaram-me a buscar novos

ângulos para tratar o problema do tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro, e

provocaram um primeiro exercício de experimentação teórica aparece, de modo mais

específico, na identificação das formas mediante as quais o tráfico pode ir-se conectando

às práticas de sobrevivência da população inseridas nesse campo cultural das favelas. Isso

ficou anotado também em minha dissertação de mestrado:

“Na medida em que a pesquisa avança, identifico de forma ainda mais nítida o narcotráfico

como um elemento de construção importante no estabelecimento do entendimento do

mundo daquelas pessoas, permeando suas escolhas, idéias, modelos. O narcotráfico se faz

presente em quase todos os espaços da construção cotidiana, definindo códigos e

comportamentos.

Será através da questão ideológica – do exercício de poder do narcotráfico através da

55

Pimentel, Maria Elisa da Silva. Narcotráfico, cultura e produção de subjetividades nas sociedades pós-modernas. Dissertação apresentada na Faculdade de Educação da

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legitimação e das formas com que os moradores consolidam no seu cotidiano essa relação,

que irei pautar minha pesquisa e delimitar os contornos para tratá-la teoricamente.

Partindo da preocupação de buscar entender como se constrói a subjetividade dos sujeitos

sociais na sua realidade imediata e, nas suas singularidades, é que termino por deparar-me

com autores que discutem a sociedade contemporânea. Apesar de guardar aspectos

próprios, característicos de uma sociedade economicamente dependente, que demarcam

grandes atrasos sociais e culturais, é na dimensão mais pós-moderna que irei encontrar os

principais traços da construção subjetiva dos jovens atores sociais que compõem o

narcotráfico.

A mudança nessas premissas, com a incorporação de novas categorias que me levem a

pensar sobre a realidade, se constituíram assim em um novo referencial teórico.

E, por último, vale lembrar que, “em última instância”, essas mudanças, seja da constituição

do sujeito social , seja do surgimento de uma teoria que pretenda dar conta dessa realidade,

se imbricam, inevitavelmente, nas transformações concretas pela qual passa o modelo de

ordenação da produção econômica no mundo, e da qual, as referências marxianas

continuam sendo a base para explicação, ainda que essa afirmação me leve a um paradoxo

inevitável de negação e afirmação do marxismo” (Idem, 9).

O percurso do mestrado deixou-me, como saldo, o desafio de encontrar um referencial

teórico que recolocasse – em bases consistentes – as problemáticas levantadas em campo,

sem perder com isso a possibilidade fundamental, sempre presente, de inscrever essa

realidade a partir da perspectiva de uma teoria crítica.

Para isso, tive de transpor os limites impostos pelo marxismo tentando buscar um corpo

teórico que desse conta de atualizar os deslocamentos que se produzem na realidade. As

referências fundamentais que encontrei naquele momento se situam no campo (difuso e

impreciso) da chamada pós-modernidade, a partir dos conceitos de consumo e de uma

nova perspectiva na possibilidade de síntese entre a estrutura econômica e a

superestrutura. O que também ficou anotado na dissertação de mestrado: “Ao prevalecerem

na minha análise, não mais os conceitos citados anteriormente do marxismo gramsciano e,

sim, essas novas inferências da discussão ideológica, onde a contra-ideologia de Gramsci

não tem mais lugar (já que não se trata mais de entender a construção ideológica em uma

fórmula onde a ideologia dominante é repassada, ainda que dialéticamente, para as classes

subalternas, e sim numa tessitura de referências que chegam de toda parte, portanto de

parte alguma e que, serão sempre internalizadas pelos sujeitos de forma singular, única), é

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Rio de Janeiro, 2000, p. 8.

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que me darei conta do rompimento efetuado com o marxismo. E, principalmente quando,

na discussão de fundo, essas referências negam, indubitavelmente, a premissa do

determinismo econômico do marxismo, mesmo aquele apregoado através de seu autor

mais dialético, e diria até relativista desse determinismo, como é Gramsci.

Fala-se agora em um novo determinante cultural, que desconsidera de forma absoluta,

numa sociedade que tende cada vez mais à virtualidade, à possibilidade de explicação da

realidade, ainda que em “última instância” pelos fatores econômicos” (Idem, 12).

Será assim, a partir de um novo percurso aberto com o doutorado, que pude encontrar uma

referência que me apresenta um corpo teórico capaz de apanhar a realidade de forma

totalizante e articulada, mas sobretudo que consegue atualizar a dimensão crítico-

revolucionária do marxismo.

Coerentemente, a referência que se apresenta para mim só pode ter como origem a teoria

marxiana, mas, sobretudo, emerge como nova teoria, a partir de uma revisão conceitual

que se constrói por dentro das lutas sociais que demarcam a história de enfrentamentos e

resistência na construção do mundo pela classe trabalhadora no último século. E

encontrarei essas referências no campo de pensamento da escola operaísta, referências

conceituais que me possibilitam avançar e ressignificar muitas das questões que se

apresentaram insolúveis, no momento do mestrado.

O primeiro e fundamental conceito que Negri me oferece para isso é o conceito de pobre e,

conseqüentemente, a expressão revolucionária que esse adquire com o conceito de

multidão.

Contudo, como dissemos, a referência operaísta é uma referência que se constrói

rompendo o corpo teórico marxiano em muitos dos seus conceitos, e preserva a capacidade

de explicação da realidade a partir da elucidação da dinâmica valorativa do capital, sem

perder de vista o potencial transformador daquele que é o produtor do mundo. O conceito

de pobre – que por si só já re-situaria as manifestações produtivas distinguidas nas favelas

– só ganha sentido quando podemos refazer toda a base de entendimento das relações

produtivas do mundo e identificar o pobre como o principal sujeito produtor desse mundo: a

nova figura produtiva.

Para isso é preciso entender todo o deslocamento sofrido pela produção econômica da

sociedade contemporânea marcada pela recusa ao trabalho com que os operários vão

derrotar o modelo regulador das sociedades disciplinares industriais e que faz emergir um

novo estatuto para o trabalho, o paradigma hegemônico do trabalho imaterial.

Só, portanto, ao remontar a lógica do capitalismo cognitivo, é que pude entender que a

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profusão de vida encontrada nas favelas tenha adquirido sentido ainda mais central, pois

são essas as formas de vida que, hoje, produzem valor. A cultura aparece assim como um

novo paradigma do trabalho e as favelas como “reservatórios de mobilização produtiva”.

Dessa forma, pude também começar a olhar o espaço do tráfico de drogas na venda no

varejo nas favelas como um espaço que produz novas subjetividades. De novo a referência

negriana me permite superar os limites e identificar a nova síntese que o capitalismo

cognitivo produz. A subjetividade deixa de ter sentido ideológico e aparece como produção

material. O processo produtivo do capitalismo cognitivo baseado no trabalho imaterial se

realiza pelas qualidades subjetivas do trabalhador. São agora as suas habilidades

intelectuais e afetivas que efetivam o ciclo produtivo. São assim formas de vida que

dinamizam a produção. Mas são sobretudo aquelas formas de vida instadas na

precariedade que produzem as inovações que garantem a circulação e a valorização do

capital.

As práticas necessárias para o equacionamento das suas vidas, mas sobretudo aquelas

demandadas pelo fato de estarem submetidos a repressão policial que se abate sobre

esses jovens traficantes (mas também por sobre toda a população das favelas) – a vida no

seu estado extremo de sobrevida e resistência – se torna extremamente produtiva.

Dessa forma essas práticas de vida produzem uma estética – suas maneiras de ver a vida,

de protestar sua vida – que é capitalizado pelo capital.

Achamos aqui o espaço do tráfico de drogas como condensação dos reservatórios de

mobilização produtiva existentes nas favelas. O espaço do tráfico se torna extremamente

mercantilizável. As formas de vida impostas a esses jovens vendem de tudo: livros, filmes,

programas de tv, documentários etc.

O mundo que esses jovens produzem se torna extremamente valorativo para o capital. Mas,

é aqui também que a contradição desse processo se explicita.

Pois se o capital pode (até) capturar a estética que esses jovens produzem, não pode

esvaziar o sentido de resistência que ela carrega, pois é justamente esse o sentido que o

torna rentável.

A forma de capturar esses jovens foge da dinâmica produtiva do capital, que se fazia antes

por dentro do das fábricas e se irradiava no paradigma disciplinar. Quando não é mais essa

a disciplina que garante a produção, também não são mais os instrumentos de controle que

ela gera que garantem o domínio. A esses instrumentos devem-se incorporar novas formas

de controle social. É aqui que a guerra aparece como forma de controle biopolítico. A guerra

se abate sobre essas populações, mas sobretudo sobre os jovens integrantes do tráfico,

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como a principal forma de controle da vida. Aqui outro paradoxo se abre, pois se a guerra

produz a morte produz também a vida. Pois são justamente as formas de vida que

emergem da necessidade desse enfrentamento que produzem a estética revolucionária do

tráfico.

Assim, a intuição inicial de que todas as relações sociais produzidas nas favelas guardavam

uma conexão com o tráfico ganhou sentido. A rede produtiva que o tráfico dinamiza passa

por toda a extensão de vida da favela, mobilizando uma rede produtiva baseada no trabalho

comum: um novo saber que circula na sociabilidade. Mas também a percepção inicial da

capilaridade do tráfico se explica na dimensão da guerra que se instala nesses territórios. A

política da guerra que se instala nas favelas interfere também na construção das formas de

vida dos seus moradores. Todos estão submetidos ao regime de controle do biopoder.

Mas quem, concretamente, se coloca na linha de frente dessa resistência são esses jovens,

seja na sua potência criativa, seja nos combates armados contra o poder de polícia do

Império. Podemos agora, então, com embasamento suficiente, afirmar a premissa inicial

com que construímos esse estudo: fazer ascender o espaço das vendas de drogas ilícitas e

os seus traficantes a nova forma de luta na resistência dos trabalhadores.

Para a pesquisa futura

Mas se esse resultado representa, por um lado, o êxito no exercício de síntese que se vale

de um referencial que permite superar alguns dos limites apresentados anteriormente na

leitura do espaço do tráfico, por outro, inevitavelmente, no mesmo momento, também nos

abre novas lacunas. A possibilidade de entender o tráfico como espaço de resistência

precisa voltar agora como objeto de uma nova pesquisa que precise as formas mediante as

quais essa produção e essa resistência se constroem no dia a dia das favelas. Mas,

sobretudo, a pesquisa futura terá de conformar as possibilidades de fortalecer as lutas que

realmente tornem possíveis novas vidas para esses jovens. O que queremos é desconstruir

todo o discurso que sedimenta a violência da qual esses jovens são vitimados, ainda que

entendendo que as possibilidades históricas que podem se construir para transformar essa

realidade não se constitui apenas nos espaços de pesquisa, mas precisam ganhar a

dimensão concreta das lutas cotidianas que já vem sendo travadas por essas populações.

Aqui reafirmamos a necessidade da produção do conhecimento se deslocar da academia

para a periferia. Novos espaços de construção do saber e da luta que (independente da

nossa capacidade de sistematizá-los) já estão em curso e precisam assim ser fortalecidos.

Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

(IPPUR/UFRJ) identificou 881 conflitos sociais na cidade entre 1993 e 2003, o que perfaz

uma média de 80 conflitos por ano e mais de seis por mês.

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De acordo com o levantamento a maior parte dos conflitos ocorreram na área de segurança.

O mapeamento mostra ainda que os conflitos urbanos ocorreram principalmente em regiões

de favelas ou em suas imediações.

Aqui, o debate trazido pela criminologia crítica se coloca de forma fundamental, pois ajuda a

produzir ações que levem a mudanças nesse enfrentamento das forças do Império. Todas

as pesquisas e discussões que revelem a violência com que o aparato do Estado tem se

efetuado nessas áreas ou aquelas que desmontam a concepção demonizante das drogas e

possibilitam colocar em questão a sua ilegalidade, ajudam a produzir novos discursos onde

a sociedade não mais culpabilize e, portanto , legitime as ações que vem sendo perpetradas

a essas populações há séculos.

Também aqui precisamos indicar que a ampliação das políticas sociais que apontam para a

universalização dos direitos (que não passe mais pela relação salarial e sim pela renda

universal) em uma proposta de democratização radical da sociedade a partir do

fortalecimento do Governo popular-democrático instalado no Brasil em 2002, é fundamental

para sairmos dos impasses que essa questão nos coloca.

Portanto, concluímos este trabalho identificando as necessidades de enfrentamentos, seja

no campo teórico, seja no campo das lutas, que essa temática ainda deixa em aberto, mas

que já consegue apontar possibilidades novas nesses enfrentamentos, e concluo com as

palavras de Negri: "O capitalismo mundial sabe unificar e articular seus instrumentos de

domínio e de repressão: já é hora de também a multidão, ou seja, a nova figura subjetiva

que o proletariado forjou para a própria expressão constituinte, dê universalidade à análise

revolucionária” (Negri, 2005:17).

Em nenhum momento, esse trabalho objetivou defender o tráfico de drogas,

independentemente de qualquer uma das questões morais que as drogas carregam na sua

definição. Ao contrário, o que busquei foi a possibilidade de anunciar esse fenômeno por um

viés que abrisse chances de entendimento que ajudem a tirar da guerra esses meninos e

salvem-lhes a vida.

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