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O julgamento popular e a (im)parcialidade do julgamento: apontamentos

críticos acerca da função de jurado no sistema jurídico brasileiro

Sophia Duarte Porto1

Gregorio Camargo d’Ivanenko2

1 INTRODUÇÃO

O processo de julgamento popular é um dos traços mais

controvertidos do direito penal e processual penal no Brasil. A temática

invariavelmente envolvida nos casos sujeitos à competência do Tribunal de

Júri é, hoje, produto altamente vendável em toda a mídia. A tragédia privada

é escancarada nos meios de comunicação e invade o espaço público sem

qualquer escrúpulo, colocando em evidência aquela conduta que ataca o

bem jurídico mais caro em um estado que se pretende democrático de

direitos: a vida.

Por conta disso, é relevante se questionar qual o papel do Tribunal

do Júri hoje? Como ele funciona? E, principalmente, se o julgamento popular

é, de fato, imparcial?

Tais perguntas movem o presente estudo.

1 Estudante regularmente matriculada na 10ª fase do curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis - FCSF, mantida pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC, com interesse nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal e Ética no Jornalismo. E-mail: [email protected]. 2 Estudante regularmente matriculado na 10ª fase do curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis - FCSF, mantida pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC, com interesse nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal e Criminologia. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/2114500999854180> E-mail: [email protected].

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Desvendar qual o papel do júri na sociedade brasileira e investigar

a (im)parcialidade do veredicto popular servirá para apontar, ao final, que o

processo dos casos submetidos à apreciação pelo Tribunal do Júri colocam o

jurado em um local de extrema parcialidade, o que transforma um instituto de

abertura democrática em um mero procedimento e comprovação de uma

culpa pré-determinada.

2 O TRIBUNAL DO JÚRI

Diz-se que o julgamento popular é prática que remonta séculos

atrás. As origens da instituição do Tribunal do Júri são intensamente

debatidas, buscando cada autor demonstrar a utilização do método nas

sociedades mais antigas. Tucci (1999 apud RANGEL, 2007, p. 41) destaca o

surgimento do tribunal popular – que não se assemelha propriamente ao

atual Tribunal do Júri, mas que pode ser tratado como seu antecedente – nos

dikastas, na Hilieia ou no Aerópago gregos. Além de fundamentar o

pensamento de Tucci, para Barbosa (1976 apud MARQUES, 2009, p. 19), o

exercício do julgamento popular já podia ser encontrado “junto aos teutões,

aos eslavos, aos normandos ou aos dinamarqueses”.

Todavia, o Tribunal do Júri, como instituição surge por volta do ano

1215, na Inglaterra, “depois que o Concílio de Latrão aboliu as ordálias e os

juízos de Deus” (MAMELUQUE, 2009, p. 33), com o seguinte preceito:

“Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e

liberdades, senão em virtude de julgamento de seus pares, segundo as leis

do país” (NUCCI, 2008, p. 42).

Já após 1789, na França, o instituto surge como forma de repúdio

à monarquia absolutista da época (CALVO FILHO, 2009, p. 31), já que o

judiciário não se mostrava independente do regime, colocando à prova a

imparcialidade das decisões proferidas pelos magistrados. Era o momento

histórico de combate à opressão. Revelava-se como um ideal de democracia

e liberdade a ser difundido por toda a Europa (NUCCI, 2008, p. 42). Estava

nas mãos do povo a responsabilidade de emanar justas sentenças,

destituídas dos interesses do regime monarquista.

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No Brasil, o júri nasce da Lei de 18 de julho de 1822, destinado

unicamente a julgar os crimes de opinião ou de imprensa, cabendo desta

decisão apelação ao Príncipe Regente (MARQUES, 2009, p. 23). Após

repetidas alterações constitucionais, foi mantido na Constituição Federal de

1988, em seu art. 5o, XXXVIII, a qual assegurou a competência do júri para o

julgamento de crimes dolosos contra a vida. Veio na mesma lógica histórica e

democrática, a fim de que os delitos que afrontassem o mais importante dos

bens jurídicos tutelados – a vida – fossem submetidos à apreciação e

julgamento pela própria sociedade.

Realiza-se aqui apenas um breve recorte histórico acerca do

instituto. Não se pretende, no presente trabalho, buscar as origens do

julgamento popular, até porque o objeto central deste estudo é, quase em

sua totalidade, atual, e, conforme ensina Carvalho (2011, p. 10), “é sempre

falho olhar para o passado e interpretá-lo com as ferramentas intelectuais

que temos na atualidade; porque se torna um jogo de adivinha

indemonstrável o exercício de descoberta da ‘verdadeira origem’.

A Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988,

consagrou em seu art. 5o, inc. XXXVIII, o Tribunal do Júri como parte dos

direitos e garantias fundamentais do cidadão, sendo a ele assegurados a

plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a

competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Whitacker (1904 apud ALMEIDA, 1999, p. 17), leciona que “Júri é

o tribunal em que cidadãos previamente alistados, sorteados e, afinal,

escolhidos, em sua consciência e sob juramento, decidem, de fato, sobre a

culpabilidade ou não dos acusados, na generalidade das infrações penais”.

O Tribunal do Júri é composto pela figura de um magistrado,

togado, chamado de juiz presidente, e de vinte e cinco cidadãos do povo, os

jurados. Dentre estes, serão sorteados, a cada julgamento, sete jurados para

compor o Conselho de Sentença, segundo preconiza o art. 4473 do CPP

(LOPES JR., 2012, p. 1026).

3 Art. 447. O Tribunal do Júri é composto por 1 (um) juiz togado, seu presidente e por 25 (vinte e cinco) jurados que serão sorteados dentre os alistados, 7 (sete) dos quais constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento. (BRASIL, 1941).

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Em que pese não esteja elencado no rol do art. 92 4 da

Constituição Federal, o Júri é considerado pela maior parte da doutrina como

órgão do Poder Judiciário, tendo em vista que o próprio ordenamento jurídico

acolhe o instituto em diversos outros dispositivos (NUCCI, 2011, p. 42).

Ademais, para o autor, “Trata-se de um órgão especial do Poder Judiciário,

que assegura a participação popular direta nas suas decisões de caráter

jurisdicional” (NUCCI, 2011, p. 43).

Para Silva (2005 apud CAMPOS, 2010, p. 4), o Tribunal do Júri

possui natureza jurídica dúplice, ou seja, é “a garantia, ou o direito

instrumental, destinada a tutelar um direito principal, que é o da liberdade, e

também o direito coletivo, social, da própria comunidade, de julgar seus

infratores”.

Em contrapartida, Nucci (2011, p. 36) entende que o Tribunal do

Júri não pode ser considerado garantia individual essencial, mas garantia

humana fundamental formal5. Para o autor, é “garantia ao devido processo

legal para o julgamento dos autores de crimes dolosos contra a vida, além

dos demais delitos conexos, na forma da lei”, e não uma garantia à liberdade

do acusado, já que

Jamais o constituinte iria criar um tribunal que garantisse a liberdade do autor de um crime contra a vida humana. Esta é direito fundamental essencial e quem contra tal direito se voltou não merece um tribunal “especial”, como se fosse uma autêntica “proteção”. Se assim fosse, um simples autor de furto mereceria maior proteção, pois seu delito é menos relevante. (NUCCI, 2011, p. 37, grifo do autor).

Porém, o autor também considera o Tribunal do Júri como direito

humano fundamental formal quando traz a participação do povo nos

julgamentos do Poder Judiciário, já que é “praticamente a única instituição a

4 Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário: [...]. (BRASIL, 1988). 5 O autor divide as garantias humanas fundamentais em formais e materiais. Materiais são “as salvaguardas instituídas pelo Estado para fazer valer um direito humano fundamental. Portanto, sem elas, o direito individual pode perecer.” Já as formais são aquelas que constam do texto Constitucional, mas que, caso dali extraídas, não ocorreria o perecimento do direito humano fundamental material. O autor situa que em diversos países, o Tribunal do Júri constitui garantia humana fundamental material, tendo em vista que os magistrados são pessoas eleitas pelo povo e sujeitas à parcialidade. Portanto, no caso de julgamento de acusado que apoiou politicamente a candidatura de magistrado oponente, a invocação do julgamento popular viria para garantir a justiça imparcial, “exigência nacionalmente reclamada por nações democráticas.” (NUCCI, 2011, p. 36 – 37).

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funcionar com regularidade, permitindo que qualquer cidadão tome parte dos

assuntos de um dos Poderes da República” (NUCCI, 2011, p. 38).

Logo, invariavelmente, a participação popular nos julgamentos

pelo Poder Judiciário se reveste de um viés democrático. Ao lado do

plebiscito e do referendo, o Júri se caracteriza como instrumento de

participação direta do povo nas decisões políticas (CAMPOS, 2010, p. 5).

Entretanto, para Lopes Jr. (2012, p. 1049), “o fato de sete jurados,

aleatoriamente escolhidos, participarem de um julgamento é uma leitura

bastante reducionista do que seja democracia”. E continua “Democracia é

algo muito mais complexo para ser reduzido na sua dimensão meramente

formal-representativa. Seu maior valor está na dimensão substancial,

enquanto sistema político-cultural que valoriza o indivíduo em todo feixe de

relações que ele mantém com o Estado e com outros indivíduos.”

Já Castro (1999 apud MAMELUQUE, 2008, p. 35), entende o júri

como instrumento de controle social, na medida em que cumpre o “papel de

facilitador da participação popular na administração da justiça e a atenuação

da dimensão ideológica impressa pelo grupo dominante, posto que a justiça

será concebida a partir do sentimento de justiça dos jurados”.

O Tribunal do Júri, portanto, possui críticos e defensores, e

continua sendo objeto de grandes discussões. Todavia, pelo fato de estar

inserido em cláusula pétrea da Constituição Federal, para Marques (2009, p.

26), resta vencido “o debate em torno da permanência ou não do Tribunal do

Júri no direito brasileiro”. Salienta o autor, entretanto, que tal condição não

impede sejam realizadas ponderações “em torno da melhor forma de se

proceder aos julgamentos”.

Baseando-se na característica de garantia humana fundamental do

instituto, bem como na possibilidade dos jurados tomarem a sua decisão sem

a necessidade de fundamentação, sujeitando-se a influências externas, dá-se

início ao estudo proposto neste trabalho.

3 O JURADO E A (IM)PARCIALIDADE DO VEREDICTO

A palavra jurado é derivada do latim, juratus (afirmado com

juramento) (DE PLÁCIDO E SILVA, 2010, p. 466), referindo-se à pessoa do

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povo chamada ao Tribunal do Júri para funcionar como julgadora no caso de

imputações “de crimes dolosos contra a vida tentados ou consumados, e

eventuais delitos a eles conexos” (CAMPOS, 2010, p. 333). Ou seja, os

jurados são pessoas do povo investidas momentaneamente de função

jurisdicional.

Somente assumirá a condição de jurado depois de convocado pelo

presidente do Tribunal do Júri a compor o Conselho de Sentença e prestar o

juramento previsto no art. 472 do Código de Processo Penal (MARQUES,

2009, p. 101).

Portanto, a grande característica do Tribunal do Júri é a

participação popular, o julgamento colegiado por representantes do povo. A

legitimidade do chamamento do povo ao julgamento de um delito é

controversa. Muito se critica a ausência de participação popular nos quadros

do Poder Judiciário, já que nos Poderes Legislativo e Executivo, a

representatividade se dá de forma eletiva.

Para alguns a possibilidade de decisão direta da sociedade dá ao

Tribunal do Júri amplo viés democrático, conforme já apontado neste

trabalho, para outros, como fruto de uma sociedade excludente e díspar, a

decisão, nesse caso, sempre será fruto das percepções seletivas.

De se ressaltar a visão de Pacelli de Oliveira (2011, p. 643), para

quem, ainda que reflexo de uma sociedade desigual, a simples abertura do

Judiciário para que o cidadão decida diretamente o destino do seu par é

louvável e democrática. Porém, continua o autor lembrando que “nem sempre

a democracia esteve e estará a serviço do bem comum, ao menos quando

aferida simplesmente pelo critério da maioria”.

No pensamento crítico de Rangel (2007, p. 95-96, grifo do autor),

os jurados desempenham a função de eliminar do sistema social os

indesejáveis, e não aquela “como se diz e pensa na doutrina tradicional de

julgar seus pares”. Tratando o povo como “sociedade organizada e incluída

no sistema de um mundo globalizado e excludente”, o autor assevera que o

júri é verdadeira “fábrica produtora de condenação e encarceramento de

indivíduos” pois o julgamento dos jurados se dá buscando “aquilo que é bom

para a camada social a que pertencem”.

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E o posicionamento do autor vem aparado justamente na forma

como que – na grande maioria – ocorre o alistamento dos jurados: o juiz

presidente do tribunal do júri requisita às autoridades locais, órgãos de classe

e de bairros, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em

geral, universidades, sindicatos, repartições públicas, etc. “a indicação de

pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado” (GRECO

FILHO, 2010, p. 400).

Estas condições vêm previstas no art. 436 do CPP, que dispõe: “O

serviço do júri é obrigatório. O alistamento compreenderá os cidadãos

maiores de 18 (dezoito) anos de notória idoneidade” (BRASIL, 1941).

Portanto, geralmente o grupo de pessoas alistadas para o

desempenho da função de jurado advém de um seleto grupo da sociedade,

que, por sua vez, não inclui as vítimas 6 do direito penal. Ademais, a

legislação especifica como requisito a notória idoneidade do cidadão.

Acerca do assunto, Streck (2001, p. 98-100), com propriedade,

pondera:

O Código de Processo Penal, como se viu, "especifica" quem pode e quem não pode ser jurado. A linha norteadora é a de que os jurados devam ser cidadãos de notória idoneidade. Mas o que são cidadãos de notória idoneidade? Como na maioria das palavras da lei, está-se diante do que se chama de vagueza ambigüidade. Um termo é vago nos casos onde não existe uma regra definida quanto a sua aplicação. Na prática, não é possível decidir os limites precisos para a sua denotação. Por isso, a decisão de inclusão ou não de determinadas situações, objetos ou subclasses de termos dentro da denotação é do usuário. [...] no âmbito do tribunal do júri, a noção de “cidadão de notória idoneidade” pode ser vista como uma definição persuasiva, que expressa as crenças valorativas e ideológicas do magistrado (e quem o auxilia/influi) sobre o modo de escolha dos jurados. A designação/nomeação do que seja um cidadão de notória idoneidade estará permeada pelo poder de violência simbólica que se estabelece. O resultado desse processo é a formação/introjeção no imaginário social de um padrão de normalidade acerca do que seja “notória idoneidade”. Constrói-se, desse modo, aquilo que Ferraz Jr. chama de “arbitrário socialmente prevalecente”. Pode-se acrescentar, ainda, que, assim como o padrão de normalidade vigente na sociedade tem enorme influência na designação de quem possui as características que permitam o encaixe de alguém no conceito de “notória idoneidade”, tal “padrão

6 Diz-se isso com fundamento na lição de Zafaroni e Nilo Batista acerca da criminalização primária e secundária: “Todas as sociedades contemporâneas que institucionalizam ou formalizam o poder (estado) selecionam um reduzido número de pessoas que submetem à sua coação com o fim de impor-lhes uma pena. Esta seleção penalizante se chama criminalização e não se leva a cabo por acaso, mas como resultado da gestão de um conjunto de agências que formam o chamado sistema penal” (2006, p. 43).

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de normalidade” terá efeito no âmbito da apreciação dos jurados sobre o acusado no momento do julgamento pelo júri. Ou seja, a partir da composição do corpo de jurados delineia-se o padrão de comportamento social a ser exigido do “restante da sociedade” (grifo do autor).

Por fim, Rangel (2007, p. 97) conclui o pensamento afirmando que

na “medida em que a sociedade é dividida entre pobres e ricos e, no meio, a

chamada classe média protegendo estes, o resultado do júri é fruto desta

estratificação social perversa imposta cada vez mais por um mundo

globalizado”.

O serviço prestado pelos jurados é obrigatório, conforme se

depreende do texto legal, admitindo-se apenas as exceções ali previstas (art.

437, CPP). Salienta-se que estas pessoas apenas gozam de isenção ao

exercício de jurado, podendo, caso demonstrem interesse, investir-se em tal

papel. Em razão da investidura momentânea na função jurisdicional, aos

jurados se aplicam as regras atinentes ao impedimento, à suspeição e à

incompatibilidade, previstas nos arts. 112, 252, 253 e 254 do CPP (OLIVEIRA,

2011, p. 660). Além desses casos, estão impedidos de exercer

concomitantemente a função de jurado: marido e mulher, ascendente e

descendente, sogro(a) e genro ou nora, irmãos e cunhados, durante o

cunhadio, tio e sobrinho, padrasto, madrasta ou enteado (GRECO FILHO,

2010, p. 403), justamente para maximizar a miscigenação do conselho de

sentença.

Por tais razões é que Rangel (2007, p. 98 e 136) sustenta que a

função de jurado, no Brasil, não se revela um exercício de cidadania, já que o

“Estado chama o cidadão e impõe a ele o dever de servir como jurado,

infligindo-lhe, inclusive, multa e perda de direitos políticos”.

O autor continua, e propõe:

Ora, se o jurado, ao julgar, exerce parcela de soberania nacional, fundamentando o Estado Democrático de Direito (art. 1o, I, da CR), e se, efetivamente, o poder expresso em sua decisão manifesta a opinião geral do povo e não apenas a opinião particular de todos (art. 1o, parágrafo único), tal função deveria ser garantia plena de cidadania, permitindo que o cidadão pudesse se candidatar ao cargo de jurado, desde que preenchesse os requisitos legais para a ocupação dele. Para tanto, bastaria o juiz requisitar junto ao tribunal regional eleitoral da região, mediante as respectivas zonas eleitorais, a lista dos eleitores, para quando o cidadão se candidatar à função de jurado haver prova de que se encontra em gozo de todos os direitos políticos (RANGEL, 2007, p. 136).

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De fato, são muitos os jurados incomodados com o chamado

judicial, que acabam decidindo em contrariedade com as partes só para não

serem mais escolhidos, sem se preocupar com a tensão travada no júri:

direito de liberdade versus vida (RANGEL, 2007, p. 137).

Por fim, impende trazer a lição de Magalhães Noronha (19767, p.

236):

A verdade é que o jurado, que não conta com as garantias do juiz togado, está sujeito a influências de toda espécie. A isto junte-se a ignorância do direito e a falta de outros conhecimentos. GAROFALO, que escreveu um tremendo libelo contra ele – “O crime tolerado e protegido” – em sua Criminologia diz: “A parte principal das injustiças cometidas pelos jurados depende da ignorância. Às vezes é evidente pelas respostas contraditórias, que tinham a intenção de condenar, não obstante involuntariamente absolvam por não terem compreendido um quesito”.

A função de jurado é de suma importância no processo penal

brasileiro como forma de efetivação dos preceitos constitucionais atinentes

ao tribunal do júri. Entretanto, não se pode deixar de considerar que,

tratando-se de cidadão advindo de sociedade política e não parcial, poderá o

jurado transmitir ao julgamento parte deste ideal parcial, que, por vezes,

influenciará de forma negativa o resultado do caso. Além disso, o caráter

obrigatório e baixa consciência política de grande parte da sociedade

funciona como verdadeira barreira à atividade imparcial e desinteressada. O

jurado entende o julgamento popular como um fardo, um verdadeira atraso

no seu dia-a-dia e tal posição afeta, de maneira considerável, o processo de

tomada de decisão. E por fim, necessário lembrar que o decisão dos jurados

é furto do livre convencimento, não havendo necessidade de fundamentação

veredicto. Logo, a decisão pode estar fundamentada em cifras ocultas jamais

debatidas no feito, como, por exemplo, a cor da pele, o credo ou atitude do

acusado; a simpatia ou antipatia pelos defensores ou promotores; e até

mesmo a hora da deliberação pode ser preponderante para o desfecho, já

que um júri extenso acaba por deixar os jurados cansados e tendentes a

respostas impensadas.

7 Não há nenhum erro maior do que o de acreditar que a última palavra dita é sempre a mais correta, que algo escrito recentemente constitui um aprimoramento do que foi escrito antes, que toda mudança é um progresso (p. 59). [...] Assim, em geral vale aqui, como em toda parte, a regra: o novo raramente é bom, porque o que é bom só é novo por pouco tempo (p. 61). SCHOPENHAUER (2010, p. 59 e 61).

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4 CONCLUSÃO

Pretende-se ter demonstrado com este breve estudo que a

sistemática atual do procedimento de conhecimento e julgamento dos crimes

dolosos contra a vida no Brasil, conduz o jurado a um local de extrema

parcialidade e subverte a origem e o ideal de uma instituição de participação

popular no judiciário e de oxigenação democrática, transformando o Tribunal

do Júri em um rito marcado pela parcialidade da decisão dos jurados.

Tal predisposição, é bom que se diga, por muitas vezes não é

racional e sequer percebida. Mas a participação obrigatória e o caráter

disperso de uma sociedade que é composta por vários subgrupos e

ideologias particulares, acaba fazendo com que o julgamento popular vire

uma verdadeira roleta russa, um jogo perverso e perigoso onde, embora a

lógica exista, o que importa para o desfecho é a sorte dos participantes,

neste último de que bala esteja no local certo e no primeiro de que o jurado

concorde, seja por qual motivo for (pessoal, racional, emotivo, etc.) com a

tese arguida.

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MARQUES, Jader. Tribunal do júri: considerações críticas à Lei 11.689/08 de acordo com as Leis 11.690/08 e 11.719/08. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. ______. Tribunal do júri. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010. ______. Curso de Processo Penal. 14. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico conciso. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Traduzido por Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2010. STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais. 4. ed. rev. e mod. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. RANGEL, Paulo. Tribunal do júri: versão linguística, histórica, social e dogmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de processo penal. 25. ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993.