o judeu não-judeu

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CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA ISAAC í í

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Texto sobre questão judaica, sobre a perspectiva marxista

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  • CIV

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    ISAAC

  • O JUDEU NO-JUDEU

    e outros ensaios

  • ColeoPERSPECTIVAS DO HOMEM Volume 61 Srie Poltica

    Direo de MOACYR FELIX

  • ISAAC DEUTSCHER

    O Judeu No-Judeu e outros ensaios

    Apresentao e Introduo de TAMARA DEUTSCHER

    Traduo de MONIZ BANDEIRA

    civilizaobrasileira

  • TTU LO DO ORIGINAL IN G LS: The Non-Jewish Jew And Otlier Essaijs

    Oxford Universitij Press 1968.

    Desenho de capa: MARIUS LAURITZEN BERN

    Diagramao: RENATO BASTOS

    Direitos para a lngua portuguesa adquiridos pela EDITORA CIVILIZAO BRASILEIRA SA.

    Rua 7 de Setembro, 97 RIO DE JANEIRO,

    que se reserva a propriedade desta traduo.

    1 9 7 0

    Impresso no Brasil Printed in Brazil

  • ndice

    Apresentao 1In Memoriam Isaac Deutscher (1907-1967) 3Introduo A educao de uma criana judia 7

    I O judeu no-judeu 27II Quem judeu? 41

    III A revoluo russa e a questo judaica 57IV Remanescentes de uma raa 77 V O clima espiritual de Israel 83

    VI Dcimo aniversrio de Israel 107 VII A guerra entre rabes e judeus de junho de 1967 115

    VIII Marc Chagall e a imaginao judaica 139IX A tragdia judaica e o historiador 149

  • Apresentao

    publicao dste volume ocorreu, pela primeira vez, depois da morte de Isaac Deutscher. Se le ainda vivesse, talvez fizesse uma reviso completa de seu trabalho. Resolvi, porm, tocar o menos possvel nesses ensaios que, vez ou outra, a imprensa publicou. Aqui e ali, Isaac Deutscher fazia uma anotao ao p da pgina ou, ento, cortava alguma coisa. Quanto conferncia sbre a Revoluo Russa e a Questo Judaica, que ficou incompleta, coube-me a responsabilidade de public-la. J o ensaio Quem um judeu? exigiu um trabalho mais rigoroso de filtragem e condensao.

    Numa coletnea de conferncias, artigos e entrevistas, dedicadas a um s assunto, mesmo quando tratado de diferentes ngulos, algumas repeties se tomam inevitveis. O leitor no ficar na dvida sbre a coerncia de Isaac Deutscher

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  • quanto ao destino trgico e ao complexo papel dos judeus na Europa e no seu prprio Estado nacional.

    Creio que consegui preservar, fielmente, seu pensamento em todos os pontos, nesses ensaios. Agradeo ao Dr. R. Mi- liband e a D. Singer que leram ste volume antes de sua publicao; aos senhores John Bell e Dan M. Davin, da Editora da Universidade de Oxford, pela assistncia c sugestes que apresentaram. Gostaria, ainda, de agradecer aos meus amigos e vizinhos, Sr. e Sra. E. F. C. Ludowyk, pelo apoio e encorajamento.

    Londres, janeiro de 1968

  • In Memoriam

    ISAAC DEUTSCHER( 1 9 0 7 1 9 6 7 )

    . A l reputao de Isaac Deutscher firmou-se, antes de mais nada, como poeta, quando, aos dezesseis anos, seus primeiros poemas foram publicados em revistas literrias da Polnia. Alguns leitores daquela poca ainda se lembram de seus versos, que revelavam forte influncia do misticismo judaico, versando sbre temas da histria e mitologia do povo judeu, e mesclavam 0 romantismo polons com o rico folclore dessa cultura, numa tentativa de unir as tradies polonesa e idiche. Tambm traduziu para o polons muitas poesias do hebraico, latim, alemo e idiche.

    Isaac Deutscher assistiu, como ouvinte, conferncias sbre literatura, histria e filosofia, na medieval Universidade de Yagellon, na Cracvia. Na vida artstica dessa culta cidade

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  • da Polnia, os seres dedicados leitura dos seus poemas se tornaram notveis acontecimentos.

    At aos dezoito anos de idade, viveu em Cracvia, indo depois para Varsvia. Deixou tambm a poesia pela crtica literria e por um mais profundo estudo da filosofia, da economia o do marxismo. Por volta de 1927, filiou-se ao Partido Comunista da Polnia, ento proscrito, e logo se tomou reda- tor-chefe da imprensa comunista clandestina e semiclandestina. Viajou, em 1931, por tda Unio Sovitica, conhecendo as condies econmicas do pas na poca do primeiro Plano Qinqenal e recusou o oferecimento de cargos acadmicos

    Universidades de Moscou e Minsk, como professor de Histria do Socialismo e da Teoria Marxista. No ano seguinte, @^ubrnHK) do Partido Comunista.

    O motivo oficial da expulso foi o de que le exagerava praig oaaista e espalhava o pnico nas fileiras comunistas. TDss tesga voltou da URSS. Isaac Deutscher fundou, com trs

    pata eanm ds, a primeira oposio anti-stalinista no ( M m Owmmwista da Pcmoia. Seu grupo protestou contra a HA* to jMaitisfcx sumido a qual a social-democracia e o twasiar) ta temanau tproJas, mas gmeos*. E. certo dia psnucefo a iMjfswtasai eswumiista dlamdlestiina estampou a man- dtte Sr IbiMMjriK' silwe a Ekiiopm", o ledator-cfaefeSa o s^momigcsfito, A jmtr dkqmdle t fa , Isaac Den-IttfcJbfr tese Hmua; sfimrJbflas a sfjmS-fc:: rnimiTm.. da pdSriia pofcraxesa. ee a fe uram wfflBmm&amim

  • campos de concentrao, como "elemento perigoso e subversivo por causa dos seus protestos contra o anti-semitismo predominante nas tropas. Libertado em 1942, uniu-se equipo do The Economvrt, tomando-se perito em assuntos soviticos, comentarista militar e chefe dos correspondentes europeus dsse peridico. Juntou-se tambm equipe do The Ohterver, para o qual trabalhou, inter alia, como correspondente itinerante, escrevendo sob o pseudnimo de Peregrino.

    Em 1940-47, deixou Fleet Street e o jornalismo regular para dedicar-se a trabalhos menos efmeros. Stalin, uma Biografia Poltica foi publicado em 1049, Considerada "a mais controvertida biografia do nosso tempo", apareceu em muitas e muitas edies e em doze idiomas, A edio aumentada de 1967 contm um adendo sbre os ltimos anos de Stalin,

    A publicao de Stalin consagrou Isaac* Deutscher como autoridade em assuntos soviticos e historiador da revoluo russa.

    A trilogia que escreveu sobre Trotski1 O Profeta Armado (1954), O Profeta Desarmado (1959) e O Profeta Banido (1963) estabeleceu ainda sua reputao como mestre na prosa inglesa. Essa biografia se baseia em minuciosa pesquisa nos arquivos de Trotski, que se encontram na Universidade de Harvard. A maior parte do material contido no terceiro volume nico, pois o autor recebeu permisso especial da viva de Trotski, Natlia Sedova, para ler a Seo Reservada dos Arquivos, que, pela vontade do prprio Trotski, dever permanecer interditada at o fim do sculo.

    Isaac Deutscher pretendia concluir sua srie biogrfica com um estudo sbre Lenin, manifestando mesmo a esperana de que se visse o seu trabalho como simples ensaio 3e uma anlise marxista da revoluo de nossa poca e ainda um trptico de alguma unidade artstica.

    Como G. 51. Trecelyan Lecturer, na Universidade de Cam- bridge. em 1966-67, Deutscher falou para auditrios superlotados e foi recompensado por sua extraordinria ateno e carinho. Recolheu a mesma recompensa em sua permanncia

    i K m frifaga fim pciMEcaifla peja. Efewa CfcSJzss H^ Hek (HL d T.)

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  • de seis semanas na Universidade Estadual de New York, em Binghamton, Harpur Collcge e, ainda, quando fz conferncias na Universidade de New York, Princeton, Harvard e Colmbia, na primavera de 1967. As G. M. Travehjan Lecturer apareceram simultaneamente em quatorze ou quinze pases sob o ttulo de A Revoluo Inacabada2, mas nenhum dos seus livros, embora editados e traduzidos em vrios idiomas, jamais foi publicado no bloco sovitico. evidente, entretanto, que, mesmo l, Isaac Deutscher possui leitores devotados e corajosos.

    Fascinante orador e polemista de grande fra de argumentao, Isaac Deutscher freqentemente se dirigia a grandes audincias em ambos os lados do Atlntico. Em 1965, participou da primeira reunio sbre o Vietn, durante a qual quinze mil estudantes, no campus da Universidade de Berkeley, ouviram suas invectivas contra a guerra fria.

    Era tanta a extraordinria vitalidade de Isaac Deutscher que, embora engajado no seu monumental trabalho literrio, le ainda seguia o curso das correntes polticas com apaixonado interesse e, durante quinze anos, suas anlises dos mais importantes acontecimentos internacionais foram amplamente lidas nos principais jornais da Europa, Estados Unidos, Canad, Japo, ndia e Amrica Latina.

    Trabalhou at quase o seu ltimo dia de vida e morreu, em Roma, a 19 de asrsto de 1967.

    Maio de 196S

    T. D.

    2 Tambm editado pela Editora Civilizao Brasileira (X . do T .)

  • Introduo

    A Educao de uma Criana Judia

    D lhante os ltimos anos de vida, Isaac Deutscher pre- tendeu escrever sua autobiografia, ou parte dela pelo menos, abrangendo a infncia e a juventude. Queria mostrar aos leitores do escritor maduro qual fra a sua origem e o meio do qual viera. O mundo de onde surgiu j no existe mais um mundo brutalmente desaparecido. Jamais ser recriado. Viver, apenas, na memria e na sensibilidade daqueles que lhe sobreviveram. Ao pintar para a gerao de hoje o panorama da vida secular e religiosa dos judeus, como le a conheceu antes do dilvio nazista, desejava Isaac Deutscher salv-la do esquecimento?

    Isaac examinou com cepticismo as numerosas iniciativas das organizaes judaicas do Ocidente para contar-lhes a histria: colecionou documentos, computou fatos, dirios e tda

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  • a sorte de material, de modo a manter viva a tradio e a histria do judasmo europeu de antes da guerra. Essa respirao artificial, como le a considerava, no traria de volta o pulso e o alento a um corpo sem vida. Nenhuma riqueza do documentos, apesar de verdicos, transmitiria a contento a atmosfera, o clima espiritual e intelectual daquela comunidade extremamente fechada, na qual Isaac passara os mais impressionantes anos de sua vida e que fra destruda.

    Teria sido, realmente, aqules os seus anos mais impressionantes?

    Parece-me que a insistncia racional do historiador em olhar o interior do passado, para faz-lo compreensvel, e em mostrar como le evoluiu at o presente, disps Isaac a escrever sbre sua infncia. Gostava de evocar os seus primeiros dias, porque lhe pareciam to incrivelmente distantes que se tornavam irreais. Grande abismo separava aquele menino- prudtgio Hiassidista. de Chrzanow1, imerso no Talmude e na Toriu, ou estudando na Crte do Maravilhoso Rabino o Tsatfk de Gera do ateu, do marxista revolucionrio, falando ein seu rio.*, sonoro e fluente ingls a milhares de estudantes americanos, s margens do Pacifico. sse abismo era to imenso que o confundia e o fascinava.

    Foi exatamente essa fascinao que se podia perceber na maneira de Isaac recordar a sua infncia. Tanto isso o encantava e o divertia que as passagens, os incidentes relembrados e relatados envolviam a si mesmo. Para ns, menos do que para le, no era fcil v-lo como um garotmho. com espessa, cabeleira preta, encacheada. com uma braraleante lmpada a leo nas mos, s cinco horas da manh, caminhando pela ueve e lama da adormecida Chrzanow. para acordar * vmue^ como um privilegio que lhe cabia por ser o melhor kiOk

    Batia na porta, primeiro timidamente, depois mais forte, e mais forte, at que a luz fraca de uma vela aparecia na janela, A Rdubesin me deixaria entrar, murmurando alguma

    1 Qtwwis&taw esfc a nmis vime wflhas 3 osste de Gaevia, miMug, s stfsrite dfe Asdhiwta Ossweomiii^ . Kmm 19ifjucimido Iszse nasecn, C&flaawaw tnJbiai ss s oaiJ tufeSaarnlteSL d as quais, jnnta m il e qoinnissaniSiai hk jdstewi.

  • coisa de dentro de seu xale. E eu ficava na porta at que 0 rebe viesse: magro, esqulido, com a barba ruiva ainda por fazer. amos ento para a Sinagoga rezar as preces da manh. le, alto e andando muito rpido, segurava minha mo. Eu, muito pequeno, parecia balanar de seus longos braos, mal tocando o cho. Era eu realmente essa criana? Eis a pergunta que ficava depois desta histria. A infncia de Isaac realmente influiu na sua maturidade?

    Originrios de Nurenberg, de onde, no sculo XVII, seus ancestrais vieram para a Galcia, chamavam-se, ento, Ashke- nazy (alemo, em hebreu). Houve tantos grficos entre les, que a concorrncia nos negcios provocou confuso e freqentes querelas. Um ramo de seu cl mudou ento o nome para Deutscher. Mesmo entre os Deutscher, diversas grficas concorriam umas com as outras.

    Isaac era o nome de seu bisav, um aprendiz da sabedoria talmdica, homem de temperamento medonho e convices fanticas. Considerava o kha-mdwmo, uma seita onde os plebeus manifestavam a revolta contra a pompa e o formalismo da Instituio religiosa do judasmo, como um desvio da ortodoxia. O khassidvsmo, entretanto, atraiu um dos filhos do velho Isaac por causa de sua viso mais alegre da vida, por sua disciplina mais elstica. E o jovem jurou lealdade ao Tsadk de Gera. Esse era um fato ncomum entre os judeus da Galcia.

    O rabino de Gera tinha sua erte no outro lado da fronteira, no chamado Congresso Polons, e as restries s viagens, especialmente para os judeus, faziam as peregrinaes quase impossveis. O bisav de Isaac portou-se de maneira desumana: recorreu s autoridades civis e no judaicas; apelou mesmo para o auxlio da polcia austraca. Denunciou o filho desobediente, telegrafou para os guardas da fronteira e pedia que o contrabandista fsse trazido de volta, sob escolta. % conseguiu. Mas, somente por algum tempo. O fll*> prdigo foi mais feliz na fuga seguinte, At o frn de seus dias permaneceu fiel adepto do 1haMdismof ficou com o 'Tmk de Gera e morreu tranqilamente; de velhice, na soa Beth M- drah Casa das Oraes, na noite sagrada do Ano Nvo, Baixou sepultura com grande homas, pgro da Smoiba sss

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    fundadores da dinastia de Gera. E o khassidisnw conquistou a famlia Deutscher, apesar da ira do rabino Isaac.

    Jacob Kopel, pai de Isaac, homem de grande conhecimento e cultura, tambm teve os seus perodos de inquietude e revolta. Viajou na juventude para a Alemanha, onde se dedicou ao estudo dos arquivos das comunidades judaicas da zona do Reno. Devotou-se, durante anos, elaborao de exaustiva histria dos judeus, baseada numa pesquisa completa, original e cansativa. S quando o manuscrito estava pronto retomou ao seio da famlia. A encontrou hostilidade no s por parte do pai como da me. A mulher, fantica e temente a Deus, suspeitava de algumas inclinaes herticas nas intenes do filho. Seu dever, assim o concebia, era salv- lo a tempo: lanou ao fogo o formidvel manuscrito.

    Jacob Kopel parecia esmagado pelo acontecimento. Sub- meteu-se, conformou-se, perdoou a me, mas a experincia o marcou para o resto da vida. Permaneceu angustiado entre o senso do dever, a lealdade rgida ortodoxia de seus ancestrais e uma insacivel curiosidade intelectual, que lhe criava dvidas e o tentava, no digo a abandonar o judasmo, mas, a ultrapassar as suas limitaes. No se rebelou. Tomou-se, como o pai e o av, um grfico e deu todo o seu carinho aos manuscritos dos outros.

    Sob o nome de Buchruckerei Deutscher apareceram trabalhos religiosos, dissertaes filosficas, tratados histricos, e mesmo livros de matemtica e lgebra, em hebreu, alemo e latim. A famosa edio da Bblia, com ilustraes de Gustavo Dor, que saiu de sua grfica, provocou-lhe imenso orgulho. Este quase desvio da ortodoxia foi desculpado, no caso; a satisfao profissional pesou mais do que a obedincia rgida lei mosaica que probe qualquer imagem gravada.

    Isaac, seu filho, era o mais velho dos trs que nasceram do segundo casamento. Destinaram-no, de acrdo com a tradio familiar, misso de rabino. Seu pai, entretanto, no o via como um rabino comum, atendendo as necessidades da f, e sim como um sbio talmdico. Projetou, no primeiro filho, a sua ambio intelectual frustrada, torcida. Tinha bons motivos.

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    i

  • Quando criana, Isaac era to kha.ssidista quanto seus tios, amigos e vizinhos. A religio arcaica, preconceitos, crenas, temores, o modo anacrnico de viver, tambm eram os seus. Menino precoce, com fantstica memria, esprito capaz e inco- mum habilidade para pensamentos abstratos, Isaac tornou-se rabino com a tenra idade de treze anos. A comunidade judaica de Livorno, ortodoxa, j fizera sondagens sbre os planos futuros para aquele menino-prodgio, vislumbrando-lhe resplandecente carreira entre os eminentes e ricos judeus italianos. Mas, l pelos treze anos, quando se celebrava o seu Bar Mitzva, le, proferindo um erudito discurso, pelo qual seria consagrado como rabino, comeou a fazer perguntas (e nunca mais o parou de fazer), algumas sbre assuntos que acreditava, como supunha na poca, os assuntos de sua religio. Nada de extraordinrio: o tema de sua dissertao no poderia ser mais escolstico e arcaico, mais afastado da realidade da vida.

    Crca de cem rabinos vieram a nossa pequena cidade para ouvir o meu discurso, julg-lo e, ainda, abenoar-me, ou rejeit- lo!, declarou Isaac. Para seu pai, para a famlia e certamente para tda a sua comunidade esta era a prova suprema. Isaac estava tenso, mas no intimidado. Lembrou-se do conselho do pai: aprume-se, ordene os pensamentos e, quando voc souber o que vai dizer, fale alto e claro. Esta era uma daquelas advertncias paternas repetidas muitas e muitas vzes, e com as quais as crianas se impacientam mas sempre recordam.

    Vestido com uma kapota de sda pura, feita especialmente para a ocasio, o pequeno Iciu como era afetuosamente chamado aprumou-se, ordenou seus pensamentos e comeou um discurso de duas horas sbre o tema de Kikiyon:

    Uma vez em cada setenta anos aparece um pssaro no mundo. O pssaro grande, belo e diferente de todos os outros. Chama-se Kikiyon. Este curioso nome, talvez de origem grega, nunca foi explicado. Quando voa uma vez, de setenta em setenta anos o pssaro cospe sbre a terra. E s cospe uma vez. Sua saliva extremamente preciosa. Possui qualidades miraculosas que curam qualquer doena ou deformidade. E Isaac tinha que discutir e opinar sbre se a saliva do pssaro era kosher ou treyfe. Em outras palavras, preenche ou no os requisitos do ritual judaico no que se refere alimentao?

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  • Isaac citou por extenso tudo o que anteriormente se escreveu sbre o assunto todos os comentrios, tdas as doutas discusses que, em milnios, houve entre os mais sbios dos sbios. Mostrou domnio de suas fontes e capacidade de lidar com os detalhes mais obscuros. A audincia ficou cativada e em completo silncio. Os presentes acenavam com a cabea, admirados. Ento, depois de rpida consulta, proclamaram-no, inevi- tvelmente, apto e digno de se tomar um rabino.

    Quando terminei de falar, choveram as congratulaes. Minha me, todos os meus tios e tias abraaram-me e beijaram- me, chorando e sorrindo ao mesmo tempo. Meu pai tentava disfarar seu profundo orgulho e satisfao. Senti-me aliviado. Mas, subitamente, um inesperado embarao e constrangimento me tomaram. Estava representando um ato e ficara satisfeito com o lado teatral da minha atuao.

    Teve alguma utilidade sse exerccio de debate acadmico? Foi, por acaso, uma lio de pensamento abstrato, um treino de especulao mental? Era o que Montaigne chamava ginstica do raciocnio? Talvez, a primeira tentativa de uma polmica bem sucedida? A essas perguntas a resposta de Isaac foi sempre um no categrico. Ao contrrio. Todo sse pseudo- conhecimento tumultuou e esgotou minha memria, tirou-me da realidade da vida, do verdadeiro aprendizado, do real conhecimento do mundo que nos cerca. Isto impediu meu desenvolvimento fsico e mental.

    Na preparao de seu tratado sbre Kikiyon, Isaac dispensou longas horas de estudo e leitura. Aos quatro anos foi enviado ao kheder, escola de religio judaica, da qual sempre falou com desagrado. Era um buraco ftido e sujo, com vinte ou trinta garotos espremidos uns contra os outros em bancos de madeira, com a mal cuidada e encardida professora, impingindo em suas arengas o alef, beis, gyml, o alfabeto hebraico, a Bblia e as Escrituras numa cantilena mecnica e montona. Freqentemente a professora tinha que recorrer a uma vara com a qual atingia a cabea, os ombros ou o rosto de um aluno indisciplinado.

    Havia ainda outra forma de castigo: no meu primeiro dia no kheder fiquei horrorizado com o castigo da bacuT, Isaac continuava a recordar. Ao mau aluno ordenava-se que tirasse

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  • a roupa e ficasse em frente dos outros com os ps dentro de uma bacia de esmalte lascada. Jurei que isso jamais me aconteceria. Forcei cada nervo a seguir as palavras da professora e a estar sempre pronto para responder a qualquer pergunta. Apenas uma vez o pobre Iciu foi esbofeteado. Sua ateno se desviou: um bando de gansos mostrou ser demais para sua concentrao no alfabeto hebraico.

    Mesmo sse ftido e sujo buraco tinha, porm, algo de compensador. Havia um professor de quem me lembro melhor do que dos outros. Tinha a barba ruiva, longa barba ruiva, que balanava ritmadamente durante as lies, e os olhos de um azul muito plido, com inocente e infantil expresso de encantamento. O olhar sempre se fixava num canto do teto, em algum lugar no fundo da sala, atrs de todos os meninos. sse professor contava e recontava a histria da fuga do Egito. Enfeitava-a vontade. Sua imaginao poderosa trazia para dentro da sala abafada a melodia, o perfume e o ar do Mar Vermelho. Podamos sentir a suavidade da brisa que empurrava para frente a coluna de nuvens. E a coluna de fogo ardia diante de nossos olhos, e as chamas dardejavam, danavam e estouravam em cascatas de cintilantes estrias. Mas, logo, terrvel mdo se apossou de todos ns; podamos escutar, como se estivessem ao nosso encalo, os cavalos e os carros do exrcito do Fara. A tenso aumentava e parecia que, num minuto ns, crianas de Israel, poderamos elevar as nossas vozes at o Senhor. Ento, piedosamente, vamos estendidas sbre nossas cabeas a mo de Moiss e sob os ps, sca e firme, a reconfortante terra. Forte vento do Leste empurrava o mar. Estvamos de nvo salvos pelas guas, que eram uma muralha para ns. E a muralha era, na verdade, maravilhosa: feita de puro cristal, com tdas as cres do arco-ris refratadas e multiplicadas milhes de vzes. Ficamos estupefatos e quase no podamos respirar.

    Esse tipo de imaginao judaica nutriu e estimulou Isaac na sua infncia; e le se relembrava disso com forte e vivida emoo. No ensaio sbre a arte de Marc Chagall, Isaac desceu s razes judaicas, que de algum modo eram comuns em ambos. Chagall, na sua juventude, transgrediu o ortodoxismo dos rabinos, que impediam o crescimento das artes visuais. Pintar,

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  • para um judeu, era revoltar-se, era executar um ato de emancipao. Isaac conseguiu sua emancipao ao revoltar-se contra a f messinica e contra o khassidismo tradicional e ao aderir ao socialismo revolucionrio. Vendo naquele grande artista um garto do kheder, uma criana judia olhando o mundo com olhos instveis, cheios de encantamento e fervor, Isaac se sentiu atrado pelas primeiras pinturas de Chagall. A fantasia do folclore idiche, to oposta rigidez da religio ortodoxa, a poesia daqueles pobres professores barbas-ruiva, que testemunhavam diriamente a passagem pelo Mar Vermelho, as canes dos bardos, pobres e errantes trovadores e, acima de tudo, o humor judeu, tudo isso representava uma inesgotvel fonte de fascinao. Era sintomtico e significativo, le observou, que quase tdas as piadas sbre as quais Freud baseou o seu Wit and the unconscious tinham origem judaica, cheias de auto-ironia e zombarias e, at um pouco de autopiedade. Foi sse humor que ajudou os perseguidos e oprimidos a suportar a incerteza e a tristeza da existncia. E foi exatamente a precariedade dessa existncia que se tomou dolorosamente bvia para Isaac, quando, ainda menino, presenciou o massacre dos judeus na sua nativa Chrzanow.

    De repente, tornou-se consciente do quanto lhes era hostil a vizinhana no-judia. Houve, na verdade, um gentil amigo de seu pai que veio para prevenir a famlia do iminente desastre; mas, poucos judeus tinham tais amigos ou protetores. Ns vivamos no centro da cidade, no seu lado mais rico e burgus, onde nem todos os vizinhos eram judeus. O jardim da frente vivia cuidadosamente tratado, cheio de roseiras e rvores. No trreo, ficava a grfica de meu pai e, no andar de cima, a nossa residncia. Papai resolveu fazer barricadas em tdas as portas e janelas, para oferecer resistncia aos atacantes, caso tentassem entrar. E ficou atrs da porta trancada, armado com uma barra de ferro, que trouxera da adega. As luzes foram apagadas. Escutvamos gritos e lamentos e o tumulto da multido que se aproximava. Os gritos e pedidos de socorro tomavam-se cada vez mais altos. Atravs das frestas das venezianas podamos ver o claro das chamas distantes. Iriam botar fogo na cidade inteira? Fiquei petrificado, sentado no pequeno degrau que liga o quarto de meu pai ao meu. Orava, sussurrando, e

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  • apertava fervorosamente os cordes do meu pequeno Tales, que sempre usava sbre a camisa. A multido enraivecida estava passando por ns, pois escutvamos o quebrar de janelas na casa seguinte.

    Isaac ainda no completara onze anos. Sua f religiosa estava algo enfraquecida. Entretanto, na hora do perigo, os cordes de sua vestimenta ortodoxa, com seus supostos poderes de prevenir o perigo, ainda lhe pareciam dotados de qualidades mgicas.

    A gentalha selvagem e destruidora deixou para trs a casa dos Deutscher. Mas, a experincia ficou indelvel. Na manh seguinte fugimos. Alcanamos a estao da estrada de ferro atravs das ruas entulhadas de mveis e vidros quebrados e ainda fumegantes roupas de cama. Quando chegamos na pequena cidade vizinha, encontramos, de nvo, fisionomias ansiosas nos judeus locais. Havia rumores de que os camponeses das redondezas estavam de nimos exaltados. Os dias de feira seriam as melhores ocasies para lutar com os Yid. Os camponeses costumavam selar cada transao comercial demorada com no menos demorados torneios de bebida. Vodca ou bebida regional circulavam livremente e, em breve, qualquer arma uma longa faca, uma foice, um pedao de pau ou chicote serviria para ajustar as contas do passado ou, talvez, mesmo as que aparecessem no futuro. Ao excitamento normal dos dias de feira, agora, em novembro de 1918, somou-se o fervor de um nvo patriotismo mui hbil e apaixonadamente pregado em tdas as igrejas da recobrada terra natal.

    Os refugiados do massacre de Chrzanow seguiram para adiante, mas a cidade seguinte tambm no lhes ofereceu segurana. Sobrevivi a trs massacres durante as primeiras semanas da renascida Polnia, lembrava Isaac, com dio e com tristeza. Foi como nos saudou o raiar da independncia polonesa.

    O ano de 1918 foi o mais longo de minha infncia, costumava dizer. Vivamos no chamado canto dos Trs Imperadores. De um lado estava a Polnia, do outro a Polnia Alem e estvamos colocados exatamente no meio dessa populao plurirracial, que constitua o Imprio Austro-Hngaro. Naquele canto dos Trs Imperadores, o ano de 1918 pareceu ainda mais dramtico do que em qualquer outro lugar da Europa.

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  • Caram, naquele ano, as trs monarquias e estivemos sob a avalanche de trs revolues.

    Isaac guardava as mais vividas recordaes daqueles anos e gostava de recordar, em particular, um incidente que considerava sua primeira importante lio de poltica. Na praa do mercado de Chrzanow, no muito longe da casa dos Deutscher, ficava o mais importante prdio do distrito: a Prefeitura e a Estao de Polcia, formando um todo. Sbre a pesada porta de entrada, num grande escudo, aparecia gravado o emblema do Imprio dos Habsburgos: uma guia com asas abertas e duas cabeas, ambas coroadas, olhando, uma, para a direita, e a outra, para a esquerda. Certo dia de novembro de 1918, verdadeira multido reuniu-se, em frente da Prefeitura, para comentar as declaraes do ltimo dos Habsburgos. Um jovem corcunda, uma das pessoas menos notadas da cidade, subia numa frgil escada, encostada no prdio municipal. Todo mund olhava seus movimentos geis com a respirao prsa. Atingiu o mastro e, ento, alcanou a guia de duas cabeas. Com duas ou trs marteladas, soltou o escudo da base; depois, olhando para baixo gritou, ao povo: Ei, vocs, afastem-se, tomem cuidado!. A multido recuou um pouco. O corcunda atirou a guia austraca diretamente sbre o piso da praa. O escudo e a guia espatifaram-se em centenas de pedaos. No dia seguinte, nova bandeira, a da Polnia tremulava sbre Chrzanow.

    O simbolismo da cena gravou-se na memria do futuro historiador. Quando o momento chegar, o menos notado corcunda da pequena cidade pode fazer em pedaos a reverenciada e horrenda guia imperial.

    A infncia de Isaac chegava ao fim. At a idade de treze anos, freqentara, mais ou menos regularmente, a escola pblica estadual. Depois de suas preces matinais na Sinagoga, voltava para casa e, ento, l pelas oito horas, mergulhava nos diferentes mundos da patritica e altamente religiosa Escola Catlica Romana. A ns, meninos judeus, permitia-se na verdade, esperava-se que deixssemos a sala quando o padre entrava para a aula diria de catecismo. Embora raramente

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  • sentssemos qualquer anti-semitismo consciente da parte de nossos colegas, depois dessas aulas freqentemente verificava- se certa tenso entre os meninos cristos e os que ficaram fora da sala. ramos levados, de algum modo, a sentirmo-nos culpados pelo drama da crucificao. No se dizia uma palavra, porm, os olhares incomodavam. Essa tenso, entretanto, no durava muito, pois os jogos em comum novamente nos uniam.

    tarde, depois das aulas, enquanto a maioria dos colegas fazia seus deveres ou perambulava pelos campos vizinhos, Isaac se dedicava aos estudos religiosos. Suponho que as duas orto- doxias pela manh, a catlica e, tarde, a judaica se invalidaram, mutuamente, neutralizando-se em meu crebro; muito cedo, eu as repudiei e me tomei ateu, disse, quase meio sculo depois1.

    Aos treze anos, comeou nova fase cheia de esforo e dedicao para o mais nvo rabino consagrado, para o brilhante primeiro aluno do Colgio Catlico Romano local, para o escritor e poeta que nascia. insatisfao da adolescncia juntou- se uma rebelio claramente definida contra sua educao religiosa judaica e contra as cadeias do ortodoxismo. Longo perodo de regatear com o pai comeou: quantas horas por dia precisava ficar na Sinagoga? Quantas na escola religiosa? Quantas na escola secundria, o gymnasium polons?

    Costumava sonhar com o gymnasium. L, tudo era to atraente: prdio modemo, iluminado, arejado, coberto com flhas de era, o playground, os professores, alguns dos quais j conhecia, mas, acima de tudo, desejava, ardentemente, vestir o uniforme da escola. Via-me como um estudante de verdade, com brilhantes botes no casaco, a pasta cheia de livros todos sbre a histria e a poesia da Polnia, claro. sse sonho, no entanto, nunca se realizou. Sem dvida, no se permitiria ao menino, que era o orgulho dos mais cultos da comunidade judaica, perder tempo com a educao secular polonesa. Com ameaas de suicdio, lgrimas de desespro, usando argumentos lgicos em que realmente acreditava, dobrei meu pai e chegamos a um compromisso. Fizemos um horrio, embora bastante desfavorvel para mim. Estudaria a Tor e o Tal-

    1 Entrevista feita pela Televiso Alem, em julho de 1967.

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  • mude pela manh e tarde, mas nas horas livres, poderia seguir o curriculum do gymnasium; poderia ter contato com os colegas e professores, e preparar-me para os exames como ouvinte. Meu pai tinha idias exageradas sbre minhas possibilidades e tal desprezo pela educao secular polonesa que, dando de ombros, dizia: Voc no precisa de mais de duas semanas para aprender aquilo que os outros meninos levam suando um ano inteiro.

    Nem o pai nem o filho, como sempre acontece, deixaram de regatear por muito tempo. Isaac abandonava mais e mais a Sinagoga e a escola judaica pelo arejado e iluminado prdio do gymnasium. No freqentava regularmente qualquer curso. De tempos em tempos, escapava para as aulas do professor Urbanczyk, que ensinava literatura polonesa e saudava o curioso menino vestido com uma kapota preta e os cachos desajeitadamente escondidos atrs das orelhas. Isaac costumava dar vida s aulas, com as suas idias, explodindo em perguntas, problemas, objees. Quando convidado, ficava de p, coordenava seus pensamentos e fazia uma anlise original sbre o assunto ou dava a prpria opinio sbre a obra literria de algum poeta polons. Organizou ainda um crculo literrio que habitualmente se reunia fora das horas de aula, para discutir questes no s de literatura como de filosofia.

    A estourou, ento, um pequeno escndalo: numa dessas reunies, Isaac abriu os debates com um tema de sua escolha: Cristo era judeu e comunista. Iniciou sua dissertao, mas no pde continu-la; alguns dos meninos ficaram chocados, outros, horrorizados com a audcia do judeu. Num instante me tornei intruso, estranho. Tomei-me um Yid. Por acaso, naquela mesma manh, no lhes ensinaram que os judeus assassinaram Cristo? Dois ou trs meninos judeus silenciosamente deixaram a nossa reunio. Alguns no-judeus me defendiam. Outros estavam to inflamados com a minha blasfmia que tudo quase terminou em luta. A escola, no dia seguinte, estava em p de guerra. O diretor e os professores, que, at ento, toleraram as incurses irregulares e apenas semi-autorizadas de Isaac nas salas de aula, ameaaram impedi-lo de entrar. Foi o bondoso professor Urbanczyk que o socorreu. Serenou os animos e, finalmente, liquidou o caso. Bem cedo, porm, a

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  • freqncia de Isaac ao gymnasium estaria novamente ameaada por outro motivo. Jacob Deutscher entendera chegado o momento de seu filho deixar a casa paterna e dedicar-se a estudos teolgicos mais srios, uma vez que ali no poderia realiz-los. Devia beneficiar-se da companhia dos homens santos, aprofundar-se na atmosfera dos debates religiosos eruditos. Jacob decidiu enviar seu filho Crte do Tsadik de Gera. Isso representou um duro golpe para Isaac, que se recusava a partir e discutia exacerbadamente com o pai. Isaac conseguiu o apoio materno e, finalmente desesperado, cortou os cachos de seu cabelo.

    Isso no foi um gesto de desafio e sim do mais alto desespero. O aparecimento de um judeu na Crte do Tsadik de Gera sem os seus peyes (cachos) era inconcebvel. Estava convencido de que meu pai no se exporia a esta vergonha, que cederia, ou, pelo menos, abandonaria a idia durante algum tempo. Enganara-me. Primeiramente com calma, depois com ressentimento e, logo em seguida, eu veria uma terrvel fria dle se apossar. Esbofeteou-me, pela primeira e nica vez. Tambm foi a primeira vez que percebi um lampejo de fanatismo em seus olhos. Jacob Deutscher atormentado por dvidas religiosas latentes e estrita ortodoxia, ansiando por mais largos horizontes, temeroso de transgredir o judasmo vivia uma fase de paixo religiosa que acendia a chama do fanatismo em seus olhos. No dia seguinte, pai e filho iniciaram a peregrinao: Resignei-me com o destino. Meu estratagema no me salvou. Estava plenamente consciente da enormidade da minha ofensa: pecado para o judeu cortar os cachos de seu cabelo com gilete. Feri papai com meu pecado. Fiquei com pena de mim e cheio de tristeza porque no sabia o quo profundamente eu o magoara.

    Isaac, entretanto, no permaneceu em Gera por muito tempo. Mais tarde justificou esta experincia com um dar de ombros: Estava mergulhado na idade Mdia. Meus correligionrios viviam como que em transe: havia tanto fervor em suas preces como em seus rituais. Mas, havia tambm um punhado de judeus ricos nada zelosos com a observncia dos ritos. Vinham para pequenas visitas, alguns de alm-mar, em busca dos sbios conselhos do Tsadik para assuntos comerciais.

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  • Alguns eram bastante cnicos: ofereciam ao santo uma participao nos negcios em troca de sua bno que, assim, adquiria a forma de um seguro espiritual. Apenas duas ou trs semanas depois, Jacob Deutscher trouxe seu filho de volta ao lar. A fase de fanatismo passou. E, agora, nas relaes entre pai e filho, reconciliados e, talvez, ambos com um pouco de remorso, manifestava-se novamente calor e afeio. As longas noites de inverno foram outra vez dedicadas leitura em comum. Era a escolha dos temas que evidenciava mais claramente o conflito que ia na alma de seu pai. Depois de seu retomo da arcaica e austera atmosfera de Gera, marcada pelo ensino escolstico e um modo de vida do sculo XIII, Isaac tomou a si a tarefa de estudar as obras de Goethe e Lessing ou os tratados filosficos de Spinoza. Tdas as pginas dos livros lidos juntamente com o pai, proclamavam: DE OMNIBUS DUBITANDUM; ainda h poucas semanas, na crte do maravilhoso rabino, a tradio, a autoridade e a cegueira da f constituam tudo. Spinoza, o rebelde, o ateu, o herege, o judeu excomungado, mostrou-se um bem sucedido mentor para o jovem rabino, que j abandonava a religio de uma vez para sempre. Quando estavam bem-humorados, pai e filho costumavam voltar-se para a poesia e a prosa de Heine. Outra vez, aqui, a histria da religio na Alemanha, que Isaac conhecia quase de cor, no poderia lev-lo de volta Sinagoga, mas, pelo contrrio, deveria afast-lo. Houve, ento, as noites em que as poesias de Heine poemas e versos satricos eram lidas em voz alta. A declamao do longo poema Disputation, na qual um pastor catlico e um rabino debatem a dignidade e o valor de suas respectivas religies causou grande alegria. O poema termina assim:

    Welcher recht hat weiss ich nichtDoch es will mich shier bednkenDass der Rabbi und der MnchDass sie alie beide stinken

    # Numa traduo literal: Quem tem razo, isto no sei./ Mas quase me parece./ Que o rabino e o monge./ Todos os dois cheiram mal (N. do T.)

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  • No de admirar que, no dia seguinte e ainda por alguns outros, o lugar de Isaac permanecesse vazio na Sinagoga.

    Spinoza, Heine, Lassale. . . eis os seus trs heris, Isaac costumava dizer para seu pai. Voc empurra as obras dles para as minhas mos, l-as comigo e me contamina com o seu entusiasmo pela sua filosofia e pelas suas idias. Todos os trs deixaram ou superaram o judasmo e a religio. E voc quer que eu permanea crente e leal ao que, j para Spinoza, no sculo XVII, era um anacronismo, assim como para Heine e Lassale, h crca de cem anos, era ridculo. Voc quer que eu aceite de bom grado a vida que voc planejou para mim e, no entanto, todos os seus heris foram rebeldes, apstatas, subversivos.

    No h dvida de que Jacob Deutscher foi a maior influncia pessoal na infncia e adolescncia de Isaac. Havia harmonia e comunho intelectual entre pai e filho, permitindo- lhes entender-se mutuamente; havia tambm discordncia e aborrecimentos, que tomavam suas relaes, algumas vzes, tempestuosas, tensas, mas sempre ricas e altamente frteis. Nesse contato, a personalidade do filho formou-se por si s.

    Eis como, um ms antes de morrer, Isaac falou sbre seu pai:1 Meu pai foi um judeu ortodoxo, amante da cultura, da filosofia e da poesia alems. . . Sempre desejava ler comigo a literatura e os jornais da Alemanha. Publicou, em sua juventude, ensaios no Neue Freie Presse, o mais conhecido jomal de Viena; foi correspondente do Hazefira, de Varsvia, o primeiro dirio a aparecer em lngua hebraica; e escreveu, ainda, um pequeno livro em hebraico sbre Spinoza, com o ttulo latino Amor Dei Intellectualis. Spinoza foi um de seus heris, Heine, outro. Meu pai tinha tambm grande respeito por Lassale, porm, para le, o mais alto ideal intelectual, fora dos escritores judeus, era, sem dvida, Goethe. Eu no compartilhava com a sua parcialidade pela poesia alem. Era um polons patriota. Mickiewicz e Slowacki eram-me, incomparvelmente, mais que

    1 Entrevista feita pela Televiso Alem.

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  • ridos e chegados. Por esta razo, tambm nunca aprendi completamente o alemo1. Meu pai costumava dizer: Sim, voc quer escrever sua boa poesia apenas em polons. Sei que voc ser um dia um grande escritor. Tinha uma idia exagerada do meu talento literrio e queria que me exercitasse numa linguagem mundial. Alemo, dizia le, a lngua universal. Por que enterraria voc todo sse talento numa lngua provinciana? Voc s tem que ir alm de Auschwitz. . . Auschwitz estava bem prximo de ns, na fronteira voc s tem que ir alm de Auschwitz e, praticamente, ningum mais o entender, nem voc nem seu belo idioma polons. O que voc deve aprender o alemo. ste era o seu nunca esquecido refro. Voc s tem que ir alm de Auschwitz e estar completamente perdido, meu filho. Eu j estava impaciente e, algumas vzes, o interrompia: J sei o que voc vai dizer, papai voc s tem que ir alm de Auschwitz e estar perdido. A trgica verdade que meu pai nunca foi alm de Auschwitz. E, na Segunda Guerra Mundial, ali desapareceu-.

    Isaac reconciliou-se, afinal, com a lngua e a cultura alems: foram os trabalhos de Marx e Engels que conseguiram esta reconciliao. S os leu bem mais tarde, quando adulto. Era um menino polons, educado numa escola polonesa. Para ns, os alemes, como os russos, eram opressores, que nos roubaram a independncia por sculo e meio e contra quem lutamos em numerosas insurreies. Na escola cantvamos a cano de Maria Konopnicka, grande e renomada poetisa, com o seguinte refro: Os alemes no cuspiro em nossos rostos nem transformaro em alemes nossas crianas. E, eis meu pai querendo transformar-me num alemo! Essa tentativa se chocava contra minha sensibilidade pela poesia lrica polonesa e tdas as minhas noes sbre a independncia da Polnia.

    Amor Dei Intellectualis parece ter sido o lema tanto de Jacob como de Isaac Deutscher. sse lema contradizia todos

    1 Isaac falava um alemo fluente e idiomtico.2 Durante a ocupao nazista, em Auschwitz existiu um dos mais

    famosos campos de concentrao, onde milhares de judeus foram dizi- mados. (N. do T.)

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  • os esforos de um pai que desejava para seu primognito uma carreira teolgica. O prprio pai, indiretamente ou sem perceber, semeou a dvida e incutiu em Isaac aqule respeito pela heresia, que permaneceu, caracteristicamente, at o fim de sua existncia.

    Mas, em que ponto de sua vida, Isaac abandonou a religio para sempre? Isso foi, na verdade, um processo gradativo. Mas, sem dvida, determinado episdio, altamente dramtico, que atraiu o senso teatral de Isaac, selou o rompimento final. Aqui, de nvo, de modo mais remoto, a personalidade do pai contribuiu em alguma coisa para o desenvolvimento da personalidade do filho.

    Poucos meses depois de completar quatorze anos, Isaac fz-se amigo de um jovem aprendiz da grfica, excelente trabalhador, muito amadurecido para sua idade, sempre bem informado sbre os acontecimentos polticos de ento. Era comunista, ateu, e, ainda, o favorito de Jacob Deutscher! ste rapaz tratava Isaac com pouca condescendncia, e um toque de ironia. Mas gostava de envolv-lo em todo o tipo de debate sbre poltica e religio. Em ambos os casos, parecia disposto a converter Isaac aos seus pontos de vista. Na vspera do Yon Kippur, o Dia da Expiao, le provocou Isaac: Se voc realmente no acredita em Deus disse prove-o. Faa-me companhia amanh na porta do cemitrio judeu. Isaac aquies- ceu. Enquanto seus pais se dedicavam s oraes os dois companheiros encontraram-se. O aprendiz levou o jovem Isaac ao tmulo do rabino. Ali, le tirou do blso dois sanduches de manteiga e presunto. Isto, sem dvida, era uma extrema blasfmia; acumulavam-se pecados sbre pecados. No dia do mais rigoroso dos jejuns, quando nem mesmo uma gta de gua deveria passar atravs dos lbios de um judeu ortodoxo, Isaac empunhava a mais pecaminosa das comidas. A simples viso do presunto ser-lhe-ia odiosa. Botar qualquer carne entre camadas de manteiga constitua grave ofensa s leis do ritual; e a estava o presunto, o mais abominvel, o mais pernicioso dos alimentos. Fiquei petrificado pela iniqidade de minha conduta. Mastiguei o sanduche e engoli cada pedao com dificuldade. Estava meio esperanoso e meio temeroso de que algo acontecesse; esperava que um relmpago me despeda

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  • asse. Mas nada aconteceu. Tudo estava quieto. Meu companheiro considerou a experincia uma grande brincadeira. Apertou minhas mos, bateu-me nas costas. Deixei-o e corri de volta cidade. Na Sinagoga ningum notara a ausncia de Isaac. Voltou de sua escapada pecaminosa a tempo de misturar-se com a multido, que, depois de um dia de rezas e jejum, retornava a seus lares para um solene banquete. mesa, com a famlia, mal podia levantar os olhos. Nunca tinha sentido tanto remorso em tda a minha vida. No pelo que tinha feito; no era, de modo algum, a ofensa contra as leis de Moiss que pesava tanto em minha conscincia. A solicitude de meu pai, o carinho de minha me, que, plida e consumida pelo longo jejum, se apressava em servir a famlia faminta e a mim, antes de todos tudo isso se tomara insuportvel para mim.

    Isaac narrava ste episdio sempre com grande dose de emoo. A refeio profana sbre o tmulo do rabino, o sacrilgio, a impiedade, seus temores, crenas e descrenas eram apenas o pice de um longo processo no caminho do atesmo. Mas, naquela noite, no foi Deus o ridicularizado. Seus pais que foram ludibriados. E isto fz o jovem pecador, chocado, engasgar com a comida, envergonhar-se e chorar.

    Isaac no viveu para descrever sua infncia tal como desejava fazer, mas referncias autobiogrficas, em muitos de seus trabalhos, mostraram o que lhe aconteceu na sua peregrinao de f. No primeiro ensaio dste volume, fala, indiretamente, sbre si prprio, sua origem, seu desenvolvimento intelectual e filosfico. Pertencia e sentia-se pertencer quela estirpe de judeus no-judeus, que transcendiam o judasmo, para atingir os mais altos ideais da humanidade. Como Heine, Marx, Rosa Luxemburg, Trotski e Freud, Isaac achou o judasmo e tdas as religies bastante limitadas e, como les, viveu margem de vrias culturas nacionais e estava na sociedade polonesa, judaica, inglsa, alem sem nela se integrar. Ainda a permanecia na tradio judaica e nuncao negou.

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  • Na ltima noite de sua vida, inspecionamos do alto do Capitlio o Arco de Tito, brilhantemente iluminado pela plena luz do vero. Em suas precisas e bem torneadas frases, em ingls, cheias de sentimento e poesia, Isaac contava como, apesar de odiado pelos judeus, aqule era o smbolo do triunfo romano.

    A batalha de Jerusalm foi prolongada. Tito desfilou suas legies ao longo dos muros da cidade em crco. Eram bem armadas e pareciam audazes. Deviam atemorizar os sitiados. Lembrem-se, continuou Isaac, persuasivamente, que os romanos possuam tudo em volta Jerusalm estava sozinha. Havia o templo cercado de muros, e o palcio real, tambm com as suas fortificaes. Tinham protees internas, defesas cuidadosamente construdas e baluartes externos. Os defensores poderiam ousar sair para atacar o inimigo, mas eram obrigados a voltar para dentro de sua enorme e aparentemente inexpugnvel fortaleza. Os romanos impacientavam-se. Seu orgulho estava ferido e concentraram tdas as suas fras no assalto. Tito ordenou que no dessem trgua nos ataques. Dentro da fortaleza, mais de meio milho de homens, mulheres e crianas, todos armados e sem mdo de morrer; e les viram o brilho do relmpago e escutaram a voz de Deus, dizen- do-lhes que defendessem o templo at o seu ltimo suspiro; e o fizeram. Tito, porm, era mais forte; investiu com tdas as suas fras contra o bastio e as paredes ruram. Em Roma, regozijava-se. Levantou-se o Arco para comemorar a volta triunfal de Tito e de sua tropa da Judia. ste fato assinala a queda de Jerusalm e a destruio do templo. Geraes de judeus vm derramando lgrimas e suspirando ao pensar nessa calamidade.

    Mais de meio sculo passou desde que a imaginao de Isaac se abalou quando ouviu esta trgica histria dos lbios do seu professor, o poeta visionrio, o rabino barba vermelha do colgio judaico. O caminho que Isaac percorreu, do kheder de Chrzanow aos sales de conferncia de Cambridge e Har- vard, ao campus dos estudantes rebeldes de Berkeley, foi muito longo; foi tambm solitrio e rduo.

    A infncia mostra o homem Como a madrugada mostra o dia

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  • Assim escreveu Milton. Parece que Isaac obedeceu ao preceito do poeta:

    S famoso entoPela sabedoria; como teu imprio deve

    [estender-se, Estende tua conscincia sbre todo o mundo.

    Londres, dezembro de 1967 Tamara Deutscher

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  • IO Judeu No-Judeu'

    I J um velho ditado talmdico o judeu que pecou permanecer sempre judeu. O que penso, sem dvida, transcende a idia do pecado e do no pecado. Mas sse preceito me reavivou no esprito uma recordao da infncia que pode ser relevante para meu tema.

    Lembro que, quando era criana, li o Midrasli e a descrio de uma cena muito me impressionou. Era a histria do Rabino Meir, o grande santo e sbio, o pilar da ortodoxia mosaica e o co-autor do Mishnh, que aprendeu teologia com um

    1 ste ensaio se baseia numa conferncia pronunciada durante a Semana do Livro Judaico, para o Congresso Judaico Mundial, em fevereiro de 1958.

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  • herege, Elisha ben Abiyuh, chamado Akher (O Estrangeiro). Certo sbado, o Rabino Meir estava com seu mestre e, como de costume, se envolviam em profundo debate. O herege ia

    ' num burrico e o Rabino Meir, como no podia cavalgar aos sbados, caminhava a seu lado. Escutava to atentamente as palavras de sabedoria saindo dos lbios do herege, que no percebeu quando ultrapassaram aquela divisa proibida aos judeus de cruzar naquele dia. O grande herege, dirigindo-se ao aluno ortodoxo, disse: Veja, alcanamos a divisa, devemos nos separar agora, voc no mais deve acompanhar-me. Volte! O Rabino Meir voltou para a comunidade judaica, enquanto o herege ultrapassava a divisa.

    Havia muito naquela cena para preocupar um pequeno judeu ortodoxo. Por que eu me perguntava o Rabino Meir, aqule homem luminar da ortodoxia, tomava lies de um herege? Por que lhe dedicava tanta afeio? Por que o defendeu contra os outros rabinos? Meu corao, ao que parece, estava com o herege. E quem era ste herege? le parecia estar, ao mesmo tempo, dentro e fora do judasmo. Mostrou estranho respeito pela ortodoxia de seu aluno quando o fz retomar aos judeus, no Sbado Santo; mas, le mesmo, desconsiderando os cnones e o ritual, ultrapassou a divisa. Quando eu tinha treze anos, ou talvez quatorze, comecei a escrever uma pea sbre Akher e o Rabino Meir e tentei encontrar mais alguma coisa a respeito do herege. Que o fz superar o judasmo? Era um agnstico? Era adepto de alguma outra escola de filosofia grega ou romana? No pude encontrar respostas e no consegui passar do primeito ato.

    O judeu herege, que superou o judasmo, pertence a uma tradio judaica. Voc pode ver Akher, se quiser, como um prottipo daqueles grandes revolucionrios do pensamento moderno: Spinoza, Heine, Marx, Rosa Luxemburg, Trotski e Freud. Tambm pode, se assim o desejar, coloc-los dentro da tradio judaica. Todos ultrapassaram a divisa do judasmo, que consideravam to estreito, to arcaico, to constrangedor. Todos procuraram ideais e satisfao fora do judasmo e representaram a soma e a essncia de tudo que mais grandioso no pensamento moderno, a soma e a essncia das mais profundas

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  • convulses que ocorreram na filosofia, na economia, e na poltica nos ltimos trs sculos.

    Tinham alguma coisa em comum? Influenciaram, talvez, o pensamento da humanidade por causa do seu especial gnio judaico? les no acreditavam na genialidade exclusiva de uma raa. Penso, no obstante, que, de alguma forma, foram bastante judeus. Levavam dentro de si algo da quintessncia da vida judaica e de sua intelectualidade. Foram excepcionais nisso, pois, como judeus, viviam nas fronteiras de vrias civilizaes, religies e culturas nacionais. Nasceram e se criaram nas fronteiras de vrias pocas. Amadureceram onde se cruzavam as mais diversas influncias culturais, fertilizando-se umas s outras. Viveram nas margens, nos cantos ou nas fendas de suas respectivas naes. Cada um dles estava na sociedade ou fora dela, pertenciam-lhe ou no. Foi isso que lhes possibilitou elevar o pensamento acima de suas sociedades, suas naes, suas pocas, seus contemporneos e expandir-se mentalmente para novos horizontes e para o futuro.

    Penso que um protestante ingls, bigrafo de Spinoza, disse que somente um judeu teria conseguido aqule desenvolvimento na filosofia de sua poca, como Spinoza o conseguiu um judeu liberto dos dogmas das igrejas crists, catlica e protestante, e tambm daqueles em que se criou1. Nem mesmo Descartes ou Leibnitz puderam libertar-se dsse tipo de grilhes que os acorrentavam s tradies da escolstica medieval na filosofia.

    Spinoza educou-se sob as influncias da Espanha, Holanda, Alemanha, Inglaterra e Itlia do Renascimento. Tdas as tendncias do pensamento, que vigoravam naquela poca, formaram seu carter. Sua terra natal, a Holanda, estava em plena

    1 uma sria desvantagem, resultante do grande triunfo externo do Cristianismo, o fato de que os pensadores da cristandade s muito raramente entraram em contato com outras religies e com outros tipos de orientao mundial. A conseqncia dessa inexperincia consiste em que as coisas comuns foram tomadas como verdadeiras pela forma crist de encarar o mundo. . . .O mais ousado e original pensador.. . foi Spinoza que se colocou acima dos preconceitos teolgicos, dos quais os outros no puderam libertar-se completamente (A Correspondncia de Spinoza. Introduo escrita por A. Wolf).

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  • revoluo burguesa. Seus antepassados, antes de virem para a Holanda, foram cripto-judeus maranim, judeus de corao e cristos de fachada, assim como o eram muitos judeus espanhis aos quais a Inquisio impusera o batismo. Depois de chegar Holanda, os Spinozas mostraram-se, na realidade, judeus; mas, evidentemente, nem les nem seus descendentes mais prximos eram estranhos ao ambiente intelectual do catolicismo.

    O prprio Spinoza, quando se lanou como pensador independente e iniciador da moderna crtica Bblia, compreendeu, imediatamente, as principais contradies do judasmo a contradio entre o Deus monotesta e universal e o conjunto com o qual le se apresenta na religio judaica como um Deus legado somente a um povo: a contradio entre o Deus universal e seu povo eleito. Sabemos o que a conscincia desta contradio provocou em Spinoza: foi banido da comunidade judaica e excomungado. Teve de lutar contra os clrigos judaicos, os quais, vtimas recentes da Inquisio, se tomaram infectados pelo seu esprito. Depois, teve de enfrentar a hostilidade dos clrigos catlicos e dos padres calvinistas. Sua vida inteira constituiu uma luta para sobrepujar as limitaes das religies e culturas de seu tempo.

    Entre os judeus de grande inteligncia, expostos s contradies de vrias religies e culturas, alguns foram de tal forma impelidos em diferentes direes por influncias e presses contraditrias que, no conseguindo encontrar o equilbrio espiritual, fracassaram. Um dsses foi Uriel Acosta, precursor e mais velho que Spinoza. Muitas vzes, le se rebelou contra o judasmo e outras tantas se retratou. Os rabinos excomungaram-no. E sempre Uriel Acosta se prostrava diante dles, no cho da Sinagoga de Amsterd. Spinoza, porm, tinha a grande felicidade intelectual de no harmonizar influncias conflitantes e delas tirar uma alta viso do mundo e uma filosofia integrada.

    Em quase tdas as geraes, onde quer que o intelecto judeu, a servio da concatenao de vrias culturas, luta contra si prprio e contra problemas do seu tempo, encontraremos algum que, como Uriel Acosta, fracassou sob o pso dessa tarefa e algum, como Spinoza, que tirou desta carga as asas

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  • para a sua grandeza. Heine foi, de certo modo, um Uriel Acosta mais velho. Sua relao com Marx, neto intelectual de Spinoza, comparvel quela que existia entre Uriel Acosta e Spinoza,

    Heine dividia-se entre o cristianismo e o judasmo e entre a Frana e a Alemanha. Em sua terra natal, a Rennia, choca vam-se as influncias da Revoluo Francesa e do Imprio Napolenico com as influncias do velho Santo Imprio Romano dos Kaisers alemes. Ele cresceu no mbito da filosofia clssica alem e no seio do republicanismo francs, vendo Kant como um Robespierre e Fichte como um Napoleo no reino do esprito. assim que os descreve em uma das mais profundas e comoventes passagens do Zur Geschichte der Religion and Philosophie in Deutschland. ( Sbre a Histria da Filosofia e da Religio na Alemanha). Nos seus ltimos anos, entrou em contato com o socialismo e o comunismo francs e alemo, e, ao encontrar-se com Marx, demonstrou aquela mesma apreensiva admirao e simpatia com que Acosta encontrara Spinoza.

    Marx, da mesma forma, cresceu na Rennia. Seus pais deixaram o judasmo e le no lutou contra a herana judaica como Heine o fizera. Entretanto, grande foi sua oposio ao atraso social e espiritual da Alemanha de ento. Viveu no exlio a maior parte de sua existncia e suas idias se formaram na filosofia alem, no socialismo francs e na economia poltica inglsa. Em nenhum outro crebro contemporneo estas diferentes influncias se combinaram de forma to fecunda. Marx ultrapassou a filosofia alem, o socialismo francs e a economia poltica inglsa. Extraiu o que nles havia de melhor e superou suas limitaes.

    Em poca mais recente, teremos Rosa Luxemburg, Trotski e Freud, cada um dles formado no meio de um entrelaamento de correntes histricas. Rosa Luxemburg representa uma fuso nica das caractersticas alems, polonesas e russas no temperamento judeu; Trotski foi aluno de um gymnasium luterano russo-alemo na cidade cosmopolita de Odessa, nas fronteiras do Imprio grego-ortodoxo dos Czares. E, o carter de Freud amadureceu em Viena, alheio ao judasmo e em oposio ao cle- ricalismo catlico da capital do Imprio dos Habsburg. Todos tinham em comum aquelas condies prprias, com as quais viveram e pelas quais lutaram, que no os deixavam reconci

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  • liar-se com idias nacional ou religiosamente limitadas e que os impeliam a combater por uma universal Weltanschauung.

    A tica de Spinoza no era mais a judaica, mas a de um homem sem amarras, assim como seu Deus j no era mais o Deus dos judeus. Seu Deus, unido com a natureza, derramava sua divina identidade separada e distintamente. O Deus e a tica de Spinoza, de certo modo, permaneciam judaicos, mas, 0 monotesmo o levou a concluso lgica e o Deus universal judeu foi decifrado. E, uma vez decifrado, deixou de ser judeu.

    Heine lutou contra o judasmo a vida inteira. Essa atitude era caractersticamente ambivalente, cheia de amor-dio e dio- amor. Nesse ponto, foi inferior a Spinoza que, excomungado pelos judeus, no se tomou cristo. Heine no teve a mesma opinio e fra de carter de Spinoza. Viveu numa sociedade que, nas primeiras dcadas do sculo XIX, era ainda mais atrasada do que a holandesa no sculo XVII. A princpio, le se prendia s esperanas da pseudo-emancipao dos judeus, o ideal expressado por Moiss Mendelsohn nas seguintes palavras: ser um judeu em casa e um homem fora dela. A timidez daquele ideal gennano-judaico era um pouco do vulgar liberalismo no-judaico da burguesia alem: o alemo liberal era um homem livre dentro de casa e um allertreuester Unter- tam (O sdito mais leal) fora dela. Isto no satisfaria Heine por muito tempo: abandonou o judasmo e rendeu-se ao cristianismo. No ntimo, nunca se conformou com a desero e a converso. O repdio ortodoxia judaica atravessa sua obra inteira. Seu Don Isaac diz ao rabino de Bachrach: Eu no poderia ser um dos vossos. Gosto muito mais de vossa comida do que de vossa religio. No, eu no poderia ser um dos vossos e. imagino mesmo que, naqueles bons tempos e sob as leis do vosso Rei David, no seu perodo ureo, eu fugiria de vos e me abrigaria nos templos da Assria e Babilnia, que eram mais cheios de amor e de alegria de viver. Mas. foi ste eausticante e ressentido judeu que, no An Edom, geicaltig besehtvoren den tausendjakrgen Schmerz (evocou com fora o sofrimento milenar').

    Maix, cerca de vinte anos mais moo, superou os problemas que atormentavam Heine. Apenas uma vez se viu s

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  • voltas com sse assunto: foi no famoso Zur Judenfrage1, sua franca repulsa ao judasmo. Apologistas da ortodoxia e do nacionalismo judaicos atacaram-no violentamente por causa dessa obra, acusando-o de anti-semita. Mas, creio, Marx entrou no mago da matria quando disse que o judasmo sobreviveu no em virtude da histria, mas na histria e atravs da histria; devia sua sobrevivncia ao papel que os judeus desempenhavam como agentes de uma economia monetria, enquanto que em volta dles ainda se vivia em uma economia natural. Aquele judasmo foi essencialmente um resumo terico de relaes de mercado e de crdito dos comerciantes. E aquela Europa crist, ao evoluir do feudalismo para o capitalismo, tomou- se, em certo sentido, judaica. Marx viu Cristo como um judeu terico, o judeu como um catlico prtico e, conseqentemente, o prtico cristo burgus como um judeu. E, considerando o judasmo um reflexo religioso do modo de pensar da burguesia, observou que o judasmo assimilava a Europa burguesa. Seu ideal no era a igualdade entre judeus e no- judeus numa sociedade capitalista judaica, mas, a emancipao, tanto do judeu como do no-judeu, da vida burguesa, ou, como provocativamente definiu com o seu ultraparadoxal linguajar, no estilo de Hegel, a emancipao da sociedade do judasmo. Sua idia era to universal quanto a de Spinoza, alm de avanada duzentos anos era a idia do socialismo e de uma sociedade sem classes e sem govmo.

    Dentre seus muitos discpulos e seguidores nenhum se identificava tanto com le, em esprito e pensamento, como Rosa Luxemburg e Leon Trotski. A afinidade dles com Marx aparecia na sua viso dialtica do mundo cheio de dramas, de lutas de classes, e naquela excepcional coordenao de pensamento, paixo e imaginao, que davam linguagem e ao estilo uma clareza, densidade e riqueza peculiares. (Talvez Bemard Shaw tivesse em mente essas qualidades quando se referiu aos dons literrios peculiarmente judaicos de Marx). Rosa Luxemburg e Trotski, da mesma forma que Marx, lutaram, juntamente com seus camaradas no-judeus, por solu-

    1 A Questo Judaica obra escrita na sua juventude ( N. do T .)

  • 6es universais para os problemas do seu tempo, opondo-se tanto ao particularismo quanto ao nacionalismo e a favor do intemacionalismo. Rosa Luxemburg procurou superar as contradies entre o socialismo reformista alemo e o marxismo revolucionrio russo. Tentou injetar no socialismo alemo algo do idealismo revolucionrio c do lan russo e polons, alguma coisa daquele romantismo revolucionrio, que mesmo um grande realista como Lnin exaltou sem constrangimento. Outras vzcs, ela quis transplantar o esprito e a tradio democrticos da Europa ocidental para os movimentos socialistas subterrneos da Europa oriental. Fracassou no seu principal propsito e pagou com a vida. Mas no foi apenas ela que pagou. No seu assassinato, a Alemanha dos Hohenzollern festejou 0 ltimo triunfo e a Alemanha nazista, o primeiro.

    Trotski, o terico da revoluo permanente, tinha diante de si a viso de 11111 levante universal que transformaria a humanidade. O lder da revoluo russa c o criador junto com Lnin do exrcito vermelho, entrou em choque com o Estado que ajudara a criar, quando ste Estado e seus lderes levantaram a bandeira do socialismo num s pas. Trotski no admitia que se restringisse a imagem do socialismo s fronteiras de um unieo pas.

    Todos sses grandes revolucionrios foram extremamente vulnerveis, pois, em certo sentido, no tinham razes como judeus. Mas, sob outros aspectos, deitavam profundas razes na tradio intelectual e nas mais nobres aspiraes do seu tempo. Contudo, sempre que a intolerncia religiosa ou as emoes nacionalistas estivessem em ascenso, onde quer que a estreiteza dogmtica de raciocnio e o fanatismo triunfassem, les eram as primeiras vtimas. Foram excomungados pelos rabinos, perseguidos pelos padres cristos, oprimidos pelos gen- tltinurs de governos absolutistas e pela soldateska; odiados pelos pseudodeinocrat&s filisteus e expulsos de seus prprios partidos. Quase todos sofreram o exlio e, uma vez ou outra, seus escritos foram queimados na fogueira. O nome de Spinoza no pde ser mencionado por mais de um sculo depois de sua morte; mesmo Leilmit*, que devia muitos de seus pensamentos a Spinoza, nSo ousava mencion-lo. Trotski permanece ainda anatema- tfcado na Rssia de hoje. Os nomes de Marx, Heine, Freud e

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  • Rosa Luxemburg foram proibidos at recentemente na Alemanha. Mas, dles a vitria. Depois de um sculo, durante o qual o nome de Spinoza foi premeditadamente coberto com a capa do esquecimento, ergueram-sc-lhe monumentos e reconheceram nle a mente mais fecunda do pensamento humano. Her- der disse ccrta vez sbre Goethe: Estimaria que Goethe lsse algumas obras latinas alm da tica de Spinoza. E, muito corretamente, Heine o descreveu como o Spinoza que jogou fora o manto de sua frmula geomtrico-matemtica e apresenta-se diante de ns como um poeta lrico. O prprio Heine triunfara sbre Hitler e Goebbels. Outros revolucionrios dessa linha tambm sobrevivero e, mais cedo ou mais tarde, triunfaro sbre aqules que tudo fizeram para apagar a sua lembrana.

    Toma-se patente o porqu de Freud pertencer a essa mesma linha intelectual. Em seus ensinamentos, possua ou no mritos ou demritos, transcende s limitaes das primeiras escolas psicolgicas. O homem que analisa no alemo ou ingls, russo ou judeu o homem universal, no qual lutam o subconsciente e o consciente, o homem que parte da natureza e parte da sociedade, homem cujos desejos e splicas, escrpulos e inibies, ansiedades e condies so as mesmas, qualquer que seja a raa, religio ou nao a que pertena. Os nazistas, no seu modo de ver, estavam certos quando ligaram o nome de Freud ao de Marx e queimaram as obras de ambos.

    Todos sses pensadores e revolucionrios tiveram certos princpios filosficos em comum. Embora variem suas filosofias, claro, de sculo para sculo e de gerao a gerao,todos les, de Spinoza a Freud, so deterministas. Todos sustentam que o universo dirigido por leis inerentes sua prpria existncia e governado pelas Gesetzmassigkeiten (pelas leis). No vem a realidade como um amontoado de acidentes ou a histria como um conjunto de caprichos e fantasias dos governantes. No h nada fortuito, diz Freud, nos nossos sonhos, loucuras e mesmo nos lapsos de nossa fala. A lei do desenvolvimento, afirma Trotski, retrata-se atravs de acidentes. E, ao dizer isso, aproxima-se bastante de Spinoza.

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  • Todos so deterministas porque, tendo estudado muitas sociedades e observado maneiras de viver em perodos determinados, compreenderam as regularidades bsicas da existn- cia. Suas diferentes formas de pensar so lgicas, porque, vivendo dentro de fronteiras de vrias naes e religies, vem a sociedade cm estado de fluidcz. Concebem a realidade como dinmica e no esttica. Aqules que esto fechados dentro de uma sociedade, de uma nao ou de uma religio, tendem a imaginar que a sua prpria maneira de viver e de pensar tem validade absoluta e imutvel e que tudo o que contraria seus padres , de alguma forma, anormal, inferior e maligno. Aqules que, por outro lado, vivem dentro dos limites de vrias civilizaes compreendem mais claramente o grande movimento e a g r a n d e contradio entre a natureza e a sociedade.

    Todos sses pensadores concordam sbre a relatividade dos padres morais. Nenhum dles acredita no absolutamente bom ou absolutamente mau. Todos observaram sociedades aderindo a diferentes padres de moral e a diferentes valores ticos. O que e r a bom para a Inquisio catlieo-romana. sob a qual viveram os avos de Spinoza, no o era para os judeus: o que e r a bom para os rabinos e os mais velhos judeus de Amsterd e r a mau para o prprio Spinoza. Heine e Marx experimentaram. em sua juventude, o tremendo choque entre a moralidade da revoluo francesa e a da Alemanha feudal. Quase todos tinham, ainda, outra grande idia filosfica em comum a idia de que o saber, pira ser verdadeiro, deve ser atuante, tsto, alis, se relaciona com seus pontos de vista sbre tica, pois se o saber inseparvel da ao, ou da Pmris. que, por naturexa, relativa e contraditria, ento a moraL o conhecimento do bem e do mal inseparvel da Fnm s e tambems relativa e eoutraditria, Spiimza disse que ser fazer e saber fagerw, Isso estava a mo passo apenas do que M an pnjduna- va; "at assara os filsofos; intem retaram o mmede; de agora en\ diante tratais de tiansfonn&lo

    FinahnenU% todos sses homens* de Spioaizai a FrenadL aane- ditavam na verdadeira solidariedade do lnommema e isto ffiemni Jtoplfeto esn soas atitudes a respeito da judafemn Agara, fesar-

    sses rentes da humanidade, atares da sMfijrejmta mwm s atravs da ftmnnuaia da cisiniMunfi

  • de gs; fumaa que nenhum vento dispersa de nossas vistas. Esses judeus no-judeus foram essencialmente otimistas; e o seu otimismo alcanou pontos dificilmente atingveis em nosso tempo. No imaginavam que a civilizada Europa mergulharia lios abismos da barbrie, quando simples palavras como solidariedade humana soassem como brincadeira perversa aos ouvidos dos judeus. Entre les, smente Heine teve aquela sensibilidade intuitiva dos poetas, quando, ento, advertiu Europa que se precavesse contra o iminente ataque dos velhos deuses germnicos emergindo aus clern teutscnem Urwalde (da floresta teutnica). Lamentava que o destino dos judeus de hoje fsse muito mais trgico do que se possa expressar ou compreender to trgico que les riem quando se fala disso. E eis exatamente a a maior das tragdias. No se encontram em Spinoza ou em Marx sses pressentimentos. Freud, j na velhice, vacilou mentalmente sob a presso do nazismo. Para Trotski, a premonio chegou como um choque, porque Stalin usou contra le o anti-semitismo. Trotski repudiara, quando jovem, em trmos bastante categricos, o desejo de uma autonomia cultural judaica, que o Bund, Partido Socialista Judaico, reivindicara em 1903. Fizera-o em nome da solidariedade aos judeus e no-judeus no campo socialista. Aproximadamente um quarto de sculo mais tarde, quando se entregava a uma luta desigual contra Stalin e foi s clulas do partido, em Moscou, a fim de expor seus pontos de vista, encontrou maldosas aluses sua origem judaica e mesmo insultos anti-semitas. As aluses e os insultos partiram de membros que le, juntamente com Lnin, conduziu durante a revoluo e na guerra civil. Outro quarto de sculo mais tarde, e depois de Auschwitz, Majdanek e Belsen, uma vez mais, s que desta feita aberta e ameaadoramente, Stalin recorreu s aluses anti- semitas e ao insulto.

    indubitvel que o massacre de seis milhes de judeus europeus no deixou grandes marcas nas naes europias. Nem, na verdade, chocou suas conscincias. Isso as deixou quase frias. Justificava-se a crena otimista no sentimento de humanidade, crena esta to decantada pelos grandes revolucionrios judeus? Devemos, ainda, compartilhar de sua f no futuro da civilizao?

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  • Admito que, mesmo se algum tentasse responder a essas perguntas, formuladas sob o ponto de vista exclusivamente judeu, seria difcil, ou mesmo impossvel, uma resposta positiva. De minha parte, como no posso falar sob um ponto de vista exclusivamente judeu, minha resposta : Sim, a f que les tinham se justificava. Justificava-se de qualquer modo, tanto mais que a crena nos derradeiros sentimentos de solidariedade dos homens , por si prpria, uma das condies necessrias para a preservao da humanidade e para varrer, de nossa civilizao, os resqucios de barbrie que ainda esto presentes e ainda a envenenam.

    Por que o destino dos judeus europeus deixou os pases da Europa, ou o mundo no-judeu, indiferentes, quase frios? Infelizmente, Marx estava muito mais certo, a respeito do lugar que os judeus ocupavam na sociedade europia, do que se podia pensar h algum tempo. Grande parte da tragdia dos judeus consistiu em que, como resultado de um longo processo histrico, os europeus se acostumaram a identificar o judeu como dono de negcios cmbio, emprstimo enfim, um fazedor de dinheiro. Judeu, na opinio popular, tomara-se sinnimo ou smbolo disso tudo. Procurem no Oxford English Dictionanj e vero como se expe o significado corrente do trmo judeu: primeiramente, uma pessoa da raa hebraica; em seguida, vem o uso comum: um usurrio extorsivo; condutor de negcios difceis. To rico como um judeu, diz o provrbio. Correntemente, a palavra tambm usada como verbo transitivo: to jew, que, no Oxford Dictionary significa enganar, levar vantagem. Esta a imagem vulgar do judeu e os preconceitos comuns contra le esto fixados em muitos idiomas, no apenas no ingls, e em muitas obras de arte. No apenas em O Mercador de Veneza.

    Entretanto, essa no a nica imagem vulgar do judeu. Tentem lembrar a ocasio e a forma pela qual Macaulay pleiteou igualdade poltica para os judeus e no-judeus e o direito de entrarem para a Cmara dos Comuns. Apreciava-se, nessa ocasio, a admisso de um Rothschild, o primeiro judeu a entrar para os Comuns, um judeu eleito pela cidade de Londres. E o argumento de Macaulay foi o seguinte: se permitimos a um judeu dirigir os assuntos financeiros para ns, por que no

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  • permitir-lhe sentar-se conosco no Parlamento e ter o direito palavra sbre a direo de todos os nossos assuntos pblicos? Essa era na verdade a voz do cristo burgus que, depois de rpida ponderao, saudou Shylock como seu irmo1.

    O que capacitou os judeus creio a sobreviver como comunidade separada foi o fato de representarem o mercado econmico entre pessoas que viviam em economia natural. Isto, ligado s lembranas populares, condicionou tambm, pelo menos em parte, a indiferena com a qual a plebe da Europa presenciou o holocausto dos judeus. Para sua maior desventura, quando os povos europeus se tomaram hostis ao capitalismo, na primeira metade do sculo, les no o fizeram seno muito superficialmente, e, de qualquer modo, na primeira metade dste sculo. No atacaram o cerne do capitalismo, nem suas relaes de produo, nem as organizaes de propriedade e trabalho, mas suas externas e antiqssimas ligaes que, no raro, eram de fato de judeus. Esta a cruz da tragdia judaica. O capitalismo decadente j ultrapassou seus dias e arrasou moralmente a humanidade e ns, judeus, pagamos por isso e, talvez, tenhamos de pagar de nvo.

    Tudo isso forou os judeus a ver a criao do seu Estado como a soluo. A maior parte dos grandes revolucionrios, cuja herana estou apreciando, viram que a derradeira soluo para os problemas do seu e do nosso tempo estava no em Nao-Estado, mas em sociedade internacional. Como judeus, foram os pioneiros naturais dessa idia. Quem melhor qualificado do que les para pregar uma sociedade internacional de iguais, livre de tda ortodoxia e nacionalismo judeu e no- judeu?

    Entretanto, a decadncia da burguesia europia forou os judeus a optar pela nao-estado. E, paradoxalmente, isso foi a consumao da tragdia judaica. paradoxal porque vivemos numa poca em que as naes-estado se tomam um anacronismo, um arcasmo, no s naes-estado como Israel, mas como a Rssia, Estados Unidos, Gr-Bretanha, Frana, Alemanha e

    1 O judeu usurrio de O Mercador de Veneza, pea de Shakes- peare (N. do T .)

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  • outros. Todos constituem anacronismos. Ningum ainda viu isso? No evidente que, quando a energia atmica diminui, diriamente, o tamanho da terra, quando o homem j comeou suas jornadas interplanetrias, quando o sputnik sobrevoa o territrio de uma grande nao-estado em um ou dois segundos, que, nesta poca, a tecnologia tomou a nao-estado to ridcula e ultrapassada quanto o foi um pequeno principado medieval na poca das mquinas a vapor?

    Mesmo aquelas jovens naes-estado, que surgiram como o resultado de progressiva e necessria luta, levada a efeito por naes coloniais e semicoloniais, pela emancipao ndia, Birmnia, Arglia, Gana e outras no conservaro suas caractersticas por muito tempo. Essas caractersticas formam um estgio necessrio na histria de algumas naes, mas so estgios que aquelas naes, tambm, tero de ultrapassar de modo a encontrar estruturas mais largas para sua existncia. Em nossa era, qualquer nova nao-estado, logo aps constituir-se, comea a ser afetada pelo declnio geral dessa forma de organizao poltica e isto j se mostra evidente na rpida experincia da ndia, Gana e Israel.

    O mundo compeliu os judeus a adotar a nao-estado e a fazer dela seu orgulho e esperana justamente quando lhe resta muito pouca ou quase nenhuma viabilidade. No se pode culpar os judeus por isso. Deve-se culpar o mundo. Mas os judeus, pelo menos, deviam ficar atentos ao paradoxo e compreender que seu grande entusiasmo pela soberania nacional historicamente tardio. les no se beneficiaram das vantagens da nao-estado naqueles sculos em que esta era uma forma de progresso humano e um grande fator revolucionrio e unifica- dor da histria. Tomaram posse dsse estado e logo em seguida o transformaram num fator de desunio e de desintegrao social.

    Tenho esperana, entretanto, que, juntamente com as outras naes, os judeus mesmo tardiamente se tomem atentos ou recobrem a conscincia da imperfeio de uma nao-estado e achem seu caminho de volta herana poltica e moral que o gnio dos judeus, ultrapassando as fronteiras do judasmo, nos legou: a mensagem da emancipao universal do homem.

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  • II

    Quem Judeu?1

    O fato de que, na verdade, se possa fazer a pergunta quem judeu? d-me a desagradvel sensao de que estou a ponto de discutir um dos tpicos familiares a tantos

    1 Quem judeu? Qual o lugar do intelectual judeu na sociedade moderna e qual o papel que nela representa? Estas perguntas foram formuladas no meio de aceso debate travado nos crculos judaicos por volta de 1960. Isaac Deutscher deu a sua contribuio sbre o assunto em forma de entrevista ao The Jewish Quaterly (Londres, 1966) na qual abordava a suposio tcita da existncia de uma comunidade judaica positiva. Tambm tomou parte nos debates patrocinados pela Seo Inglsa do Congresso Judaico Mundial, em novembro de 1963. ste ensaio constitui a verso condensada da entrevista e de sua interveno no debate.

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  • contos modernos, de Kafka a Nigel Dennis: carteiras de identidades perdidas e, talvez, algumas delas sejam introuvables.

    Quando tantos intelectuais rejeitaram os rituais, os tabus, os prs e os contras de tantas religies, como se pode esperar de um intelectual judeu que se identifique com as mais arcaicas tradies judaicas ainda hoje adotadas? H uns trinta anos passados, julgaria que a pergunta o que d a um intelectual judeu a sua condio de judeu? era completamente irrelevante. Ainda hoje penso parcialmente assim. No bastante perguntar-se algo sbre a identidade de um abstrato intelectual judeu, assim como infrutfero falar-se dle como se fsse a manifestao daquele grande ego em letras maisculas que existe de algum modo no vazio da eternidade judaica. A identidade de um intelectual judeu sim, mas em que mundo, em que ambiente, em que relaes com os problemas de nosso tempo? Esta a maneira, a meu ver, pela qual se deveria formular a pergunta, se que algum o far.

    por demais ftil e irreal julgar-se s e exclusivamente com o solipsismo do intelectual judeu, tentando defini-lo sem muita referncia ao mundo exterior e aos antagonismos que despedaam e dividem a humanidade. Se nos ocupamos com o lugar dos judeus na sociedade, devemos, imediatamente, procurar saber que tipo de judeu se considera e em que tipo de sociedade se est pensando. O judeu na Amrica ou na Unio Sovitica? Na Inglaterra, na Frana? Na Alemanha ou em Israel? Em cada uma dessas sociedades, a posio do judeu diferente. Qual o denominador comum entre as atitudes, papel e funes do judeu nessas diferentes circunstncias?

    altamente significativo e caracterstico de nossa poca que agora, mais do que nunca, os judeus sintam necessidade de tentar definir sua posio vris--vis de sua vizinhana no- judia. Sabemos que seu papel diferente, em qualidade, daquele, por exemplo, do intelectual irlands nos Estados Unidos. Por acaso o Presidente Kennedy pesquisou sua identidade como intelectual irlands? E, todavia, o judeu est cnscio, dolorosamente cnscio, de que h uma tremenda diferena entre sua posio e a do irlands na Amrica. Sente que, de algum modo, naquela grande democracia, le o outro negro: o de pele branca. Mas, freqentemente, vira as costas ao negro: nos

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  • estados sulinos, o judeu, muito mais do que os outros, um adepto fantico da supremacia branca. Como difcil nesse entrelaado de emoes, mdos, preconceitos e arrogncia racial encontrar a identidade de algum. quase impossvel achar- se uma compreenso satisfatria para tdas as complexidades da situao.

    H aproximadamente trinta ou trinta e cinco anos, creio, nenhum intelectual judeu sentia necessidade de definir seu papel ou identidade. Vejamos o meu caso: eu no discutiria jamais um problema como sse. No porque no tivesse razes na tradio judaica. Ao contrrio, fui educado num ambiente judeu, numa escola rigorosamente talmdica; usei cachos no cabelo e minha longa kapota at os dezessete anos. Muito cedo me rebelei contra a ortodoxia religiosa judaica, mas me sentia atrado pelos elementos no religiosos da cultura idiche que se manifestavam na literatura e no teatro. Escrevia em idiche e em idiche me dirigi aos trabalhadores em grandes comcios nem sempre comcios polticos. Ainda vejo diante de mim aquela massa de jovens e velhos, trabalhadores, artesos e pedintes, que se reuniam noite para escutar leituras de poesias e dramas. s vzes, vinham com os uniformes de trabalho, para aplaudir Peretz Markish ou Itzik Manger, recitando poemas, ou Joseph Opatoshu ou J. N. Weissenburg, lendo prosa, ou, ainda, H. D. Nomburg, relembrando escritores idiches do passado. Em lugar nenhum do mundo, em nenhuma sociedade altamente civilizada, excetuando-se, talvez, a Rssia de hoje, as pessoas ficavam to emocionadas ao escutar seus poetas e escritores como os trabalhadores de Varsvia e das provncias polaco-lituanas. A, algo como que uma nova cultura judaica se formava e isto se fazia atravs de um brusco rompimento com a conscincia religiosa.

    Da em diante, empreguei os meus melhores anos, anos de atividade poltica, entre os trabalhadores judeus. Escrevia em polons e em idiche e sentia que minha identidade se fundira com o movimento operrio da Europa oriental em geral e da Polnia em particular. Ns, como marxistas, tentvamos tericamente, negar que o movimento operrio judeu possusse um carter prprio. Mesmo assim, porm, possua. Era bastante bvio que, naquele movimento operrio, o intelectual

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  • achasse a sua funo e no tivesse de se dar ao trabalho de defini-la. Da classe operria da Europa oriental veio o florescimento da cultura idiche. Aquela lngua vigorosa, rica, reno- vando-se e enriquecendo-se constantemente, tomar-se-ia, da noite para o dia, uma lngua morta. Poetas e escritores judeus se apoiaram naquele movimento operrio que vimos afundar no nada, como a Atlntida.

    Todos sabemos como so repelentes alguns crculos judaicos no Ocidente, onde no h seno alguns tabus e muito dinheiro. Aqui, porm, no ambiente que conheo, d-se o contrrio: nenhum dinheiro, nenhum tabu, mas abundncia de esperanas, idias e ideais. Todos ns tnhamos profundo desprezo pelo Yahudim do Ocidente. Nossos camaradas possuam um estfo diferente.

    Por volta da dcada dos trinta, tive a oportunidade de trabalhar em ntimo contato poltico com um homem, aproximadamente vinte anos mais velho do que eu. Nascido na mais extrema misria, cresceu entre os piores lumpenproletariat e a gentalha da cidade, no ltimo degrau da escala social, permanecendo analfabeto at os dezessete anos. Quando o conheci era um dos mais bem educados intelectuais que jamais encontrara em qualquer pas. Onde aprendera a ler, nunca soube. Foi, porm, nas celas das prises da Rssia czarista e nas da Polnia de Pilsudski, nos cursos leninistas em Moscou e nos crculos de palestras dos movimentos revolucionrios subterrneos, onde le, vida e ardentemente, absorveu tudo o que a literatura mundial e a literatura clssica socialista tinham para oferecer. Para essa criana, fruto da mais extrema pobreza judaica, qualquer migalha de saber era sempre mais preciosa do que um pedao de po. A primeira revoluo russa de 1905 foi um jato de luz que iluminou seu horizonte; e, sob essa luz dentro e fora da priso leu as obras de Marx, Engels, Kautsld, leu os contos de Tolstoi, poemas de Mickiewicz e os dramas de Peretz. Sem a revoluo eu me afundaria no pntano do submundo criminoso da Rua Smocha, diz le de si mesmo em suas Mmoirs. Mas, ao contrrio, deixou bem distante de si a Rua Smocha com suas prostitutas, seus bordis, seus batedores de carteira e ladres, sua degradao fsica e moral. Na verdade, le subiu do Vale de Lgrimas de sua

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  • meninice para as alturas espirituais da poca. Tinha de saber por que lutava e contra que lutava. No havia lugar para le na sociedade onde nascera sua vida foi dedicada a modific- la. No Distrito Muranov de Varsvia, le estava na vanguarda dos operrios judeus; todos tinham sua identidade estampada nas faces, nos olhos, nas mos cansadas pelo trabalho. Ns, intelectuais judeus, que nos preocupvamos com sua sorte, seu desenvolvimento e educao, aspiraes e desejos, tambm possuamos nossa identidade definida sem nunca t-la procurado.

    O Yahudim. do Ocidente, a burguesia e a plutocracia, tinham de conduzir suas fbulas e Tefilim como alguma coisa que realasse seu senso de responsabilidade e dignidade. No podiam ficar atrs dos no-judeus, que, todo o domingo, levavam o missal para a Igreja. Tnhamos a nossa dignidade e no havia necessidade de exp-la. Conhecamos o Talmude, enveredamos pelo khassidismo. Tdas as suas idealizaes eram para ns como areia jogada nos nossos olhos. Crescramos naquele passado judaico. Tnhamos o dcimo-primeiro, o dcimo-terceiro e o sexto sculos da histria judaica vivendo vizinho a ns, e sob o mesmo teto, mas desejvamos fugir dles, desejvamos viver no sculo XX. Atravs dos dourados e dos vernizes de romnticos como Martin Buber, podamos ver e sentir o obscurantismo de nossa religio arcaica e do modo de vida imutvel desde a Idade Mdia. Para alguns dos meus conhecidos, parecia irreal e kafkiano aqule ardor, to comum nos judeus do Ocidente, de voltar ao sculo XVI, volta que, supunham, lhes ajudaria a recobrar ou a redescobrir sua identidade cultural judaica.

    Deixemos de lado reminiscncias pessoais e passemos para assuntos mais comuns: quando se pergunta sbre a identidade judaica, comea-se pela suposio da existncia de uma identidade positiva. Mas, estamos autorizados a fazer tal suposio? Neste perodo da histria do mundo no a prudncia judaica, no fundo, um reflexo de presses anti-semitas? Acredito que se o anti-semitismo no se mostrasse to arraigado, persistente e poderoso na civilizao catlica europia, os judeus no exis

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  • tiriam agora como uma comunidade distinta. Teriam sido completamente assimilados. O que vem recriando constantemente essa conscincia judaica e injetando-lhe, sempre, nova vitalidade tem sido o hostil ambiente no-judeu que o cerca. H trezentos anos Spinoza no via nada de milagroso no fato de que os judeus resistam a uma disperso e a uma perda do seu estado. Diz Spinoza que les incorreram em dio universal por se colocarem parte dos outros povos1. Atribui sua sobrevivncia, em grande parte, s hostilidades dos no-judeus e lembra que, quando o Rei da Espanha forou os judeus a aceitar a religio oficial do reino ou a ir para o exlio, grande nmero dles abraou o catolicismo romano, aps o que lhes foram outorgados privilgios e honrarias iguais aos dos outros cidados. Os judeus em breve se identificaram com os espanhis e, em poucos anos, misturaram-se com a populao local. Em Portugal ocorreu o oposto. Quando Manoel I forou os judeus a aceitar a sua religio, les se converteram, mas el rei no os julgava ainda dignos de quaisquer honrarias; ento, les, judeus, continuaram a viver separados da comunidade por- tugusa.

    Pode-se dizer que o que provoca tais emoes negativas deve ser, no ntimo, um carter positivamente definido ou identidade. Entretanto, tempos atrs, por volta do fim do sculo, essa identidade positivamente definida dos judeus estava em processo de dissoluo. Afinal de contas, foi em protesto contra essa dissoluo que apareceu o sionismo onde quer que o socialismo europeu, como regra, aceitasse e encorajasse a assimilao dos judeus, como parte de um extenso e progressivo movimento, em conseqncia do qual supunha-se estar a sociedade moderna perdendo suas tradies particulares e nacionais.

    Por muitos sculos, o elemento positivo da identidade do judeu estava arraigado ao excepcional papel representado pelos judeus na sociedade europia. Na poca do feudalismo e no princpio do capitalismo, le representava a economia-monet- ria e idias correlatas para as pessoas que estavam condicionadas pela economia natural. No foi por acaso que, para os

    1 Tratado sbre Religio e Poltica. (Captulo III).

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  • cristos, o judeu se identificava com um smbolo como Shylock ou Fagin, smbolo que aparece na literatura mundial em vrias verses e apresentaes. No foi tambm a malcia de mesliu- mad que levou Marx a dizer: o verdadeiro Deus do judeu o dinheiro1. No via nisso uma condenao moral para os judeus, mas uma conseqncia da funo especial exercida por les na sociedade crist. Marx tambm disse que a sociedade crist, quanto mais e mais se tomava capitalista, mais e mais ficava judia. Estava firmemente convencido de que, quando a sociedade europia passasse do capitalismo para o socialismo, ambos, cristos e judeus, deixariam de ser judeus, ou,