o jardim das cerejeiras - tchékhov

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O jardim das cerejeiras Versão: 1.3 Escrito por Anton Tchékhov - 1904 Traduzido por Jorge Maricato - 2013

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Peça "O jardim das cerejeiras", de Tchékhov. Texto integral.

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  • O jardim das cerejeiras

    Verso: 1.3

    Escrito por Anton Tchkhov - 1904 Traduzido por Jorge Maricato - 2013

  • Personagens

    LIUBOV ANDRIEVNA RANVSKAI (Madame RANVSKAI), a proprietria das terras NIA, sua filha, 17 anos VRIA (BRBARA MIHAILVNA), sua filha adotada, 27 anos LENID ANDREIVITCH GAV, Irmo de madame Ranvskai IERMOLAI ALEXEIVITCH LOPAKHIN, um comerciante PIOTR SERGEIVITCH TROFMOV (PTIA), um estudante BRIS BORISSOVITCH SIMEONOV-PISCHIN, um proprietrio de terras CHARLOTA IVANVNA, uma governanta SMEON PANTELEIVITCH IEPIKHODOV, um escriturrio DUNIACHA (AVDTIA FEDORVNA), uma criada FIERS, um velho servo, 87 anos IACHA, um servo novo Um vagabundo Um chefe de estao de trem Um carteiro Convidados Um servo

    A pea ocorre no patrimnio de madame RANVSKAI.

  • - 2 -

    PRIMEIRO ATO

    Um quarto que ainda chamado de berrio. Uma das portas leva para o quarto de NIA. O nascer do sol se aproxima. Ms de maio. As cerejeiras esto dando flores, mas est frio no jardim. Uma geada precoce aparece. As janelas do quarto esto fechadas. DUNIACHA entra com uma vela e LOPAKHIN com um livro em mos.

    LOPAKHIN. O trem chegou, graas a Deus. Que horas so?

    DUNIACHA. Quase duas horas. [Apaga a vela.] J est Claro.

    LOPAKHIN. Quanto tempo o trem se atrasou? Duas horas no mnimo. [Boceja e se espreguia] Eu sou mesmo um desastre! Eu vim para c apenas para encontr-la na estao, e acabei dormindo... Na minha cadeira. Uma pena. Voc deveria ter me acordado!

    DUNIACHA. Eu pensei que voc tinha ido embora. [Ouve] Eu acho que eles esto chegando.

    LOPAKHIN. [Ouve] No... Eles tero que carregar as bagagens e vo demorar... [Pausa] Liubov Andreivna est morando no exterior faz cinco anos; no a reconheceria se a visse hoje... Ela um tipo raro, boa pessoa e simptica. Eu lembro quando eu era um menino de quinze anos, meu pai, j finado, costumava ter uma lojinha aqui na vila, e uma vez bateu na minha cara e meu nariz sangrou... Ns fomos para o campo juntos, para fazer alguma coisa, e ele estava um pouco bbado. Liubov Andrievna, me lembro como se fosse hoje, ainda era jovem e muito magra, me levou at um lavatrio aqui mesmo nesse quarto, o berrio. Ela disse: No chore criadinho, antes de casar sara. [Pausa] Criadinho... Meu pai era um servo, verdade, mas eu uso terno branco e sapatos amarelos... estou como uma prola rara. Sou rico agora, tenho muito dinheiro, mas se voc pensar sobre mim e me examinar, ver que eu ainda sou um campons por baixo dessa pele. [Vira pginas de seu livro] Aqui, eu estava lendo esse livro, mas no entendi nada. Li e dormi. [Pausa]

    DUNIACHA. Os ces no dormiram a noite toda, s latiram; eles sabiam que os donos estavam chegando.

    LOPAKHIN. O que voc tem, Duniacha?

    DUNIACHA. Minhas mos esto tremendo. Vou desmaiar.

    LOPAKHIN. Voc muito sensvel, Duniacha. Se veste como uma dama, alm de arrumar o cabelo, como se fosse uma, tambm. Mas voc no . Se ponha no seu lugar.

    IEPIKHODOV. [Entra com um arranjo de flores. Ele veste um casaco curto e botas bastante polidas que rangem muito alto. Ele derruba o arranjo ao entrar, e ento o pega] O jardineiro mandou estas; ele disse que essas vo para a sala de jantar. [Entrega o arranjo para DUNIACHA.]

  • - 3 -

    LOPAKHIN. E voc, Duniacha, traz para mim um kvass.

    DUNIACHA. Est bem. [Sai.]

    IEPIKHODOV. Est um gelo essa manh, trs graus abaixo de zero e as cerejeiras esto todas floridas. No posso aprovar nosso clima. [Suspira] No posso. Nosso clima est contra ns at dessa vez. E, Iermolai Alexeivitch, permita-me mencionar apenas este tpico de suma importncia, comprei essas botas h dois dias e eu garanto que elas rangem de uma maneira insuportvel. O que eu deveria colocar nelas?

    LOPAKHIN. V embora, no me aborrea.

    IEPIKHODOV. Alguns infortnios acontecem comigo todos os dias. Mas eu no reclamo. Eu me acostumei a eles e at sorrio. [DUNIACHA entra e traz o kvass de LOPAKHIN] Devo ir. [Tromba em uma cadeira] Olha... [Triunfante] Veja, foi s eu falar e aconteceu novamente, simplesmente indescritvel. [Sai.]

    DUNIACHA. Eu preciso lhe confessar, Iermolai Alexeivitch, que o Iepikhodov me pediu em casamento.

    LOPAKHIN. Ah!

    DUNIACHA. Eu no sei o que fazer a respeito. Ele um rapaz bom, mas mesmo agora, desde sempre, quando ele comea a falar, eu no entendo uma palavra do que diz. Eu acho que gosto dele. Ele est louco de amor por mim. Que homem azarado, todo dia alguma coisa lhe acontece. Ns brincamos com ele sobre isso. Chamamos ele de Vinte-e-duas desgraas.

    LOPAKHIN. [Escuta] Eles chegaram, eu acho.

    DUNIACHA. Eles chegaram! O que eu tenho? Estou congelando.

    LOPAKHIN. Eles esto aqui, finalmente. Vamos encontrar eles. Ser que ela me reconhecer? No nos vemos h cinco anos.

    DUNIACHA. [Entusiasmada] Eu vou desmaiar em qualquer instante... Oh, estou desmaiando!

    Duas carruagens so ouvidas dirigindo-se para a casa. LOPAKHIN e DUNIACHA saem rapidamente. O palco est vazio. Um barulho comea na sala ao lado. FIERS, usando uma bengala, anda rapidamente atravessando o palco; ele vai de encontro a LIUBOV ANDRIEVNA. Ele veste um antiquado uniforme e um chapu grande, resmunga um monte, mas nenhuma palavra entendida. O barulho fora do palco fica cada vez maior. Uma voz ouvida: Vamos entrar ali..

    Entra LIUBOV ANDRIEVNA, NIA, e CHARLOTA IVANVNA com um cachorrinho preso em uma corrente e todas usando roupas de viagem. VRIA entra usando um longo casaco e um leno na

  • - 4 -

    cabea. Entram tambm: GAV, SIMEONOV-PISCHIN, LOPAKHIN, DUNIACHA com malas e guarda-chuvas, e um servo com bagagens - todos cruzam a sala.

    NIA. Venha, por aqui. Voc se lembra deste quarto, mame?

    LIUBOV. [Alegremente, em lgrimas] O berrio!

    VRIA. Est muito frio! Minhas mos esto dormentes. [Para LIUBOV ANDRIEVNA] Seus quartos, o branco e o violeta, esto exatamente como eram, mame.

    LIUBOV. Meu querido berrio, oh, que quarto maravilhoso... Eu costumava dormir aqui quando era um beb. [Chora] E aqui como se eu fosse uma garotinha novamente. [Beija seu irmo, VRIA, e ento, seu irmo novamente] E Vria, igualzinha antigamente, como uma freira. E eu me lembro de voc Duniacha. [Beija-a.]

    GAV. O trem se atrasou duas horas. E agora; onde est a pontualidade?

    CHARLOTA. [Para PISCHIN] Meu cachorro come nozes tambm.

    PISCHIN. [Surpreso] No acredito?!

    Todos vo para os aposentos, saindo de cena, exceto NIA e DUNIACHA.

    DUNIACHA. Ns te esperamos tanto!

    Tira casaco e chapu de NIA.

    NIA. Eu no dormi nada em quatro dias de viagem... Estou congelando.

    DUNIACHA. Voc foi embora durante a Quaresma, quando estava nevando e geando, mas agora? Querida! [Ri e beija-a] Ns tivemos que esperar por voc, minha alegria, meu docinho... Eu preciso te dizer uma coisa, no posso esperar mais nem um minuto.

    NIA. [Cansada] Alguma coisa... Agora...?

    DUNIACHA. O escriturrio, Iepikhodov, pediu-me em casamento na Pscoa.

    NIA. Sempre o mesmo... [Alisa o cabelo] Eu perdi todos os meus grampos...

    NIA est muito cansada, e cambaleia enquanto anda.

    DUNIACHA. Eu no sei o que pensar sobre. Ele me ama, ele me ama muito!

  • - 5 -

    NIA. [Olha para seu quarto; com uma doce voz] Meu quarto, minha janela, como se eu nunca tivesse ido embora. Eu estou em casa! Amanh acordarei cedo e correrei pelo jardim... Oh, se eu conseguisse dormir! Eu no dormi a viagem toda, eu estava to incomodada.

    DUNIACHA. Ptia Sergeivitch chegou faz dois dias.

    NIA. [Contente] Ptia!

    DUNIACHA. Ele dorme na casa de banhos, vive l. Ele disse que no quer incomodar ningum. [Olha em seu relgio de bolso] Ele pediu para acord-lo, mas Brbara Mihailvna me impediu. No acorde ele!, ela disse.

    Entra VRIA, com um molho de chaves no cinto.

    VRIA. Duniacha, caf, rpido. Mame quer beber.

    DUNIACHA. Um instante. [Sai.]

    VRIA. Bem, voc voltou, Deus seja louvado. Em casa novamente. [Carinhosa] Minha querida voltou! Minha lindeza est de volta!

    NIA. A viagem foi horrvel, preciso lhe dizer.

    VRIA. Mal posso imaginar!

    NIA. Eu fui durante a Semana Santa; estava bastante frio. Charlota falou a viagem inteira e no parava com os truques de mgica. Porque voc quis que a Charlota fosse comigo?

    VRIA. Voc no poderia ir sozinha, querida, voc tem dezessete anos!

    NIA. Chegamos a Paris; estava frio e nevando. Meu francs horrvel. Mame vive no quinto andar. Fomos at l, e encontrei vrios franceses, mulheres, um velho com um livro, e tudo cheirava tabaco, no tnhamos conforto algum. Tive pena de mame na hora, tanta pena que eu peguei a cabea dela em meus braos e a abracei sem deixar que ela se soltasse. Ento mame comeou a me abraar e a chorar...

    VRIA. [Chorando] No diga mais nada, chega...

    NIA. Ela j vendeu a vila perto de Mentone; Ela no tinha mais nada, nem uma moeda. Eu no tinha um copeque sobrando tambm. Ns mal conseguimos chegar aqui. E mame no entende! Ela teve que jantar na estao, pediu pelos pratos mais caros e deu gorjetas astronmicas para as garonetes. E Charlota a mesma coisa. Iacha quis sua parte tambm, essa situao est muito ruim. Ele o lacaio de mame agora, Iacha; ns trouxemos ele para c.

  • - 6 -

    VRIA. Eu vi o miservel.

    NIA. E os negcios, como vo? Os juros j foram pagos?

    VRIA. Sem chance de isso acontecer.

    NIA. Oh Deus, oh Deus...

    VRIA. A propriedade ser vendida em Agosto.

    NIA. Oh Deus...

    LOPAKHIN. [Pe a cabea na porta e bale] M! [Sai.]

    VRIA. [Chorando] Eu gostaria de [Balana o pulso, ameaando-o.]

    NIA. [Envolve com os braos VRIA, carinhosamente] Vria, ele te pediu em casamento? [VRIA nega com a cabea] Mas ele te ama... Porque vocs no acertam os ponteiros? O que voc est esperando?

    VRIA. Eu acho que isso no dar em nada. Ele um homem ocupado. No se importa comigo... Ele no presta ateno em nada que eu digo. Deus o abenoe, mas eu no quero v-lo... Entretanto, todo mundo no para de falar do nosso casamento, todos me do os parabns e no existe nada entre ns, como um pesadelo. [Em outro tom] Voc tem um broche de abelha.

    NIA. [Tristemente] Me comprou. [Caminha pelo quarto e fala fino, como uma criana] Em Paris eu voei de balo!

    VRIA. Minha querida voltou mesmo, minha lindinha est de volta! [DUNIACHA retorna com a cafeteira, VRIA fica de p perto da porta] Eu ando o dia todo pela casa, cuidando dela e pensando sempre, se voc casasse com um homem rico, ento eu seria feliz e poderia ir embora para outro lugar por conta prpria, depois seguiria para Kiev... At Moscou, partiria em uma jornada missionria de lugar para o outro. Magnfico!

    NIA. Os pssaros esto cantando no jardim. Que horas so?

    VRIA. Deve ser quase trs. Hora de dormir, querida. [Entra no quarto de NIA] Magnfico!

    Entra IACHA com um xale xadrez e uma bagagem de viagem.

    IACHA. [Cruzando o palco delicadamente] Poderia eu passar por aqui?

    DUNIACHA. Eu mal reconheci voc, Iacha! Voc mudou muito no estrangeiro!

  • - 7 -

    IACHA. Hm... E quem voc?

    DUNIACHA. Quando voc se foi, eu era apenas dessa altura. [Mostrando com as mos] Eu sou Duniacha, a filha de Fidr Kozoidov. Voc no se lembra!

    IACHA. Oh, um pepinozinho!

    Olha ao redor e agarra-a. Ela grita e derruba um pires. IACHA sai rapidamente.

    VRIA. [No corredor: com uma voz brava] O que foi isso?

    DUNIACHA. [Em lgrimas] Eu quebrei um pires.

    VRIA. Tudo bem, pode trazer sorte.

    NIA [Saindo do quarto dela] Ns precisamos falar a mamezinha que Ptia est aqui.

    VRIA. Eu disse para no acordarem ele.

    NIA. [Pensativa] Papai morreu h seis anos, um ms depois, meu irmo Grisha se afogou no rio - um pequeno menino de sete anos! Mame no pde aguentar isso; foi embora, para longe, sem olhar para trs... [Estremece] Como eu a entendo; se ela soubesse! [Pausa] E Ptia Trofmov era tutor de Grisha, ele deveria dizer a ela...

    Entra FIERS com um palet e colete branco.

    FIERS. [Vai at a cafeteira, nervoso] A senhora comer aqui... [Coloca luvas brancas] O caf est pronto? [Para DUNIACHA, severo] Voc! Onde est o creme?

    DUNIACHA. Ai meu Deus...! [Sai rapidamente]

    FIERS. [Reclamando com a cafeteira] Seu vale-nada... [Resmunga para si mesmo] De volta de Paris... O patro veio de volta de Paris uma vez... Em uma carruagem... [Ri]

    VRIA. Do que voc est falando, Fiers?

    FIERS. Perdo madame? [Alegre] A senhora est em casa novamente. Eu vivi somente para v-la! No me importo em morrer agora... [Lgrimas de alegria.]

    Entra LIUBOV ANDRIEVNA, GAV, LOPAKHIN, e SIMEONOV-PISCHIN, este ltimo com um longo casaco fino e roupas soltas. GAV entra movendo seus braos como se estivesse jogando bilhar.

    LIUBOV. Deixe-me lembrar. A vermelha e azul no canto, a branca e verde no centro!

  • - 8 -

    GAV. Na mosca Liubov! Olhe para esse lugar Liubov, um dia, na nossa infncia, dormamos aqui, e agora eu tenho cinquenta e um anos; to estranho...

    LOPAKHIN. Sim, o tempo passa.

    GAV. Quem?

    LOPAKHIN. Eu disse que o tempo passa.

    GAV. Que cheiro de alfazema aqui.

    NIA. Eu estou indo dormir. Boa noite mamezinha. [Beija-a.]

    LIUBOV. Minha princesa, amada. [Beija sua mo] Feliz por estar em casa? Mal posso acreditar.

    NIA. Boa noite, titio.

    GAV. [Beija sua face e suas mos] Deus te abenoe. Como voc parece sua me! [Para LIUBOV] igualzinha voc com dezessete anos, Luluba.

    NIA estende a mo para LOPAKHIN e PISCHIN, depois sai, fechando a porta atrs dela.

    LIUBOV. Ela est muito cansada.

    PISCHIN. Foi uma longa viagem.

    VRIA. [Para LOPAKHIN e PISCHIN] Bem, senhores, j so quase trs da manh, hora de irem embora.

    LIUBOV. [Ri] Voc a mesma de sempre, Vria. [Puxa-a e beija-a] Eu preciso de um caf agora, e ento dormiremos todos. [FIERS coloca uma almofada nos ps dela] Obrigado, querido. Estou viciada em caf. Eu bebo dia e noite. Obrigada, meu velho amigo. [Beija FIERS.]

    VRIA. Eu vou ver se trouxeram toda a bagagem. [Sai.]

    LIUBOV. Sou eu mesma sentada aqui? [Ri] Eu quero pular e sacodir meus braos. [Esconde o rosto com as prprias mos] Eu devo estar sonhando! Deus sabe como eu amo meu pas, amo profundamente; eu no pude olhar a estrada pela carruagem, de tanto que chorava. [Em lgrimas] Ainda assim, preciso do meu caf. Obrigada, Fiers. Obrigada meu velho companheiro. Estou to feliz que voc ainda est conosco.

    FIERS. Antes de ontem madame.

  • - 9 -

    GAV. Ele escuta cada dia menos.

    LOPAKHIN. Bem, preciso ir para Kharkiv no trem das cinco. Sinto muito! Eu deveria ficar mais, para colocar o assunto em dia... Voc est bonita como sempre.

    PISCHIN. [Respira fundo] Ainda mais bonita... Vestida como uma parisiense... Nos deixa at envergonhados.

    LOPAKHIN. Seu irmo, Lenid Andreivitch, disse que eu sou um avarento, um agiota, mas eu no sou assim. Deixa eu falar. A nica coisa que eu desejo que confie em mim como antes, com aqueles olhos maravilhosos, que voc me olhava antigamente. Deus todo poderoso! Meu pai serviu o seu av, e seu prprio pai, mas voc - mais do que todos - fez tanto por mim naquele tempo que eu esqueci absolutamente tudo e amo voc como se pertencesse a minha famlia... Ou at mais.

    LIUBOV. Eu no posso ficar sentada, no estou me aguentando. [Pula e anda rapidamente e excitada] Eu no vou sobreviver essa felicidade... Voc pode rir de mim; Eu sou uma mulher tola... Meu criado-mudo. [Beija o criado-mudo] Minha mesinha.

    GAV. A bab morreu enquanto voc estava fora.

    LIUBOV. [Senta-se e bebe caf] Sim, que Deus a abenoe. Fiquei sabendo por cartas.

    GAV. E Anastssio morreu tambm. Piotr Kosoy me deixou e est morando na cidade com um Comissrio de Polcia. [Abre um pacote de jujubas e coloca na boca.]

    PISCHIN. Minha filha, Dachenka, manda lembranas.

    LOPAKHIN. Eu quero dizer algo muito agradvel, muito interessante, para voc. [Olha para seu relgio] Eu estou indo embora, no tenho muito tempo... Mas preciso te dizer tudo, gastarei apenas uma ou duas palavrinhas. Como voc j sabe, o cerejal ser vendido para pagar suas dvidas, e a venda foi fixada para o dia 22 de agosto; mas voc no precisa se preocupar, madame, pode dormir em paz; existe uma sada. Esse meu plano, por favor, escute com ateno! Sua propriedade est apenas a vinte quilmetros da cidade, o trilho de trem passa por ela paralelamente, se dividirmos o cerejal e o terreno perto do rio em vrios lotes e arrendarmos para casas de vero, pagaro pelo menos vinte e cinco mil rublos por ano.

    GAV. Mas que absurdo!

    LIUBOV. Eu no estou entendendo voc, Iermolai Alexeivitch.

    LOPAKHIN. Voc ter vinte e cinco rublos por ano para cada trs acres de cada arrendatrio, no mnimo, escuta meu conselho! Eu aposto que voc no ter um lote vago no outono; todos sero arrendados. Em uma frase: est salva. Eu lhe dou os parabns. Mas, claro, voc precisa comear a arrumar tudo, a preparar o terreno... Por exemplo, voc ter que derrubar esses prdios velhos, essa casa, que no vale mais nada e ter que derrubar o cerejal...

  • - 10 -

    LIUBOV. Derrubar? Meu caro amigo, voc precisa me desculpar, mas eu no estou entendendo absolutamente nada. Se existe algo realmente interessante e impressionante em toda provncia, nosso jardim das cerejeiras.

    LOPAKHIN. A nica coisa impressionante no cerejal, que muito grande. Ele s d cerejas a cada dois anos, e ento no tem nada para fazer com elas, ningum compra nenhuma.

    GAV. Esse Jardim mencionado na Enciclopdia Russa.

    LOPAKHIN. [Olha o relgio] Se no pensarmos em nada, nem fizermos nada, ento no dia 22 de agosto, tanto o cerejal, quanto toda a propriedade, sero vendidos. Se decidam logo! Eu juro que no existe outra sada, eu juro.

    FIERS. Antigamente, quarenta ou cinquenta anos atrs, eles secavam as cerejas, as embebiam e cortavam, faziam geleias, que eram usadas para...

    GAV. Silncio, Fiers!

    FIERS. E agora, ns mandvamos cerejas secas para Moscou e Kharkiv. E dinheiro! E as cerejas secas eram to macias, doces e tinham um aroma delicioso... Eles sabiam como fazer antigamente...

    LIUBOV. E por que no fazem mais isso?

    FIERS. Eles esqueceram. Ningum mais se lembra.

    PISCHIN. [Para LIUBOV ANDRIEVNA] E sobre Paris? Em? Voc comeu rs?

    LIUBOV. Comi crocodilos.

    PISCHIN. No acredito?!

    LOPAKHIN. Antes, nas vilas, existiam apenas os aristocratas e os trabalhadores, agora as pessoas que vivem nas cidades chegaram. Todas cidades possuem vilas ao redor. As pessoas sentam-se na sua varanda e bebem ch, mas com o passar do tempo, vo querer cultivar seu prprio pedao de terra, e ento seu cerejal ser um lugar mais feliz, rico, esplndido...

    GAV. [Bravo] Que ideia horrorosa!

    Entra VRIA e IACHA.

    VRIA. Tem dois telegramas para voc, mamezinha. [Usa uma chave para abrir um antigo criado-mudo, a fechadura range alto] Aqui esto.

  • - 11 -

    LIUBOV. Elas so de Paris... [Chora sem l-las] Paris passado.

    GAV. Sabe, Luluba, quo velha essa estante? Na semana passada eu olhei embaixo da gaveta; encontrei uma data gravada a fogo. Essa estante tm cem anos! O que voc acha disso? Hein? Ns deveramos comemorar esse centenrio. Ela no possui alma, mas mesmo assim, uma estante linda!

    PISCHIN. [Atnito] Cem anos... Quem diria!

    GAV. Sim... Quem diria... [Tocando delicadamente a estante] Minha querida e honrada estante! Eu a sado pela vossa existncia, que j centenria e nos levou pelos brilhantes ideais do bem e da justia; sua silenciosa e produtiva serventia nunca diminuiu em uma centena de anos, [Chorando] durante todo esse tempo, sustentou virtuosamente a f em um futuro melhor para cada gerao dessa famlia, educando-nos com o sentimento de bondade e conhecimento de conscincia popular. [Pausa.]

    LOPAKHIN. Sim...

    LIUBOV. Voc continua o mesmo de sempre, Le.

    GAV. [Um pouco confuso] A amarela na caapa do canto. A bola branca vai pro meio da mesa...

    LOPAKHIN. [Olha o relgio] Bom, hora de ir!

    IACHA. [Entrega o remdio de LIUBOV ANDRIEVNA] A senhora tomar vossas plulas agora?

    PISCHIN. A senhora no tomar esses remdios, estimada madame. Eles no faro bem, nem mal... D-me os aqui, prezada madame. [Pega o pote de plulas, colocam todas na mo, assopra-as e toma todas, bebendo um gole de kvass] Pronto!

    LIUBOV. [Assustada] Voc ficou louco!

    PISCHIN. Eu tomei todas as plulas.

    LOPAKHIN. Mas que esfomeado! [Todos riem.]

    FIERS. Eles estavam aqui na Semana Santa e comeram meio balde de pepinos... [Resmunga.]

    LIUBOV. Com quem ele est falando?

    VRIA. Ele est reclamando sozinho faz trs anos. J at acostumamos.

    IACHA. Est definhando de velhice.

    CHARLOTA IVANVNA cruza o palco, vestida de branco, ela esta bastante magra com um lao bem apertado; Possui um lorgnette na cintura.

  • - 12 -

    LOPAKHIN. Com licena, Charlota Ivanvna, no cumprimentei a senhora ainda. [Tenta beijar sua mo.]

    CHARLOTA. [Tira a mo] Se eu deixar beijar minha mo, ento ir querer beijar o cotovelo, ombros e ento...

    LOPAKHIN. Hoje meu dia de sorte! [Todos riem] Mostre para ns um truque Charlota Ivanvna!

    LIUBOV. Charlota faa um truque.

    CHARLOTA. No ser necessrio. Vou para a cama. [Sa.]

    LOPAKHIN. Bom, nos veremos em trs semanas. [Beija a mo de LIUBOV] Agora, tchau, hora de ir. [Para GAV] At logo. [Beija PISCHIN] Au revoir. [Beija a mo de VRIA, ento para FIERS e IACHA] Eu no gostaria de ir embora. [Para LIUBOV]. Se voc pensar no loteamento e decidir sobre isto, me avise, eu consigo um emprstimo de cinquenta mil rublos de uma vez s. Pense seriamente sobre isto.

    VRIA. [Nervosa] Vai logo embora!

    LOPAKHIN. Estou indo, estou indo... [Sai.]

    GAV. Pretensioso! Oh, perdo minha sobrinha... Vria se casar com ele, o futuro noivo dela.

    VRIA. Para de falar nisso, titio.

    LIUBOV. Porque no, Vria? Eu ficaria bastante feliz. Ele um bom homem.

    PISCHIN. Para ser honesto... Ele um homem rico... E minha Dachenka... Tambm disse... Ela disse um monte de coisas. [Dorme, ronca e acorda novamente] Mas ainda assim estimada madame, seria possvel voc me emprestar... Duzentos e cinquenta rublos... Preciso pagar minha hipoteca amanh...

    VRIA. [Apavorada] Ns no temos nada! No temos!

    LIUBOV. verdade. No temos nada.

    PISCHIN. Tudo bem [Ri] Eu nunca perco a esperana. Eu costumava a pensar Tudo est perdido agora, sou um homem morto, quando veio o governo e construiu a trilha do trem bem nas minhas terras... Me pagaram por isso. Algo vai acontecer hoje ou amanh. Danchenka pode ganhar vinte mil rublos... Ela tem um bilhete de loteria.

    LIUBOV. O caf acabou, podemos ir dormir.

  • - 13 -

    FIERS. [Escova as calas de GAV; em um tom de insistncia] Voc colocou as calas erradas de novo. O que eu fao com voc?

    VRIA. [Sussurrando] nia dormiu. [Abre a janela silenciosamente] O sol j nasceu; no est mais frio. Olhe mamezinha: que rvores lindas! E o ar! Os pssaros j esto cantando!

    GAV. [Abre a outra janela] O jardim est inteiro branco. Diz que voc no esqueceu Luluba? Essa avenida, reta, reta como uma lana e que brilha em uma noite prateada de luar. Voc se lembra? Voc no se esqueceu no?

    LIUBOV. [Sai para o jardim] Oh, minha infncia, poca da inocncia! Nesse berrio eu costumava dormir; costumava a olhar daqui o jardim. A felicidade costumava me acordar toda manh, e exatamente como hoje em dia, nada mudou. [Ri com muita alegria] Est tudo branco! Oh, meu jardim! Depois dos outonos escuros e invernos frios, voc feliz novamente, cheio de alegria, os anjos no te abandonaram... Se eu pudesse tirar o fardo pesado do meu peito e dos meus ombros, se eu pudesse esquecer o meu passado!

    GAV. Sim, e ser vendido este jardim para pagar as dvidas. inacreditvel!

    LIUBOV. Olhe, mame, morta indo para o jardim... Vestida de branco! [Ri alegremente] ela.

    GAV. Onde?

    VRIA. Deus te abenoe mezinha.

    LIUBOV. No tem ningum ali; Pensei ter visto algum. Na direita ali, perto da casa de veraneio, uma pequena rvore branca curvada, igualzinha uma mulher. [Entra TROFMOV em um uniforme de estudante e com culos] Que jardim maravilhoso! Um monto de flores brancas, um cu azul...

    TROFMOV. Liubov Andrievna! [Ela olha para ele] Eu apenas queria dizer que estou por aqui e j vou embora. [Beija as mos de LIUBOV calorosamente] Disseram para eu esperar at amanh de manh, mas eu no tive pacincia. [LIUBOV ANDRIEVNA olha, surpresa.]

    VRIA. [Chorando] o Ptia Trofmov.

    TROFMOV. Ptia Trofmov, tutor do seu filho Grisha... Estou to irreconhecvel assim?

    LIUBOV ANDRIEVNA o abraa e chora suavemente.

    GAV. [Confuso] J chega, j chega Luluba.

    VRIA. [Chorando] Mas eu lhe disse Ptia, para esperar at amanh.

    LIUBOV. Meu Grisha... Meu menino... Grisha... Meu filho.

  • - 14 -

    VRIA. O que poderamos fazer mamezinha? Foi a vontade de Deus.

    TROFMOV. [Carinhosamente, em meio s lgrimas] Est tudo bem, est tudo bem.

    LIUBOV. [Ainda chorando] Meu menino, est morto; afogado. Por qu? Por que, meu amigo? [Carinhosamente] nia est dormindo. Eu falando alto, fazendo tanto barulho... Bem, Ptia? Por que voc est to feio? Por que envelheceu tanto?

    TROFMOV. No trem, uma senhora chamou-me de velho carcomido.

    LIUBOV. Voc era um garotinho antes, um pequeno estudantezinho, e agora seu cabelo est horrvel e usa culos. verdade que ainda um estudante? [Vai para a porta.]

    TROFIMOV. Creio que sempre serei um estudante.

    LIUBOV. [Beija GAV, depois VRIA] Bem, hora de ir para a cama... E voc tambm Lenid, no seja criana.

    PISCHIN. [Segue LIUBOV] Sim, temos que ir dormir... Ai minha gota! Eu ficarei esta noite aqui. Mas gostaria que... Liubov Andrievna, estimadssima, poderia me emprestar duzentos e quarenta rublos amanh de manh?

    GAV. Sempre a mesma histria!

    PISCHIN. Duzentos e quarenta rublos... Para pagar os juros e a hipoteca.

    LIUBOV. Eu no tenho dinheiro algum, caro amigo.

    PISCHIN. Eu lhe pagarei... uma quantia to pequena...

    LIUBOV. Bem, ento, Lenid dar para voc... Lenid d o dinheiro a ele.

    GAV. S o que faltava; fecha essa mo um pouco.

    LIUBOV. Por que no? Ele quer; e vai pagar depois.

    LIUBOV, TROFMOV, PISCHIN, e FIERS saem. GAV, VRIA e IACHA ficam.

    GAV. Minha irm no perde o hbito de torrar o dinheiro. [Para IACHA] Cai fora; voc fede galinha.

    IACHA. [Sorri] Voc o mesmo de sempre, Lenid Andreivitch.

    GAV. Verdade? [Para VRIA] O que ele est dizendo?

  • - 15 -

    VRIA. [Para IACHA] Sua me veio da vila; ela est sentada l no quarto dos criados desde ontem, e quer v-lo...

    IACHA. S o que faltava!

    VRIA. Olha como fala, homem sem vergonha.

    IACHA. Intil a vinda dela to cedo. Ela poderia ter vindo amanh. [Sai.]

    VRIA. Mame no se conserta, ela continua a mesma de sempre. Daria tudo que temos, sem d, se essa ideia simplesmente passasse pela sua cabea.

    GAV. Sim... [Pausa] Eu particularmente acredito que: se para uma doena existem muitos remdios, pode ter certeza que incurvel. Eu penso noite e dia, tenho vrios remdios, muitos, um monte, ou seja: nenhum. Poderamos herdar uma fortuna de algum, ou casar a nia com um rapaz bem rico, tambm seria interessante ir para Iaroslav e conversar com minha tia, a Condessa. Minha tia sim, muito, muito rica.

    VRIA. [Chorando] S Deus para nos ajudar.

    GAV. No chore. Minha tia muito rica, mas no gosta de ns. Minha irm, em primeiro lugar, casou-se com um advogadozinho, no um homem nobre... [NIA aparece na porta] Ela no apenas se casou com um homem de classe inferior, mas ela mesma comeou a se comportar de um jeito que eu nem descreveria como apropriado. Ela adorvel, gentil e charmosa, e sou muito apegado a ela, mas por mais que eu saliente suas virtudes, preciso admitir sua imoralidade, posso sentir em cada movimento dela.

    VRIA. [Sussurrando] nia est na porta.

    GAV. Srio? [Pausa] Nossa, que estranho, algo entrou no meu olho direito... No estou enxergando bem... E na quinta, quando eu estava no tribunal...

    Entra NIA.

    VRIA. Por que no est na cama, nia?

    NIA. No consigo dormir.

    GAV. Minha querida! [Beija o rosto e as mos de NIA] Minha criana... [Chorando] Voc no minha sobrinha, meu anjo, voc meu tudo... Diz que acredita, diz...

    NIA. Eu acredito em voc, titio. Todo mundo te ama e respeita o senhor... Mas titio querido, voc deveria ficar quieto, no falar tanto. O que voc estava dizendo agora mesmo de minha me, sua prpria irm? Por que disse aquelas coisas todas?

  • - 16 -

    GAV. Sim, sim [Cobre seu rosto com as mos de NIA] Sim, realmente, foi horrvel. Eu no tenho salvao. Agora mesmo, fiz um discurso para essa estante... Foi to bobo! E somente quando eu terminei, percebi quo bobo estava sendo aquilo.

    VRIA. Sim, titio querido, voc deveria mesmo falar menos. Fica quietinho, melhor.

    NIA. Voc seria to mais feliz se ficasse quieto.

    GAV. Est certo, ficarei quieto. [Beija as mos de ambas] Eu ficarei quieto. Mas falemos de negcios. Na quinta eu estava no tribunal e tinha um monte de gente l, comeamos a conversar disso, aquilo, daquele outro e agora eu acho que posso arrumar um emprstimo para pagarmos os juros do banco.

    VRIA. Se Deus quiser!

    GAV. Tera eu volto l. Falarei com eles novamente. [Para VRIA] Para de lamentar. [Para NIA] Sua me falar com Lopakhin, ele claro, no negar nada a ela... E voc quando estiver descansada visitar a condessa em Iaroslav, sua tia-av. Daremos trs tacadas ao mesmo tempo, uma bola encaapamos, estaremos seguros. Vamos pagar os juros, estou certo disso. [Pe uma jujuba na boca] Eu juro pela minha honra, ou qualquer coisa que quiserem, que essa propriedade no ser vendida! [Animadamente] Eu juro pela minha felicidade! Aqui, est minha mo. Vocs podem me chamar de mal carter, calhorda se essa casa for para leilo! Eu juro pelo meu ltimo fio de cabelo!

    NIA. [Calma e feliz novamente] Voc to bom e esperto, titio. [Abraa ele] Eu estou feliz agora! Estou feliz! Est tudo bem!

    Entra FIERS.

    FIERS. [Em tom de censura] Lenid Andreivitch, no teme mais a Deus? Ainda no foi para a cama?

    GAV. Estou indo, estou indo. Vai na frente, Fiers, eu me dispo sozinho. Bem, crianas, tchauzinho...! Eu darei todos os detalhes amanh, mas vamos para a cama agora. [Beija NIA e VRIA] Eu sou um homem da dcada de oitenta, poca do Czar Alexandre III... As pessoas no gostam muito daquele tempo, mas eu posso dizer que sofri pelo que eu acreditava. Os camponeses no me amam toa, eu lhes garanto. Precisamos saber lidar com os camponeses! Devemos aprender a...

    NIA. Voc est fazendo aquilo de novo, tio!

    VRIA. Quietinho, titio!

    FIERS. [Irritado] Lenid Andreivitch!

    GAV. Estou indo, estou indo... Vou dormir agora. Trs bolas bem na boca da caapa! Eu me viro e me preparo para uma tacada...

  • - 17 -

    Sai. FIERS vai atrs de LENID.

    NIA. Estou tranquila agora. Eu no quero ir a Iaroslav, eu no gosto da condessa; mas estou calma agora; graas ao titio. [Senta-se]

    VRIA. Hora de nanar. Vamos. Tivemos uns dissabores aqui enquanto voc estava fora. Na ala dos criados, como voc sabe, apenas os velhos vivem l - o pequeno e velho Efim, Polia e Evstignei, e Karp tambm. Eles deixaram uns vagabundos passar a noite aqui - Eu no disse nada. Ento eu fiquei sabendo que eles dizem que eu ordenei a aliment-los apenas com ervilha! Que eu sou mesquinha, veja voc... E era o Evstignei que falava isso... Muito bem, pensei: Se assim ento, espere s. Ento eu chamei Evstignei... [Boceja] Ele veio. O que foi?, eu disse, Evstignei, seu velho safado... [Olha NIA] Anitinha! [Pausa] Ela dormiu... [Segura o brao de NIA] Vamos nanar... Venha!... [Carrega ela] Minha queridinha dormiu! Venha... [Elas saem. Distante, do outro lado do Jardim, um pastor toca sua flauta. TROFMOV cruza o palco e pra vendo VRIA e NIA] Xiu! Ela dormiu, dormiu. Venha querida.

    NIA. [Falando baixo, meio dormindo] Estou to cansada... Todos os sinos... Titio, querido! Mame e titio!

    VRIA. Venha querida, venha querida! [Entram no quarto de NIA]

    TROFMOV. [Comovido] Meu sol! Minha primavera!

    Fim do primeiro ato.

  • - 18 -

    SEGUNDO ATO

    No campo. Um antigo, santurio arqueado que est abandonado h um bom tempo; perto, existem grandes pedras, que aparentemente so velhos tmulos, e um velho banco no jardim. Na estrada, possvel ver a morada de GAV. Em um dos lados existem vrios lamos negros, neste ponto comea o jardim das cerejeiras. distncia: uma poro de postes de telgrafos e longe, muito longe, no horizonte, sinais de uma grande cidade em nvoa, que s poder ser vista claramente em um dia ensolarado e claro. Est prximo do pr do sol. CHARLOTA, IACHA, e DUNIACHA esto sentadas no banco. IEPIKHODOV de p, toca um violo; todos parecem pensativos. CHARLOTA veste um velho quepe; ela tem um rifle nos ombros e est apertando a fivela na cinta.

    CHARLOTA. [Pensativa] Eu no tenho RG. No sei quantos anos tenho, acho que sou nova. Quando eu era uma garotinha, meu pai e minha me costumavam a ir em feiras e faziam performances timas, eu costumava a fazer um salto mortal e vrias outras coisinhas. Quando mame e papai morreram, uma senhora alem me adotou e me ensinou tudo. Eu gostei. Cresci e virei uma governanta. De onde eu vim e quem eu sou, no sei... Quem meus pais eram - talvez eles no eram casados - no sei. [Pega um pepino do bolso e come] No sei nada. [Pausa] Eu quero falar, mas no tenho ningum para conversar... No tenho ningum mesmo.

    IEPIKHODOV [Tocando o violo e cantando] O que me importa o barulho do mundo, Ou quem so meus amigos ou inimigos? Ah, como prazeroso tocar esse bandolim.

    DUNIACHA. Isso um violo, no um bandolim. [Passa p de maquiagem em frente a um espelho.]

    IEPIKHODOV. Para um homem loucamente apaixonado, isso um bandolim. [Canta.] Oh, ento o corao estava aquecido, Por todo o calor de uma paixo recproca.

    IACHA canta junto.

    CHARLOTA. Essas pessoas cantam terrivelmente mal... Foo! Parecem chacais uivando.

    DUNIACHA. [Para IACHA] Deve ser bom morar no exterior.

    IACHA. Sim, certamente. No posso discordar de voc. [Boceja e acende um charuto.]

    IEPIKHODOV. Isso perfeitamente claro. No estrangeiro, todas as coisas esto na complexidade mxima.

    IACHA. Certamente.

  • - 19 -

    IEPIKHODOV. Sou um homem culto, j li livros incrveis, porm dvida que sempre permeia meus pensamentos, hei-a: viver ou dar um tiro na cabea? Em qualquer caso, eu sempre porto um revlver comigo, aqui est. [Mostra o revlver.]

    CHARLOTA. Estou farta. Agora vou embora. [Coloca o rifle no ombro] Voc, Iepikhodov, um homem muito esperto e muito assustador; as mulheres devem cair de amores por voc. Brrr!! [Saindo] Esses homens espertos so todos estpidos. Eu no tenho ningum para conversar. Estou sempre sozinha, sozinha; No tenho ningum mesmo... E eu no sei quem eu sou ou que que estou fazendo ainda viva. [Sai lentamente.]

    IEPIKHODOV. O fato , independente de tudo, eu devo expressar minhas impresses, onde sob todos aspectos o destino tem sido impiedoso comigo, assim como uma tempestade com um pequeno barco. Vamos supor, apenas como exerccio de imaginao, que eu esteja errado. Ento porque hoje de manh, por exemplo, eu acordei em companhia de uma aranha desta monstruosa proporo no meu peito? [Usa ambas as mos para mostrar o tamanho] Fui ento beber um kvass, para me acalmar, e encontrei dentro da garrafa uma desprezvel e inescrupulosa criatura, algo como um besouro? [Pausa] J leram Buckle, o historiador ingls? [Pausa] Eu preciso lhe incomodar um minuto, Avdtia Fedorvna, para duas palavrinhas.

    DUNIACHA. Pode dizer.

    IEPIKHODOV. Eu prefiro, falar com voc a ss. [Suspira]

    DUNIACHA. [Envergonhada] Muito bem, traga ento meu casaco... Est na dispensa. Est um pouco mido aqui.

    IEPIKHODOV. Muito bem... Tr-lo-ei... Agora eu sei o que fazer com meu revlver. [Sai com o violo, tocando.]

    IACHA. Vinte-e-duas desgraas! S entre ns, mas ele uma besta. [Boceja.]

    DUNIACHA. Rezo a Deus para que ele no se mate. [Pausa] Estou to nervosa, estou preocupada. Eu comecei a servir esta residncia quando eu era bem pequena e agora, no estou mais acostumada vida de servo comum. E minhas mos so to brancas, como as de uma dama. Sou to delicada e sensvel, com medo de qualquer coisa... Estou to assustada. Eu no sei o que vai acontecer com meus nervos se voc me enganar, Iacha.

    IACHA. [Beija-a] Meu pepinozinho lindo! Claro, uma garota precisa se dar ao respeito; no existe nada que me causa mais desgosto do que uma mulher que no sabe se comportar!

    DUNIACHA. Estou perdidamente apaixonada por voc; voc educado e sabe falar sobre tudo. [Pausa.]

  • - 20 -

    IACHA. [Bocejando] Sim. Eu penso assim: se uma garota se apaixona por qualquer um, ento ela no presta. [Pausa] Como bom fumar um charuto ao ar livre...[Escuta] Algum est vindo. a madame e os outros. [DUNIACHA abraa-o subitamente] V para casa, como se voc tivesse vindo de um banho do rio; vai por este caminho aqui ou eles vo te encontrar e achar que estvamos em um encontro. No quero que pensem esse tipo de coisa.

    DUNIACHA. [Tosse baixinho] Este charuto me deu uma dor de cabea.

    Sai. IACHA espera sentado perto do santurio. Entra LIUBOV ANDRIEVNA, GAV, e LOPAKHIN.

    LOPAKHIN. Voc precisa se decidir logo - no temos tempo a perder. A situao j est completamente planejada. Voc pretende dividir o terreno em vilas ou no? Apenas uma palavrinha, sim ou no? Apenas uma palavra!

    LIUBOV. Quem estava fumando um charuto horrvel aqui? [Senta-se]

    GAV. Eles construram a estrada de ferro aqui perto, agora este lugar est realmente acessvel. [Senta] Fomos para a cidade almoar... Vermelha no centro! Poderamos ir para casa jogar uma partidinha.

    LIUBOV. Voc ter muito tempo para jogar.

    LOPAKHIN. Apenas uma palavra! [Implorando] Fala alguma coisa!

    GAV. [Boceja] O que ele est falando?

    LIUBOV. [Olha na bolsa] Eu tinha um monte de dinheiro ontem, mas agora tenho pouco. Minha pobre Vria alimentando todo mundo com sopa de ervilha para economizar, na cozinha, os mais velhos s comem feijo, e eu gastando sem d. [Derruba a bolsa, espalhando moedas de ouro] Olha ai, agora caiu por toda parte.

    IACHA. Permita-me pega-las madame. [Recolhe as moedas]

    LIUBOV. Obrigada, Iacha. E porque tivemos que ir at l almoar?... Um restaurante repugnante com a banda e as mesas cheirando sabo... Por que voc teve que beber tanto Le? Por que teve que comer tanto? Por que teve que falar tanto? Voc foi prolixo novamente e o motivo da conversa: sobre a dcada de setenta e os poetas franceses decadentes. E para quem? Falava com os garons sobre os decadentes!

    LOPAKHIN. Sim.

    GAV. [Gesticula com a mo] Sou irremedivel mesmo... [Irritado, fala com IACHA] O que foi? Por que voc est se contorcendo na minha frente?

    IACHA. [Rindo] No posso escutar sua voz sem rir.

  • - 21 -

    GAV. [Para LIUBOV] Luluba, ou ele ou eu...

    LIUBOV. Vai embora, vai Iacha.

    IACHA. [Entrega a bolsa para LIUBOV] Vou-me de uma vez. [Tendo dificuldades para esconder a risada] Neste instante... [Sai.]

    LOPAKHIN. Deriganov, aquele ricao, est se preparando para comprar sua propriedade. Ele disse que estaria pessoalmente no leilo.

    LIUBOV. De onde voc escutou isso?

    LOPAKHIN. o que esto dizendo na cidade.

    GAV. Nossa tia de Iaroslav prometeu nos mandar um dinheiro, mas eu no sei quando nem quanto.

    LOPAKHIN. Quanto ela mandaria? Cem mil rublos? Duzentos talvez?

    LIUBOV. Eu ficaria feliz se fosse dez ou quinze mil.

    LOPAKHIN. Vocs devem me desculpar, mas nunca vi pessoas mais frvolas que as desta famlia, digo mais, so incrivelmente estpidos para negcios. Eu estou falando claramente que a propriedade ser vendida e vocs parecem no compreender.

    LIUBOV. O que voc quer eu faa? Fale! O qu?

    LOPAKHIN. Eu falo para vocs todos os dias. Todos os dias eu falo a mesma coisa. Tanto o cerejal quanto as terras, precisam ser loteadas para criao de vilas, imediatamente - o leilo est bem no seu nariz: Entenda! Uma vez que o terreno for loteado, vocs tero quanto dinheiro quiserem e estaro salvos.

    LIUBOV. Vilas, arrendatrios - Perdoe-me, mas isso to vulgar.

    GAV. Concordo plenamente.

    LOPAKHIN. Eu vou chorar, gritar ou desmaiar. No posso aguentar! Eu no aguento vocs! [Para GAV] Sua velha!

    GAV. mesmo!?

    LOPAKHIN. Velha! [Saindo.]

    LIUBOV. [Assustada] No, no v. Fique; meu caro. Por favor. Talvez possamos encontrar algum jeito!

    LOPAKHIN. Essa boa!

  • - 22 -

    LIUBOV. Por favor, no v embora. Eu gosto da sua companhia... [Pausa] Eu continuo achando que algo vai acontecer, como se a casa fosse desabar em nossa cabea.

    GAV. [Profundamente pensativo] Duas empacadas no canto... Cruza a verde no centro...

    LIUBOV. Ns pecamos muito...

    LOPAKHIN. Quais pecados voc cometeu?

    GAV. [Coloca uma jujuba na boca] Dizem por ai que meu pecado gastar toda minha fortuna em jujubas. [Ri]

    LIUBOV. Oh, meus pecados... Eu sempre torrei todo meu dinheiro sem me controlar, gastei feito uma louca, e casei com um homem que o nico talento que tinha era fazer dvidas. Meu marido morreu de champanhe - Ele bebia muito - e para meu azar, me apaixonei por outro homem e fugi com ele, ento veio minha primeira punio, como um tiro me acertou bem aqui, na minha cabea - neste rio... Meu menino se afogou, e eu fugi, fugi para longe, muito longe, para nunca mais ver esse rio novamente... Eu fechei meus olhos e corri sem olhar para trs, mas ele me seguiu... Implacvel, sem respeito algum. Eu comprei a vila perto de Mentone porque ele me pediu, e depois de trs anos eu no tinha descanso, dia e noite esse homem doente me esgotou, secou minha alma. Ano passado, quando minha vila foi vendida para pagar minhas dvidas, fui para Paris, l ele roubou tudo que me restava e me largou para fugir com outra mulher. Eu tentei me envenenar... Era to tola, vergonhoso... E subitamente eu desejava voltar para a Rssia, minha terra natal, com minha filhinha. [Limpa as lgrimas] Deus, Deus tenha piedade de mim, perdoe meus pecados! No me puna mais! [Tira um telegrama do bolso] Recebi essa hoje, vem de Paris... Ele implora perdo, pede para que eu volte... [Enxuga as lgrimas] O que isso que escuto? Msica? [Escuta.]

    GAV. nossa clebre banda judia. Quatro violinos, uma flauta e um contrabaixo.

    LIUBOV. Ainda existe? Seria timo se fizssemos uma festa com eles alguma tarde.

    LOPAKHIN. [Escuta] Eu no ouo nada... [Canta baixo] Por dinheiro os alemes vo transformar russos em franceses. [Ri] Eu vi uma pea absurdamente engraada no teatro ontem a noite.

    LIUBOV. Tenho certeza que no tinha nada de engraado. Voc no deveria ver peas, voc deveria dar uma olhada em voc mesmo. Olha a vida cinza que voc possui, o tanto de saliva que gasta desnecessariamente.

    LOPAKHIN. verdade. Para falar a absoluta verdade, nossa vida pattica. [Pausa] Meu pai era um campons, um idiota, no sabia nada, no me ensinou nada, estava sempre bbado e sempre me dava uma surra de vara. O fato , acabei me tornando um tolo idiota tambm. Nunca aprendi nada, minha letra horrvel, eu tenho tanta vergonha de escrever na frente dos outros... Escrevo como um porco!

  • - 23 -

    LIUBOV. Voc deveria se casar, meu amigo.

    LOPAKHIN. Sim... Isso verdade.

    LIUBOV. Por que no se casa com nossa Vria? Ela um doce.

    LOPAKHIN. Sim.

    LIUBOV. Ela bastante caseira, trabalha dia e noite e o mais importante, ela est apaixonado por voc. E voc gosta dela faz um bom tempo.

    LOPAKHIN. Bem? Realmente... Ela uma boa pessoa. [Pausa.]

    GAV. Ofereceram-me uma vaga em um banco. Seis mil rublos por ano... Ouviram?

    LIUBOV. Banco? S se for para sentarmos, esquea isso...

    Entra FIERS com um casaco.

    FIERS. [Para GAV] Por favor, senhor, coloque isto, est mido.

    GAV. [Coloca o casaco] Voc enche o saco em velho.

    FIERS. Est tudo bem... Voc saiu sem falar comigo hoje de manh. [Examinando GAV.]

    LIUBOV. Como voc envelheceu, Fiers!

    FIERS. Quer o que madame?

    LOPAKHIN. Ela disse que voc envelheceu!

    FIERS. Eu estou vivo j h bastante tempo. J estavam tentando me casar antes do seu pai estar vivo... [Ri] E quando a abolio veio, eu j era o criado principal do amo. S eu no concordei com a abolio e continuei meu trabalho... [Pausa] Todos estavam felizes, mas nem sabiam do porqu.

    LOPAKHIN. [Ironicamente] Era to bom antigamente, no faltava chicote para ningum.

    FIERS. [Sem escutar] Bastante. Os camponeses sabiam seu lugar. Amo era amo e servo era servo, mas agora est uma baguna, voc no sabe quem quem.

    GAV. Cala a boca, Fiers. Irei para a cidade amanh. Um general prometeu me emprestar um dinheiro para pagarmos a hipoteca.

    LOPAKHIN. No dar em nada isso. E voc no vai pagar nem os juros, no se preocupe.

  • - 24 -

    LIUBOV. Ele est falando bobagens. No existe General algum.

    Entra TROFIMOV, NIA, e VRIA.

    GAV. Aqui esto.

    NIA. Sente-se aqui mame.

    LIUBOV. [Ternamente] Venham, venham, minhas queridas... [Abraa NIA e VRIA] Se vocs soubessem como eu amo as duas. Sentem-se perto de mim, assim. [Todos se sentam.]

    LOPAKHIN. Olha s, nosso eterno estudante sempre com as garotas.

    TROFMOV. Isso no da sua conta.

    LOPAKHIN. Em breve ter cinquenta anos e ainda continuar sendo um estudante.

    TROFMOV. Ha-ha, voc e suas piadinhas bestas!

    LOPAKHIN. Est nervosinho, ?

    TROFMOV. Cala a boca, no consegue no?

    LOPAKHIN. [Ri] Eu fico pensando, o que ser que voc pensa de mim?

    TROFMOV. Eu penso, Iermolai Alexeivitch, que voc um homem rico, em breve ser milionrio. Voc me lembra uma besta selvagem, que devora tudo pela frente... Convertendo em excremento.

    [Todos riem.]

    VRIA. Melhor falar algo sobre planetas, Ptia.

    LIUBOV. No, voltaremos ao assunto de ontem!

    TROFMOV. Sobre o que, mesmo?

    GAV. Sobre o orgulho humano.

    TROFIMOV. Ontem conversamos um bom tempo mas no conclumos nada no final. Vocs veem algo mstico quando falamos sobre o orgulho humano. Talvez estejam certo do ponto de vista de vocs, mas se virmos de um ponto de vista simplesmente material, sem complicaes, ento que orgulho pode ser isso, que sentido pode ter, j que, o homem imperfeito, fisiologicamente falando, na maioria dos casos

  • - 25 -

    grosseiro e idiota, alm de ser profundamente infeliz? Temos que parar de ficar admirando uns aos outros. Precisamos trabalhar, apenas isso.

    GAV. Para que? No final, todos morremos.

    TROFIMOV. Quem sabe? E o que significa a morte afinal? Talvez o homem possua cem sentidos, e quando morre apenas os cinco conhecidos so destrudos e os outros noventa e cinco so despertados.

    LIUBOV. Como voc esperto Ptia!

    LOPAKHIN. [Irnico] Terrivelmente esperto!

    TROFMOV. A raa humana progride, aperfeioando seus poderes. Tudo que inatingvel agora, um dia resolveremos e ser fcil e compreensvel, mas precisamos trabalhar, precisamos usar todas as foras que temos para construirmos nosso destino. Na Rssia, poucos trabalham. A maioria dos intelectuais simplesmente no busca nada, faz nada e incapaz de trabalho duro. Eles se auto intitulam intelectuais, mas usam palavras difceis para seus servos como tu!! Tratam os empregados como animais, aprendem mal, no leem nada de til, no fazem absolutamente nada, sobre cincia apenas fingem que sabem, sobre arte, entendem pouco. So todos srios, fazem rostos pensativos e severos e no falam nada de til. Eles filosofam enquanto a maioria de ns, pelo menos noventa e cinco por cento vivemos como selvagens, lutando e desperdiando cada oportunidade, comendo como porcos, dormindo na sujeira, com pulgas, fedendo, com uma moral corrompida, etc... Alm disso bvio que essa conversa agradvel s serve para nos distrairmos e distrair outrem. Diga-me, onde esto as creches que tanto falam? E as bibliotecas? Pessoas fazem um romance sobre elas, mas elas no existem. Apenas sujeira, vulgaridade, preguia asitica, isso sim existe... Acho. No gosto de conversas srias. Deveramos nos calar, seria mais produtivo.

    LOPAKHIN. Sabe, eu acordo todo dia cinco da madrugada, trabalho de manh at a tarde, estou sempre lidando com dinheiro - o meu prprio e de outras pessoas - eu vejo como as pessoas so de verdade. Nem preciso fazer muita coisa para comearmos a ver quo poucas pessoas honestas e honradas existem. Algumas vezes, quando no consigo dormir, eu penso: Deus, voc fez florestas enormes, plancies infinitas, horizontes interminveis, e ns, vivendo aqui, deveramos ser gigantes!

    LIUBOV. Gostaria de ser gigante?... Eles so bons apenas em histrias e mesmo nelas, so assustadores.

    IEPIKHODOV passa longe do palco tocando seu violo.

    NIA. [Pensativa] Iepikhodov est ali.

    GAV. O sol se ps, senhoras e senhores.

    TROFMOV. Sim.

  • - 26 -

    GAV. [No muito alto, como se declamasse] Oh Natureza, tu s maravilhosa, tu brilhas eternamente em todo seu esplendor! Oh, maravilhosa e implacvel sem igual, tu que chamamos de me, tu controlas a existncia e a morte, tu que matas e permite novas vidas...

    VRIA. [Implorando] Titio!

    NIA. Titio, voc est fazendo de novo!

    TROFMOV. Seria melhor encaapar a vermelha.

    GAV. T bem, t bem, ficarei quieto.

    Todos eles sentam-se pensativos. Est silncio. O nico barulho do FIERS resmungando. Subitamente um som distante vindo do cu, um som de uma corda se rompendo, que vai morrendo tristemente.

    LIUBOV. O que foi isso?

    LOPAKHIN. Eu no sei. Talvez alguma caamba caiu l longe em algum lugar. Mas foi muito longe.

    GAV. Ou talvez foi algum tipo de pssaro... Como uma gara.

    TROFMOV. Ou uma coruja.

    LIUBOV. [Estremecendo] De qualquer forma, desagradvel. [Uma pausa.]

    FIERS. Aconteceu a mesma coisa logo antes da desgraa. Uma coruja piou e o samovar cantava sem parar.

    GAV. Antes de qual desgraa?

    FIERS. Antes da Abolio. [Uma pausa.]

    LIUBOV. Sabem, meus amigos, vamos embora; j est tarde agora. [Para NIA] Vejo lgrimas em seus olhos... O que foi, pequenina? [Abraa-a]

    NIA. Nada, mame.

    TROFMOV. Algum est vindo.

    Entra um VAGABUNDO com um quepe branco e um sobretudo. Est um pouco bbado.

    VAGABUNDO. Me desculpem, seguindo esse caminho eu vou direto para a estao?

    GAV. Sim, s seguir o caminho.

  • - 27 -

    VAGABUNDO. Obrigado do fundo do meu corao. [Soluando] Tempo amvel... [Declamando] Meu irmo, sofrvel irmo... Venha comigo at o Volga, onde gemeremos... [Para VRIA] Madame, poderia ajudar um russo esfomeado com trinta copeques...

    VRIA grita, assustada.

    LOPAKHIN. [Nervoso] J est abusando das boas maneiras!

    LIUBOV. [Precipitando-se] Tome isto... Aqui est... [Tateia a bolsa] No temos pratas... No importa, aqui est: ouro.

    VAGABUNDO. Estou profundamente agradecido! [Sai. Rindo sozinho]

    VRIA. [Assustada] Estou indo embora, indo embora... Oh, mamezinha, no temos nada em casa para os criados comerem e voc dando ouro.

    LIUBOV. No acredito que fiz isso, que tola sou! Em casa lhe darei tudo que tenho. Iermolai Alexeivitch me emprestar mais!...

    LOPAKHIN. Muito bem.

    LIUBOV. Hora de ir. Vria, j arrumamos seu casamento; dou meus parabns

    VRIA. [Chorando] Voc no deveria brincar com essas coisas, me.

    LOPAKHIN. Oflia, recolhe-te a um convento.

    GAV. Minhas mos esto tremendo; no jogo bilhar faz um bom tempo.

    LOPAKHIN. Oflia, ninfa, em tuas preces, lembra teus pecados.

    LIUBOV. Vamos logo, em breve ser a hora de cear.

    VRIA. Ele me assustou. Meu corao est batendo forte.

    LOPAKHIN. Senhoras e senhores, devo lembr-los que no dia 22 de agosto o cerejal ser vendido. Pensem nisso!... Pensem nisso!...

    Todos saem, exceto TROFMOV e NIA.

    NIA. [Rindo] Graas ao vagabundo que assustou Brbara, estamos enfim a ss agora.

  • - 28 -

    TROFMOV. Vria tem medo de que possamos nos apaixonar um pelo outro e por isso no d uma brecha para ns por dias. O crebro pequeno dela no permite entender que estamos acima do amor. Escaparmos dessas coisas mesquinhas e mentirosas que no permitem sermos livres e felizes, este o objetivo e significado de nossas vidas. Avante! Avanaremos irreversivelmente em direo estrela reluzente que brilha logo ali! No fique para trs amigos!

    NIA. [Batendo palmas] Voc fala to bonito! [Pausa] Est um dia maravilhoso hoje!

    TROFMOV. Sim, o tempo est timo.

    NIA. O que voc fez comigo, Ptia? Eu no amo mais o jardim das cerejeiras como eu amava. Eu era to profundamente apegada ele, pensava que no existia lugar melhor que nosso cerejal.

    TROFMOV. A Rssia toda seu cerejal. A terra linda e grande, existem muitos lugares maravilhosos aqui. [Pausa] Pense nia, seu av, seu bisav, e todos seus ancestrais foram donos de escravos, eles possuam e dominavam almas vivas; e agora, no parece que tem olhos das almas em cada cereja, cada folha e cada tronco desse cerejal? Oh, horrvel, seu cerejal terrvel: e quando de tarde ou a noite andamos pelo cerejal, as cascas das rvores reluzem um brilho fraco e as velhas cerejeiras parecem estar sonhando com tudo que acontecia cem, duzentos anos atrs, horrorizadas com sua viso retorcida. Ainda que, de qualquer forma, deixamos estes duzentos anos para trs. E at agora no mudamos nada - no conhecemos nosso prprio passado que nos acompanha - apenas filosofamos, reclamamos aborrecidos, ou bebemos vodca. Por mais claro que seja que para comearmos a viver no presente, primeiro temos que compreender o passado, super-lo. E isso s pode ser feito atravs do sofrimento, pelo trabalho rduo e ininterrupto. Entenda isso, nia.

    NIA. A casa que vivemos no nos pertence mais; devo ir embora. Dou minha palavra.

    TROFMOV. Se voc possui as chaves da casa, jogue elas em um poo e vamos. Livres como o vento.

    NIA. [Entusiasmada] Que incrvel isso que voc falou!

    TROFMOV. Acredite em mim, nia, acredite! Eu no tenho nem trinta anos ainda, sou jovem, ainda sou um estudante, mas eu j sofri vrias provaes! Assim que o inverno comea, fico com fome, doente, tremendo, pobre como um mendigo e no existe lugar onde no estive - sofri provaes do destino em todos lugares! Mas eu sou dono da minha alma; cada minuto do dia e da noite preenchido com pressentimentos que no so possveis de verbalizar. Eu sei que a felicidade est chegando, nia, Eu j a vejo...

    NIA. [Pensativa] A lua est nascendo.

    Escuta-se IEPIKHODOV tocando a mesma msica triste em seu violo. A lua nasce. Em algum lugar entre os lamos,VRIA est procurando por NIA e chamando, NIA, onde voc est? (fora de cena)

  • - 29 -

    TROFMOV. Sim, a lua nasce. [Pausa] A felicidade est aqui, est chegando; est cada vez mais perto; j escuto seus passos. E se nunca a vermos, nunca a conheceremos, o que importa? Outros vo experimenta-la!

    VOZ DE VRIA. nia! Onde voc est?

    TROFMOV. a Vria de novo! [Irritado] Infame!

    NIA. No se importe. Vamos para o rio. Est bonito l.

    TROFMOV. Vamos. [Saem.]

    VOZ DE VRIA. nia! nia!

    Fim do segundo ato.

  • - 30 -

    TERCEIRO ATO

    Uma sala de estar, um arco separa-a da sala de visitas. Um lustre acesso. A banda judia, mencionada no segundo ato, pode ser escutada do salo de festas. Perodo da tarde. Na sala de visitas, muita gente danando em uma espcie de quadrilha. Escuta-se SIMEONOV-PISCHIN gritando Promenade a une paire!. Danarinos entram na sala de estar; o primeiro par so PISCHIN e CHARLOTA IVANVNA; segundos, TROFMOV e LIUBOV ANDRIEVNA; terceiros NIA e o OFICIAL DOS CORREIOS; quartos, VRIA e o CHEFE DA ESTAO, entre outros. VRIA est chorando baixinho e limpa as lgrimas enquanto dana. DUNIACHA est na ltima posio dos pares. Eles cruzam o salo, PISCHIN gritando Grand rond, balancez e Les cavaliers genou et remerciez vos dames!. FIERS, usando um casaco, carrega gua mineral em uma bandeja. Entra PISCHIN e TROFMOV na sala de visitas.

    PISCHIN. Eu sou um puro-sangue e j tive dois derrames; difcil para mim, danar, mas como dizem, se voc est em Roma, deve fazer o mesmo que um romano. Eu tenho a fora de um cavalo. Meu pai, que morreu, que gostava de uma boa brincadeira, onde dizia que nossos ancestrais, os Simeonov-Pischins eram descendentes de um cavalo idntico aquele que o Calgula nomeou senador... [Senta] Mas o problema : no tenho dinheiro! Cavalo com fome, s acredita em alfafa. [Ronca e acorda subitamente] Ento eu... S acredito em dinheiro...

    TROFMOV. Sim. O senhor de fato tem cara de equino.

    PISCHIN. Bem... Cavalos so animais incrveis... Voc pode at vender um cavalo.

    Escuta-se uma partida de bilhar na sala ao lado. VRIA aparece sob o arco que separa do salo de visitas.

    TROFMOV. [Caoando] Madame Lopakhin! Madame Lopakhin!

    VRIA. [Irritada] Velho decrpito!

    TROFMOV. Sim, eu sou um velho decrpito, e sou orgulhoso disso!

    VRIA. [Amarga] Ns contratamos a banda, mas como eles sero pagos? [Sai.]

    TROFMOV. [Para PISCHIN] Se essa energia que voc usa para pedir dinheiro emprestado para pagar os juros fosse acumulada ao decorrer de toda sua vida e voc a usasse para outra coisa, eu acredito que o senhor teria mudado o mundo.

    PISCHIN. Nietzsche... Um filsofo... Grandioso, um homem celebrado... Homem com uma mente prodigiosa, disse em um de seus livros que deveramos falsificar dinheiro.

    TROFMOV. E voc j leu Nietzsche?

  • - 31 -

    PISCHIN. Bem... Dachenka que me disse. Estou em tal posio, eu no me importaria de falsificar... preciso pagar 310 rublos depois de amanh... Eu tenho 130 j... [Tateia seus bolsos, nervosamente] Perdi o dinheiro! O dinheiro se foi! [Chorando] Onde est o dinheiro? [Contente] Aqui est, atrs do forro do bolso... Eu j estava suando.

    Entra LIUBOV ANDRIEVNA e CHARLOTA IVANVNA.

    LIUBOV. [Cantarolando uma msica de corte] Por que Lenid demora tanto? O que ele est fazendo na cidade? [Para DUNIACHA] Duniacha, d aos msicos um pouco de ch.

    TROFMOV. Talvez cancelaram o leilo, quem sabe.

    LIUBOV. E os msicos no precisavam terem vindo, e ns no precisvamos deste baile... Bom, esquece... [Senta e canta suavemente.]

    CHARLOTA. [Mostra um baralho para PISCHIN] Aqui est um mao de baralho, pense em uma carta que voc goste.

    PISCHIN. Pensei em uma.

    CHARLOTA. Agora embaralhe. timo. D-me aqui, oh meu caro senhor Pischin. Ein, zwei, drei! Agora olhe no bolso do seu casaco, que a encontrar.

    PISCHIN. [Tira uma carta do bolso do casaco] Oito de espadas, est certa! [Surpreso] No acredito?!

    CHARLOTA. [Segurando o mao de cartas na palma da mo. Para TROFMOV] Agora me diga rpido. Qual a carta do topo?

    TROFMOV. Bem, dama de espadas.

    CHARLOTA. Acertou! [Para PISCHIN] Bem, e agora? Que carta est no topo?

    PISCHIN. s de copas.

    CHARLOTA. Acertou! [Bate palma, o baralho some] Que adorvel est o tempo hoje. [Uma voz misteriosa feminina responde, como se sasse do cho, Ah sim, adorvel mesmo.]

    CHEFE DA ESTAO. [Aplaude] Madame ventriloquista, bravo!

    PISCHIN. [Surpreso] No acredito?! Encantador, Charlota Ivanvna... Estou amando...

    CHARLOTA. Amando? [Dando os ombros] O senhor pode amar? Guter Mensch aber schlechter Musikant.

  • - 32 -

    TROFMOV. [D um tapinha nos ombros de PISCHIN] Boa, cavalo!

    CHARLOTA. Ateno por favor, mais um truque. [Pega uma manta de uma cadeira] Possuo comigo uma linda manta, que vou vend-la... [Chacoalha] Algum quer comprar?

    PISCHIN. [Estupefato] No acredito?!

    CHARLOTA. Ein, zwei, drei.

    CHARLOTA rapidamente abaixa a manta, que estava esticada. NIA est atrs, que se curva e corre para sua me, abraa-a e corre de volta para a sala de visitas, todos aplaudem.

    LIUBOV. [Aplaudindo] Bravo, bravo!

    CHARLOTA. Novamente! Ein, zwei, drei!

    Abaixa novamente a manta. VRIA aparece atrs e se curva tambm.

    PISCHIN. [Estupefato] No acredito?!

    CHARLOTA. Fim!

    Joga a manta em PISCHIN, curva-se agradecendo e corre para a sala de visitas.

    PISCHIN. [Corre atrs dela] Sacripantazinha... O que? Como isso? [Sai.]

    LIUBOV. Lenid no chegou ainda... No entendo o porqu de ele estar demorando tanto na cidade! Tudo deveria ter acabado agora. Essa propriedade foi vendida; ou, se o leilo nunca aconteceu, por que ele demoraria tanto?

    VRIA. [Tenta acalma-la] Titio comprou a propriedade mame. Estou certa disto.

    TROFMOV. [Sarcstico] Ah, claro!

    VRIA. Nossa tia av permitiu que comprssemos em seu nome e transferssemos a dvida para ela. Ela est fazendo isso por nia. Estou certa de que Deus ajudar titio a comprar.

    LIUBOV. Titia mandou quinze mil rublos de Iaroslav para comprar a propriedade no nome dela - ela no confia em ns - mas isso no suficiente nem para pagar os juros. [Cobre o rosto com as mos] Meu destino ser selado hoje, meu destino...

    TROFMOV. [Caoando VRIA] Madame Lopakhin!

    VRIA. [Irritada] Eterno estudante! Ele j foi expulso duas vezes da universidade.

  • - 33 -

    LIUBOV. Por que voc est to nervosa, Vria? Ele est te caoando sobre o Lopakhin, mas qual o problema nisto? Voc pode se casar com o Lopakhin se quiser, ele bom, um homem interessante... Voc no precisa se quiser; ningum est forando voc a fazer o que no deseja, minha querida.

    VRIA. Eu acho isso um assunto srio, mamezinha, para ser honesta. Ele um bom homem, eu gosto dele.

    LIUBOV. Ento case-se. Eu no entendo o que voc tanto espera.

    VRIA. Eu no posso me propor em casamento, mamezinha. As pessoas andam falando de ns faz dois anos j, mas ele mesmo no fala nada, nem brinca sobre isso. Eu entendo. Ele est cada dia mais rico, mais ocupado, ele no tem tempo para se preocupar comigo. Se eu tivesse algum dinheiro, mesmo que fosse um pouquinho, uns cem rublos, eu largaria tudo para trs e iria embora. Iria para um convento.

    TROFMOV. Seria timo!

    VRIA. [Para TROFMOV] Um estudante deveria ter aprendido bom senso! [Chorando docemente] Como voc est feio Ptia, como voc envelheceu! [Para LIUBOV, sem chorar] Mas no posso sair sem trabalho, mamezinha. Eu preciso fazer algo o tempo todo.

    Entra IACHA.

    IACHA. [Segurando riso] Iepikhodov quebrou um taco de bilhar! [Sai.]

    VRIA. Por que Iepikhodov est aqui? Quem disse que ele poderia jogar bilhar? Eu no entendo essas pessoas. [Sai.]

    LIUBOV. No caoe dela, Ptia, ela j muito triste sem isso.

    TROFMOV. Vria muito arrogante, ela continua interferindo em assuntos alheios. O vero todo, ela no deu paz para mim e para a nia, ela tem medo de que nos entreguemos a um romance. O que isso tem a ver com ela? Como se eu fizesse algo para que ela tivesse algum fundamento de que eu me entregaria a tal vulgaridade! Ns estamos acima do amor.

    LIUBOV. Ento, suponho que devo estar abaixo do amor. [Agitada] Por que Lenid no est aqui? Se eu pelo menos soubesse se essa propriedade foi vendida ou no! A desgraa parece to improvvel que no sei o que pensar, estou em uma ilha deserta... Eu devo gritar... Ou fazer algo besta. Salve-me, Ptia. Diga algo, diga algo.

    TROFMOV. No a mesma coisa se a propriedade ser vendida hoje ou no? Isso j se perdura por um bom tempo, no tem volta, o caminho foi trilhado. Se acalme, minha cara, voc no deveria se iludir tanto, pelo menos uma vez na vida, em alguma proporo, voc deveria olhar a verdade.

  • - 34 -

    LIUBOV. Que verdade? Voc enxerga to bem onde est a verdade e a inverdade, mas eu no estou vendo nada. Voc responde todas as grandes dvidas com tanta convico, mas me fale, querido, ser que isso no porque voc novo, porque mal teve tempo de sofrer por pelo menos uma dessas dvidas? Voc encara a vida to bravamente, Ptia, ser que voc no pode esperar nem enxergar nada terrvel, por que a vida se esconde destes olhos de criana? Voc mais forte, mais honesto, mais profundo do que somos, mas pense um pouco, seja um pouco magnnimo e tenha piedade de mim. Eu nasci aqui, meu pai e minha me viverem aqui, meu av tambm, eu amo essa casa. No poderia conceber minha vida sem o jardim das cerejeiras, e se realmente deve ser vendido, que venda-o comigo! [Abraa TROFMOV, beija sua testa] Meu filho se afogou aqui... [Chora] Tenha piedade de mim, bom, amvel homem.

    TROFMOV. Voc sabe que eu gosto da senhora com toda minha alma.

    LIUBOV. Por isso voc deveria ter dito tudo de uma forma diferente, diferente... [Pega outro leno, um telegrama cai no cho] Estou com o corao despedaado hoje, voc no pode imaginar. Aqui est to barulhento, minha alma treme a cada som. Eu tremo inteira e no consigo ficar sozinha, com medo do silncio. No me julgue to rigidamente, Ptia... Eu amei voc, como se fizesse parte da minha famlia. Eu ficaria muito feliz se nia se casasse com voc, eu juro, mas Ptia, voc deveria trabalhar, finalizar os estudos. Voc no faz nada, o destino te joga de um lugar para o outro, to aleatrio... No ? Sim? Voc deveria fazer alguma coisa com essa barba, para deix-la mais bonita [Ri] Voc engraado!

    TROFMOV. [Pegando o telegrama] Eu no fao questo de ser elegante.

    LIUBOV. Esse telegrama veio de Paris. Eu recebo um todo dia. Ontem e hoje. Aquele homem selvagem est doente novamente, est mal de novo... Ele implora por perdo, implora para que eu volte, mas o que posso fazer; ele est doente, ele est sozinho, infeliz, e quem est cuidando dele, dando os remdios na hora certa? E por que eu deveria ficar quieta sobre isso; eu o amo, eu amo ele, amo ele... Esse amor uma pedra no meu pescoo; vou afundar em um poo, mas eu amo essa pedra e no posso viver sem ela. [Aperta a mo de TROFMOV] No pense mal de mim, Ptia, no diga nada, no diga...

    TROFMOV. [Chorando] Pelo amor de Deus, desculpe-me se falo de forma to direta, mas esse homem te roubou!

    LIUBOV. No, no, no, voc no deveria dizer isso! [Pe as mos nas orelhas.]

    TROFMOV. Mas ele um calhorda, voc no reconhece isso! Ele um ladrozinho, um ningum...

    LIUBOV. [Irritada, mas comedida] Voc tem vinte e seis ou vinte e sete anos, e ainda um estudantezinho de segunda classe!

    TROFMOV. Qual o problema?

    LIUBOV. Voc deveria ser um homem, na sua idade deveria entender aqueles que amam. E voc deveria amar algum, se apaixonar! [Irritada] Sim, sim! Voc no puro como diz, apenas um esquisito, um estranho, uma aberrao...

  • - 35 -

    TROFMOV. [Chocado] O que ela est dizendo?!

    LIUBOV. Estou acima do amor! Voc no est acima do amor, voc apenas o que o Fiers costuma chamar de "vale-nada". No tem uma namorada, na sua idade!

    TROFMOV. [Horrorizado] Isso horrvel! O que ela est dizendo?! [Corre rapidamente para a sala de estar segurando sua prpria cabea] Isso horrvel... No posso ouvir isso, vou embora. [Sai, mas retorna mais uma vez] Est tudo acabado entre ns! [Sai.]

    LIUBOV. [Grita para ele] Ptia, espere! Tolinho, eu estava brincando! Ptia! [Algo ouvido rolando escada abaixo de forma bastante barulhenta, NIA e VRIA gritam; risadas so escutadas imediatamente] O que foi isso?

    NIA entra correndo, rindo.

    NIA. Ptia caiu da escadaria! [Corre para fora, de volta.]

    LIUBOV. Esse Ptia uma maravilha.

    O CHEFE DA ESTAO se posiciona no meio da sala de estar e recita Madalena, a pecadora de Liev Tolsti. Ele escutado, mas diz apenas alguns versos quando uma valsa escutada do quarto da frente e PISCHIN se v obrigado a parar. Todos danam. TROFMOV, NIA, VRIA e LIUBOV ANDRIEVNA vo para o quarto da frente.

    LIUBOV. Bem Ptia... Minha alma pura... Eu peo perdo... Vamos danar.

    Ela dana com PTIA, NIA e VRIA danam tambm. FIERS entra e coloca sua bengala junto a porta. IACHA tambm entra e observa a dana.

    IACHA. Est tudo bem, vov?

    FIERS. No estou bem. Antes, nos nossos bailes, costumavam danar generais, bares e almirantes, e agora ns vemos o oficial dos correios e o chefe da estao, que vieram ainda de favor. Estou muito fraco. Meu amo que morreu, o av dos meninos, costumava dar lacre para qualquer doena. Eu tomei lacre todos os dias por vinte anos, ou at mais; talvez por isso eu estou vivo ainda.

    IACHA. Estou cansado de voc, velho. [Boceja] Se pelo menos voc morresse logo.

    FIERS. Ora seu... Vale-nada! [Resmunga.]

    TROFMOV e LIUBOV danam na sala de estar, e ento vo para uma sala menor.

    LIUBOV. Merci. Sentarei aqui. [Senta] Estou cansada.

  • - 36 -

    Entra NIA.

    NIA. [Excitada] Algum na cozinha acabou de dizer que o jardim das cerejeiras foi vendido.

    LIUBOV. Vendido para quem?

    NIA. No disseram para quem. E tambm j foram embora. [Dana na sala de estar com TROFMOV.]

    IACHA. Um velho estava fofocando sobre isso h um tempo atrs. Um estranho qualquer!

    FIERS. E Lenid Andreivitch que no chega, ele ainda no voltou. Ele est vestindo um casaco leve. Vai pegar um resfriado. Esses meninos no aprendem.

    LIUBOV. Vou morrer com essa espera. V e descubra quem disse que foi vendido Iacha.

    IACHA. Ah, mas ele foi embora faz tempo, o velho. [Ri.]

    LIUBOV. [Ligeiramente irritada] Do que est rindo? Est feliz com o qu?

    IACHA. Iepikhodov muito engraado. Ele um tonto. Vinte-e-duas desgraas.

    LIUBOV. Fiers, se a propriedade estiver vendida, para onde voc vai?

    FIERS. Irei onde a senhora ordenar que eu v.

    LIUBOV. Por que voc est com essa aparncia? Est doente? Eu acho que voc deveria ir para cama...

    FIERS. Sim... [Com um sorriso] Eu irei para cama, e quem arrumar as coisas e dar as ordens sem mim? Eu tenho essa casa nos ombros.

    IACHA. [Para LIUBOV ANDRIEVNA] Liubov Andrievna! Eu quero pedir um favor a voc, se no se importar! Se voltar para Paris de novo, poderia por favor me levar com voc? absolutamente impossvel para mim, ficar por aqui. [Olhando ao redor, falando em um tom mais baixo] Falando diretamente, veja voc que esse pas um lugar de gente sem educao, um povo imoral, e to estpido. A comida na cozinha bestial, e o Fiers andando por ai, resmungando um monte de coisas inapropriadas. Leve-me comigo, ser muito generosa!

    Entra PISCHIN.

    PISCHIN. Venho para requisitar o prazer de uma valsa, minha cara... [LIUBOV ANDRIEVNA dana com ele] Como sempre, maravilhosa madame, eu preciso emprestados 180 rublos seus... Eu preciso... [Eles danam] 180 rublozinhos... [Atravessam para a sala de visitas.]

  • - 37 -

    IACHA. [Canta suavemente] Oh, voc entenderia Minha alma incansvel?

    Na sala de estar, uma figura de cartola cinza e calas quadriculadas gesticulando e saltando aparece. Gritos de Bravo Charlota Ivanvna!

    DUNIACHA. [Para de passar p de maquiagem no rosto] A senhorita nia disse para eu danar - tm um monte de cavalheiros, mas poucas senhoritas - mas fico tonta quando dano, e meu corao acelera, Fiers Nicolavitch; o oficial dos correios me disse algo que fez eu at ficar sem ar [A msica vai diminuindo.]

    FIERS. O que ele disse para voc?

    DUNIACHA. Ele disse: Voc uma florzinha..

    IACHA. [Bocejando] Grosseiro... [Sai.]

    DUNIACHA. Uma florzinha... Sou uma garota to delicada; eu simplesmente amo palavras de carinho.

    FIERS. Voc vai ficar maluca.

    Entra IEPIKHODOV.

    IEPIKHODOV. Voc, Avdtia Fedorvna, prefere ver uma barata a me ver. [Suspira] Oh, vida!

    DUNIACHA. O que voc quer?

    IEPIKHODOV. Indubitavelmente, talvez, voc possa estar certa. [Suspira] Mas, certamente, se considerares a questo sob este aspecto, ento voc, se me permite dizer, deverias desculpar minha clareza, candura. Conheo meu destino, todo dia um infortnio novo ocorre comigo, cresci acostumado com isto desde criana, as vezes at encaro meu destino e sorrio. Deste sua palavra, e eu pensei...

    DUNIACHA. Por favor, conversaremos sobre isso depois, deixe-me sozinha agora. Estou em um sonho, agora. [Brinca com seu leque.]

    IEPIKHODOV. Todo dia uma desgraa nova acontece comigo, e eu, se posso expressar-me, apenas sorrio, as vezes at gargalho.

    VRIA entra vinda da sala de visitas.

    VRIA. [Para IEPIKHODOV] Ainda no foi embora, Smeon? Voc realmente no respeita ningum. [Para DUNIACHA] Vai embora Duniacha. [Para IEPIKHODOV] Voc joga bilhar, quebra um taco e anda pela sala de estar, como se fosse um visitante!

  • - 38 -

    IEPIKHODOV. Permita-me dizer que voc no pode ordenar-me a nada.

    VRIA. Eu no estou te dando ordens, estou apenas lhe dizendo. Voc anda de lugar para lugar e nunca faz seu trabalho. S Deus sabe por que ns sustentamos um escriturrio.

    IEPIKHODOV. [Ofendido] Se trabalho, ou ando, ou como, ou jogo bilhar, uma questo que interessa apenas para pessoas de conhecimento e meus superiores.

    VRIA. Como ousa a falar comigo dessa forma! [Furiosa] Como ousa? Voc quer dizer que no entendo de nada? Saia daqui! Saia agora!

    IEPIKHODOV. [Intimidado] Devo pedir-lhe que se expresse comigo mais educadamente.

    VRIA. [Fora de si] Saia neste instante. Saia! [Ele vai para a porta, ela segue] Vinte-e-duas desgraas! No quero ver mais um sinal seu por aqui! Eu no quero ver sua cara mais! [IEPIKHODOV sai; sua voz pode ser escutada de fora: Farei uma queixa contra voc.] O que, est voltando? [Pega a bengala do FIERS que estava perto da porta] Vai, vai, vai! Vou te mostrar uma coisa. ...Vai ou no vai? Vai ou no vai? Tome isto ento. [Ela acerta LOPAKHIN que entra.]

    LOPAKHIN. Muito obrigado.

    VRIA. [Nervosa, mas entretida com o que aconteceu] Desculpe-me.

    LOPAKHIN. No se importe. Eu agradeo pela recepo agradvel.

    VRIA. No merecedora de nenhum agradecimento. [Vai embora, ento olha de volta e pergunta gentilmente] Eu no te machuquei, ou machuquei?

    LOPAKHIN. No, de forma alguma. Terei um galo enorme na cabea, s isso.

    VOZES DA SALA DE VISITAS. Lopakhin retornou! Iermolai Alexeivitch!

    PISCHIN. Agora veremos e ouviremos o que queremos ver e ouvir... [Beija LOPAKHIN] Est cheirando conhaque, meu caro, minha alma. Estamos tendo um dia timo.

    Entra LIUBOV ANDRIEVNA.

    LIUBOV. voc, Iermolai Alexeivitch? Por que demorou tanto? Onde est Lenid?

    LOPAKHIN. Lenid Andreivitch est vindo bem atrs, est chegando...

    LIUBOV. [Excitada] Bem, ento? Fomos vendidos? Diga-me?

  • - 39 -

    LOPAKHIN [Confuso, com medo de demonstrar seu prazer] O leilo terminou as quatro em ponto... Ns perdemos o trem, tivemos que esperar at oito e meia. [Suspira pesadamente] Ooh! Minha cabea est um pouco zonza.

    Entra GAV; em sua mo direita ele carrega coisas que comprou, com a esquerda limpa suas lgrimas.

    LIUBOV. Le, o que aconteceu? Le, est tudo bem? [Impacientemente, em lgrimas] Rpido, pelo amor de Deus...

    GAV. [No diz nada a ela, apenas faz um sinal com a mo; para FIERS, chorando] Aqui, pegue isto... So anchovas e arenques de Kertch... no comi o dia todo... s eu sei o dia que estou tendo! [Na porta, da sala de bilhar, onde a porta est aberta; o barulho das bolas escutado, e a voz de IACHA: Encaapei a rosa e a amarela! A expresso de GAV muda, ele no chora mais] Estou muito cansado. Ajude-me com minhas roupas, Fiers. [Vai para a sala de visitas, FIERS o segue.]

    PISCHIN. O que acontece? Vamos, fale para ns!

    LIUBOV. O jardim foi vendido?

    LOPAKHIN. Foi vendido.

    LIUBOV. Quem comprou?

    LOPAKHIN. Eu comprei.

    LIUBOV ANDRIEVNA est estupefata. Ela cairia se no estivesse com os braos apoiando em uma mesa. VRIA tira as chaves do cinto, jogam elas no cho, no meio da sala e sai.

    LOPAKHIN. Eu comprei! Um momento, senhoras e senhores, por favor, minha cabea est girando, mal posso falar... [Ri] Quando chegamos no leilo, Deriganov j estava l. Lenid Andrievitch tinha apenas quinze mil rublos, e Deriganov ofereceu trinta mil logo de cara, para comear. Eu vi como as coisas eram, ento j aumentei para quarenta. Ele aumentou para quarenta e cinco, eu ofereci cinquenta e cinto. Ele aumentava de cinco em cinco mil, eu aumentava dez mil... Ento, terminou, eu ofereci noventa mil alm da hipoteca; ele desistiu. O jardim das cerejeiras agora meu! Meu! [Gargalha] Meu Deus, meu Deus, o jardim das cerejeiras meu! Digam-me se estou bbado, maluco, ou sonhando... [Bate os ps] No riam de mim! Se meu pai ou meu av levantassem de seus tmulos e olhasse tudo isso, vissem como o pequeno Iermolai comprou uma propriedade, que a mais linda propriedade do mundo! Eu compre a propriedade que meu av e meu pai eram escravos, onde no eram permitidos nem entrar na cozinha. Eu estou dormindo, isso apenas um sonho, uma iluso... Fruto da minha imaginao, embrulhado na neblina do desconhecido... [Pega as chaves, sorrindo muito] Ela jogou as chaves, quis mostrar que no mais a dona do lugar... [Tilinta as chaves] Bem! [Escuta a orquestra afinando os instrumentos] Hey, msicos, toquem, eu quero escuta-los! [A orquestra toca. LIUBOV ANDRIEVNA afunda em sua cadeira e chora amargamente. LOPAKHIN continua, reprovando-a] Por que voc no ouviu meu

  • - 40 -

    conselho? Minha pobre, querida amiga, no d para voltar atrs agora. [Chora] Oh, espero que termine logo isso tudo, que nossa vida absurda e miservel melhore!

    PISCHIN. [Pega o brao de LOPAKHIN; falando em um tom mais baixo] Ela est chorando. Vamos para a sala de visitas e deixemos ela um pouco s... Venha... [Puxa-o pelo brao]

    LOPAKHIN. O que isso? Msicos, toquem mais! Vamos, faam o que eu desejo! [Ironicamente] O novo dono do jardim das cerejeiras est aqui! [Ele acidentalmente esbarra na mesa e derruba um candelabro] Eu posso pagar por tudo! [Sai com PISCHIN.]

    Na sala de estar e na sala de visitas, ningum permanece, exceto LIUBOV ANDRIEVNA, que se senta esparramada e chora amargamente. A banda toca baixo, suavemente. NIA e TROFMOV entram rapidamente. NIA vai at sua me e ajoelha-se na frente dela. TROFMOV fica esperando na entrada da sala de visitas.

    NIA. Me! Me, voc est chorando? Minha querida, amvel, boa me, minha me linda, eu te amo! Abenoada seja! O jardim das cerejeiras foi vendido, no somos mais donos dele, verdade, verdade, mas no chore mame, voc ainda tem a vida pela frente, voc tem sua alma linda e pura como sempre... Venha comigo, venha, querida, vamos embora daqui, venha! Ns plantaremos um novo jardim, bonito como este, e voc ver, voc entender e ter uma alegria imensa, uma alegria terna se apossuir de sua alma, como um sol da tarde, e voc sorrir, me! Venha, querida, vamos embora!

    Fim do terceiro ato.

  • - 41 -

    QUARTO ATO

    O palco tem o mesmo cenrio do primeiro ato. No tem cortinas nas janelas, nem quadros nas paredes; apenas alguns mveis sobraram; eles esto todos amontoados no canto como se estivessem a venda. O vazio percebido. Na porta que sai da casa e no fundo do palco, parafernlias e sacos de dormir esto empilhados. A porta a esquerda est aberta; possvel escutar vozes de VRIA e NIA atrs dela. LOPAKHIN, de p, espera. IACHA segura uma bandeja com algumas taas de champanhe. Do lado de fora, IEPIKHODOV, est amarrando uma caixa. Vozes so escutadas atrs do palco. Os camponeses vieram para se despedir. A voz de GAV ouvida: Obrigado, irmos, muito obrigado.

    IACHA. O povo veio dizer adeus. Eu sou da opinio, Iermolai Alexeivitch, que eles so pessoas boas, mas so muito ignorantes.

    As vozes vo sumindo. LIUBOV ANDRIEVNA e GAV entram. Ela no est chorando, mas est plida, seu rosto est trmulo; ela mal consegue falar.

    GAV. Voc deu sua bolsa a eles, Luluba. No pode continuar assim, no pode!

    LIUBOV. No consigo me segurar, no consigo! [Saem ambos.]

    LOPAKHIN. [Na porta, falando atrs deles] Por favor, devo pedir humildemente! Apenas uma tacinha para dizer adeus. Eu no me lembro de trazer nenhuma da cidade e achei apenas essa garrafa na estao. Por favor, bebam! [Pausa] Vocs no querem nem um copo? [Sai de perto da porta] Se eu soubesse - no teria comprado nenhuma. Bem, no beberei tambm ento. [IACHA cuidadosamente coloca a bandeja na cadeira] Pode beber Iacha, quanto quiser.

    IACHA. Um brinde para aqueles que partem! E boa sorte para aqueles que ficam! [Bebe] Posso lhe garantir que esse champanhe no verdadeiro.

    LOPAKHIN. Oito rublos uma garrafa. [Pausa] Est diabolicamente frio aqui.

    IACHA. No acenderam as lareiras hoje, estamos indo embora. [Ri.]

    LOPAKHIN. Qual seu problema?

    IACHA. S estou contente.

    LOPAKHIN. J outubro, mas est to ensolarado e quieto como se fosse vero. Bom para construir. [Olhando seu relgio e falando atravs da porta] Senhoras e senhores, por favor, lembrem-se que faltam apenas quarenta e cinco minutos at o trem partir! Vocs precisam ir para a estao em vinte minutos. Corram.

    TROFMOV, em um casaco, vem para a porta.

  • - 42 -

    TROFMOV. Acho que hora de partirmos. As carruagens esto esperando. Onde diabos esto minhas galochas? Perderam-se. [Atravs da porta] nia, no consigo encontrar minhas galochas! No consigo!

    LOPAKHIN. Preciso ir para Kharkiv. Vou no mesmo trem que voc. Gastarei todo meu inverno em Kharkiv. Fiquei muito tempo com vocs, estou ficando enferrujado sem trabalho. No posso viver sem trabalhar. Preciso fazer algo com minhas mos; elas parecem que nem so minhas mais.

    TROFMOV. Ns iremos embora agora e voc poder comear seus trabalhos muito teis.

    LOPAKHIN. Beba um pouco de champanhe.

    TROFMOV. No.

    LOPAKHIN. Ento, ir para Moscou agora?

    TROFMOV. Sim. Eu irei com eles para a cidade e amanh irei para Moscou.

    LOPAKHIN. Sim... Espero que ningum comece as aulas hoje; aposto que eles esto esperando voc voltar!

    TROFMOV. Isso no da sua conta.

    LOPAKHIN. Quantos anos voc gastou na universidade?

    TROFMOV. Conta uma nova. Essa j velha e desgastada. [Procurando suas galochas] Sabe, talvez nunca mais nos encontremos, ento me deixe dar uma palavrinha, como conselho: pare de balanar as mos dessa forma! Se livre desse hbito de ficar balanando. Outra coisa tambm, construir vilas e cobrar de seus arrendatrios para brincarem de fazendeiros - o mesmo gesto; voc est simplesmente balanando as mos... Falo isso porque queira ou no, sabe, eu gosto de voc. Voc fino, tem dedos delicados, parecem com os de um artista, e voc tem uma alma fina e delicada tambm.

    LOPAKHIN. [Abraa-o] Adeus, meu querido companheiro. Obrigado por tudo que voc disse. Se voc quiser qualquer quantia... Pegue aqui um dinheiro para sua viagem.

    TROFMOV. Por qu? Eu no quero.

    LOPAKHIN. Mas voc no tem nada!

    TROFMOV. Sim, eu tenho, obrigado; eu fiz uma traduo. Est aqui no meu bolso. [Ansioso] Mas no consigo achar minhas galochas!

    VRIA. [De outro quarto] Pega logo essa porcaria! [Joga um par de galochas de borracha no palco.]

    TROFMOV. Por que est to nervosa, Vria? Hm! Estas no so minhas galochas!

  • - 43 -

    LOPAKHIN. Na primavera, eu semeei trs mil acres de papoulas e agora lucrei quarenta mil rublos. E quando as papoulas eram flores, que imagem linda era! Fiz quarenta mil rublos, quero dizer que posso e gostaria de emprestar um dinheiro, posso lhe proporcionar isto. Por que virar a cara para mim? Sou um simples campons...

    TROFMOV. Seu pai era um campons, o meu era um farmacutico, e isso no significa absolutamente nada.

    LOPAKHIN [tira do bolso sua carteira] No, no... Mesmo se voc me desse vinte mil rublos, eu negaria. Sou um homem livre. E tudo que vocs, seja rico ou pobre, valorizam tanto no tem a menor influncia sobre mim; eu sou como um floco de neve no vento. Consigo me virar sem voc, passarei atravs de voc. Sou forte e orgulhoso. A humanidade progride para a maior de todas as verdades, a maior de todas alegrias, como so possveis nessa Terra, e eu estarei na fila da frente, alcanarei primeiro.

    LOPAKHIN. Alcanar?

    TROFMOV. Alcanarei. [Pausa] Chegarei l e mostrarei aos outros o caminho [Um som de machadada nas rvores escutado.]

    LOPAKHIN. Bem, adeus, meu velho amigo. hora de ir. Aqui ficamos afrontando um ao outro, mas a vida continua o tempo todo, sem parar. Quando eu trabalho por um perodo longo de tempo, eu no me canso, ento posso pensar mais facilmente, e eu tenho a impresso que entendo porque existo. E existem tantas pessoas na Rssia, irmo, que vivem para nada. E ainda, o trabalho continua mesmo sem eles. Dizem que Lenid Andreivitch aceitou seu posto no banco; receber seis mil rublos por ano... Mas ele no aguentar muito tempo; muito preguioso.

    NIA. [Na porta] Mame pediu que parasse de cortar o cerejal enquanto ela ainda no foi embora.

    TROFMOV. Sim, realmente, voc deveria ter tato e no fazer isso. [Sai.]

    LOPAKHIN. Est certo, est certo... Sim, ele est certo. [Sai.]

    NIA. Levaram o Fiers para o hospital?

    IACHA. Eu mandei que o levassem. Suponho que levaram.

    NIA. [Para IEPIKHODOV, que cruza a sala] Smeon Panteleivitch, por favor, verifique se o Fiers foi mandado para o hospital.

    IACHA. [Se sentindo ofendido] Eu ordenei Egor para que o levasse essa manh. Para que ficar perguntando isso dez vezes?

  • - 44 -

    IEPIKHODOV. O velho Fiers, na minha resoluta opinio, este deteriorado servidor no merece ateno para reparos; vossos antepassados, estariam timos recebendo-o. Eu apenas o invejo. [Coloca, distraidamente, um ba sobre uma caixa de chapus e amassa-os] Est certo, claro. Bem que eu sabia!

    IACHA. [Sorrindo em um tom de zombaria] Vinte-e-duas desgraas.

    VRIA. [Atrs da porta] O Fiers foi encaminhado para o hospital?

    NIA. Sim

    VRIA. Ento por que no levaram com ele a carta para o doutor?

    NIA. Eu mandarei entregar a carta. [Sai.]

    VRIA. [No quarto ao lado] Onde est Iacha? Avisem ele que a me dele veio dizer adeus.

    IACHA. [Gesticulando com as mos] Ela me faz perder toda minha pacincia!

    DUNIACHA todo esse tempo estava irrequieta com a bagagem; agora que IACHA est sozinho, ela vai at ele.

    DUNIACHA. Voc no me olhou nenhuma vez para mim, Iacha. Est indo embora e me deixando para trs. [Chora e abraa-o em torno do pescoo.]

    IACHA. Para que chorar? [Bebe champanhe] Em seis dias, estarei em Paris novamente. Amanh pegaremos o expresso. Mal posso acreditar. Vive la France! No perteno a este lugar, no posso viver aqui... No bom. Bem, eu j vi o mundo brbaro; fiquei tempo demais aqui. [Bebe champanhe] O que te faz chorar? Se comporte direito e pare de chorar.

    DUNIACHA. [Olha para um espelho pequeno e passa p de maquiagem no rosto] Me envie uma carta de Paris. Voc sabe que eu te amo, Iacha, amo muito! Sou uma criatura sensvel, Iacha.

    IACHA. Algum est vindo.

    Ele comea carregar a bagagem, cantando suavemente. Entra LIUBOV ANDRIEVNA, GAV, NIA e CHARLOTA.

    GAV. melhor nos apressarmos. No temos tempo a perder. [Olha para o IACHA] Algum cheira a arenque!

    LIUBOV. No precisamos estar na carruagem pelos prximos dez minutos... [Olha ao redor, o quarto] Adeus, querida casa, meu av. O inverno passar, a primavera chegar e ento voc no existir mais, voc ser derrubada. Quantas coisas essas paredes viram! [Beija sua filha com muito amor] Meu tesouro, voc est radiante, seus olhos brilham como duas joias! Voc est feliz? Muito?

  • - 45 -

    NIA. Muito! Uma nova vida est comeando, me!

    GAV. [Alegremente] Sim, realmente, tudo ser novo agora. Antes do cerejal ser vendido, estvamos todos preocupados e sofrendo, e agora, quando o problema foi resolvido de uma vez por todas, todos nos acalmamos, ficamos at contentes. Sou um bancrio agora, um financista... Vermelha no centro; e voc, Luluba, por alguma razo, aparenta estar melhor, no tenha dvidas sobre isso.

    LIUBOV. Sim. Meus nervos esto melhores, verdade. [Poe o casaco e o chapu] Eu dormirei bem. Pegue minha bagagem, Iacha. Est na hora. [Para NIA] Minha garotinha, nos encontraremos em breve... Estarei em Paris. Viverei l com o dinheiro que nossa tia de Iaroslav nos mandou para comprar a propriedade - Deus que a abenoe! - Entretanto, esse dinheiro no durar muito.

    NIA. Voc voltar logo, mame, no vai? Eu me prepararei, e passarei no exame do colgio, ento trabalharei para te ajudar. Leremos todos os tipos de livro uma para a outra, no vamos? [Beija as mos de