o individualismo na grande cidade

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O NA GRANDE CIDADE INDIVIDUALISMO Uma reflexão sobre o espaço urbano na escala humana. Sensação Percepção Direção Julian Monteiro Seifert observador e vítima.

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Uma reflexão sobre o espaço urbano na escala humana.

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Page 1: O individualismo na grande cidade

ONA GRANDE CIDADE

INDIVIDUALISMO

Uma reflexão sobre o espaço urbano na escala humana.

SensaçãoPercepção

Direção

Julian Monteiro Seifertobservador e vítima.

Page 2: O individualismo na grande cidade

Trabalho Final de Graduação - TFGUniversidade Júlio de Mesquita Filho, UNESP - BauruFaculdade de Artes, Arquitetura e Comunicação, FAAC

Orientador: Paulo Roberto Masseran Claudio Silveira Amaral

2013

SOCIEDADESOCIEDADESOCIEDADESOeCIDADE

Page 3: O individualismo na grande cidade

Agradeço a todos que compartilham da sensibilidade de questionar o espaço que o homem ocupa ou como ele o faz.

Agradeço especialmente a minha família e aos meus amigos.

Obrigado.

Page 4: O individualismo na grande cidade

SUMÁRIO

Page 5: O individualismo na grande cidade

1

1.0 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 2

2.0 RESUMO: ..................................................................................................... 7

3.0 O PANORAMA ESPACIAL: A CIDADE COMO REDE .................. 15

4.0 POSSÍVEIS REFLEXOS NA RELAÇÃO INTERPESSOAL ............ 32

5.0 A CIDADE DO SKYLINE E A CIDADE DO HOMEM..................... 38

6.0 INTERNET................................................................................................ 48

7.0 CONCLUSÃO ............................................................................................ 55

8.0 CONFRONTO ........................................................................................... 59

9.0 TEXTOS E REFLEXÕES ........................................................................ 62

9.1 TESTEMUNHO: .................................................................................. 63

9.2 EXAME: ................................................................................................. 64

9.3 VEM NA MINHA SOMBRA: ............................................................ 66

9.4 SURDEZ URBANA: ............................................................................ 68

9.5 MORADOR: .......................................................................................... 69

9.6 JOÃO ....................................................................................................... 70

9.7 REFLEXÕES: ........................................................................................ 71

10.0 BIBLIOGRAFIA .................................................................................... 77

Page 6: O individualismo na grande cidade

1.0 INTRODUÇÃO

Page 7: O individualismo na grande cidade

3

A partir de meu entendimento da responsabilidade e

oportunidade que durante a graduação, somente um trabalho de

final de curso é capaz de gerar, na busca por respostas ou quem

sabe, ainda mais perguntas que toquem minha percepção

pessoal enquanto indivíduo componente de uma massa de

personagens situacionais ou pessoais sobre o espaço urbano, o

presente trabalho irá introduzir uma discussão a respeito do

tema geral da individualidade na grande cidade do século XXI,

sob a hipótese que parte do questionamento da existência de

uma possível relação proporcional entre indivíduo e cidade, de

forma que quanto maior e mais urbana é a cidade, mais

individualista tende a ser seu cidadão, até alcançar o universo da

teoria e linguagem da cidade. De sua impressão e expressão.

Atentando e entendendo aqui, o conceito de espaço

urbano como aquele adimensional, palco das atrações e

repulsões entre indivíduos ou entre estes e seu meio sob um

contexto de organização social, política e espacial das cidades

grandes ocidentais, tomando como principal exemplo a cidade

de São Paulo.

Extrapola-se aqui a possível interpretação a respeito do

espaço urbano como espaço puramente construído. Partimos da

residência subdividida em claustros cada vez mais

individualistas ao abandono das praças públicas de bairro, do

transporte coletivo demasiadamente adensado, porém silencioso

à solidão do pensamento alto e do monólogo mentalmente

ensaiado.

Para tanto, o trabalho se apega sobre uma

percepção pessoal de um cotidiano típico de classe média,

retratado pela crônica. Para o retrato desta percepção, estão

presentes aqui alguns dos textos criados por mim a partir da

observação de situações comuns desta rotina que insinuam

minha inquietação quanto a esta individualidade do cidadão

urbano.

* * *

Page 8: O individualismo na grande cidade

4

O embasamento do trabalho se dará em grande parte,

pela comparação entre o contexto vivido em São Paulo em pleno

século XXI e duas referências principais no que diz respeito à

relação do indivíduo com a cidade. São elas: Nova York durante o

século XX, descrito por Jane Jacobs em seu livro MORTE E VIDA

DE GRANDES CIDADES (1961) a respeito das cidades americanas

deste período, sob um olhar similar ao adotado no trabalho

enquanto narrativa, testemunhado por ela o cotidiano urbano da

sociedade de uma forma geral1; e Copenhagen durante o

processo de reurbanização na segunda metade do século XX

realizado pelo escritório do arquiteto urbanista Jan Gehl, que

ganhou destaque e respeito pela efetividade de seus projetos no

planejamento adequado2 para cidades, baseado na valorização e

adequação do espaço urbano pelo ponto de vista do pedestre.

1 Jane Jacobs descreve em MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES principalmente o cotidiano urbano de classes menos abastadas da sociedade durante o século XX, diferentemente deste trabalho que como citado anteriormente trata do cotidiano de uma classe média, da qual eu faço parte. 2 Em Life between buildings, Jan Gehl demonstra a importância e efetividade do rompimento com o paradigma da valorização do automóvel e como o investimento em iniciativas projetuais que ressaltam os fluxos da cidade pela escala do pedestre e da ciclovia, se mostram importantes e funcionais no resgate do contato humano com a cidade.

Além dos dois livros de maior repercussão de Gehl (CITIES FOR

THE PEOPLE, 2010 e LIFE BETWEEN BUILDINGS, 1971), também

serão usados materiais encontrados na internet de palestras e

entrevistas por ele dadas que tratam sobre sua obra e

apreensões.

Posteriormente, após incitar e desenvolver o

questionamento em torno da discussão central da

individualidade na grande cidade pretende-se aplicar tais

conceituações de forma prática sobre algumas áreas potenciais

encontradas em São Paulo. Essas áreas não são obrigatoriamente

áreas de vazio, mas também pontos já utilizados pela sociedade

frequentemente que se mostram aptas para uma intervenção

direta, que será representada de forma simples e objetiva por

croquis e esquemas gráficos de justificação.

Ou então, na tentativa de influenciar uma área em uma

escala maior, pode eventualmente, surgir a oportunidade de

propor um projeto arquitetônico edificado, que respeite e

represente uma tipologia nova, descoberta através dessas

reflexões, capaz de incentivar a interação social e a coletivização

Page 9: O individualismo na grande cidade

5

da sociedade sem comprometimento funcional nos moldes

econômicos e políticos atuais. Um estudo da tipologia edificativa

ideal para a grande cidade do século XXI.

Page 10: O individualismo na grande cidade

6

Figura 01: Imagem do livro Cities

for the people, de Jan Gehl. 2010.

Page 11: O individualismo na grande cidade

2.0 RESUMO

Page 12: O individualismo na grande cidade

8

“Interação” vem do Latim inter que significa “entre”; mais

“ação”, também do Latim agere que significa “realizar, fazer”. E,

baseado no aglomerado significativo que a sociedade atualmente

atende e que a meu ver, se mostrou a melhor e objetiva definição

da palavra, entendamos aqui interação como um tipo de ação

que ocorre entre duas ou mais entidades quando a ação de uma

delas provoca uma reação da outra ou das restantes

(WICKIPEDIA, 2013). Sendo assim, a interação será tratada não

somente entre dois indivíduos porem também entre o indivíduo

e o ambiente em que se habita, em que se convive; ou entre o

indivíduo e o ambiente que sugere a interação com ainda outras

entidades. Ao discorrer sobre este conceito, uma das possíveis

abordagens e a que será aqui tratada com foco especial, é a da

individualidade humana, como reflexo da interação de seus

protagonistas ou da falta dela, por vezes potencializada como

resultado ou consequência do crescimento das características

que tratam o aglomerado de seres humanos em um mesmo

espaço como urbanidade ou urbanização.

Vale deixar claro que o trabalho não intenciona a

descoberta ou criação de uma resposta a este panorama

diretamente, mas o levantamento de questões e sutilezas

cotidianas a respeito da individualidade, no cenário

contemporâneo urbano, empiricamente tratado aqui por minha

convivência, observação e reflexão sobre a cidade de São Paulo,

particularmente no trajeto típico de um cidadão dotado de

minhas condições, valores, costumes e posição, sob uma

sensibilidade fruto da impossível dissociação entre filosofia e

arquitetura ou entre filosofia e a arte de uma maneira geral.

Mario Sergio Cortella, filósofo e professor brasileiro define: “A

filosofia trata dos porquês e não dos comos [...]”. Tal

interpretação e postura podem ser assumidas, até certo ponto,

no desenvolvimento deste trabalho, na medida em que levanta

questionamentos ou hipóteses sobre o tema, na tentativa de

entender suas justificativas, suas origens e seus

desdobramentos.

Porém, diferentemente da filosofia, muito embora esta

seja um fator decisivamente influente sobre a percepção do

espaço e da arquitetura em geral, penso que a arquitetura se

utiliza de uma profundidade intelectual e reflexiva sobre as

considerações que devem ser realizadas no desenvolvimento de

Page 13: O individualismo na grande cidade

9

um projeto, principalmente como forma de justificação e

projeção das consequências decorrentes de uma postura

adotada. Sendo assim, ela se lança sobre o espaço baseada e

resguardada de uma interpretação sobre as questões envolvidas.

Podemos dizer então, que diferentemente da filosofia, a

arquitetura deve atuar também sobre o plano prático, real e

concreto.

* * *

Talvez este trabalho seja também fragmento de um

exercício de autoconhecimento na medida em que sua

abordagem parte de um incômodo pessoal, de um tema que toca

a um tempo considerável minha própria forma de avaliação

sobre o meio circundante, isto é, minha forma de enxergar as

pessoas, os lugares e todas as relações possíveis entre estas duas

entidades. Para compreensão de meu ponto de vista, julgo

necessária aqui uma apresentação da minha pessoa para com o

leitor. Porém, tal apresentação não se dará de forma clássica ou

convencional. Dar-se-á então, através da apresentação de textos

de minha autoria no decorrer do trabalho, na sugestão de que a

interpretação do leitor gere uma percepção própria dos temas

abordados ou relatados nos textos, gerando assim um possível

contato interativo entre nós dois. Encontrei na poesia, uma

forma de interagir com o leitor pela interpretação. E na medida

em que o texto poético se abre a diferentes interpretações, talvez

também seja esta, uma provocação contra o individualismo e a

falta de interação. Faço isso por entender que não somente a

interpretação dos textos, mas também o ato de interpretar uma

situação ou cenário se mostra importante no descobrimento

desse sentimento.

“Corvos no trigal. É o nome do meu

quadro favorito. E não é somente porque ele é

bonito. Lembro que foi assim que conheci Van

Gogh. Talvez eu encontre a beleza desse quadro

pelo significado que ele tem para mim. Talvez, de

alguma forma, Van Gogh tenha pensado nessa

possibilidade. Talvez ele tenha pensado em mim ao

pincelar sobre a tela. Sinto que foi ali que tudo

começou. Sandra era o nome da minha professora,

Page 14: O individualismo na grande cidade

10

verdes eram os olhos dela e inchados e molhados

eles estavam quando terminei de ler o poema de

lição de casa sobre a obra de arte que ela

entregara aleatoriamente na aula passada. Mas só

eu tinha feito. Outros colegas escreveram sobre a

obra de arte deles, mas não era uma descrição que

ela queria. Sem querer eu entendi. Sem querer eu

escrevi. Queria lembrar o que escrevi. Queria

lembrar o que ela disse depois. Mas só lembro que

terminava com “voam, como corvos no trigal...”. E

com eles, voou também, sem querer, o tempo, os

anos, o verde dos olhos dela.”

Page 15: O individualismo na grande cidade

11

Figura 02: Corvos no trigal de Vincent Van Gogh, 1890. Disponível em:

<http://thecaterpillars.wordpress.com/2010/11/15/trigal-com-corvos/>

Page 16: O individualismo na grande cidade

12

* * *

Não serão apontados aqui apenas o ônus ou as

desvantagens provenientes desse caráter individualista

crescente nas grandes cidades, mas também os detalhes, as

vantagens ou surpresas que o tratamento da vida urbana em

uma comunidade individualista acaba trazendo. Haverá o

interesse em balancear a discussão entre prós e contras desse

caráter, ainda que assumidamente acredite – baseado em uma

análise sobre outros modelos de organização e relacionamento

urbano – que o conceito de comunidade, enquanto aglomeração

conjunta de seres dotados de relacionamentos afetivos,

familiares, ou ao menos mutuamente compartilhados, tende a

gerar um sentimento de satisfação e segurança no contexto

urbano muito mais positivo e vantajoso do que qualquer outra

forma de elo entre as personagens da cidade.

Assim, para auxiliar a legitimidade desta hipótese, os

exemplos internacionais já mencionados se mostram de crucial

importância na sugestão de que este caráter seja, não somente

uma característica própria brasileira ou paulistana, mas uma

consequência do processo de desenvolvimento, industrialização

e modernização capitalista. Nietzsche coloca:

"Nesses pontos limiares da história

exibem-se [...] nada a não ser novos "porquês",

nenhuma fórmula comunitária; um novo conluio

de incompreensão e desrespeito mútuo;

decadência, vício, e os mais superiores desejos

atracados uns aos outros, de forma horrenda, o

gênio da raça jorrando solto sobre a cornucópia de

bem e de mal; uma fatídica simultaneidade de

primavera e outono. [...] Outra vez o perigo se

mostra, mãe da moralidade - grande perigo - mas

desta vez deslocado sobre o indivíduo, sobre o mais

próximo e mais querido, sobre a rua, sobre o filho

de alguém, sobre o coração de alguém, sobre o

mais profundo e secreto recesso do desejo e da

vontade de alguém. [...] Em tempos como esses, o

indivíduo ousa individualizar-se.”

Page 17: O individualismo na grande cidade

13

Assim, eventualmente podemos ser levados a questionar

este modelo no toque deste sobre a sociedade modernizada e

“descoletivizada”, ou até mesmo em seus próprios valores e

conceitos, por vezes contraditos, como sugere a reflexão:

“Sendo o conhecimento fruto do ensino e

do aprendizado das pessoas, e consequentemente

da troca de ideias e experiências – troca esta,

somente possível através da interação entre dois

seres – e entendendo o conhecimento como

fundamental na própria existência humana e um

dos principais fatores que regulam o índice de

desenvolvimento de uma sociedade, pode-se até

considerar a possibilidade do equívoco

contraditório na conformação espacial da cidade

urbana contemporânea que intenciona e visa tal

desenvolvimento, mas não incentiva, ou ainda,

desmotiva a interação entre seus componentes e,

portanto o desenvolvimento propriamente dito.”

Dessa forma, somos direcionados ao exercício da reflexão

sobre o peso do valor do trabalho – como objetivo e objeto

representante deste contexto – e sua provável interferência na

relação humana entre as pessoas, ou ainda, no desinteresse das

pessoas por uma relação humana e conjunta, entendendo que a

concretização desta característica, deste valor parta claramente

de um modelo cultural burguês capitalista3.

Também consideraremos, na medida em que tratamos

sobre a situação atual e contemporânea da individualidade e da

interação entres as pessoas, a influência do advento da internet e

de como as pessoas acabaram por substituir a relação ou

interação humana física real pela virtual. Como, ou até que ponto

esta substituição se mostra favorável em prol dos interesses

sociais.

Por fim, trabalharemos com imagens, esquemas gráficos e

croquis, como maneira de refletir sobre o espaço na defesa ou

3 Vale reforçar que o trabalho se resguardará, apesar de entender a relevância de uma discussão neste sentido, de tratar de uma maneira mais aprofundada as influências político econômicas na postura individualista social, visto que como anteriormente citado, esse parte de uma leitura e interpretação sensitiva do espaço e deverá se ater com mais frequência às questões e considerações sociais e perceptivas deste cenário.

Page 18: O individualismo na grande cidade

14

resgate de um valor humano interativo no espaço urbano. Assim,

em um segundo momento, através da leitura sensitiva sobre

uma área, somada a carga teórica desenvolvida, pretende-se

apresentar propostas interventivas para estas áreas a fim de

sugerir melhorias que estimulem a coletivização da sociedade e

a interação humana. E, se viável, deve-se procurar uma resposta

conceptiva de um edifício que também seja pautado na

linguagem poética, como forma de potencializar sua capacidade

– enquanto espaço – de incentivar a interação humana, como

contraposto à individualidade, em um plano de médio ou longo

prazo.

Page 19: O individualismo na grande cidade

3.0 O PANORAMA ESPACIAL:A CIDADE COMO REDE

Page 20: O individualismo na grande cidade

16

Figura 03: A cidade como rede de

pontos de interesse. Abstração da

cidade contemporânea.

Page 21: O individualismo na grande cidade

17

“Um dia desses, voltando de

viagem com alguns bons amigos, a minha radio

favorita novamente não me decepcionou e a boa

música começou no momento em que a mata

nativa que abraça as estradas paulistas deu lugar

às artérias correntes, velozes, incessantes,

teimosas da grande cidade. O sol se punha,

completando ou contrapondo aquele cenário de

beleza e falsidade. A ameba que se estendia sobre a

avenida indicava nada além do atraso, mas o

atraso hoje não era problema. Era domingo e eu

não tinha pressa, afinal estava com meus amigos e

o sol se punha do céu. Estava passeando. Boas

risadas, boas conversas, bons momentos. Estava

passeando. Não havia gramado para deitar, bola

para chutar, pássaros para admirar. Havia carros,

barulho e poluição. A pressa era de todos, menos

nossa, e do sol que se punha no céu.”

Uma das características de grande relevância desse

complexo único a que denominamos cidade, a ser considerada e

analisada com certa profundidade, ainda que talvez sob um

ponto de vista diferente, é aquilo que chamo de caráter poli

centralizado de organização. Tal caráter será retomado com

alguma frequência durante o trabalho, porque de alguma forma,

acredito que esta característica espacial atinge direta ou

indiretamente os habitantes da metrópole e consequentemente,

aliado a inúmeros outros fatores não apenas urbanísticos ou

espaciais, mas também políticos, econômicos e culturais,

influenciam na conformação de sua postura individualista.

Durante o processo de desenvolvimento de uma cidade, é

natural o aparecimento de áreas com uso mais específico,

centralidades relativamente isoladas umas das outras, separadas

por corredores de asfalto – no caso de São Paulo – que deveriam

levar as pessoas de um ponto a outro com rapidez e facilidade. E

de fato, estes corredores facilitam muito o deslocamento da

legião diária de trabalhadores que viajam incessantemente no

início e no fim do dia, do trabalho para casa ou vice versa. Já a

questão da velocidade, possui hoje algumas limitações, geradas

basicamente pela impossibilidade física de suporte de qualquer

planejamento de mobilidade funcional baseada na utilização

Page 22: O individualismo na grande cidade

18

prioritária do transporte individual para um contingente tão

volumoso de pessoas. Porém tal questão não trata

necessariamente apenas de um mal planejamento de mobilidade

nos grandes centros ou de sua má administração, mas também, e

quem sabe ainda mais, de uma cultura por parte da sociedade de

valorização demasiada sobre o automóvel, em diversos sentidos.

Paulo Mendes da Rocha coloca, em entrevista realizada no dia 10

de Maio para o programa “Roda Viva”:

“[...] é um absurdo você morar em um

apartamento de 50m² e ter uma garagem que

exige 25m² para o carro. É um absurdo imaginar o

transporte individual com uma lata que pesa

700kg. E você pesa 70kg.”

“[...] O maior desastre é a educação

daquele que está lá dentro. Estamos criando uma

população de conformistas, de tolos, de pessoas

completamente alienadas em relação à graça das

invenções humanas.”

De qualquer modo, a cidade, enquanto conjunto de uma

diversidade funcional, social, cultural, econômica entre outras, é

percebida pelo homem (em especial por seu habitante, que é

aquele mais capacitado de enraizar um valor ou percepção

daquele espaço com maior profundidade), resumidamente, como

uma rede de caminhos que guiam seus usuários, na grande

maioria das vezes, a algum ponto de interesse específico.

Problema é quando este ponto de interesse, interessa muita

gente e ao mesmo tempo. Podemos pensar inclusive que o

entendimento da cidade como um complexo marcado por pontos

de interesse já é, possivelmente, um equívoco à medida que os

próprios caminhos que conduzem aos chamados pontos de

interesse já são ou deveriam ser ponto de interesse de algum

outro indivíduo naquele momento. Ou ainda, o interesse pelo

caminho está intrínseco no interesse pelo ponto originalmente

pensado, no ponto final. Ainda que inconscientemente.

Page 23: O individualismo na grande cidade

19

Figura 04: Imagem da Av. 23 de Maio em

São Paulo. Disponível em:

<http://www.transitomaisgentil.com.br/

blog/tag/transitogentil/> Acesso em:

20/07/2013.

Figura 05: Rua Santa Ifigênia em São

Paulo. Conhecida pelo comércio de

eletroeletrônicos. Disponível em:

<http://viajeaqui.abril.com.br/materias/

nerds-em-sao-paulo>

Acesso em: 20/07/2013.

Page 24: O individualismo na grande cidade

20

Figura 06: Imagem da construção da

capital brasileira Brasília. Disponível em:

<http://spinbrothers.blogspot.com.br/20

12/10/construcao-de-brasilia-anos-

50.html> Acesso em: 19/07/2013.

Page 25: O individualismo na grande cidade

21

Figura 07: Perspectiva do eixo monumental de Brasília. Disponível em:

<http://spinbrothers.blogspot.com.br/2012/10/construcao-de-brasilia-anos-50.html>

Acesso em: 19/07/2013.

Page 26: O individualismo na grande cidade

22

A conformação de uma centralidade especializada no

mapa da cidade, de certo ponto de vista ajuda não somente aos

que oferecem o produto de interesse, mas também aos clientes

que o desejam (considerando neste caso, um interesse material,

comerciável). De um lado, o cliente se beneficia ao saber que

naquela determinada região, ele vai encontrar o que precisa,

quando precisar, o que colabora na construção de uma

identificação dele com a cidade em uma primeira análise. Além

disso, a provável existência de uma concorrência entre os que

oferecem também conforta os clientes, por um dos próprios

conceitos abordados na ideia de concorrência em si, que é a de

competição entre os ofertantes pela melhor relação de custo

benefício a ser oferecido. Pelo outro lado, o ofertante se

beneficia pela provável grande quantidade de clientes que virão

à região à procura de serviços iguais ou similares aos que ele

presta.

Em contrapartida, aliado aos fatos envolvidos no ato de se

utilizar o automóvel, isto acarreta num subconsciente de que

todo espaço existente entre dois pontos de interesse durante

determinado momento se tornam uma espécie de vazio,

estendido entre eles. Algo similar acontece, por exemplo, em

uma viagem de São Paulo a Bauru, onde o percurso é claramente

dotado de rica beleza natural das matas atlânticas e de cerrado,

porém existe alguma dificuldade por parte dos viajantes em

apreciação do cenário, pois este se encontra entre os dois pontos

de interesse daquele momento. No caso, o ponto de saída (São

Paulo) e o de chegada (Bauru), o que nos faz pensar que esta

lâmina adimensional é aparentemente nada mais além de

monótona aos olhos dos passageiros do automóvel.

Interessante perceber que esta apreensão não é

particularidade da escala urbana, da velocidade do automóvel,

entretanto não se pode afirmar que este não teve seu papel de

uma provável importância crucial no entendimento ou ainda na

mera e despretensiosa reflexão sobre o valor e o significado do

espaço de passagem em detrimento do espaço de convívio.

Nota-se pela total falta de atenção do transeunte com as

ocorrências que o circundam diariamente durante qualquer

viagem entre dois pontos de interesse. Os habitantes urbanos,

ou pelo menos a grande maioria deles, têm grande dificuldade

em descrever a fisionomia de uma pessoa que julgou muito

Page 27: O individualismo na grande cidade

23

bonita há dois dias, tampouco qualquer detalhe que tenha lhe

chamado atenção, lembrar-se de qualquer pessoa que tinha

dificuldade para recolher a caneta caída no chão ou qualquer

senhora cansada que poderia ter sentado no banco que ela ainda

não vira; apagado pela preocupação e afobação do ritmo ditado

pela cidade e consequentemente de seu sistema insaciável. Não é

necessário nos atermos a eventos tão específicos e singelos

assim. Os cidadãos de uma grande cidade parecem prestar

atenção àquilo que é possivelmente rentável por algum

momento, de alguma forma. Estados de saúde de importantes

nomes da mídia, grandes revoltas ou eventos naturais

desastrosos, são assuntos que tendem a ter uma relevância

maior, e destes, as pessoas se recordam com mais facilidade no

geral. Por uma semana ou duas.

Neste momento, aparece então um dos mais famosos

ditos populares: “não lembro nem o que comi no almoço, imagina

se vou me lembrar de alguém que cruzei na rua.”.

Claro que esse assunto, sobretudo quando atinge a escala

do pedestre – do usuário direto da cidade e do convívio com os

milhares de colegas de trabalho no engenhoso ofício de viver

urbanamente – entra em esferas muito mais abrangentes e

delicadas a que este trabalho não intenciona grande análise,

como a educação ou as estratégias políticas em prol de seu

investimento por parte de um governo ou grupo social. Porém,

claramente estas entidades influenciam com relevância e

colaboram nesse processo de adestramento do indivíduo a se

individualizar. Talvez esta seja uma das mais rentáveis

atividades que alguns cidadãos certamente devem estar a

prestar atenção.

De qualquer forma, a configuração de vazio no percurso

entre dois pontos de interesse se dá também na escala visual do

pedestre, o que nos leva a considerar este perfil para toda e

qualquer escala.

Do entendimento deste caráter fluido das pessoas, da

velocidade e da alta desatenção pelo percurso, surgiram então os

reflexos arquitetônicos que resgatassem essa atenção (ver

figuras 04 e 05), que se adaptassem também a esta escala, o

simbolismo construído que representavam, seja ele de interesse

social, político ou econômico. Uma arquitetura extravagante,

capaz de despertar novos interesses em uma velocidade

Page 28: O individualismo na grande cidade

24

igualmente acelerada. (ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura Nova.

2002).

* * *

Dessa forma, podemos começar a compreender essa

faceta cultural e o fardo individualista que os cidadãos das

grandes cidades vestem. “Preocupação”, originado do Latim

praeoccupatio é “pré” mais “ocupação” e é definido segundo

Novo Dicionário Aurélio, em sua 1ª edição como “ideia fixa e

antecipada que perturba o espírito a ponto de possivelmente

produzir sofrimento moral”, uma ocupação antecipada, prévia.

Em suma, podemos dizer que, independente do lugar para o

cidadão urbano intenciona ir, há uma preocupação quase

exclusiva em chegar ao destino, que pode variar de surgir

presencialmente em algum lugar combinado a executar uma

função previamente planejada. Nitidamente, me posiciono a

favor de uma reflexão a volta dos desdobramentos espaciais e

perceptivos de organização humana nos períodos seguintes e,

portanto, decorrentes do ideal modernista nas cidades.

Na tentativa de criar uma comparação entre o panorama

atual e aquele que se julga, em primeira instância, “ideal” do

homem na grande cidade, Paulo Mendes parte de um dos

conceitos que a arquitetura e o urbanismo contemplam e

entendem como objeto de trabalho:

“A ideia da arquitetura, não é obrigar

você pelo projeto que se faz. A se comportar desta

ou daquela maneira. Outra ideia quanto a esta

pergunta que pode se formular em relação a qual é

o objeto da arquitetura é que não existe um. Mas

se você quiser isolar um ou dois, destacar. Eu já

disse: “evitar o desastre”. Outro é “amparar

justamente, a imprevisibilidade da vida”. [...] Se

você sai do trabalho aflito e sabe que vai levar uma

hora e meia, duas, para chegar em casa; é um

homem completamente diferente daquele que sai

do trabalho, sabe que o metrô passa de dois em

dois minutos, portanto, não se afoba; encontra um

amigo, vai para o bar e troca ideias. Alguém diz

que vai ao teatro e telefona para outro amigo, o

Page 29: O individualismo na grande cidade

25

qual vai para o bar e depois vão ao teatro juntos.

[...] Você tem a imprevisibilidade a sua disposição.

Você tem a alegria. Fala-se mesmo de uma visão

erótica da vida. Uma vida agradável. Uma vida

onde há tempo livre para você cogitar o que vai

fazer. É completamente diferente da ideia do

planejamento como algo coercitivo. Não é isso.”

* * *

Seguindo esta linha de raciocínio, tomemos aqui duas

cidades para objetivos de comparação. Brasília, cidade

construída basicamente sob esta filosofia de uma nova cidade

moderna que representasse uma nova época de

desenvolvimento do ser humano ou do brasileiro

especificamente; uma cidade que possui seu traçado idealmente

correspondente ao fluxo moderno de informações, dados e

desenvolvimento de maneira geral, fundado nas grandes

avenidas e corredores asfaltados de alto tráfego. Ora, a cidade

como conjunto feito e pensado para os carros e

consequentemente sua velocidade. Dessa forma, nada mais

previsível do que a construção de ícones edificados de

contemplação distante e direta. Apreende-se o impacto do

edifício no contexto situado mesmo de dentro do automóvel,

deixando de lado o contato humano, os pequenos, porém não

menos importantes, gestos da interação humana, os quais

também são igualmente passivos de apreensão e admiração, que

acontecem ou aconteceriam entre cidadãos em uma escala

menor. Não se pode setorizar aquilo que Paulo Mendes chamou

de “imprevisibilidade da vida” para as superquadras ou ainda,

para áreas específicas destas. O carro parece cumprir, em

Brasília ou mesmo em São Paulo, um papel alienador da

sociedade quanto ao entorno e a vida de uma forma geral que se

passa do lado de fora.

Pois bem, o cenário que um cidadão brasiliense se depara

na maior parte do tempo, consequentemente acaba se

configurando ilustrativamente como um grande borrão. Uma

imagem congelada do movimento propriamente dito, com

conteúdo muito dificilmente decifrável. Há um engessamento do

ato de apreciar o entorno durante o percurso, restrito somente

Page 30: O individualismo na grande cidade

26

aos raros momentos de relação humana externa ao automóvel, o

que implica, além disso, na dificuldade deste indivíduo de suprir

uma de suas necessidades psicológicas mais patentes, sobretudo

numa rotina doutrinada pela pré-ocupação individualista, que é o

entretenimento. É muito comum, em sociedades como esta a

contradição de grupos familiares ou sociais de uma maneira

geral tratarem o entretenimento4 também como um ponto de

interesse, como algo que necessariamente requer um

posicionamento ativo de quem se entretêm, o que penso ser uma

grave e errada interpretação da atividade. O entretenimento está

presente a todo momento em volta das pessoas. Pode-se quem

sabe até, dizer que o entretenimento se faz presente com a

própria natureza, sendo ele flexível e relativo a quem o percebe,

passivo do interesse pessoal.

4 Entendendo entretenimento como distração, momento ou ação de se entre-ter, ou seja, ocupar de maneira satisfatória ou prazerosa o que há entre duas atividades premeditadas ou planejadas.

Page 31: O individualismo na grande cidade

27

Figura 08: Croqui de representação de um

cenário estático, visível e apreensível à baixa

velocidade.

Figura 09: Croqui de representação de um cenário em

movimento, o “borrão” da cena visto de dentro do

automóvel.

Page 32: O individualismo na grande cidade

28

Figura 10: Ilustração do “borrão” do cenário externo ao automóvel. Cena

retirada do filme Koyaanisqatsi: Life out of balance. 1982.

Page 33: O individualismo na grande cidade

29

Figura 11: Senhor faz barba meio à multidão no

espaço público – figura imagética da invisibilidade do

percurso. Cena retirada do filme Koyaanisqatsi: Life

out of balance. 1982.

Page 34: O individualismo na grande cidade

30

De qualquer modo, consideremos agora rapidamente, na

tentativa de contrapor tal cenário, outra cidade cujas relações

entre indivíduo e espaço se dão de uma outra forma, muito

devida a diferença de velocidade e maneira de consideração dos

fluxos de pessoas no espaço urbano, além é claro de inúmeros

outros fatores de fundamental importância como costumes,

clima, geografia, política, história, cultura de maneira geral etc.

que não deverão ser aqui tidos como foco principal. Copenhague

é atualmente reconhecida como a cidade mundial das bicicletas e

apesar do histórico de utilização destas como meio de

transporte, a cidade tem se tornado exemplo cada vez mais

admirado e estudado por cidades grandes que se deparam com o

caos aparentemente incontrolável consequente do emprego do

automóvel como principal forma de trânsito nos grandes

centros.

A bicicleta, entre inúmeras outras vantagens – físicas e de

ocupação de espaço, por exemplo – permite uma circulação de

pessoas mais segura à medida que sua velocidade é

abruptamente inferior a do automóvel em uma primeira

análise5. Essa redução de velocidade, e consequentemente

(arrisco dizer), o aumento da sensação de segurança do

transeunte traz à tona exatamente o que foi apontado como raro

ou quem sabe até, inexistente, na cidade de Brasília: a apreciação

do entorno durante um percurso. É provável que a utilização da

bicicleta, diferentemente do automóvel, se some ao fator da

imprevisibilidade citado por Paulo Mendes, sugerindo então

dessa maneira, a maior probabilidade de encontro de pessoas, de

interação entre indivíduos e de um espírito de caráter coletivista

em detrimento de um individualista. Essa desaceleração torna

possível ou pelo menos mais suscetível, a mudança de planos de

um indivíduo durante o trajeto entre dois pontos de interesse

(em outras palavras, a alternância de pontos de interesse ou a

mudança destes próprios), devido a algum fator inédito e/ou

inesperado, ocorrido no percurso.

5 Segundo documentário (20/06/2011) divulgado pelo projeto Cidade para as pessoas, idealizado pelo arquiteto urbanista Jan Gehl, – um dos maiores responsáveis pelo plano cicloviário de Copenhague – em uma comparação feita com a cidade de São Paulo, constata-se que a velocidade média de um automóvel na capital paulista é de 13km/h, enquanto a velocidade média da bicicleta na capital dinamarquesa é de 20km/h.

Page 35: O individualismo na grande cidade

31

É importante também, ressaltar que não somente a

bicicleta é detentora exclusiva destas vantagens. Aliás, talvez ela

também a seja, devido ao seu uso de caráter múltiplo – para fins

de lazer, trabalho, etc. – e comunitário (no caso de Copenhague)

somado às decorrências da desaceleração citadas anteriormente.

É admissível entender que o transporte público de qualidade, ou

seja, aquele que atende adequadamente a demanda de seu uso,

também possa ser causa na geração desse sentimento.

Sendo o percurso admirado, tampouco suas

manifestações, diferentemente do borrão fotografado em

Brasília, apreende-se, em uma cidade como Copenhague, o

cenário de uma maneira mais aproximada ao que realmente é ou

está sendo naquele momento, durante o trânsito. O que permite

assim, a mencionada interação de quem observa com o que está

sendo observado.

Page 36: O individualismo na grande cidade

4.0 POSSÍVEIS REFLEXOS NA RELAÇÃO INTERPESSOAL

Page 37: O individualismo na grande cidade

33

Vimos até agora, como o fluxo de pessoas na grande

cidade, juntamente com um conjunto de valores específicos a

cerca da percepção do espaço construído ou não, é capaz de

influenciar na conformação de um perfil individualista numa

sociedade, e desenvolvemos uma reflexão um pouco mais sólida

quanto a alguns modelos urbanos conhecidos. Porém, vale a

pena também refletirmos um pouco a respeito da similaridade

entre a relação do indivíduo com o espaço de forma efêmera e

distante, e a relação entre dois ou mais indivíduos que convivem

em um mesmo panorama urbano perceptivo que, portanto,

tende a se desdobrar de maneira parecida entre seus cidadãos. A

necessidade de introduzir sobre essa relação parte de uma

aproximação direta com a individualidade na grande cidade,

principal objeto de estudo deste trabalho. Serve como hipótese

de importante papel no processo justificativo.

Partindo do pressuposto de duas pessoas que já se

conhecem e possuem um vínculo mínimo de relacionamento, há

de se considerar nesta cidade, uma dificuldade curiosa de sua

manutenção. Não somente pelo distanciamento físico entre elas,

ou da diferença entre agendamentos e compromissos de cada

uma, muito embora estes fatores devam de fato potencializar tal

obstáculo, mas pela aparente construção de um valor pessimista

e efêmero sobre as coisas. Sobre pertences, sobre momentos,

sobre relacionamentos. Ao que tudo indica, a velocidade e a

desatenção com as partes constituintes de um percurso chegam

a tocar, inclusive, sobre um relacionamento humano no percurso

de uma vida. Como ensaio reflexivo próprio de abordagem mais

filosófica sobre isso, penso que:

“Entendendo a vida como mero espaço de

tempo, onde, quase ocasionalmente, eu existo; e

sendo este espaço de tempo passageiro, é possível

uma aproximação da percepção essencial do

espaço passageiro entre dois pontos de interesse

(num contexto urbano) e consequentemente o

desinteresse pelas relações de percurso com a

percepção das relações interpessoais ou quem sabe

qualquer outro tipo e relação durante o percurso

dessa vida.”

Page 38: O individualismo na grande cidade

34

Seguindo esta linha, somos levados a pensar novamente

na abstração da fotografia do percurso, desta vez sobre o

relacionamento humano. E novamente, salta a diferença entre a

do borrão obtido na grande cidade, apressada à custa da

combustão humana e o congelamento e permanência do

momento convivido, característicos de cidades menores ou de

cidades de velocidade reduzida de trânsito. Falando nisso, deve-

se ponderar a ideia de que a velocidade dos fluxos, relações,

transmissão de dados e informações e desenvolvimento em

geral, são proporcionais ou tem alguma associação à velocidade

da rotina social. Talvez a superficialidade das coisas e a

efemeridade dos produtos traga de fato movimentação a uma

economia emergencial, quando baseada numa qualidade de vida

fundada no investimento corretivo e momentâneo ao invés da

prevenção do investimento planejado, porém isto implica em

inúmeros outros fatores negativos que incitaria uma análise

mais cuidadosa na adoção desta postura.

Page 39: O individualismo na grande cidade

35

Figura 12: Cena estática representativa da relação

interpessoal apreensível à baixa velocidade.

Figura 13: Representação do “borrão” da relação

interpessoal encontrada na grande cidade.

Page 40: O individualismo na grande cidade

36

Fica insinuada, de alguma forma, a ironia de que talvez o

único relacionamento mais duradouro seja mesmo entre o

indivíduo e o próprio ambiente que carrega esse teor de

efemeridade e percurso vazio, sendo a relação desse indivíduo

com qualquer componente deste ambiente tão efêmero ou vazio

quanto.

No caso de São Paulo, foi até criado um slogan, que, em

uma primeira vista é, em geral, despretensioso e intende

somente evidenciar esse caráter produtivo ininterrupto de uma

cidade que transita valores, informações, produtos, pessoas e

serviços 24 horas por dia, mas que não deixa de estar

relacionado também ao ônus que esse mesmo caráter reflete

sobre a sociedade e sobre a percepção desta no espaço. “São

Paulo, a cidade que não para.” soaria ainda melhor se o ponto

final fosse substituído por uma exclamação, que represente o

imediatismo desta cidade, a prontidão deste organismo em se

autoalimentar e se autodesenvolver. Que represente o grande

valor e a importância, talvez demasiada, de afirmar com orgulho

os vários significados que uma sentença como esta pode

apresentar. Há de se questionar, antes de concordar e aderir ao

compasso incessante desta rotina por inércia, os aspectos

negativos de uma sociedade que carrega tais valores.

Talvez a principal crítica que se possa tecer em torno

desta tentativa de propagandear a cidade, fazer desta algo

aproximado a um produto (LAHORGUE, M.L. Cidade: obra e

produto) que gere consumidores interessados, gere um

Figura 14: Croqui de

representação da dificuldade

de relação entre indivíduos na

grande cidade.

Figura 15: Croqui de

representação da relação

entre indivíduo e cidade.

Page 41: O individualismo na grande cidade

37

fetichismo presente tanto no orgulho de seus consumidores,

muitas vezes superficial ou alienado de certas classes habitantes

das grandes cidades, quanto no planejamento daqueles mais

distantes física ou economicamente em pertencer6 a este grupo.

Este que pode se dar ao “luxo” de viver na grande cidade que não

para. E aí, como de muitas outras formas já realizada, surge a

comparação da cidade moderna (pós-industrial) com o conceito

da máquina. Um complexo capaz de criar ou possibilitar não

somente um produto material para seus usuários consumidores,

mas também de iludir ou influenciar de inúmeras formas, as

determinações e decisões tomadas rotineiramente pela

sociedade.

6 Para caracterizar melhor o sentimento de “pertencimento”: “A cidade conserva um carácter orgânico de comunidade que vem do povo, e que se traduz na organização corporativa. A vida comunitária (que comporta assembleias gerais e parciais) em nada impede as lutas de classes. Ao contrario. Os violentos contrastes entre riqueza e poder, os conflitos entre poderosos e oprimidos não impedem nem a afeição à cidade nem a contribuição ativa à beleza da obra. No marco urbano, as lutas de facções, grupos e classes reforçam o sentimento de pertencimento.” (LEFEBVRE apud LAHORGUE, M.L. Cidade: obra e produto. 2002).

Page 42: O individualismo na grande cidade

5.0 A CIDADE DO SKYLINE E A CIDADE DO HOMEM

Page 43: O individualismo na grande cidade

39

O problema da cidade urbana contemporânea

aparentemente, através dos pontos aqui levantados, transcende

a questão da percepção humana sobre o espaço a partir da

organização do traçado. Muito dos reflexos sociais, econômicos e

políticos se dão também pela forma de gestão do sistema, na

medida em que pode potencializar gradativamente tais

problemáticas pela alternância de foco deste para a tentativa de

correção ou manutenção de outros setores. Há a suspeita de uma

condução errônea no gerenciamento dos investimentos

realizados sobre a urbe, inclusive quando se trata daquele

traçado ou das medidas de sua formulação. Há uma possível má

interpretação da relevância dos valores que devem ser

considerados em prol da boa circulação e da qualidade de vida

de maneira geral na cidade. Jan Gehl denomina esta tendência

modernista de projetar a cidade pela implantação, distante da

escala humana, em seu livro Cities for people como a “Síndrome

de Brasília”. Ele coloca em entrevista concedida à revista AU

(Arquitetura e Urbanismo. Edição nº 215, fev. 2012), seu

posicionamento sobre a inversão que se resultou no processo

moderno de projeto e planejamento para as cidades quanto ao

valor atribuído a cada um dos fatores a serem considerados

neste exercício:

“Nos tempos antigos, sempre se pensou

nesta ordem: pessoas, espaços, edifícios. Até que se

inverteu a ordem: edifício, espaço, pessoas.”

Nitidamente, para Gehl, o planejamento da cidade deve

necessariamente partir do pressuposto de que é feita para as

pessoas, logo, deve partir da relação do ser habitante com o

espaço habitado, ou seja, partir da percepção da escala humana.

A Síndrome de Brasília é justamente a perda dessa postura

projetual, entendendo o skyline e a importância dos edifícios

enquanto objetos arquitetônicos únicos, ícones de algum

significado mais abrangente, como fator decisivo na elaboração

de um plano urbano em detrimento da percepção humana e

consequentemente dos reais motivos e variáveis que estimulam

o cotidiano em direção ao melhoramento da qualidade de vida:

Page 44: O individualismo na grande cidade

40

“Pela primeira vez na história da

humanidade, cidades não são construídas como

conglomerações de espaços urbanos, mas como

edificações individuais.”

Page 45: O individualismo na grande cidade

41

Figura 16: Congresso Nacional de Brasília. O objeto arquitetônico como ícone. Disponível em:

<http://www.nosrevista.com.br/2010/04/22/tracos-de-brasilia-50-anos-de-contemplacao/> Acesso em 19/07/2013.

Page 46: O individualismo na grande cidade

42

Figura 18: Burj Khalifa. Dubai, Emirados Árabes. Disponível

em: <http://hotnaijanews.com/2013/02/21/world-tallest-

buildingburj-khalifa-in-dubaiphotos/> Acesso em

10/07/2013

Figura 17: Ciudad de Las Artes. Valencia, Espanha.

Disponível em: <http://www.calatrava.com/#/Selected

works/Architecture/Valencia 1?mode=english> Acesso

em 10/07/2013

Page 47: O individualismo na grande cidade

43

Utilizando exemplos práticos de cidades que apresentam

ou apresentavam situações problemáticas, como Copenhague,

Nova York, Vancouver, Melbourne entre outros, pode-se

discorrer uma reflexão comparativamente embasada sobre

casos brasileiros de cidades que sofrem ou possuem alguma

dificuldade em solucionar, ou ainda, descobrir quais são os

pontos que devem ser considerados fundamentalmente, na

evolução de um planejamento que visualize a qualidade de vida

humana como prioridade.

Já era de suma importância, a vitalidade da vida das ruas,

das formas e relações possíveis que se fazem diariamente entre

pessoas, as manifestações e os contatos da percepção humana,

no relato de Jane Jacobs em sua obra Morte e vida de grandes

cidades (1961) que parte de um olhar muito aproximado àquele

que Gehl sugere como correto, no desenvolvimento de um plano

urbano de organização espacial que vise a qualidade de vida

como principal objetivo. A própria forma como a obra é escrita

por ela, descrevendo literalmente o ambiente circundante, já

configura uma similaridade entre seu ponto de vista com o de

Gehl. Nos dois casos, é a percepção humana que conduz à

reflexão, é a partir da escala dos olhos que os problemas da

cidade devem ser enfrentados.

Na medida em que há, para eles, a necessidade da

interação humana na constituição de uma melhor forma de vida

urbana, Gehl incita que as características negativas dessas

cidades são hoje, fruto de uma má interpretação ou um mal

entendimento do elo entre a cidade e indivíduo: “É preciso

entender as pessoas antes de querer entender a cidade.”.

Como forma de favorecer a interação humana e a relação

com a cidade, o urbanista dinamarquês apresenta a tese do

gabarito máximo de 5 andares para os edifícios urbanos, como

altura onde ainda é possível a apreensão do morador sobre o

que ocorre na cidade: “Após o quinto andar, não se pode mais ver

ou estar em contato com o que se passa na cidade”.

Também em seu discurso, deixa claro que a adoção do

carro como principal meio de transporte e as medidas políticas

de incentivo a esta preferência são péssimas para a cidade. O

carro, que no Brasil tomou proporções quantitativas absurdas,

força a convivência urbana para fora dos espaços públicos, o que

como vimos, sugere o cultivo do senso de individualidade. Dessa

Page 48: O individualismo na grande cidade

44

forma, quaisquer medidas que desestimulem a utilização do

automóvel como meio de locomoção prioritário são muito bem

vindas. Porém, infelizmente, por uma análise rápida sobre o

histórico das reformas urbanas as quais vivenciei em São Paulo,

é fácil destacar que por melhor intencionadas que sejam, na

tentativa de amparar o aumento do fluxo de automóveis, criando

novos corredores, novas faixas de circulação, elas novamente se

demonstram resultado de um plano emergencial corretivo de

curto prazo, incapaz de efetivamente solucionar a questão, para

não considerarmos a hipótese – muito plausível por sinal em

minha opinião – de que ainda, estas agravam o quadro a médio e

longo prazo.

Uma das formas mais bem sucedidas, exercidas por Gehl,

na tentativa de gerar um desprendimento da sociedade por essa

cultura baseada no automóvel, que leva ou levou a situações

verdadeiramente caóticas de volume descontrolado de veículos,

foi o insistente incentivo à utilização da bicicleta como

alternativa de locomoção, justificando das mais variadas

maneiras a grande vantagem de se aderir à mudança.

É claro que algumas considerações devem ser feitas junto

à questão. Pra começar, inevitavelmente, a adesão da bicicleta no

cotidiano das pessoas como forma de mobilidade, depende

destas reformas urbanas que a possibilitem, e

consequentemente do interesse político em tal mudança. Devem

ser planejadas e construídas ciclovias estratégicas que levem em

conta o contato dos ciclistas com os corredores rodoviários e

mesmo com os pedestres nas calçadas, considerando um

percurso reduzido e objetivo que evite ao máximo seu desgaste

físico excessivo. Aliás, duas observações devem ser feitas neste

ponto.

Primeiro, é preciso lembrar que no caso do Brasil, que

deve uma parte considerável de sua economia e da rotação de

capital à movimentação do consumo pessoal/popular

proveniente de negócios vinculados às montadoras

automobilísticas, a adesão a um modo alternativo de mobilidade

como as ciclovias implicaria então numa desaceleração da

economia neste sentido, o que somado ao histórico político

nacional em geral sobre as estreitas relações entre o setor

Page 49: O individualismo na grande cidade

45

privado e público, conforma um grande obstáculo a ser

superado.

Em segundo lugar, é importante entender também –

sobretudo em grandes cidades como São Paulo – que as ciclovias

não funcionam sozinhas e já o era esperado no plano de

Copenhague por exemplo. É preciso que haja a elaboração de um

plano de mobilidade mais abrangente que conecte variadas

formas de mobilidade entre si, aproveitando e potencializando

as qualidades de cada uma delas. Além disso, deve haver

também, um investimento substancial em todos os meios de

transporte de caráter público e coletivo (ônibus, metrô, etc.),

para assegurar a fluidez da população, o atendimento adequado

de demanda e indiretamente amparar o espaço urbano na

diminuição de outros índices deploráveis típicos da grande

cidade como saúde e segurança, que viriam como resultante

deste novo hábito. Que por sua vez, possivelmente traria

consigo, vagarosamente, uma mudança no panorama social

interativo de individual para coletivo.

Nova York deve servir de grande exemplo nesse sentido.

Pode surgir em algum momento, o questionamento da eficiência

ou do real aprimoramento da mobilidade urbana em São Paulo

quando somente comparado à Copenhague, que possui um ritmo

e uma densidade demográfica muito adversa à paulistana, com

apenas 3 milhões de habitantes. Porém, Nova York já é uma

cidade com características mais aproximadas, com 8 milhões de

habitantes, e que também utilizou de medidas drásticas de

requalificação do espaço (baseado nos ideais de Gehl) para essa

mudança de valores que compõe o planejamento para as

pessoas. Em geral, o fechamento de uma importante avenida ou

rua de qualquer cidade, é visto com maus olhos em curto prazo,

como ele cita em entrevista concedida à revista Planeta

Sustentável sobre Copenhague e Nova York, quando fechou a

Strøget (Copenhague) e a Times Square (Nova York) para

utilização apenas pedestre. Porém em longo prazo o quadro já se

tornara outro:

“A Strøget era uma importante avenida

comercial e o anúncio de seu fechamento para

virar um calçadão em 1962 causou reações

negativas. "Não somos italianos", diziam os jornais

Page 50: O individualismo na grande cidade

46

para argumentar que o clima gélido da Dinamarca

impossibilitava uma vida ativa nos espaços

públicos. "Um ano depois, todos os comerciantes

reconheciam: eles estavam errados", conta Gehl. As

vendas triplicaram e esse calçadão de quase 1

quilômetro passou a ser ocupado pelos habitantes

da cidade.”

“Veja o caso de Nova York. Há três anos, a

decisão de fechar a Times Square, centro nervoso

de cruzamentos de grandes avenidas, causou

desconfiança. apareceu até gente dizendo que sem

aquele trânsito tão familiar a cidade perderia sua

identidade. Os lojistas também desaprovaram,

achavam que o comércio iria despencar já que o

movimento na área cairia. Mas as previsões mais

pessimistas não se confirmaram. Hoje as pessoas

passam mais tempo na região e se demoram

justamente olhando as vitrines e comprando.

Manhattan de fato melhorou com essa

intervenção.”

Como se não bastassem os exemplos, no que diz respeito

à dificuldade de implantação de um valor diferente ao já

enraizado culturalmente em uma sociedade, o caso de

Copenhague chama atenção para mais uma questão importante:

o clima.

Se as estratégias de incentivo à utilização do espaço

público se mostram eficazes em Copenhague, que é uma cidade

típica de clima frio, não seria romantismo algum acreditar que

tal postura funcionaria perfeitamente no caso brasileiro,

sobretudo em São Paulo que está situada a uma altitude

relevante, logo não possui o frio de Copenhague nem o calor

intenso de uma cidade litorânea.

Como muito defendido por Gehl, é somente através do

entendimento da cidade como habitat das pessoas e, portanto,

espaço que deve necessariamente refletir tão somente os desejos

e carências por elas enfrentado, que se pode apresentar

condições de planejamento com objetivo de primordialmente

trazer melhoramento na qualidade de vida destas.

Page 51: O individualismo na grande cidade

47

Figura 19: Construção de edifício em São Paulo, com detalhe do adensamento de prédios ao fundo. Fotografia concedida

gentilmente pelo acervo pessoal de Lucas Rigotto.

Page 52: O individualismo na grande cidade

6.0 A INTERNET

Page 53: O individualismo na grande cidade

49

A abordagem sobre o tema da Internet é muito

importante para tratar do senso individualista ou de sua

contradição na grande cidade contemporânea, uma vez que

possibilitou inúmeras novas formas de criação de vínculo entre

indivíduos e diferentemente das formas tradicionais de

interação, acaba por inserir a cidade a que pertencem em uma

rede de escala muito maior de forma muito mais imediata. Claro

que essas novas formas de interação geram também novas

formas de relacionamento e novos valores. Uma vez que muitos

de seus usuários parecem ter substituído o ato do encontro

pessoal físico pelo virtual à distância, até que ponto a internet

tende a individualizar seus usuários? Ou será que a facilidade e

objetividade da internet facilitam o encontro de pessoas com

gostos similares e nesse sentido, estaria ela incentivando a

coletivização entre grupos mais específicos de forma mais

rápida? Será essa rapidez uma vantagem? Será essa rapidez da

internet um desdobramento da rapidez da grande cidade, tão

citada anteriormente ou vice-versa?

A internet, quando associada ao tema central do

individualismo possibilita um questionamento muito amplo

sobre a sociologia, psicologia, tecnologia, pedagogia, etc. Mas

tentemos aqui, manter o foco nas relações mais prováveis que

esta tem com a cidade e com a concretização desse sentimento

individualista ou possivelmente ensaiar o contraponto que ela

pode insinuar à medida que tende cada vez mais a agrupar as

tribos escondidas por detrás do estereótipo do cidadão urbano.

Dessa maneira pretende-se, essencialmente, levantar questões e

desenvolver algumas reflexões baseadas em interpretações e

percepções próprias, em um plano mais geral do peso que esta

tecnologia aparentemente tomou com naturalidade o cotidiano

corrido e complexo da metrópole.

* * *

Individual:

Muitos, principalmente os pertencentes da geração

imediatamente anterior ao aparecimento da internet como

ferramenta prática e de uso rotineiro, costumam dizer que as

crianças e essas gerações de conectados “não sabem mais usar a

Page 54: O individualismo na grande cidade

50

rua” fazendo referência a uma época onde a rua era muito mais

coerente com o conceito de espaço público do que ela é capaz de

demonstrar nos dias de hoje. Tal afastamento da rua e logo, de

brincadeiras coletivas, encontros em geral e tantas outras

atividades em grupo, independentemente de faixa etária ou

classe social, podem ser vistos como alguns dos responsáveis

pelo cultivo dessa cultura individualista introspectiva. É claro

que não foi, obrigatoriamente, a internet o único fator – e nem se

pode falar que seu aparecimento cumpriria papel coadjuvante na

presença de tantos outros – dessa migração das pessoas do

espaço público para o espaço privado e individual. Muito embora

possamos considerar que a internet surgiu como catalizador

deste processo – sobretudo para as novas gerações – uma vez

que as pessoas já se afastavam do espaço público por motivos

talvez mais aproximados basicamente à segurança. Nesse

sentido, podemos pensar que o carro influenciou de alguma

forma, até no sucesso da internet, ao menos em um primeiro

momento. Com a intensificação do fluxo de automóveis, as ruas

se tornaram menos habitadas, gerando maior insegurança para

os que persistiram, tanto no ato de atravessar uma rua que pode

apresentar chances mais significativas de acidente, quanto pela

própria ausência dos “olhos da rua” (JACOBS, Jane. Morte e vida

de grandes cidades. 1961) que agora estariam escondidos por

detrás do volante, voltados e atentos ao semáforo logo a frente, e

portanto se tornaram completamente indiferentes aos atos

violentos e vândalos de indecentes oportunistas.

A partir daí, o entretenimento ou quaisquer outras

utilidades que a rua apresentava teriam que ser substituídas de

alguma forma, por atividades que pudessem ocorrer na

segurança do ambiente fechado e privado. Nesse momento, a

internet surge como uma possível solução e canal de escape para

estas pessoas que se interessassem em tomar ciência sobre o

mundo externo às “quatro paredes” que as cercam.

O entretenimento, a informação e o trabalho começaram

a enxergar na internet uma aliança perfeitamente cômoda e

conveniente. Porém, o crescimento desse sentimento

individualista só se fortalecia e só tornaria as coisas cada vez

mais críticas para aqueles que eram ainda obrigados de alguma

forma a utilizar e confiar no ambiente público. Cada vez mais as

pessoas deixaram de olhar umas para as outras, cada vez mais as

Page 55: O individualismo na grande cidade

51

pessoas aceleram o passo para chegar ao trabalho, ao médico, à

escola ou até mesmo à inocente e dócil padaria logo ali na

esquina.

Posso eu mesmo dizer, que fui ensinado durante a

infância inteira a “nunca dar bola a estranhos”. Vejamos com

cuidado tal orientação: trata-se de “nunca dar bola”. É ainda mais

grave do que se fosse “nunca conversar com estranhos”. Nunca

“dar bola” a alguém pode ser entendido praticamente, como um

conselho para simplesmente ignorar tudo e todos com quem eu

cruzasse até que chegasse a algum local seguro, onde o encontro

com alguém em quem pudesse confiar era certo. Isso inclui

pessoas querendo saber do horário, pessoas perdidas no bairro

ou na rua e amigos que me viram de longe, mas se mostraram

desinteressados em “atrapalhar” minha determinação em chegar

ao meu destino. Voltamos assim, ao discurso e à comparação do

percurso vazio realizado pelos carros na grande cidade entre

dois pontos de interesse com o mesmo tipo de percurso – salvo

as devidas proporções – realizado pelos pedestres que evitam ao

máximo, assumidamente, qualquer papel público que pudessem

desempenhar perante o espaço. É quase um confronto ou ainda,

uma possível tentativa de se iludir, agir como se as pessoas que

andam e que usam o espaço público não fizessem parte deste

contexto. Aparentemente, há uma tentativa destes em

assumirem-se algo como “cidadãos privados” que perambulam

pelo espaço público excepcionalmente quando não existe outra

opção. Um sentimento de que talvez os únicos verdadeiros

cidadãos públicos, ou ao menos, cidadãos que possuem algum

sentimento de pertencimento ao espaço público, sejam aqueles

que o precariamente habitam.

Não se pode atribuir uma “culpa” a este cidadão privado.

Talvez, de fato, o ambiente público tenha se tornado hostil e não

confiável e os conselhos dados aos filhos e este novo perfil

adotado seja mera consequência do medo que surgiu da rua e

tão logo, das atrocidades que nela ocorrem.

Assim, esta hostilidade do espaço público (que na

realidade se trata muito mais da hostilidade de uma nítida

minoria de cidadãos oportunistas do que do espaço

propriamente dito) acabou por se desdobrar em uma espécie de

pessimismo entre quaisquer indivíduos componentes de uma

mesma cidade nesta situação. Um pessimismo, capaz de fazer

Page 56: O individualismo na grande cidade

52

uma pessoa duvidar de qualquer gentileza, elogio ou olhar, vinda

de outra. Tudo, na dúvida, vira ofensivo, invasivo ou

desrespeitoso. A bolha do espaço íntimo se tornara muito mais

sensível.

A internet, que possibilitou e continua possibilitando

oportunidades memoráveis de troca de conhecimento, de acesso

à informação, de criação de serviços mais do que práticos,

também possibilitou, ou ao menos reafirmou, a disseminação

deste espírito individualista pessimista sobre o espaço habitado

e por seus habitantes tampouco. Um sentimento pessimista

preguiçoso e cético na descoberta de uma mudança capaz de

recuperar alguns dos valores comunitários anteriormente

compartilhados. Com o perdão do trocadilho: um sentimento de

pessimismo pessimista, consigo mesmo e com seu próprio

destino ou possibilidade de mudança.

* * *

Coletivo:

Em contrapartida, vejamos a faceta positiva do advento

da internet no contato com a vida das pessoas moradoras de

uma grande cidade.

Na medida em que se faz necessário, obrigatoriamente, o

interesse pessoal do indivíduo em buscar qualquer informação

na internet e consequentemente seu caráter ativo neste

processo, podemos notar que o público alvo do conteúdo

informativo se torna automaticamente imensamente mais

específico na maioria dos casos quando comparado com o

público televisivo por exemplo. Dessa forma, é muito coerente

que a interface onde a informação é apresentada, os meios de se

encontrá-la e seu conteúdo propriamente dito sejam

especialmente desenhados7 a fim de atender e agradar aquele

grupo de indivíduos que de fato se interessam por aquele tema.

7 Nesse momento, consideremos uma das várias áreas de trabalho deste novo profissional da internet, das tecnologias do computador e da informação de rápido acesso. O webdisigner (“desenhista da rede” - tradução livre) tem essa inédita responsabilidade de entender os perfis dos usuários dos mais variados conteúdos virtuais e desenhar a forma como seu conteúdo é apresentado aos internautas interessados em temas que variam de receitas culinárias à histórico de empresas multinacionais.

Page 57: O individualismo na grande cidade

53

Além disso, é notável a velocidade com que as

informações correm na internet. Dados, acordos, fotografias,

relatos etc. (ainda mais, quando amparados pelas redes sociais)

correm o mundo quase que instantaneamente na internet, o que

entre outras razões confere a ela outro fator justificativo do

grande número de internautas ao redor do globo: maior

liberdade de expressão de seus usuários. Usuários sim, pois vale

lembrar que aqueles que alimentam o banco de dados da

internet, que disponibilizam ou possibilitam o conteúdo na rede,

independentemente de etnia, credo, classe ou cor, também são

usuários interessados ou em potencial de outros sites e

conteúdos, conformando então uma rede mundial de informação

virtual – world wide web (“www”).

Assim, entendemos que a especificidade de conteúdo

pode facilitar e acelerar o encontro destes grupos virtualmente

ou fisicamente, uma vez que certamente, diferente do primeiro

contato na interação pública, já se sabe de antemão que ao

menos um ponto em comum, um interesse mútuo já existe entre

os componentes do grupo, antes mesmo de haver o contato

propriamente dito. Isso pode levar-nos, de forma ainda

imprecisa, à conclusão de um caráter facilitador desses

encontros virtuais como favorável ao senso comum coletivo.

Entretanto, atentemos para a questão de que, de acordo com os

meios apresentados, os grupos beneficiados – aqueles que

possuem interesse comum – são indiretamente levados, em

contrapartida, ao afastamento de outros grupos também

formados por estes princípios, evidenciando assim, um papel

influente na desmotivação da sociedade no escopo interativo

baseado na diversidade social pública da grande cidade.

Seria a potencialização ou sugestão da união desses

grupos separados uns dos outros, uma atrocidade contra a vida

pública democrática? No momento em que surge uma

alternância do caráter segregativo, desconhecido, isolado,

alienado, do indivíduo meio à multidão, pelos mesmos valores

agora na relação de um grupo com outro, é passível de

questionamento o auxílio da internet no processo coletivista da

sociedade. Ainda que, como citado, tal distanciamento entre as

pessoas já acontecesse anteriormente ao aparecimento da

internet, é inquestionável que com a internet, isto obteve

maiores proporções muito mais rapidamente.

Page 58: O individualismo na grande cidade

54

“Cultiva-se assim uma desvirtuação em

uma das interpretações a cerca do respeito

conceitualmente. Aparentemente, em situações

interpessoais como as encontradas na grande

cidade, o “respeito pelo próximo” se torna

literalmente “distância pelo próximo”, distância

suficiente para que não haja interação e

consequentemente qualquer possibilidade de mal

entendimento ou ato desrespeitoso entre as partes,

seja ela intencional ou involuntária. Porém,

obviamente, dificulta também qualquer

possibilidade de interação bem intencionada.”

“Se verdadeira tal reflexão, percebe-se

uma absoluta contradição no ato de se respeitar,

ao passo que em tais circunstâncias, o exercício

dessa relação interpessoal só acontece quando ela

não há. O respeito existe entre as pessoas quando a

relação entre elas não acontece, quando ela deixa

de existir, quando ela é nenhuma. Portanto,

poderia até se falar sobre uma nomenclatura para

esta nova relação interpessoal oculta – porém real,

fatídica – baseada na distância, diferente do valor

atribuído à palavra “respeito”, pois para que haja

respeito, necessariamente é preciso que haja, o

convívio. Nesse sentido, a indiferença seja talvez

até mais respeitosa que a ofensa do ato de se

evitar algo ou alguém.”

Page 59: O individualismo na grande cidade

7.0 CONCLUSÃO

Page 60: O individualismo na grande cidade

56

A questão da individualidade na grande cidade não pode

ser encarada como um tema dotado da possibilidade de uma

solução determinada ou de medidas (por mais experimentadas

que sejam) certeiras na mudança de um panorama para outro,

melhor no que diz respeito à qualidade de vida das pessoas. Para

possibilitar mudança efetiva deste quadro, são necessárias

inúmeras outras considerações que tratam de outros fatores que

envolvem a qualidade de vida e a satisfação pessoal do indivíduo

com o meio. Tais parâmetros não foram nem serão foco deste

trabalho pelo caráter multidisciplinar que inviabiliza tal

produção.

De qualquer modo, o presente trabalho se mostra

importante ponto de partida no processo reflexivo sobre este

espaço urbano da grande cidade contemporânea. Importante

não somente na busca do entendimento das razões e influências

que este sofreu para atingir o estado atual, mas também para

embasar e justificar qualquer proposta arquitetônica projetual

que atinja diretamente o cotidiano de uma sociedade.

Não deixa de ser também a busca pelo entendimento

deste sentimento e perfil individualista afim de possivelmente

encontrar seu contraposto; uma proposta de perfil, de projeto,

de atividade que incentive a coletivização em detrimento à

individualização. Entender como as pessoas são, para então

propor o oposto daquilo que não trouxer benefícios. Incentivar a

união de um grupo, a busca pelas soluções para os problemas

individuais a partir da reflexão conjuntamente compartilhada. O

maior número de pessoas que refletem a respeito de algo,

garante maior e mais acelerada possibilidade de cultivo de

sensações públicas cruciais para a manutenção da boa qualidade

de vida, como identificação do indivíduo com o meio, sentimento

de segurança, respeito entre seus componentes, agilidade no

plano de mobilidade, saúde, educação etc.

Dessa forma, o escopo deste trabalho não intenciona

muito além de uma reflexão mais aprofundada sobre as relações

em torno do indivíduo. Gerar dúvidas que levem a novas

descobertas e novos caminhos para elaboração de um plano de

longo prazo que vise o coletivo.

Se propostas como as apresentadas em outras cidades

que passaram por situação similar de adensamento e tratamento

do espaço público surtiram efeito, como será que devem se

Page 61: O individualismo na grande cidade

57

resolver tais problemáticas numa cidade como São Paulo para

garantir mesmo efeito? Ou ainda, quais são as problemáticas

típicas e únicas da cidade paulistana que retardam a construção

de uma cultura que busque o interesse coletivo em detrimento

do individual? Como estão conectados fatos aparentemente

isolados como a ausência de alternativas no transporte urbano e

uma tentativa de assalto que não terminou bem para o senhor

que não tinha mais do que algumas moedas no bolso? Perguntas

como esta surgem além do incômodo profissional do arquiteto

sobre o espaço. Diz respeito também, ao incômodo pessoal e

humano, que possivelmente (para não dizer certamente) faz

parte de um subconsciente de todo e qualquer membro dessa

sociedade.

Coloquemo-nos sob esta perspectiva e vejamos em que

grau também nós não já fomos vítimas deste quadro, ou ainda, se

já não fomos nós participantes e representantes no processo de

consolidação da individualidade como senso comum na

sociedade urbana. Em uma mesa de bar com os amigos, no

intervalo das aulas do primário, em um trabalho, em um

percurso. Incalculáveis possibilidades de termos contribuído em

prol da individualidade, quando poderíamos ter optado pelo

coletivo. É claro, que é um processo e um posicionamento muito

indireto e de caráter passivo. Agimos, muitas vezes, contra a

coletividade, involuntariamente, consequente de um processo

educativo e talvez cultural baseado no individualismo. Vale

assim, a sugestão das reflexões contidas neste trabalho em busca

de um exercício perceptivo de relação interpessoal urbana

baseada na coletividade. A tentativa cotidiana de optar pela

coletividade, pela interação natural, pelo convívio coletivo

pacífico e otimista com a incerteza, otimista, por fim, com o

outro.

“Quanto maior a cidade, mais individualista tende a ser

seu cidadão” deveria ou poderia ser substituído por “quanto

mais veloz, mais individualista tende a ser seu cidadão”, pois

uma cidade grande como São Paulo é extremamente veloz nos

sentidos aqui atribuídos, e por este motivo, constrói-se a

hipótese de que seus cidadãos tendem a ser mais individualistas.

Algumas cidades europeias são extremamente grandes,

complexas e desenvolvidas e nem por isso têm um cotidiano

justificado na velocidade, como se “quanto mais rápido melhor”.

Page 62: O individualismo na grande cidade

58

O mesmo raciocínio, ou ao menos algo similar, acontece

ainda em cidades menores, e consequentemente, menos velozes.

Ainda se conhece os vizinhos e na melhor das hipóteses, até a

vizinhança. Ainda se sabe a ocupação de boa parte deles, se o

filho de alguém entrou na faculdade ou se a filha de outro foi

pedida em casamento. Há uma facilidade de se conhecer e

reconhecer alguém na rua. O homem que você cruzou na rua da

grande cidade há 2 minutos, é o homem que toma conta do caixa

preferencial a mais tempo no supermercado que você frequenta

e você provavelmente nunca se dará conta disso. Você cruzou

com ele, olhou para ele, mas não o reconheceu.

Acredito que, por fim, a dificuldade de gestação de um

senso coletivo esteja de alguma forma, ligada à dificuldade de

conhecer e reconhecer – portanto, conhecer de novo; observar e

admitir familiarização com o outro, com o que está sendo

observado. Conhecer e reconhecer pessoas, lugares, sensações.

Talvez pelo tamanho, talvez pela pressa, mas enquanto conhecer

e reconhecer não ajudar a pagar as contas no final do mês é luxo,

e, portanto felizmente ainda não é desprezível, mas é

dispensável.

Em um segundo momento, pretende-se, além de

possivelmente nos aprofundarmos no tema central, utilizar tais

reflexões para elaboração de um projeto que concretamente

incentive, insinue a coletivização das pessoas. Este

aprofundamento somado a estudos de caso poderão possibilitar,

através de intervenções em espaços já existentes que carecem de

tal tratamento e que conformam potencialidade para tanto ou

através de uma proposta nova edificativa que crie resistência à

apropriação individualista, a sugestão de novas formas de uso

público e coletivo.

Page 63: O individualismo na grande cidade

8.0 CONFRONTO

Page 64: O individualismo na grande cidade

60

Como proposta de confrontar este cenário abordado

durante o trabalho, foi essencial o desenvolvimento e

envolvimento de uma sensibilidade ao espaço que serviu de

mote para um processo de imaginação que reconfigurasse o

entendimento da relação das pessoas entre si e com a cidade

propriamente dita. Ou seja, a sensibilidade gerou, sobretudo,

imaginação. E pode-se dizer que é sobre ela que se sustenta a

perspectiva adotada sobre o entorno, que através da linguagem

poética (e só ela mesmo seria capaz de traduzir ou expressar tais

sensações) provoca também a imaginação do leitor.

Cria-se então essa abertura, estabelece-se assim um

diálogo, um meio de comunicação direto entre autor e leitor, na

interpretação e na observação.

Com isso, o trabalho assume uma postura contra a

problemática do individualismo na cidade8 de uma forma

particular que, mais do que apresentar um ponto de vista, se

abre à reflexão, à discussão de novas possibilidades e

8 O fotógrafo alemão Kai Ziehl retrata a relação do indivíduo com a cidade de uma forma poética que evidencia entre outros fatores, a diferença de escala construída e a escala humana e a solidão do indivíduo neste meio.

possivelmente colabora na construção do senso comunitário

urbano.

Page 65: O individualismo na grande cidade

61

Figura 20: Fotografia retirada do portfolio de Kai Ziehl.

Disponível em: <http://www.kaiziehlphotos.com/portfolio/>

Acesso em 27/11/2013.

Figura 21: Fotografia retirada do portfolio de Kai Ziehl.

Disponível em: <http://www.kaiziehlphotos.com/portfolio/>

Acesso em 27/11/2013.

Page 66: O individualismo na grande cidade

9.0 TEXTOS E REFLEXÕES

Page 67: O individualismo na grande cidade

63

9.1 TESTEMUNHO:

Todas essas folhas tremem assim que os ventos passam. Os

olhares, desatentos, para essa cena aparentemente

insignificante. Um passo após o outro, e os olhos continuam

cerrados a observar as folhas cantantes sem muito entender. O

tempo então para, as folhas param e os olhos passam a enxergar.

Sem motivo, sem programação, sem abraços ou sorrisos a serem

admirados. As folhas verdes esvoaçantes sentem e assistem ao

arrependimento, saudade, vontade, tristeza, amor. Em um

instante de silêncio em respeito a especificamente este

momento, não importa onde esteja, não importa quem seja.

Quebrado gradualmente, enquanto os olhos se fecham, enquanto

as folhas voltam a tremer assim que os ventos passam.

Page 68: O individualismo na grande cidade

64

9.2 EXAME:

Quando ele pergunta:

- Como é? Bonito isso, de você ser assim. Ainda sorri, no

meio do trânsito, da multidão, da correria do dia-a-dia, dos

pombos brigando pelo melhor lugar no fio elétrico ou dos LED’s

queimados da cabeça do boneco do semáforo de pedestres. Justo

você, sendo alguém que vai descobrir inesperadamente um

tumor no cérebro inoperável aos trinta e dois. Bem na época que

seu filho vai começar a ir pra escola?!

- Está com o quê? Vinte e três? Nove anos então e,

contando. Logo você, que nunca teve nenhum caso parecido na

família e alguma vez pensou de fato nisso e até se sentiu mais

seguro e aliviado. Caramba. Você jogou bola quando era

pequeno, escovava os dentes corretamente, leu a quantidade de

livros que se esperava para alguém com a educação que teve.

Não faltou em nenhum aniversário da vó, mesmo que como

desculpa para comer aqueles deliciosos docinhos que você

achava que ela não sabia que roubava do pote no alto da

despensa. Você, que fez tudo certo, sempre prezou por nunca

fazer mal a ninguém, infelizmente não pode fazer nada agora

pelo fim iminente. Mas você pode pensar que já refletiu tantas

coisas sobre esse mundo cruel, que você já foi capaz de pensar

de enxergar coisas tão importantes por um mundo mais humano

que muito pouca gente pensou, se é que alguém o fez. Mas aí,

você não também nunca contou para ninguém não é? E as vezes

que tentou, ninguém quis te ouvir...

- Você pode pensar que é justamente por ter entendido ou

pensado ter entendido todas essas coisas que você foi escolhido,

como se uma coisa fosse consequência da outra. Pode pensar

que todos os grandes pensadores ou filósofos morreram por

causa disso, mas seria só mais um pensamento seu, que

especificamente dessa vez não vai adiantar ou adiar seu destino.

Injustiça ou não, não adianta perder seu precioso tempo agora

pensando nisso... – quando com o descuido do tremor nervoso de

suas mãos o rapaz deixa cair o exame. Aquele exame.

O outro rapaz, que até agora só ouviu sem entender nada,

agora entendia tudo ao fitar o resultado do exame bem no centro

da folha. Agachou, recolheu o papel e o devolveu, junto com um

Page 69: O individualismo na grande cidade

65

abraço de como se fosse uma amizade de infância, separada pelo

tempo, pela vida.

Depois de soltar o moço indignado, desesperado, perdido,

limpou suas lágrimas e continuou a andar, seguindo seu ritmo,

seu rumo, seu compasso.

E o homem lá ficou. De olhos fechados, a segurar sua

sentença.

Só.

Page 70: O individualismo na grande cidade

66

9.3 VEM NA MINHA SOMBRA:

No metrô tipicamente lotado de São Paulo, resolvi pôr em

prova minhas considerações e reflexões.

Próximo à estação Sé, principal estação de transferência

de linhas e também famosa pela quantidade de pessoas por

metro quadrado, estava eu em pé, próximo, mas não tão próximo

ou próximo o suficiente da porta de desembarque do trem,

quando uma senhora de uns 50 anos de idade vividos no

endividamento da baixa classe média paulistana me pergunta:

- Mocinho, você vai descer na Sé?

E eu respondo, na tentativa de simpática de introduzir e

propositalmente romper com o conceito individualista urbano

pré-definido:

- Vou sim senhora, eu vou abrindo caminho até a porta (o

trem estava lotado, como era de se esperar) e a senhora vem na

minha sombra!

Imediatamente veio o contra-ataque:

- Eu heim! Como se eu estivesse te seguindo!

Sem entender muito, e surpreso com o tom hostil que ela

disse aquilo, resolvi insistir e repeti calmamente o plano para

desembarcarmos, que a meu ver, não tinha nada de

desrespeitoso ou grosseiro.

Dessa vez, a senhora parecia ter entendido melhor minha

brincadeira e completou a conversa com seu sorriso. Depois

explicou que:

- Quando alguém dia que estamos indo na sombra da

outra é porque acha que estamos seguindo a pessoa. Ainda mais

com esse povo mal educado de hoje em dia!

Concordei e dei uma leve risada para aliviar o clima e

tranquiliza-la quando à minha posição, enquanto pensava no que

ela disse.

As pessoas não esperam essa quebra. Elas apenas seguem

o fluxo e tardam a entender qualquer atitude fora do padrão, por

melhor ou mais óbvia que ela seja. E ela talvez esteja certa, as

pessoas estão de fato mal educadas e têm dificuldade para

entender o mundo em volta pelo que ele é naquele momento.

Não se pode perder a esperança.

Page 71: O individualismo na grande cidade

67

Mas talvez o mundo de hoje não permita boa educação.

Talvez o mundo de hoje não permita nem a esperança.

Talvez eu que esteja sendo mal educado.

Page 72: O individualismo na grande cidade

68

9.4 SURDEZ URBANA:

– Julian!

Virei aquela esquina, chutei aquele pedaço de cimento

solto de um piso velho, cansado, ressecado da calçada que me

serviu: “... Os corpos ausentes. Já pensou se alguém me chama na

rua e eu não viro para olhar?! Acho que a primeira coisa que ela

faria seria olhar bem se eu estava ouvindo música. Mas não

estava. Preciso priorizar o meu projeto do quadro. Acho que

pode ficar muito bom. É o individualismo, a representação dos

corpos ausentes, é uma releitura do croqui original, de uma

forma talvez, mais poética. Os fantasmas vazios, as gotas de

chuva definindo o desenho e uma só gota interna à silhueta, mas

essa não era de chuva. Esta era consequência inevitável do golpe

de consciência de se estar só, em meio à multidão. A lágrima

solitária, carente, se confundiria com a chuva ao redor e quem

sabe também ela reforçaria, de alguma forma, esse contexto.

Esse quadro poderia ser o resultado de meus problemas.

Resultado de nossos problemas.” – quando já dentro daquela

sala que cheirava atraso, uma amiga me diz:

– Nossa Julian, eu te vi na rua; aqui do lado, vindo pra cá,

mas acho que você não ouviu. Até olhei bem para ver se estava

ouvindo música. Mas não estava.”

Page 73: O individualismo na grande cidade

69

9.5 MORADOR:

Depois daquela briga a dois passos exatos da guia da

calçada, assistida, ainda que meio à multidão, pelos ratos sujos e

famintos que saíram de algum buraco próximo. Depois que ele

encontrar um pedaço grande o suficiente de qualquer alimento

para chamar de janta. Depois que ela tentar somente mais cinco

vezes entender o que está escrito na placa de Proibido

estacionar. Só mais uma sequencia será mentalmente

cronometrada por ele entre as cores do semáforo longínquo o

bastante para que só mesmo as cores pudessem ser

compreendidas. Depois do próximo arrepio, causado pelo furo

que cresceu nos últimos anos daquele tipo de pôster que chama

de cobertor. Depois de sentir que seu melhor companheiro já

está satisfeito e confortável com seus leves e sensíveis toques

atrás da orelha. Depois de tentar uma última vez contar os

pequenos minerais que refletem no asfalto úmido e gelado a luz

piscante do poste da rua, imaginando serem tão numerosos e

mágicos quanto as estrelas de uma noite generosa. Depois que

aquela risada profunda e silenciosa sessar ao notar que as

rachaduras na parede do outro lado da rua formam um desenho

engraçado. Depois, todos irão dormir e sonhar. Como qualquer

um.

Page 74: O individualismo na grande cidade

70

9.6 JOÃO

João era um cara que todos achavam engraçado. Alguns

detalhes, mais do que outros, o faziam ser assim. As meninas

riam demais quando ele dizia que precisava ir ao banheiro de

novo e todo mundo comentava como ele era um cara

requisitado. Recebia umas duas ou três ligações a cada hora e era

um cara difícil de prender atenção. Todo mundo gostava de

contar história para João porque parecia interessado por todas

elas, mas interessante mesmo eram as histórias que João

contava. Ele sabia conduzir como ninguém e sempre guardava o

clímax para o momento certo. Era expressivo e contava mesmo

também sobre a importância disso nas pessoas. João não parava,

sempre o admirei por ser assim, e pela intensidade que vivia

uma vida simples. Alguns detalhes, mais que outros, o faziam ser

assim.

Mas também, não tinha como ser diferente. João sabia

exatamente o momento de fingir precisar ir ao banheiro. João

sabia levantar da mesa para atender a um telefonema que nunca

tocou. Ele sabia extrair a expectativa das pessoas, sobre alguém

que João nunca foi. Quem sabe o ladrilho trincado do banheiro

ou o celular sem bateria de João sabiam qual era a sua expressão

ao não vê-lo usando o banheiro ou sussurrando palavras que

ninguém jamais ouviu.

Page 75: O individualismo na grande cidade

71

9.7 REFLEXÕES:

“Não tenho certeza se sou eu o ser individualista, que trata o

meio circundante pelo filtro de meus olhos individualistas e o

descreve com minha criatividade individualista baseado num

bom senso individualista ou se sou eu uma mera unidade

inserida num contexto individualista coletivo e possuo valores e

reflexões consequentes e empíricos desse conjunto. De um jeito

ou de outro, o individualismo se mostra presente e é sobre ele e

sobre seu toque na vida de cada ser compositor deste cenário

que pretendo tratar.”

“Eu abro os olhos todos os dias e sinto que algo não está

certo... E vou me deitar toda noite achando que provavelmente

sou eu.”

“Dois grandes amigos (e, portanto supõe-se que tenham

valores e opiniões em comum) estudam juntos por cinco anos e

moram juntos por este período. Porém demonstram absorções

diferentes de uma época da vida convivida. O que talvez, e

arrisco dizer provavelmente, sirva de incentivo na criação e

desenvolvimento de novos valores também compartilhados,

muito embora possivelmente contrários.”

Page 76: O individualismo na grande cidade

72

“As pessoas gostam de fazer amizade ou interagir de uma

maneira geral com aquelas que possuem coisas em comum. Mas

morar na mesma cidade, no mesmo bairro, rua ou até mesmo

residência, usar o mesmo meio de transporte e

consequentemente compartilhar de seus defeitos e virtudes, ter

o mesmo emprego, a mesma opinião política, a mesma opinião

sobre o filme da semana, vestir o mesmo estilo de roupas ou

ouvir o mesmo tipo de música parecem não ser o bastante.”

.

“Esse individualismo libera minha mente para criar a história

que eu quiser. Não tem verdade ou mentira, possível ou

impossível. Ninguém sabe, ninguém conta, ninguém descobre,

ninguém procura.”

Page 77: O individualismo na grande cidade

73

Figura 22: Etapa 01 - Expressão

artística sobre o individualismo.

Autoria própria.

Page 78: O individualismo na grande cidade

74

Figura 23: Etapa 02 - Expressão

artística sobre o individualismo.

Autoria própria.

Page 79: O individualismo na grande cidade

75

Figura 24: Multidão de ninguém. Etapa

final - Expressão artística sobre o

individualismo. Autoria própria.

Page 80: O individualismo na grande cidade

76

Figura 25: Croqui de representação idealizado sobre o

espaço público de uso comum da grande cidade, adaptado

para estímulo de interação social.

Page 81: O individualismo na grande cidade

10.0 BIBLIOGRAFIA

Page 82: O individualismo na grande cidade

78

- BARROS, Hudson dos Santos. A civilização, a cidade e o

indivíduo em a peste de Abert Camus. Rio de Janeiro. Dissertação

de mestrado - UFRJ. Ano não publicado.

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- TRÊS QUESTÕES SOBRE O URBANISMO. Texto disponível em:

<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.0

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DIVERSIFICADO. Apresentação de projeto que reúne praças

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David Baker e parceiros. Disponível em:

<http://www.dbarchitect.com/project_detail/148/Station%20C

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- E SE RUAS E CALÇADAS FOSSEM UMA SÓ? Reportagem

disponível em:

<http://thecityfixbrasil.com/2013/06/10/e-se-ruas-e-calcadas-

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- VIDA E MORTE DE UM GRANDE LIVRO. Resenha disponível em:

<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/0

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<http://www.cetsp.com.br/consultas/bicicleta/um-novo-meio-

de-transporte-a-bicicleta.aspx> Acesso em 25/05/2013.

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<http://macabreza.blogspot.com.br/2011/04/multidao-nao-e-

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Page 85: O individualismo na grande cidade

Trabalho Final de Graduação - 2013Universidade Estadual Paulista - UNESP

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação - FAAC