o “índio” da ciência - pressfolios-production.s3 ... · derrubando tudo na casa, revirando...

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JL 2015 TS2 Victor Hugo de Oliveira Bin O “índio” da ciência Victor Hugo de Oliveira Bin As paredes cinza deixam o ar ainda mais assustador. Na cadeira, ao canto da sala, vê-se o vulto de uma mulher sentada. A voz espectral começa a falar: Meu nome é Sheila. Eu moro nessa casa há cinco anos... Depois de uns dois anos que eu morava aqui, comecei a ver algumas coisas e a sentir também.......... Vi pessoas aqui dentro... Eu vi a mão da “pessoa”, assim na parede, olhando a minha sala... ai pensei que tinha um homem... que era assaltante.............. Passos na escada, gavetas fechando e abrindo. Barulhos; muito barulho... A voz, a Sheila, o relato, tudo pode ser visto com descrença aos olhos mais céticos. Espíritos... rá!... Onde já se viu essas bobagens hoje em dia. Ainda mais num programa de tevê. ―Eles só

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JL 2015 – TS2 – Victor Hugo de Oliveira Bin

O “índio” da ciência

Victor Hugo de Oliveira Bin

As paredes cinza deixam o ar ainda mais assustador. Na

cadeira, ao canto da sala, vê-se o vulto de uma mulher sentada. A

voz espectral começa a falar:

— Meu nome é Sheila. Eu moro nessa casa há cinco anos...

Depois de uns dois anos que eu morava aqui, comecei a ver

algumas coisas e a sentir também.......... Vi pessoas aqui dentro...

Eu vi a mão da “pessoa”, assim na parede, olhando a minha sala...

ai pensei que tinha um homem... que era assaltante..............

Passos na escada, gavetas fechando e abrindo. Barulhos; muito

barulho...

A voz, a ―Sheila‖, o relato, tudo pode ser visto com descrença

aos olhos mais céticos. Espíritos... rá!... Onde já se viu essas

bobagens hoje em dia. Ainda mais num programa de tevê. ―Eles só

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querem Ibope...‖ ―Dizem qualquer coisa‖... Tudo isso é possível.

Mas...

... ―A gente foi fazer [a investigação paranormal] na casa de

uma moça, lá. Que era namorada de uma amiga dele...

Eeeeeeeeeeee – era meio barra pesada lá na casa da mulher‖,

começa a contar Tati.

É uma noite de quinta-feira longe de ser assustadora. Tatiana

Lidelmo, uma moça branca, semblante calmo e firme, olhos tão

azuis quanto os do Ren, um de seus dois gatos de estimação,

branco e laranja, da cor de seus cabelos atuais (―um tom de ruivo‖,

ela defende) – medroso de tudo – está na mesa da cozinha

enquanto seu marido, Danilo Augustus, um gordinho de tom róseo,

corta a cebolinha e joga a páprica para preparar o arroz. Os

pedaços de frango pulam dentro da panela misturado ao alho e

especiarias e na outra panela quase meia abóbora amolece num

cremoso purê.

É uma boa noite para falar desses assuntos...

... O caso mais pavoroso que a ―Sheila‖ passou, lembra Tati, foi

quando estava sozinha em casa (os filhos tinham saído). Do quarto,

ouviu um barulho ensurdecedor na casa. ―Como se tivessem

derrubando tudo na casa, revirando tudo‖, diz Tati. Sheila ficou

apavorada achando que estavam assaltando a casa... Levantou-se

da cama, com cuidado, e abriu a porta do quarto. Estava um breu

só. Nenhuma luz...

―Ela disse que viu alguém parado.‖

Então...

ENTRA!!! ENTRA!!!

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Depois da ordem, Sheila volta e tranca a porta... Não sabe o

que fazer. Discou para a Polícia, avisando que estavam roubando

sua casa. Levando tudo...

Minutos depois, a Polícia chega.

A casa dela estava intacta. Nenhum arrombamento, nenhum

objeto roubado.

Deve ser coisa da cabeça da moça...

Foi aí que o grupo NEAP, o Núcleo de Estudos de Atividades

Paranormais, do qual Leandro, amigo da Tati, faz parte, deram uma

olhada. O grupo existe há quatro anos e tem como participantes

mais ativos o Leandro, Joel e sua mulher, Mari.

Tatiana mais duas pessoas foram convidadas pelo Leandro

para uma ―transcomunicação‖. Mas não deu muitos detalhes a ela.

―Quando ele começou [com o grupo NEAP] já falou que um dia ia

me levar. Eu comecei a perguntar bastante... aí ele acabou me

convidando.‖

Lá elas tiveram que dizer o que estavam sentindo naquele

ambiente, se ouviram ou viram alguma coisa. Uma hora as câmeras

do quarto começaram a ligar sozinhas... mas não estavam

gravando, estranhamente. ―Não sei como, a mulher que tava

cuidando dessa parte não percebeu.‖

A casa tinha alguma coisa estranha... tão estranha que não

conseguiram captar naquela primeira vez. Tiveram que ir uma

segunda, dessa vez, um programa de TV acompanhou. O Manhã

Maior, da RedeTV.

Leandro, identificado como investigador paranormal pela

emissora, mostra todo o equipamento que eles têm: ―O aparelho

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mais importante que temos dentro da investigação paranormal é o

DVR.‖ É um monitoramento de segurança que eles espalham pela

casa, para captar algo em freqüência infravermelha. Além disso,

têm os rádios para se comunicarem entre os cômodos, lanternas,

gravadores digitais e de fita, câmeras filmadoras e fotográficas,

lasers, magnetômetros (para captarem o grau de energia

eletromagnética do local – quanto maior, mais chances de ―alguma

coisa‖ estar no local).

A Malu Trocolli, convidada pelo grupo, acompanha a

investigação. É a mais sensitiva de todos. Ela vai a um cômodo e

começa a sentir algo:

— Aqui a energia tá muito, muito pesada. Muito! Demais,

demais, demais!!! Quase que derruba a gente.

O grupo vai para o quarto e o Joel, outro integrante, começa a

―conversar‖ com quem quer que esteja lá. Um dos aparelhos deles

cai no chão, deixando todos apreensivos.

— Você é covarde – provoca Joel – se mostra! A Sheila é dona

dessa casa. Não você...

Silêncio...

— Você viveu aqui? Você é criança?

Nenhum barulho... Nadinha... Joel insiste:

— Uma outra pergunta...

SAI FORA DAQUI!!!

Grita a voz que sai do rádio da mão de Joel. É uma voz

masculina, jovem, não parece ser de alguém com mais de 30 anos.

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FALA PRA ESSA SHEILA SE RETIRAR!

Leandro então usa seu rádio e se comunica com a ―base‖, no

outro cômodo da casa:

— Base, vocês pediram para a gente se retirar daqui do

quarto? Câmbio...

— Negativo – responde da base uma voz feminina,

completamente diferente da primeira.

De volta à cozinha da Tati:

— O câmera [da RedeTV] até falou: ―Ô, eu conheço um pai de

santo... — ela então começa a rir.

Quem ouve, pode achar que toda essa história é conversa para

boi dormir. Ou incrível demais até para se acreditar. Mas para o

Leandro de Oliveira, professor de ciências, artista plástico,

estudioso de esoterismo, membro de um grupo xamânico,

investigador paranormal e transcomunicador – inclusive com seres

de outros planetas –, esse é só mais um dia...

Como ele consegue?

Como uma criança introspectiva, filho de pais cristãos, termina

se interessando por xamanismo e ufologia? Ainda mais no

comecinho dos anos 1990?

Através da revista Manchete, claro!

— O livro do tarô, que eu tenho até hoje, veio com a revista

Manchete [isso aos 7 anos]. E aí, depois de um tempo, lia revistas,

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aos 11, 12 anos, que falavam dos povos, da National Geografic,

essas coisas. Daí nasceu meu interesse mais étnico, pelas culturas.

Esse foi um dos gatilhos que refletem até hoje na vida de

Leandro.

— Me interessava pelas cartas, seus significados... E depois eu

comecei a estudar mais a parte esotérica mesmo: cristais, runas...

Quem olha para Leandro uma primeira vez, de camiseta

folgada encobrindo a ―barriguinha‖, bermuda e chinelo, não imagina

que por trás daqueles óculos de armação preta encontra-se um

olhar ativo e uma curiosidade pelos mais diversos assuntos: da

história do xamanismo às teorias conspiratórias e os Iluminatti. Das

interpretações bíblicas sobre vida em outros planetas às

manipulações americanas sobre a seca em São Paulo. E até da

influência da glândula pineal no dom da paranormalidade às

grandes corporações capitalistas e o domínio das riquezas pelo

mundo.

Essa curiosidade por outras doutrinas fez com que conhecesse

inúmeras pessoas. Inclusive uma de suas melhores amigas. Tati

tem 14 anos de amizade com o Leandro. Conheceram-se na Casa

de Bruxas, em Santo André. ―Eu comecei a ir de curiosa.‖ Na época

a casa promovia um ritual das luas que era aberto ao público. Só

precisava levar uma vela e uma fruta. O futuro amigo já frequentava

essa casa há quatro anos. ―Era uma casa grande. E eles faziam

tudo num jardim que ficava nos fundos. Com árvores frutíferas.‖

As pessoas do lugar puxaram assunto com as novatas: ―Você

já veio aqui antes? Sabe dos cursos que eles dão?‖, perguntou uma

moça. E o papo fluiu. Leandro, usando a estratégia do bom mineiro,

chegou de gaiato no assunto, mas já atraiu a atenção:

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— Ele passava um ar calmo para conversar. Mas uma coisa ele

mantém até hoje: ele sempre se mostrou muito culto. Muito ―eu sei

sobre tudo‖. E uma pessoa muito legal de se conversar.

Depois de ver o didatismo daquela pessoa, o interesse em

ensiná-la, a aproximação foi natural:

— Ele tinha conhecimentos sobre aquele mundinho que eu

tava querendo conhecer; então, começou a me explicar muita coisa.

Ele já tentou me ensinar duas vezes a jogar tarô – e a gente nunca

conseguiu terminar.

Da onde vem esse lado ―professoral‖ dele?

Leandro nasceu em no dia 28 de dezembro de 1983. Um dia

sem nada de especial – três dias depois do Natal, e daí? – mas,

para os conhecedores das ciências ocultas e esotéricas, sabe-se

que também é o dia de celebração a Gunnlud, deusa escandinava

da educação e do conhecimento. Viu? Talvez o fato de ele ser

professor atualmente não tenha sido à toa...

Vocês verão que nada na vida dele foi por acaso.

Trilhos do conhecimento

O interesse pelo mundo sempre transbordou ao seu redor. ―Eu

sempre gostei muito de pintar, de desenhar, de natureza, né? Ou

brincadeira mesmo, com os bonecos, os bichos, né? E tudo assim:

fazendo zoológico, coisas da natureza. Então sempre tive uma

imaginação, por ser sozinho; uma imaginação bem ativa‖, lembra.

Filho único, não teve muitos amigos na infância – ficava

sozinho, ele e sua imaginação. Como a casa, na época, era

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pequenina no meio do grande terreno; sobrava verde e mato para

Leandro se aventurar. A curiosidade de um garotinho de 1 ano,

solto naquele mundaréu de natureza, faria com que ele não fosse

só uma criança; fosse um bandeirante, um cientista.

Quem quiser entender como a vida de Leandro chegou aonde

chegou, tem que percorrer alguns trilhos do seu passado.

Precisamente dois: o do desenho e o da pintura.

— Ele gostava muito de... desenhar. Escrever, rabiscar papel.

O que você desse para ele. Tinha hora que parecia que o Leandro

não tava em casa. Quietinho lá... Tanto é né que... ele faz quadro

né? Ele pinta.

Quem fala é o senhor Edilson Rodrigues de Oliveira, pai de

Leandro. A dona Lúcia Helena, a mãe, está fielmente ao lado do

marido, ora complementando-o ora corrigindo-o, sempre que acha

necessário:

— Bom agora né, mas quando era pequeno... — Lembra Lúcia.

— É, mas... — retoma Edilson – porque ele já desenhava. E

isso retrouxe essa vontade de pintar, né?...

É impossível ver o casal, sentado na mesa aos fundos da casa

sem lembrar-se dele. Ou vice versa. Lúcia usa uma camiseta preta

recheada de flores róseas, veste uma calça jeans escura e chinelos.

Possui cabelos louros pintados e olhos bem azuis. Olhar felino.

(Parecidos com as da gata da família, Ravena, imperando em seu

espaço; rajada de pintas e com o dorso alaranjado, como uma

jaguatirica.) E um sorriso grande.

Edilson usa óculos, cabelos ralos, a voz calma e tímida.

Sonoramente sonolenta. Está de camiseta turquesa e bermuda

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goiaba, e também um confortável par de chinelos. Senta-se meio

curvado na cadeira, como se o pescoço quisesse entrar nos ombros

por causa do peso de seus 60 anos, 37 deles como funcionário da

Ultragás e da Trans Ultra, outra empresa do grupo Ultra.

O jeito de andar é lento e espaçado, parecido com o filho.

Leandro possui o nariz da mãe, o corpo do pai. Os olhos talvez

sejam a única coisa em Leandro que seja a mistura harmoniosa de

ambos: os olhos azuis da mãe e castanhos do pai lhe deram belo

par castanho claros, quase mel. Nem lá, nem cá...

Mas ele desenhava o quê exatamente?

— Ah, de tudo... Assim, coisas mais assim – como é que

fala?... Aquelas coisas muito doidas, assim... — diz Lúcia, rindo

meio sem jeito.

— Não... ele era assim mais a parte de esoterismo, né? Coisas

esotéricas que... a gente nem entende até hoje. Porque a gente não

se aprofunda... É de gosto. Mas ele desenhava muito assim:

paisagens... — Agora é o pai quem complementa.

— Natureza... — diz a mãe.

— Deusas... — retoma Edilson.

Nessa hora a memória de dona Lúcia Helena bate o martelo:

só ―depois de adolescente que ele começou a pintar mesmo. Pra

valer!‖.

Aproveitou o conhecimento esotérico, com o talento de pintor

para ganhar uns troquinhos (―Ele fazia assim: ‗que dia você

nasceu? Qual o seu nome?‘; aí ele pegava o nome da pessoa

completo, e fazia uma pesquisa do signo da pessoa, mapa astral, e

fazia o quadro de acordo com aquilo‖, confessa a mãe). E com isso,

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comprava mais revistas ou livros de conspirações, ufologia, culturas

místicas, e por aí vai. Investia no conhecimento através do talento.

Mas a dona Lúcia tem uma suspeita de onde veio esses

interesse ou essa pré-disposição a gostar desses assuntos. ―O meu

avô, pai da minha mãe, ele tinha também essa carga de mistério,

entendeu?...‖ E explica que o filho pode ter recebido essa, como

dizer?, ―carga genética‖ também. ―Talvez ele tenha herdado lá dos

antepassados.‖

Como assim?

— Minha mãe falava que meu avô era muito corajoso. Porque

via e sentia as coisas. Tinha essa sensibilidade. Às vezes ele

contava até coisas do outro mundo. — ―Pessoas que morreram, ele

via‖, adiciona Edilson. Lúcia prossegue: — Ele via muita coisa. Era

meio ―diferente‖, assim...

Infelizmente Leandro não chegou a conhecê-lo, pois o bisavô

morreu aos 50 e tantos anos. De infarto.

Teriam muito que conversar...

Como se isso não bastasse, encontrou na Escola Estadual

Jardim Guapituba aquele que seria seu mentor na introdução aos

estudos ufológicos: o professor de Geografia/História, meio doidão,

―a cara do Raul Seixas‖, barbona e cabelo desgrenhado, Aparecido

Israel.

— Eu tinha um professor aqui, na escola pública – ele não foi

meu professor diretamente – mas ele é meu amigo até hoje. Foi no

meu casamento. E ele gostava de ufologia, descobri por acaso...

A descoberta foi através de uma matéria que saiu no

jornalzinho do bairro e estava no mural da escola. Sobre Israel ser

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um exemplo de bom professor. E no perfil citava o interesse dele

por vida em outros planetas. Leandro nem perdeu tempo: deu um

jeito de marcar um encontro e conversar com ele. ―Ele me deu um

grande empurrão nessa parte.‖

Daí passou a ler livros sobre o assunto, ir para congressos de

ufologia. Trilhando seu caminho.

Com o apoio de Israel, os frutos vieram. Medalha três anos

seguidos na Feira de Ciências: bronze na sétima série; ouro na

oitava e prata no primeiro colegial.

O assunto?...

— Os três anos sobre mistérios, discos voadores, a parte de

paranormalidade. — Diz Leandro orgulhoso: — O mesmo assunto

conseguiu ganhar.

Paralelo a isso, seu interesse pelo mundo científico continuava.

Os desenhos abriram as portas para, na escola, pesquisar mais

sobre Biologia, Química e Física. Pegava os livros da mãe e do tio e

devorava. Não demorou a, estudando em casa, ficar mais avançado

nessas matérias do que na própria escola.

— Foi ali mesmo, na quinta série, eu estudava química, já.

Livro de química de Ensino Médio, de Química Avançada mesmo.

Estudava química, física. Desde os 11 anos já tinha livro de

biologia. Estudava reação química complexa. Tinha um intelecto um

pouco além dos meus colegas; só fui me igualar mais na faculdade

mesmo. Mas até o ensino médio, sempre o intelecto um pouco além

dos outros colegas – diz sem medo de parecer prepotente.

As coisas sempre foram ―fáceis‖ academicamente para

Leandro até o Ensino Superior, quando deu uma respirada:

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— Então eu comecei a viver mesmo, sair com os colegas, ir

mais para a balada, só na época da faculdade. Que aí eu me tornei

mediano. Não top, assim. Mas até o fundamental dois, segundo

ciclo, fui bastante inteligente. Bastante nerd.

Do Jardim Guapituba foi para uma das melhores escolas da

região, a Humberto de Campos, fazer o ensino médio. Final dos

anos 1990, o novo milênio batendo à porta, premonições do fim da

humanidade. E a internet era algo pré-Google e pré-Youtube (os

vídeos do momento chegavam por e-mail e tinham poucos

segundos, por conta do tamanho do arquivo)... Época da internet de

escada e aquele barulhinho dos provedores para estourar os

ouvidos – sempre depois da meia noite, ou de sábado para

domingo o dia todo (isso se ninguém ligasse para a sua casa,

derrubando a rede)!!!

Mesmo nesse mundo nebuloso Leandro fez o médio-técnico

em processamento de dados: informática, construção,

programação, essas coisas técnicas que ninguém sabe muito fazer,

mas, quando vemos, ficamos com os olhos brilhando (―Como a

pessoa consegue fazer essas coisas?!‖):

— Passei, fui levando, fui conseguindo... Sem nenhum exame,

nenhuma recuperação. Eu terminei o processamento de dados, a

computação, ainda usando Windows 98 na época, coisa até simples

comparado a hoje. Era tudo muito na raça, programação não tinha

tantos recursos como tem hoje.

Fez tudo isso mesmo matemática não sendo o seu forte. Ufa!

Havia terminado, quatro anos de labuta. Agora estava com os dois

pés na porta do Centro Universitário Fundação Santo André, na

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divisa entre Santo André e São Bernardo, para fazer o que tanto

desejava... Hummmm... E era o quê mesmo?

Achou que o mais correto fosse continuar pela parte da

informática, engenharia de sistemas ou algo parecido. Só quê... ―Eu

falei: gente, eu sou péssimo em matemática. Eu vou para uma área

que é pura matemática complexa na faculdade – ferrada mesmo. Aí

vi ―não é isso que eu quero fazer‖.

Nesse momento, se viu diante de um abismo em direção ao

futuro. A única escolha que teve foi olhar para o passado. E ao

fazer isso, sentiu o perfume das flores no rosto, a relva das

plantas... o farfalhar da grama... os insetos, répteis, fungos,

mamíferos... O mundo que ele amava quando pequeno. A ciência e

suas formas de ver a vida. E de repente seu desfiladeiro tornou-se

um túnel abarcado por árvores e flores esperando-o passar:

— Aí eu me lembrei de tudo o que eu gostava. Da infância,

desde a quinta série, em diante, até o final do fundamental, que

minha coisa seria ciência. Compreensão do mundo, de tudo. Aí

decidi: vou fazer biologia. Aí eu comecei a entreter com a biologia e

comecei a pensar em ser professor...

Isso é quando Leandro se deu conta de sua vocação. Mas

seus pais – sempre os pais – viam esse futuro nele há muuuuito

tempo: ―Eu notei sempre que a tendência dele era ser um professor

mesmo‖, defende Lúcia Helena. ―Pela forma dele explicar as coisas,

pela calma...‖

— Um colega meu que era gerente dele falou: ―Edilson, talvez

a gente não fique com o seu filho não, porque, ele, de você olhar...

sabe que não tem nada haver com isso aqui. O Leandro nasceu

para ser professor.‖ — O pai fala de quando o filho trabalhou com

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ele por uns três meses na manutenção da Trans Ultra – mexendo

com graxa, descarregando caminhão, ajudando onde precisava. —

Até eu fiquei meio chateado na época, foi o primeiro emprego dele

numa empresa registrado, queria ele trabalhando...

Antes disso ele já vendeu quadros, trabalhou em loja esotérica

como tatuador de rena, no Shopping de Santo André, hoje o Grand

Plaza... E depois foi demitido pelo amigo do pai.

Mas então ele conheceu uma pessoa que mudaria sua vida

para sempre...

... A deusa Gunnlud estava mexendo seus pauzinhos...

Curry, Ganesh e caldeirão

O jantar está na mesa! Arroz com páprica picante, frango ao

leite de coco e curry com abóbora e creme de leite. De lamber os

beiços. Para lá e para cá, o outro gatinho da Tati, Horus (―o obeso‖,

segundo Danilo, ―que não é mais tão obeso‖, defende Tati) já se

acostumou à minha presença, roçando na minha canela umas três

vezes. ―Ele gostou de você! É difícil ele ficar assim com estranhos‖,

diz ela. Um gato branco e preto de olhos bem amarelos. ―Estilo

Frajola‖, resume Dan. Em compensação, Ren nem dá as caras.

Terminando o jantar, Tati vai para o quarto. Um quarto de

tamanho médio para quem vê da primeira vez; mas é olhar os

detalhes e tudo o que está lá... para ficar gigante. Uma cama de

casal com um chamativo edredom vermelho. Em cima, na parede,

uma estante de livros (poucos e essenciais, os ―que serão

vendidos‖ estão todos abarrotados no armário), ali você percebe os

gostos intelectuais dos dois. Ele, ―Steve Jobs – a biografia‖, ―Os

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outros Schindlers‖, ―Star Wars‖. Ela, ―A fada e o Bruxo‖, ―A trilogia

do Mago Negro‖, ―Trilogia Jogos Vorazes‖ e toda uma série de livros

que chamei de ―Coleção Tigre‖ (A Maldição, o Resgate, a Viagem, o

Destino e A promessa do Tigre).

De frente à cama um armário branco/preto, como Horus, cheio

de roupas, livros, caixas e caixinhas... Muitas delas não cabem e

ficam em cima do móvel (inclusive a caixa do War II, uma escrito

―telefone‖, e outra ―bolsas‖). Ao lado da porta que leva à varanda,

um cabideiro cheio de roupas cinzas... tão parecidas que não

identifico a quem pertence qual peça de roupa. Mais roupas jogadas

em cima de uma cadeira do lado oposto ao quarto, do ladinho da

―cama‖ dos gatos, cheio de almofadas e uma manta com imagem

de um tigre. Talvez para levantar a estima dos bichinhos – Ren

principalmente...

Mas chegamos ao ponto mais ―Leandro‖ da casa. Uma mesa

onde Tati deixa maquiagens, remédios e um ―altar‖. Não é bem um

altar... é um ―cantinho‖ místico. Têm um caldeirão pequeno (―da

minha fase bruxa‖) onde ela botava pedidos em papeizinhos e

queimava no caldeirão; e quatro pedras: um quartzo branco (usado

na cura e meditação, evita a ansiedade), uma ametista (alivia o

estresse e os medos), um quartzo azul (para ter paciência,

tolerância e compaixão), e... E essa, douradinha? ―Essa aqui eu

não lembro o nome dela, mas eu sei que é uma pedra que chama

dinheiro.‖ Ah, é a pirita, também chamada de ouro de tolo.

Também uma imagem de Ganesha (na verdade foi

―lembrancinha de casamento de um amigo‖ do pai), um homem

gordo como Buda, com quatro braços e cabeça de elefante, filho de

Shiva e Parvati. Considerado o mestre do intelecto e da sabedoria.

O removedor de obstáculos. Tati fez uma promessa na qual ela

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prometeu acender uma vela para esse deus toda primeira quarta

feira de cada mês. ―É que agora estou numa fase hinduísta‖,

explica.

Ao lado do deus indiano, um cordão com um amuleto preto.

Meio sem graça. ―Ah, esse é um presente que o Leandro me deu.

Ele comprou no Ebay. É um amuleto celta, da deusa Morrigan.‖ O

preto do amuleto é um carvalho petrificado. E nele há ranhuras em

caligrafia celta com o nome da divindade – que para um leigo como

eu não parece mais que um monte de risquinhos verticais e

horizontais. Ela é a divindade das batalhas, conflito e da fertilidade.

Está associada às Forças da Natureza e ao sagrado da Terra.

Como já estávamos nesse clima místico. Tati começa a pegar

sua coleção de tarôs (que ela ainda não sabe jogar) para mostrar...

Tem de tudo: Celta, Gótico, Cigano, Bruxo. Runas em sementes...

Empolga-se e mostra até a lata de biscoitos que o amigo

comprou para ela, com uns 50 cm de altura, cheia de imagens do

filme Casablanca e do ator James Dean, com uma jaqueta

vermelha e olhar sexy, no filme Rebelde sem causa. ―Ele me deu de

aniversário uma vez, eu acho. Porque ele sabe que eu sou...

gorda... E aí ele me deu‖, ri. ―Não sei se é gostoso porque eu não

comi, mas a lata é da hora!‖, completa Danilo. Virou um incensário.

Ao abri-la, o quarto é tomado por um arco-íris de cheiros orientais.

A bruxa com asas

As pessoas encontram o amor de suas vidas nos locais mais

improváveis. Leandro freqüentava a Casa de Bruxas, a casa

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esotérica mais famosa de Santo André, desde 2001. Quatro anos

depois, ela apareceu:

— Foi através de uma amiga em comum que levou ela lá –

pois gostava desse assunto. Ela também começou a fazer o curso

de bruxaria. E a gente se conheceu, ficou amigo e depois de um

ano depois a gente começou a namorar.

Mulher alva, cabelos louros compridos, olhos castanhos. Uma

beleza tipicamente européia distribuída por 1,78m. De ascendência

itálica, a melhor mistura da Sicília e Veneza, Ana Paula Della

Pascoa era bruxa de família. Adepta da Strega (bruxa em italiano),

Stregoneria ou Stregheria, uma tradição passada apenas de mulher

para mulher, dentro de famílias italianas.

— Ela era muito falante, muito sincera com tudo. Se gostava de

alguém, falava na lata. Se não gostava, falava também na lata. Um

jeito bem despachado.

Com o conhecimento que tinha, Paula carrega energias muito

poderosas. ―Ela enxergava coisas muito claramente‖, diz Leandro,

―via como se fosse eu e você, conversando. Isso é raro alguém ter‖.

Ela tinha o dom de te olhar, no fundo dos olhos, e perceber se havia

―alguma coisa‖ errada. ―Ó, você tem um negócio aí do seu lado. Vai

lá ao centro espírita, se tratar‖. O tom com que ele fala da ex-

mulher, dando ênfase às palavras, às pausas, transparece a

admiração que nutria por ela.

— Eu gostava muito dela. — Confessa Tatiana: — Ela era uma

pessoa muito... Muito foda! Era uma menina muito inteligente,

divertida, engraçada, e gostava de fazer as pessoas rirem. E ela

gostava muito dele.

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Tati se lembra de um momento marcante. Quando Paula previu

a própria sorte ao lado do, então amigo, Leandro.

Ela lia muito bem tarô. E quis jogar com Leandro. ―Essa história

os dois me contaram‖, Tati diz a fim de passar mais credibilidade ao

relato. A linda loura viu que o jovem encontraria uma mulher na vida

dele em breve. De cabelos escuros, formas arredondadas, como

uma musa renascentista (―porque ela era gordinha‖) e de pele muito

branca. ―E que eles seriam felizes juntos, aprenderiam muito um

com o outro e blá blá blá...‖

Depois de um tempo, começaram a namorar sério.

Mas... A Paula não é loura? Como ela...?

— Ela não tinha se ligado que era ela, porque pintava o cabelo.

Então... quando viu uma moça de cabelos escuros, não achou que

fosse...

Como Eduardo e Mônica, o rapaz ainda estudava na Fundação

Santo André. Formou-se um ano depois. Paula já era

psicopedagoga na escola dos pais. O namoro mais o carinho que

os sogros tinham por Leandro deu-lhe o estágio que precisava para

começar a lecionar.

Terminando a faculdade e com trabalho garantido, não deu

outra. Casaria com aquela mulher!

— Foi bonito. Apesar da gente não entender. Mas a

apresentação, tudo que a gente ouviu, foi bem legal — confessa o

pai.

O casal realizou uma cerimônia xamânica. Casaram-se no civil,

onde inclusive o juiz era amigo do pai da noiva (que é advogado,

além de ex-delegado e dono de uma escola). Não cobrou nada.

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Depois alugaram uma chácara em Riacho Grande, convidaram os

amigos mais chegados e menos preconceituosos para a

―verdadeira‖ cerimônia.

No lugar do padre, uma sacerdotisa. A Tânia, dona da Casa de

Bruxas. ―Ao invés da aliança a gente usa uma corda que põe ao

redor do nosso corpo; e temos que sair dela sem desamarrar o nó‖,

explica Leandro. ―Quando um morre ou o casal se separa a gente

queima a corda pra liberar aquele compromisso. De liberar aquele

voto que foi feito‖.

Houve banda medieval de música barroca. O pessoal todo

descalço, conectando-se à Terra; e teve um momento em que todos

vestiram túnica branca.

Amarrada a corda. Casamento feito. Agora é só a manutenção

anual.

— Ele é renovado uma vez por ano.Todo ano você tinha que

afirmar se você quer ou não. O casamento na magia não é até que

a morte os separe. Cada um é livre para seguir o que quer na vida.

Então é até que esteja feliz junto. Até que haja amor.

Tati não pôde comparecer à cerimônia. ―Mas queria muito ter

ido‖, diz num muxoxo.

Casaram-se dia 2 de fevereiro. Dia da Candelária e de

Iemanjá. Escolheram a data por ser um dos dias mais

comemorativos da magia – e ainda era noite de Lua Cheia. Tudo

estava perfeito.

Castelo de cartas

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Assim que casaram. Foram morar juntos, num apartamento em

Santo André, dado pelo sogro. Ele tinha um apartamento em

Peruíbe que não usava há anos. Então vendeu e com o dinheiro

deu de presente à filha. (Apesar do ―presente‖, o imóvel ficou no

nome do pai da noiva.)

Na Casa de Bruxa, além de Paula, Leandro conheceu os hoje

amigos Joel e Mari. Que começaram a frequentar a Casa por

curiosidade. Mari fazia um curso e Joel apenas acompanhava.

Ambos foram testemunhas de Jeová muito tempo e procuravam um

novo caminho.

A aproximação foi tão natural, que Paula e Leandro não

pensaram duas vezes em chamá-los para serem padrinhos de

casamento.

Daí, a amizade só cresceu. Tanto que criaram o grupo Filhos do

Vento, por sentirem falta de um espaço para fazerem os rituais (na

época a Casa de Bruxa havia fechado a maior filial, e vários cursos

saíram de lá; inclusive os de xamanismo). Foram se aperfeiçoando,

estudando mais, ao ponto de outros espaços os chamarem para

darem cursos. Ano entra, ano vai... Cansaram da mesmice. Criaram

o NEAP – Núcleo de Estudos de Atividades Paranormais, para

tentar provar cientificamente os eventos que os próprios sentiam,

estudavam, nos rituais xamânicos. Mostrando que uma coisa não

exclui a outra.

O lado profissional alavanca a todo vapor. Escola, curso xamânico,

investigações paranormais, programas de TV (participaram, além

do Manhã Maior, do Programa do Ratinho e d‘A Liga). Não tinham

do que reclamar.

Mas...

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... E os filhos?

— Raras vezes a gente conversava pacificamente sobre esse

assunto. Nascia sempre um conflito quando falávamos nisso. Só

desse assunto, nenhum outro.

Paula não abria mão de ser mãe. Ter uma família. Leandro

estranhamente não queria.

— Eu não sei... eu não queria. Algo me dizia que ―não‖. Não ia

ser bom. Eu tinha um medo muito grande e eu não sabia o porquê.

A mãe arrisca: ―Uma pessoa me falou que ele pressentia de

alguma maneira com certeza que não ia dar certo.‖ O filho ―não era

bobo‖, e tinha conhecimento científico (professor de biologia) e

intuitivo (―pelo próprio coração dele) de que algo aconteceria. ―Ele

sentia que a gravidez não ia chegar até o final; mas nem

imaginamos que fosse tão grave assim.‖

Com o tempo, as discussões entre os dois começaram a

aumentar. Sempre no assunto filhos. ―E decidi ceder a vontade

dela.‖

A mãe dá mais detalhes:

— Ele a enrolou três anos e meio. Mas chegou uma época que

não teve mais como enrolar. Ela deu o ultimato nele: ou a gente vai

formar uma família ou a gente se separa agora. Não teve para onde

correr.

O período de gravidez foi rodeado por uma energia estranha.

Parecia que, tirando Paula, o povo não estava lá muito animado.

Havia uma preocupação constante. Qualquer coisinha Leandro

pedia para ela ir ao médico. Falava com os pais dela. Marcação

cerrada mesmo. E tudo ia bem...

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Um dia os integrantes do NEAP foram ao Kroom (grupo

ufológico com mais de 20 anos de experiência) aperfeiçoar os

conhecimentos em transcomunicação; que pode ser feita com som,

luzes, e até sem nada – apenas com a força da mente.

Decidiram que naquele dia, fariam da terceira forma. Enquanto

estavam na fase meditativa, sentiram uma presença estranha. No

centro da sala, um homem alto, de barba, com vestes parecidas

com as de um monge. Carregando um livro na mão com letras

indecifráveis.

— Mas ela [a entidade] tinha uma energia muito boa. Veio

avisando, com a voz dentro de nossas mentes, que estávamos em

grande perigo. Que a gente ia ser ajudado. Só que eu não entendi

se queria dizer sobre nós, humanidade, ou nós, os integrantes da

sala. Todos vimos a mesma coisa.

Mas o estranho viria a seguir: depois da entidade negra,

apareceram duas entidades de véus brancos. Uma mais alta e uma

criança. ―E chegou bem perto da minha esposa. Pôs a mão na

cabeça dela e fez sinal de quem a estava abençoando.‖

Vinte dias depois disso, chegaria aquele dia.

Eles voltavam de uma festa das primas da Paula, no interior de

São Paulo, em dezembro. ―Estava muito quente naquela época‖,

lembra o pai de Leandro. Ela não estava se sentindo bem desde lá.

―Tava meio caidinha e tal‖, diz Leandro, mas não pensou que fosse

algo grave: ―a gente chegou até a sair, jantar, tudo. Normal... Até

que no final de semana ela ficou com a pressão muito baixa.‖ E na

segunda-feira, 6 de dezembro, a mãe de Leandro recebe a ligação:

— Mãe, a Paula está no Hospital.

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— O que aconteceu?

— Ela teve aquele negócio de novo!

— Não acredito!!!

Aquele negócio. A materialização do medo inconsciente de

Leandro ganhava forma. Embolia Pulmonar. Não era a primeira vez

de Paula, ela já tinha tido uma aos 21 anos. Ficou cinco anos em

tratamento e as sequelas, mínimas. Estava nova em folha. Os

médicos disseram que ela não podia ficar grávida naquele período.

Não deram restrições depois. Quando conheceu Leandro já tinha

terminado o tratamento, e, quando engravidou, estava com quase

30 anos.

Dona Lúcia ainda parece descrer do que houve:

— Ela se cuidava, ia ao médico toda semana. Tomava as

medicações, fazia exames.

Os pais de Leandro foram correndo para o apartamento dele,

dar-lhe apoio e porque o hospital era próximo de lá. Mas no mesmo

dia o pai da Paula pediu transferência para o Hospital do Coração

(HCor), perto da Paulista.

A situação normalizou-se. No dia seguinte, foi para sala de

cirurgia fazer o cateterismo – e teve uma parada cardíaca. O

coração parou de bater por 20 minutos. Aqueles 1200 segundos

foram uma eternidade. Duas equipes médicas entraram em ação.

Uma fazia a cesárea às pressas para tentar salvar a criança. Afinal,

se a chance de ―nascer‖ aos cinco meses de gestação era perto de

zero; a de continuar no útero da mãe sem bombeamento de sangue

por 20 minutos eram nulas.

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E a outra equipe, ao mesmo tempo, abria o peito da Paula.

Fariam de tudo para ela voltar. Abriram o osso esterno com uma

serra para ter acesso ao coração e fizeram massagem

manualmente para ressuscitá-la. Ao mesmo tempo, levaram a

criança às pressas ao Hospital Santa Joana. Mas ela morreu horas

depois. Era uma menina. Faleceu no dia 8 de dezembro.

A massagem funcionou! Porém as sequelas foram enormes. O

córtex cerebral ficou danificado pela falta de oxigênio (após cinco

minutos os neurônios morrem rapidamente). Paula ficou na UTI em

coma. ―Nos primeiros dias ela estava até com uma cor boa‖, diz o

pai, ―mas depois foi ficando branca, clareando, clareando. Aí não

teve mais jeito‖.

Um médico da equipe diria para a família depois: ―podíamos

fazer o exame que fosse; não havia como detectar um mal desses.

É uma coisa que acontece do nada.‖

Tudo levou dez dias. No próprio dia 15 o médico veio à família,

no setor de espera do hospital, e avisou: ―Olha gente, infelizmente

aquela luzinha no fim do túnel... Não existe mais‖. A mãe de Paula

pediu para ficar com os aparelhos ligados só mais um dia. Talvez

esperando um milagre.

Paula morreu no dia 16 de dezembro de 2010.

Em meio a todo esse furacão de acontecimentos, Tatiana nem

ficou sabendo. Não conseguiram se falar nesse período. Quando

um ligava, o outro não podia atender. Tati trabalhava na TIM e não

ficava com o celular perto. Via as mensagens depois. Depois

mandava mensagem dizendo que ―podia falar‖, mas o Leandro não

respondia a tempo. Aí era ela quem não atendia. Depois de uns

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dias desencontrados, conseguiram marcar um encontro. ―Ele

precisava conversar comigo pessoalmente‖, lembra.

Encontraram-se no Franz Café de Santo André. Estranhou

quando só o amigo apareceu.

— Vamos tomar alguma coisa? — disse Leandro.

— E ela? — Tati perguntou sem pestanejar...

— É sobre ela que eu quero falar...

— Tá... bom... — Tati percebeu que não estava nada bom. Se

soubesse antes, não teria trazido aquela sacolinha colorida para o

encontro — Eu tinha comprado o sapatinho para o bebê deles.

Leandro reflete sobre o período, e nota sutilezas, de que ela ia

embora:

— Depois que ela engravidou, de uns meses, eu notei que ela

estava meio pensativa, meio ―lá‖. Um pouco típico das pessoas que

vão morrer daqui um tempo. Elas começam a ficar mais fechadas.

Meditativas.

Depois de tudo voltou para a casa dos pais. O sogro quis que

ele ficasse no apartamento, mas achou melhor não. Ficar sozinho

num lugar que era deles. Onde em breve seriam três... Não...

Definitivamente...

Mesmo com todo conhecimento que tinha (a bruxaria, o

xamanismo, ufologia), precisava de uma resposta de alguém ou

alguma coisa. Foi até uma amiga deles, de um centro espírita. ―Por

que uma pessoa tão nova, tão cheia de vida?‖, perguntou. A

resposta veio: ―o tempo dela era esse. Agora a missão dela é em

outro plano‖.

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A lista de elogios a ela é enorme: icônica, de opiniões fortes,

emocional demais, chorosa. ―Uma criança, praticamente.‖ E

continua: líder, verdadeira, muito amorosa e humana, amava muito

crianças... ―Era uma pessoa bem rara. Você vê que ela não teria

muito tempo na Terra, pois era bem diferente do resto.‖

O que virá?

Depois de quatro anos, Paula ainda se mantém presente. ―Lá

no Centro Espírita ela chegou a mandar mensagem. Que tava tudo

bem‖. Diz o ex-marido, mas que Paula ainda estava preocupada.

―Preocupada mais com os pais dela. E que era para eu não ficar

solitário demais, para eu viver...‖ Ele também chegou a vê-la em

sonhos.

— Eu tava andando em um cemitério. Aí abriu um portal e ela

aparecia. Estava super bem. Feliz. Me abraçava, dizia como

estavam as coisas por lá.

De vez em quando ele, Joel e Mari ainda sonham com ela –

geralmente os três juntos. ―Quando é algo importante ela aparece,

manda algum tipo de mensagem.‖

Trabalha no colégio dos sogros (O Bosque) até hoje. O grupo

NEAP está meio parado, mas pretendem voltar com tudo em 2015.

Querem ficar mais na parte ufológica do que na paranormalidade.

―Porque as coisas estão ficando tão escancaradas, na internet, na

Deep Web, que acho que nem precisamos provar nada mais.‖ Ele já

tem um lugar para retomar os trabalhos, Peruíbe, a duas horas de

São Paulo. ―Realmente lá está tendo muitas observações‖, afirma,

com um brilho entusiasmado nos olhos. ―Coisa muito boa mesmo.‖

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O grupo Filhos do Vento funciona em Santo André

quinzenalmente, às quintas-feiras. E sexta-feira, semanalmente, na

Casa de Bruxas. Esse mês formou em Juquitiba a primeira turma do

curso Xamanismo e Pajelança que há anos não davam. Um curso

de duração de quatro meses. A cerimônia de formatura teve tabaco,

cachimbo, música de flauta e tambor, chocalho, rapé, chá de

ayahuasca, colares indígenas...

Ele tem consciência de que o momento é de renovação. ―Acho

que é um momento de reconstrução, sabe. De caminhar, de novos

projetos. Várias coisas aconteceram nesses últimos quatro anos. O

momento é de centrar, de focar.‖

Pretende escrever dois livros: um de contos, onde pretende

criar personagens de várias tribos e épocas diferentes, retratando

nas histórias vários momentos do xamanismo. E outro em que é um

livro mais técnico, sobre as plantas medicinais e espirituais da

América do Sul. Da cura xamânica através das ervas. ―Que é a

parte da botânica, da biologia, que é a minha área.‖

Os pais sabem que ele está encaminhado. Trabalhando, com

os projetos. A única preocupação que ronda os dois é sobre o

coração do filho: ―A gente só torce para que ele encontre uma

pessoa que pense mais ou menos que nem ele. Que dê certo‖,

torce Edilson.

―Tudo tem seu tempo certo. Não pode se precipitar‖, adverte a

mãe, Lúcia. ―Ele já teve outros relacionamentos mas... Não deu

certo – não tinha como dar certo mesmo. Melhor sozinho do que

mal acompanhado‖

Tati dá praticamente o mesmo conselho, mas de uma forma

mais direta:

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— Eu falei para ele que estava muito carente. Muito

desesperadinho. Se sentindo muito sozinho, eu acho. Falta de um

relacionamento como o que tinha com a Paula. Então ele quer se

apegar a alguma coisa, e nisso ele pega alguns trastes...

Mas chega de conselhos e assuntos tristes. Já passa das 18h,

segundo o cuco do relógio da sala dele.

Ele está usando calça jeans e camiseta preta. O sapatênis está

acomodado ao pé da escada, esperando para ser calçado. Para um

minutinho nossa conversa e digita freneticamente mensagens no

celular. Seu rosto se ilumina novamente – como Paula queria que

acontecesse. Tem planos para essa noite:

— É sabadão e já fiquei demais em casa! — diz num tom de

autoconvencimento, e sorri com o resultado: — Estou solteiro, sou

novo. Preciso aproveitar a vida ainda, né?...