o império revisitado

Upload: wlamir-silva

Post on 06-Oct-2015

19 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Instabilidade ministerial no Brasil Império (1840-1889)

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA POLTICA

    O IMPRIO REVISITADO

    Instabilidade Ministerial, Cmara dos

    Deputados e Poder Moderador (1840-1889)

    Srgio Eduardo Ferraz

    Tese Apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Cincia Poltica do Departamento

    de Cincia Poltica da Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas da Universidade de

    So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em

    Cincia Poltica

    Orientador. Prof. Dr. Paolo Ricci

    So Paulo

    2012

  • 2

    memria de Bencio Ferraz e de Joo Boiadeiro, que

    conheciam as histrias daquele tempo

    e para Manuela e Pedrinho, que, provavelmente, vo se

    interessar por outras histrias

  • 3

    AGRADECIMENTOS

    Em certo sentido, sabido, escrever um trabalho de finalizao de doutorado

    tarefa solitria. Mas, de modo mais amplo, essa daquelas tarefas que fazemos, na

    verdade, na companhia de muitas pessoas, ainda que boa parte delas nem desconfie

    dessa cumplicidade. De fato, da escolha de um tema de pesquisa at o fechamento do

    texto to grande o nmero de influncias, apoios e inspiraes que parece vo tentar

    enumer-las. Restrinjo-me, assim, aqui a mencionar apenas aquelas pessoas mais

    prximas que, de algum modo, participaram dessa empreitada e a quem sou

    sinceramente agradecido: Joo, Tereza, Carlinhos, ngela, Lula, Pedrinho, Manu, os

    amigos de So Paulo e de Pernambuco, a turma do CEBB (Centro de Estudos Budistas

    Bodisatva) e os meus professores da Universidade de So Paulo (USP). Entre estes

    ltimos, destaco o professor Paolo Ricci, exemplo de orientador atento, solidrio e

    rigoroso, a quem devo muito pela interlocuo frtil e amigvel que mantivemos, e o

    professor Fernando Limongi, o qual, alm de responsvel pela disciplina que me

    animou a enveredar pelo assunto desta tese, foi, durante todo o percurso da elaborao

    do trabalho, um interlocutor generoso e sempre pronto a oferecer crticas e sugestes

    extremamente teis. Beneficiei-me, e muito, dos vrios cursos que fiz no Departamento

    de Cincia Poltica (DCP) nesses quatro anos de doutorado, pelo que sou grato aos

    professores Adrian Lavalle, Ccero Arajo, Andr Singer, lvaro de Vita, Matthew

    Taylor, Maria Hermnia Tavares de Almeida e Eunice Ostrensky. Na banca de

    qualificao, aprendi muito com as observaes e crticas da professora Mirian

    Dolhnikoff, a quem tambm agradeo. Dois outros professores do nosso Departamento,

    que no esto mais conosco, foram referncias constantes para mim enquanto imaginava

    e redigia este trabalho. Por vrias vezes, indaguei aos meus botes o que eles achariam

    ou diriam de determinada opo realizada na pesquisa ou mesmo o que sugeririam

    quanto a esse ou aquele tpico. Noutras ocasies, e foram vrias, quase senti

    concretamente o prazer que seria conversar com eles sobre os assuntos que me

    envolveram nesses ltimos anos. Refiro-me a Gildo Maral Brando e Eduardo

    Kugelmas, exemplos de intelectuais e seres humanos. memria de ambos que

    dedico tambm esse trabalho.

  • 4

    RESUMO

    Este trabalho tem por propsito central investigar as razes da

    instabilidade ministerial no Segundo Reinado (1840-1889), bem como o

    papel desempenhado, na produo desse fenmeno, pelas relaes entre o

    governo e a Cmara dos Deputados. A partir do exame de todos os

    episdios de substituio de gabinetes no perodo histrico mencionado,

    elabora-se uma classificao das razes de retirada dos ministrios, com

    foco na eventual atuao poltica da Coroa e da Cmara dos Deputados

    nesses eventos.

    Ao contrrio do que supe a literatura convencional, que salienta o

    papel autnomo da Coroa na substituio dos governos, o trabalho constata

    que conflitos, efetivos ou potenciais, entre gabinetes e o Poder Legislativo,

    em especial a Cmara, foram os principais fatores associados rotatividade

    governamental no Segundo Reinado. Explora-se, a partir da, a hiptese de

    que a introduo de regras eleitorais distritalizadas, no sistema poltico

    da poca, a partir da dcada de 1850, em substituio ao regime prvio de

    listas, ao alterar os incentivos a que estavam submetidos os principais

    agentes polticos imperiais, desempenhou um papel central na gerao

    daqueles conflitos, concorrendo, assim, para explicar o fenmeno da

    instabilidade governamental inicialmente referido.

    Palavras-chave: instabilidade ministerial; Imprio; Segundo Reinado;

    relaes executivo-legislativo; regras eleitorais.

    E-mail: [email protected]

  • 5

    ABSTRACT

    The main purpose of this work is to investigate the reasons of

    the ministerial instability in the Second Empire (1840-1889) as well as the

    role played in the production of this phenomenon by the relations between

    the Government and the House of Representatives. From the studies of all

    episodes of cabinet replacements during the historical period mentioned, a

    classification of the reasons that motivated its withdrawals were elaborated,

    focusing on the eventual political action of the Crown and the House of

    Representatives in these events.

    To the contrary of what is believed by conventional literature, which

    highlights the independent role of the Crown in the substitution of the

    governments, this text notices that real or potential conflicts between the

    cabinets and the Legislative Power, in special the House, were the

    main factors associated with government turnover during the Second

    Empire. It explores, from there, the hypothesis that the introduction of

    district electoral rules in the political system of that time, starting from

    the 1850s, in substitution of the former regime of slates (chapas),

    changing the incentives which the main imperial political agents were

    submitted, played a leading role in those conflicts, contributing thus to

    explain the instability mentioned before.

    Key words: ministerial instability ; Empire ; Second Reign; execute-

    legislative relations ; electoral rules

    E-mail: [email protected]

  • 6

    SUMRIO

    Captulo 1. Introduo Pesquisa: Eixos do Trabalho, Hipteses e Principais

    Concluses ...............................................................................................................12

    1.1 O Primeiro Eixo: A Instabilidade Ministerial.................................................12

    1.2 O Segundo Eixo: As Relaes entre os Gabinetes e a Cmara dos Deputados.14

    1.3 Plano de Exposio do Trabalho....................................................................17

    Captulo 2. Classificao das Razes de Retirada dos Gabinetes do Imprio e o

    Contexto Poltico-Institucional do Segundo Reinado.............................................21

    2.1 Avaliaes Gerais do Perodo........................................................................22

    2.2 De 1822 a 1850: Sntese das Perspectivas Dominantes sobre a Evoluo do

    Estado Brasileiro em suas Trs Primeiras Dcadas....................................................27

    2.3 As Instituies Polticas do Segundo Reinado................................................36

    2.4 Delimitando o Primeiro Eixo do Trabalho: o Estudo das Substituies

    Ministeriais como Via para Ampliar a Compreenso da Dinmica Poltica Imperial..41

    2.5 Estudo Sistemtico das Substituies de Gabinetes: Classificao e

    Quantificao das Causas de Retirada Ministerial entre 1840 e 1889..........................49

    2.5.1 Retiradas por Interferncia Exclusiva da Cmara dos Deputados (Categoria

    3).................................................................................................................................56

    2.5.2 Retiradas por Interferncia Exclusiva da Coroa (Categoria 2)......................61

    2.5.3 Retiradas por Interferncia da Coroa e da Cmara (Categoria 1)................65

    2.5.4 Retiradas em que No se Registram Interferncias da Coroa nem da Cmara

    (Categoria 4)...............................................................................................................65

    2.5.5 Vinculao Partidria e Retiradas por Presso Parlamentar, Isolada ou em

    Conjuno com o Trono (Categorias 3 e 1)................................................................66

    2.5.6 Alternncias Partidrias e Dissolues da Cmara dos Deputados..............67

    2.6 Breve Recapitulao dos Resultados...............................................................75

  • 7

    Captulo 3. As Razes de Retirada dos Gabinetes do Imprio no Segundo

    Reinado (1840-1889)..................................................................................................77

    3.1 Anlise dos Episdios de Substituio Ministerial (1840-1889).......................78

    3.1.1 Os Primeiros Tempos (1840-1848): Palacianos, Regressistas e Liberais

    (Do 1 ao 8 Gabinete)................................................................................................79

    3.1.2 O Retorno Saquarema (1848-1853): Do 9 ao 11 Gabinete........................108

    3.1.3 A Conciliao como Incorporao e Ruptura (1853-1857): 12 e 13

    Gabinetes...................................................................................................................114

    3.1.4 A Ps-Conciliao (1857-1861): Olinda-Sousa Franco (14 Gabinete),

    Abaet-Torres-Homem (15 Gabinete) e ngelo Ferraz (16 Gabinete).....................118

    3.1.5 O Interregno Caxias e a Liga Progressista (1861-1868): Do 17 ao 23

    Gabinete...................................................................................................................126

    3.1.6 Poltica, Guerra e a Agenda de Reformas Sociais: o Gabinete Itabora e seus

    Limites (24 Gabinete, 1868-1870).............................................................................150

    3.1.7 Os Conservadores de So Cristovo: Pimenta Bueno, Rio Branco e Caxias

    (1870-1878, do 25 ao 27 Gabinete)........................................................................157

    3.1.8 O Segundo Quinqunio Liberal: do 28 ao 34 Gabinete (1878-1885)...171

    3.1.9 Os ltimos Gabinetes Conservadores do Imprio: Cotegipe e Joo Alfredo

    (35 e 36 Gabinetes, 1885-1889)..............................................................................198

    3.1.10 O Gabinete Ouro Preto e o Golpe de 15 de Novembro...............................204

    Captulo 4. Padres Explicativos da Instabilidade Ministerial no Imprio: a

    Cmara dos Deputados, a Legislao Eleitoral e a Lgica da Competio Poltica

    ...................................................................................................................................212

    4.1 Vises Gerais da Cmara dos Deputados no Segundo Reinado....................214

    4.2 A Cmara e os Interesses Provinciais............................................................216

    4.3 A Cmara e o Oramento..............................................................................227

    4.4 A Legislao Eleitoral e as Eleies..............................................................229

    4.4.1 Sumrio da Legislao Eleitoral do Imprio..............................................229

    4.4.2 As Eleies: Avaliaes Gerais...................................................................232

  • 8

    4.4.3 Consequncias Polticas das Regras Eleitorais do Imprio: Eleies

    Primrias e Secundrias. A Luta para Fazer o Eleitorado. O Deputado................235

    4.4.4 As Chapas Oficiais nas Eleies Pr-Lei dos Crculos.................................240

    4.5 A Transio das Listas para os Crculos: Incentivos, Lgica da Competio

    Poltica e Repercusses Gerais..................................................................................250

    4.6 As Legislaturas Ps-Crculos: Caractersticas Gerais e Relaes com os

    Gabinetes...................................................................................................................258

    Captulo 5. Padres Explicativos da Instabilidade Ministerial no Imprio:

    Legislao Eleitoral, Tempo Mdio de Mandato, Retiradas por Presso

    Parlamentar e o Estudo Comparado de Duas Legislaturas (1853-1856/1857-

    1860)...........................................................................................................................268

    5.1 Legislao Eleitoral e Tempo Mdio de Permanncia no Poder de Gabinetes.269

    5.2 Associao entre Regras Eleitorais Distritais e Razes de Retirada de

    Gabinetes...................................................................................................................274

    5.3 A Tramitao do Oramento: a Etapa da Discusso dos Artigos Aditivos...277

    5.4 A Tramitao dos Artigos Aditivos ao Oramento entre 1853 e 1856 (9

    Legislatura) e entre 1857 e 1860 (10 Legislatura)......................................................286

    5.4.1 1853...........................................................................................................286

    5.4.2 1854............................................................................................................290

    5.4.3 1855............................................................................................................293

    5.4.4 1856............................................................................................................297

    5.4.5 1857............................................................................................................301

    5.4.6 1858............................................................................................................315

    5.4.7 1859............................................................................................................322

    5.4.8 1860............................................................................................................325

    5.4.9 Breve Sntese Comparativa da Tramitao Oramentria na 9 e 10

    Legislaturas................................................................................................................332

    Captulo 6. A Ttulo de Concluses Finais........................................................336

    Anexo..................................................................................................................340

    Fontes..................................................................................................................345

  • 9

    Bibliografia..........................................................................................................346

    RELAO DE QUADROS

    1.1, 2.1 e 3.1 Classificao 2x2 das Razes de Substituio Ministerial em Termos

    de Atuao da Coroa e da Cmara dos Deputados: Estrutura de Possibilidades

    2.2 Gabinetes do Imprio do Segundo Reinado e Suas Razes de Retirada

    1840/1889

    2.3 Distribuio dos Gabinetes por Razes de Retirada: Nmeros Totais e

    Percentuais

    2.4 Gabinetes que se Retiram por Interferncia Exclusiva da Cmara (Categoria 3)

    Modalidades de Conflito

    2.5 Gabinetes que se Retiram por Interferncia Exclusiva da Cmara (Categoria 3)

    Perodo, Vinculao Partidria e Composio da Legislatura Correlata

    2.6 Proporo de Gabinetes de Cada Partido ou Agrupamento que se Retiram por

    Conflito, Efetivo ou Antecipado, com o Legislativo (Categoria 3)

    2.7 Gabinetes que se Retiram por Interferncia Exclusiva da Coroa (Categoria 2)

    Modalidades de Atuao do Trono

    2.8 Gabinetes que se Retiram por Interferncia Exclusiva da Coroa (Categoria 2)

    Vinculao Partidria e Perodo do Mandato

    2.9 Gabinetes que se Retiram por Interferncia da Coroa e da Cmara (Categoria 1)

    Vinculao Partidria e Perodo do Mandato

    2.10 Gabinetes que se Retiram sem Interferncia da Coroa nem da Cmara

    (Categoria 4) - Vinculao Partidria e Perodo do Mandato

    2.11 Proporo de Gabinetes de Cada Partido ou Agrupamento que se Retiram por

    Conflito, Efetivo ou Antecipado, com o Legislativo Ampliado (Categorias 1 e 3)

    2.12 Alternncias Partidrias no Segundo Reinado (1840/1889); Informao sobre

    Subsequente Dissoluo da Cmara

    2.13 Legislaturas da Cmara dos Deputados, Dissolues e suas Razes

    1840/1889

    3.2 Classificao 2x2 das Razes de Substituio Ministerial em Termos de Atuao

    da Coroa e da Cmara dos Deputados: Resultados.

    3.3 Classificao 2x2 das Razes de Substituio Ministerial em Termos de Atuao

    da Coroa e da Cmara dos Deputados: Resultados em Termos Relativos e Percentuais

  • 10

    5.1 Tempo de Permanncia Mdia no Poder dos Gabinetes e Regra Eleitoral

    1840/1889

    5.2 Tempo de Permanncia Mdia no Poder dos Gabinetes e Regra Eleitoral

    (Dicotomizada) 1840/1889

    5.3 Tempo de Permanncia Mdia no Poder dos Gabinetes e Regra Eleitoral

    (Tricotomizada ou em trs Categorias) 1840/1889

    5.4 Tempo de Permanncia Mdia no Poder dos Gabinetes e Regra Eleitoral (Com

    Ajuste para a 2 Lei dos Crculos, excluindo os Gabinetes Rio Branco e Caxias, 26 e

    27 Gabinetes) 1840/1889

    5.5 Tempo de Permanncia Mdia no Poder dos Gabinetes e Regra Eleitoral

    (Dicotomizada, incorporando o ajuste do Quadro 5.4) 1840/1889

    5.6 Razes de Retirada dos Gabinetes e Regra Eleitoral

    5.7 Resumo do Quadro 5.6 Dicotomizando Sistemas de Listas e Sistemas

    Distritais

    5.8 Artigos Aditivos Apresentados em 1853: Ordem, Contedo, Proponente e

    Domnio

    5.9 Artigos Aditivos Apresentados em 1853: Taxas de Aprovao por Domnio e

    ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)

    5.10 Artigos Aditivos Apresentados em 1854: Ordem, Contedo, Proponente e

    Domnio

    5.11 Artigos Aditivos Apresentados em 1854: Taxas de Aprovao por Domnio e

    ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)

    5.12 Artigos Aditivos Apresentados em 1855: Ordem, Contedo, Proponente e

    Domnio

    5.13 Artigos Aditivos Apresentados em 1855: Taxas de Aprovao por Domnio e

    ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)

    5.14 Artigos Aditivos Apresentados em 1856: Ordem, Contedo, Proponente e

    Domnio

    5.15 Artigos Aditivos Apresentados em 1856: Taxas de Aprovao por Domnio e

    ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)

    5.16 Artigos Aditivos Apresentados em 1857: Ordem, Contedo, Proponente e

    Domnio

    5.17 Artigos Aditivos Apresentados em 1857: Taxas de Aprovao por Domnio e

    ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)

  • 11

    5.18 Artigos Aditivos Apresentados em 1857: Taxas de Aprovao por Domnio e

    ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG) aps a 3 Discusso

    5.19 Taxas de Aprovao em % (Emendas Aprovadas/Total de Emendas) e ndice

    de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG) em Cinco Deliberaes da Cmara na

    Tramitao Oramentria em 1858

    5.20 Artigos Aditivos Apresentados em 1860: Ordem, Contedo, Proponente e

    Domnio

    5.21 Artigos Aditivos Apresentados em 1860: Taxas de Aprovao por Domnio e

    ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG)

    5.22 ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG) na 9 Legislatura

    (1853-1856), por Sesses e Mdia Geral

    5.23 ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG) na 10 Legislatura

    (1857-1860), por Sesses e Mdia Geral

    5.24 ndice Mdio de Desempenho Legislativo do Gabinete por Legislatura

  • 12

    Captulo 1. Introduo Pesquisa: Eixos do Trabalho, Hipteses e

    Principais Concluses

    O presente trabalho trata da poltica imperial do Segundo Reinado (1840-1889),

    buscando contribuir para a melhor compreenso de seu funcionamento, em termos de

    sua dinmica institucional.

    Neste captulo inicial, apresenta-se o perfil geral da investigao empreendida,

    destacando, primordialmente, seus objetos, hipteses e principais concluses

    alcanadas.

    Os problemas especficos ou objetos sobre os quais o trabalho se concentra, e para

    os quais prope e testa hipteses explicativas, podem ser sintetizados em termos de dois

    eixos articulados, os quais versam, respectivamente, sobre a instabilidade

    governamental no Segundo Reinado e a natureza das relaes entre o gabinete e a

    Cmara dos Deputados nesse perodo. As duas prximas sees cuidam,

    sequencialmente, de cada um desses eixos. A ltima seo deste captulo apresenta a

    estrutura dos captulos atravs dos quais se organiza a apresentao da tese.

    1.1 O Primeiro Eixo: A Instabilidade Ministerial

    O primeiro eixo toma por objeto central de interesse a questo dos fatores

    associados instabilidade ministerial no Segundo Reinado. Nesse intervalo histrico

    (1840-1889), de cerca de cinquenta anos, revezaram-se, frente do Executivo, 37

    gabinetes, constatando-se uma permanncia mdia no poder de pouco mais de um ano

    para cada uma das formaes governamentais. No propsito de entender essa

    considervel rotatividade de governos, estudou-se cada um dos casos de afastamento,

    indagando a pesquisa, essencialmente, a respeito das razes de retirada de todas as

    composies ministeriais formadas entre 1840 e 1889.

    Essa investigao dos motivos subjacentes demisso de cada um dos gabinetes do

    perodo permitiu a classificao dessas razes em termos de quatro categorias-padro,

    apresentadas na matriz de possibilidades 2x2 sintetizada no Quadro 1.1 abaixo. O

  • 13

    critrio classificatrio que articula as categorias apresentadas toma por base a presena

    ou ausncia de interveno da Coroa e/ou da Cmara dos Deputados na substituio de

    ministrio.

    Quadro 1.1 Classificao 2x2 das Razes de Substituio Ministerial em Termos de Atuao da Coroa e da Cmara dos Deputados: Estrutura de Possibilidades.

    As principais concluses a que chegou a pesquisa divergem, em termos

    substantivos, das vises e avaliaes convencionais sobre a dinmica poltica imperial

    entre 1840 e 1889.

    Desse modo, em contraste com as perspectivas dominantes, que enfatizam o papel

    da Coroa no controle do processo poltico e na conformao da instabilidade

    governamental do Segundo Reinado, os resultados alcanados pela investigao

    evidenciam que conflitos, efetivos ou potenciais, entre o Executivo e o Legislativo, em

    especial a Cmara dos Deputados, foram o motivo mais frequente associado queda

    de gabinetes no perodo (categoria 3, quadro 1.1), respondendo por mais da metade

    dos episdios de retirada examinados. Dentre o conjunto das substituies ministeriais,

    mesmo os casos envolvendo alternncia partidria - quando, com especial nfase, os

    estudiosos salientam o papel do juzo independente da Coroa - revelam, em sua maior

    parte, na gnese das razes atreladas demisso dessas gestes, a existncia de

    conflitos prvios entre gabinetes e Legislativo.

    As investigaes realizadas sugerem tambm, em maior acordo com as fontes e com

    a literatura acadmica, que os gabinetes do Segundo Reinado, para permanecer no

    poder, sempre dependeram da dupla delegao da Cmara e da Coroa. Nesse sentido,

    mais de 85% das experincias de governo do perodo terminaram por conta da perda de

    sustentao junto a uma e/ou outra dessas duas ncoras do sistema poltico. O que

    permanecia, entretanto, obscurecido nessa seara, at aqui, era a centralidade do papel

    especfico da Cmara nessa matria, dimenso ressaltada por essa pesquisa.

    Interferncia da Coroa, Interferncia da Cmara

    (Categoria 1)

    Interferncia da Coroa, No Interferncia da Cmara

    (Categoria 2)

    No Interferncia da Coroa, Interferncia da

    Cmara (Categoria 3)

    No Interferncia da Coroa, No Interferncia da

    Cmara (Categoria 4)

  • 14

    Esse padro de recorrente conflito entre a Cmara e os gabinetes fornece a matria

    do segundo eixo de preocupao do trabalho.

    1.2 O Segundo Eixo: As Relaes entre os Gabinetes e a Cmara dos Deputados

    O segundo eixo do presente trabalho investiga, por conseguinte, o mais frequente

    dos padres associados instabilidade ministerial, a saber, as relaes, de reiterada

    tenso, entre os gabinetes e a Cmara de Deputados. Trata-se, aqui, de indagar acerca

    das razes explicativas desse recorrente confronto.

    A estratgia de pesquisa utilizada, nesse segundo eixo, intenta aprofundar o exame

    das relaes entre Executivo e Cmara no Imprio a partir de uma perspectiva neo-

    institucionalista - comum em muitas abordagens contemporneas da Cincia Poltica,

    mas ainda pouco explorada no que tange ao estudo da poltica imperial no Brasil.

    Parte-se, nesse sentido, da noo, presente na literatura pertinente, de que as

    relaes entre Executivo e Legislativo ou, de um modo mais geral, o prprio

    desempenho dos governos, em termos de sua estabilidade e capacidade de efetivar suas

    polticas e programas, dependem de trs variveis-chave: o formato do sistema de

    governo, a legislao eleitoral e a forma de organizao interna dos trabalhos

    legislativos 1.

    luz da perspectiva neo-institucionalista mencionada acima, considera-se que, no

    sistema poltico vigente no Segundo Reinado (1840-1889), as trs variveis-chave para

    o desempenho do governo atuaram como vetores centrfugos, contribuindo para a

    gerao da instabilidade verificada. De uma forma sumria, isso se dava porque o

    sistema de governo implicava dependncia dupla do gabinete, frente Coroa e s

    maiorias legislativas. Por sua vez, as regras do trabalho legislativo exigiam do gabinete,

    para a aprovao de suas polticas mais centrais, a reiterada arregimentao de

    1 Da imensa literatura neo-institucionalista, podem ser mencionados trabalhos clssicos como Mayhew

    (1974), Fiorina (1989), Cain, Ferejohn e Fiorina (1987), Krehbiel (1991), Cox e McCubbins (1993) e

    Shugart e Carey (1992). Para uma sinttica discusso do institucionalismo enquanto mtodo, ver

    Diermeier e Krehbiel (2003). Exposies crticas das principais contribuies neo-institucionalistas aos

    estudos legislativos e ao exame das performances dos regimes democrticos, acompanhadas por propostas

    que buscam inovar essa abordagem, podem ser encontradas em Limongi (2002; 2003).

  • 15

    maiorias, sem que estivessem disponveis muitos atalhos centralizadores 2; e,

    finalmente, por fora de que, dos 49 anos estudados, em 28 o sistema eleitoral obedeceu

    a regras distritais (Primeira e Segunda Lei dos Crculos e Lei Saraiva), contra

    apenas 21 em que se regeu pelo sistema de listas (Decreto de 1824, Instrues de 1842,

    Lei de 1846 e Lei do Tero) 3.

    Das trs variveis assinaladas, tanto o sistema de governo como a organizao

    interna dos trabalhos legislativos da Cmara foram, entre 1840 e 1889, grosso modo,

    invariantes 4, tendo-se alterado, por outro lado, com bastante freqncia, as regras

    eleitorais que presidiam escolha dos deputados, as quais transitaram, essencialmente,

    de um sistema de listas, vigente entre 1840 e 1856, para um regime distritalizado,

    adotado desde 1856 at o final da monarquia, salvo o breve perodo (1876-1881) em

    que vigorou a chamada Lei do Tero.

    A hiptese central deste segundo eixo do trabalho que essa transio das listas

    para o distrito fornece a chave para a compreenso da natureza das relaes entre

    os gabinetes e a Cmara dos Deputados no Segundo Reinado, estando na raiz do

    incremento do conflito entre Executivo e Legislativo, o principal dos fatores associados,

    como se viu acima, instabilidade governamental do perodo 5.

    2 Essa forma descentralizada do funcionamento interno da Cmara ser demonstrada, de modo mais

    detalhado, no captulo 5 do presente trabalho, quando do exame e da discusso especfica sobre a

    tramitao do oramento no Imprio.

    3 O Segundo Reinado foi regido, sucessivamente, por sete diferentes legislaes eleitorais. Em que pese

    essa variedade, pode-se, para os fins desta pesquisa, como ser explicado no texto, simplesmente

    dicotomiz-las em termos de sistemas de listas provinciais e sistemas distritalizados.

    4 A Constituio do Imprio, de 1824, objeto de exame especfico no captulo 2 do texto, s sofreu uma

    emenda constitucional, na dcada de 1830 (Ato Adicional), e as regras condicionantes do funcionamento

    da Cmara dos Deputados cristalizadas nos seus Regimentos Internos, objeto de ateno do captulo 5 desta tese permaneceram, com poucas alteraes, generosas quanto distribuio de direitos parlamentares durante todo o Segundo Reinado.

    5 Levando em considerao que as recorrentes reformas eleitorais do Segundo Reinado tinham, entre seus

    propsitos centrais, a abertura de espao parlamentar para as minorias, isto , outras foras polticas que

    no aquelas atreladas diretamente ao governo (Carvalho, 2006: 397-8), possvel argumentar que, em

    ltima anlise, parte da instabilidade dos gabinetes no Imprio foi, em certa medida, um custo,

    provavelmente no antecipado, da deciso, tomada pela Coroa e pelo marqus de Paran nos anos 1850, e

    jamais revertida por completo, de incorporar ao processo poltico os liberais, farroupilhas e praieiros, bem

    como outros dissidentes, derrotados militarmente em 1842, 1845 e 1849, respectivamente, pelas foras do

    governo central sediado no Rio de Janeiro.

  • 16

    Especificamente, sustenta-se que a troca das listas pelos distritos concorreu para

    desmontar uma das principais ncoras centrpetas do sistema poltico, com amplas

    repercusses na poltica imperial at aqui no devidamente exploradas pela literatura

    especializada no perodo.

    De um modo mais geral, argumenta-se, nessa parte da tese, que a mudana nas

    regras eleitorais afetou a lgica da competio poltica e alterou as estruturas de

    incentivos com as quais se defrontavam os principais agentes polticos imperiais, com

    consequncias relevantes para o funcionamento interno da Cmara dos Deputados e

    suas relaes com o Executivo e, em ltima anlise, para o prprio fenmeno da

    instabilidade governamental no perodo examinado pela pesquisa.

    Nessa linha, mostra-se, no presente trabalho, que a introduo das regras distritais

    propiciou uma maior autonomia s bases do sistema (eleitorado de 2 grau e chefias

    locais), permitindo a eleio de representantes menos dependentes em face das elites

    provinciais e nacionais, isto , frente s direes partidrias, o que dificultou, em um

    contexto de processo decisrio legislativo relativamente descentralizado, o controle da

    Cmara pelos gabinetes, intensificou as relaes conflituosas entre os poderes

    Executivo e Legislativo, e conduziu a impasses que, frequentemente, redundaram na

    retiradas de gabinetes por presso parlamentar.

    Em resumo, a introduo das regras distritais, e sua prevalncia temporal no

    perodo, so, do ponto de vista deste trabalho, fatores cruciais para a compreenso do

    conflito entre a Cmara e os ministrios e, por extenso, para o prprio entendimento

    da instabilidade governamental entre 1840 e 1889.

    Vrias evidncias, diretas e indiretas, so arroladas para sustentar o argumento

    apresentado nesse segundo eixo da pesquisa, destacando-se:

    - a forte convergncia das fontes e da literatura especializada em enfatizar, na linha

    aqui sugerida, as consequncias da mudana de regime eleitoral, sem conect-las, no

    entanto, ao fenmeno geral da instabilidade governamental do Segundo Reinado;

    - o menor mandato mdio dos gabinetes que governaram frente a legislaturas

    distritalizadas quando comparado ao tempo de exerccio dos ministrios que se

    relacionaram com Cmaras escolhidas mediante o sistema de listas;

  • 17

    - a associao entre a queda de gabinetes por presso do Legislativo 6 e a vigncia

    de regras eleitorais distritalizadas;

    - A diferena substantiva das relaes entre gabinetes e Cmara na 9 e 10

    legislaturas, a primeira eleita sob a gide das listas e a segunda sob a regra dos

    crculos (distritos), verificando-se enfraquecimento notvel, na passagem de uma

    para outra legislatura, quanto capacidade do Executivo de fazer aprovar sua agenda

    7.

    1.3 Plano de Exposio do Trabalho

    Alm deste primeiro captulo, onde se apresenta uma viso geral da tese, o trabalho

    est estruturado em mais cinco partes. Nesse sentido, os captulos 2 e 3 exploram o

    primeiro eixo da pesquisa o problema da instabilidade governamental no Segundo

    Reinado -, cabendo aos captulos 4 e 5 desdobrar o segundo eixo investigativo,

    relacionado aos efeitos da introduo das regras distritais sobre as relaes entre

    ministrios e a Cmara dos Deputados. Um ltimo, e curto, captulo (6), a ttulo de

    concluses ou consideraes finais, apenas alinhava os diferentes pontos de chegada

    deste estudo, j adiantados no transcurso da exposio.

    Assim, o captulo 2, aps contextualizar, do ponto de vista histrico e institucional,

    o arranjo poltico do Segundo Reinado, intervalo de tempo de interesse do texto, e de

    justificar a escolha da temtica, apresenta e discute a classificao das razes de retirada

    dos 37 gabinetes parlamentares, existentes entre 1840 e 1889, em termos das categorias

    extradas da matriz de possibilidades apresentada acima (quadro 1.1). Ao apresentar e

    quantificar os principais padres associados s retiradas auxiliando, desse modo, a

    compreenso da instabilidade ministerial verificada -, o captulo contrape as

    concluses alcanadas e as vises correntes sobre o assunto, salientando suas diferenas

    e o fato de que os resultados aqui sustentados afastam-se de perspectivas enraizadas na

    literatura especializada.

    6 Isto , as substituies enquadradas na categoria 3 do quadro 1.1, acima.

    7 Foi, exatamente, na transio entre a 9 e 10 legislaturas, na segunda metade da dcada de 1850, que, no

    Segundo Reinado, abandonou-se o sistema de listas (ou chapas) em favor da regra dos crculos para a eleio da Cmara dos Deputados. A corroborao mais definitiva da hiptese sustentada no segundo eixo

    desta pesquisa depender, naturalmente, do exame sistemtico de um maior nmero de legislaturas

    imperiais, o que se afigura como uma promissora agenda de trabalho diante dos resultados aqui

    apresentados.

  • 18

    O captulo 3 apresenta, de modo pormenorizado, a discusso de cada uma das 37

    dissolues ministeriais que tiveram lugar no Segundo Reinado. Sempre partindo de

    uma contextualizao mnima do contexto poltico em que governou cada gabinete, o

    captulo centra seu foco na explorao a partir de fontes e da literatura pertinente

    dos fatores que conduziram respectiva retirada, com ateno especial ao eventual

    papel desempenhado, em cada processo, pela Coroa e/ou pelo Legislativo. O captulo 3,

    por conseguinte, fornece o lastro emprico da classificao apresentada das razes de

    retirada dos ministrios imperiais, concluindo a apresentao do primeiro eixo do

    presente trabalho.

    Consoante assinalado, os captulos 4 e 5 desenvolvem o segundo eixo da pesquisa

    concernente s relaes gabinete-Legislativo no Segundo Reinado e ao efeito sobre elas

    da introduo, a partir da dcada de 1850, do regime eleitoral distrital para fins de

    preenchimento das cadeiras da Cmara dos Deputados.

    Nessa linha, o captulo 4 examina e discute a literatura relativa Cmara dos

    Deputados imperial a partir de vrios ngulos (importncia da casa, presena de

    interesses provinciais, prerrogativas oramentrias, etc) e, em seguida, trata da

    legislao eleitoral, das eleies e, em especial, das consequncias dos diferentes

    formatos eleitorais adotados, ao longo da monarquia, sobre a dinmica do sistema

    poltico.

    Empresta-se nfase especial transio do regime de listas (chapas) para o voto

    distritalizado, de modo a sugerir a substantiva alterao efetuada, nessa passagem, em

    termos da estrutura de incentivos com a qual se defrontavam os principais agentes

    polticos imperiais, assinalando, particularmente, suas importantes repercusses sobre

    os traos macro-estruturais do sistema poltico do Segundo Reinado, aspecto ainda no

    devidamente explorado nem estudado com sistematicidade pelos especialistas do

    perodo. Mostra-se, por fim, ainda no captulo 4, que narrativas e estudos variados sobre

    o Imprio transmitem avaliao das legislaturas posteriores introduo da regra

    distrital consonante com a perspectiva aqui sugerida, em termos da fragilizao das

    bases de sustentao dos ministrios incumbentes, ainda que esses mesmos textos no

    relacionem o ponto com o fenmeno mais geral da instabilidade ministerial.

    O captulo 5, por seu turno, tem por meta central arrolar e discutir as principais

    concluses extradas pela pesquisa a partir do estudo sistemtico dos anais

  • 19

    parlamentares entre 1853 e 1860, as quais oferecem sustentao hiptese utilizada no

    segundo eixo desta tese.

    Inicialmente, o captulo apresenta dois outros conjuntos de informaes empricas

    que acenam, igualmente, para um vnculo entre a introduo dos crculos e a maior

    dificuldade dos governos de angariar suporte legislativo, a saber, a associao entre

    regras distritalizadas e menor mandato temporal dos ministrios (i) e entre o regime

    eleitoral mencionado e episdios de retiradas de gabinetes associadas a conflitos,

    efetivos ou potenciais, frente ao Parlamento e, em especial, Cmara (ii).

    Vistas essas informaes iniciais que sugerem a existncia da relao postulada

    entre regra eleitoral distrital e o conflito ministrios-Cmaras, volta-se o captulo 5

    para o seu foco principal, centrado no exame e na comparao sistemtica entre a 9

    (1853-6) e a 10 (1857-60) legislaturas, a primeira eleita sob a gide das listas, a

    segunda mediante a primeira Lei dos Crculos.

    Mediante o estudo da tramitao oramentria em todas as sesses legislativas das

    duas cmaras, evidencia-se a diferena no comportamento parlamentar e no grau de

    apoio auferido pelos gabinetes em face da cada uma das legislaturas. Em termos

    sintticos, conclui-se que o comportamento disciplinado do plenrio frente s

    prioridades estipuladas pelo governo, verificado no perodo 1853-6, no se repete no

    perodo seguinte (1857-60), quando se verificam importantes revezes para os gabinetes

    incumbentes.

    Adicionando uma dimenso quantitativa discusso qualitativa da tramitao

    oramentria, os achados e concluses da tese, nesse captulo 5, so sintetizados atravs

    de um ndice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG), o qual mensura a

    capacidade dos ministrios imperiais de conseguir apoio para suas prioridades junto ao

    plenrio da Cmara dos Deputados. Atravs do referido indicador, mostra-se que o

    desempenho dos gabinetes na 9 legislatura (listas ou chapas), em circunstncias

    semelhantes, extradas das deliberaes sobre matria oramentria, substantivamente

    superior quele verificado na 10 legislatura (crculos).

    Finalmente, um breve captulo final (6) alinhava as concluses deste trabalho.

  • 20

    Parte 1. A Instabilidade Ministerial no Segundo Reinado

  • 21

    Captulo 2. Classificao das Razes de Retirada dos Gabinetes do

    Imprio e o Contexto Poltico-Institucional do Segundo Reinado (1840-

    1889)

    Este captulo apresenta e discute, em detalhes, a classificao sistemtica das

    razes de afastamento dos 37 gabinetes existentes entre 1840 e 1889. A classificao,

    conforme j avanado, realizada em funo das categorias extradas da matriz 2x2 de

    possibilidades introduzida no captulo 1 desta pesquisa. Busca-se, por essa via,

    contribuir para a compreenso dos principais motivos polticos subjacentes

    instabilidade das formaes ministeriais no Segundo Reinado 8.

    Como prembulo a essa tarefa, as primeiras sees desta parte do trabalho (sees

    2.1, 2.2 e 2.3) contextualizam, em termos histricos e institucionais, o sistema poltico

    vigente no Segundo Reinado, introduzindo, igualmente, as principais perspectivas

    dominantes na literatura especializada sobre o perodo.

    Esse procedimento permite justificar a escolha da instabilidade ministerial como

    objeto de interesse da pesquisa (seo 2.4), delineando a importncia do tema, no bojo

    dos estudos polticos e historiogrficos relativos poltica imperial, e indicando a

    relativa ausncia de classificaes sistemticas e empiricamente informadas sobre o

    assunto.

    Sobremodo, o mapeamento inicial das principais posies, na historiografia e nas

    cincias sociais, sobre a dinmica de funcionamento da poltica imperial, possibilita

    que, ao longo da apresentao e quantificao das categorias que sintetizam as razes

    das retiradas ministeriais - responsveis, portanto, pela instabilidade governamental do

    perodo -, seja realizada uma contraposio entre as concluses alcanadas pela

    pesquisa e as vises hoje dominantes sobre a matria (seo 2.5).

    Como se ver ao longo do texto, essas concluses, lastreadas nas evidncias

    sistematizadas neste e no prximo captulo, afastam-se substantivamente de importantes

    perspectivas e postulaes dominantes e enraizadas na literatura. Em especial, as

    8 Cada episdio de substituio de governo ser objeto de anlise mais detalhada no captulo 3 desta tese.

  • 22

    concluses alcanadas evidenciam a importncia das instituies representativas, em

    especial a Cmara dos Deputados, na dinmica poltica do Segundo Reinado, mostrando

    seu papel central na maior parte dos episdios de substituio ministerial do perodo. Os

    prprios casos de alternncia partidria, nos quais o juzo poltico da Coroa, no uso das

    prerrogativas do Poder Moderador, adquiria importncia especial, apontam, quando

    examinados mais detidamente, em grande proporo, para contextos onde conflitos na

    relao gabinete-Legislativo desempenharam papel relevante.

    2.1 Avaliaes Gerais do Perodo.

    luz das interpretaes sustentadas por importantes estudiosos do sistema poltico

    do Segundo Reinado (1840-1889), um mecanismo institucional teria sido crucial para o

    seu funcionamento estvel, a saber, a atuao da Coroa atravs do exerccio das

    competncias e prerrogativas associadas ao Poder Moderador (Buarque de Holanda,

    1985; Faoro, 2001; Iglsias, 2004; Barman, 1988; Needell, 2006; 2009).

    Para Srgio Buarque de Holanda, autor de uma das obras mais importantes sobre o

    perodo, seria inquestionvel a centralidade do Poder Moderador - entendido como

    poder pessoal, conquanto autorizado constitucionalmente, do titular da Coroa - na

    determinao da dinmica poltica imperial. A atuao da Coroa teria abarcado, para

    esse autor, tanto a deciso final sobre a conduo e o contedo das polticas de governo

    como a prpria escolha dos gabinetes ministeriais (1985: 19; 22) 9.

    Francisco Iglsias, outro importante historiador do Imprio, no s categrico em

    sustentar que Pedro II reinou, governou e administrou (2004: 113), mas tambm

    assinala que o prprio arcabouo das instituies representativas parlamentares foi,

    9 Dois exemplos entre inmeras passagens que exprimem essa viso: Que era sua em geral a deciso

    ltima em todos os negcios pblicos, ainda quando suas no fossem as iniciativas, parece acima de

    qualquer dvida. A ambio de fazer com que, ao final, os seus prprios alvitres prevalecessem, s era

    contrabalanada pelos escrpulos de quem no quer parecer que a tem. (...). Depois da maioridade,

    mormente depois que Pedro II pde reinar livre de tutelas, o nico recurso que lhe restava para amenizar

    melindres partidrios, tirava-o do fato de ser pessoalmente mais inclinado a cordura do que a afoitezas.

    Munido desse recurso, no se esquivou de livremente escolher seus ministrios a seu gosto, interpretando

    risca o estipulado na constituio (1985: 19; 22).

  • 23

    durante as quase cinco dcadas do Segundo Reinado, essencialmente formal, no sentido

    de que jamais se concretizou enquanto forma efetiva de governo (2004: 113-4) 10

    .

    Raymundo Faoro, no clssico Os Donos do Poder, segue a mesma linha, ao afirmar

    que o governo pessoal do imperador era realidade reconhecida por todos os

    contemporneos (2001: 413) 11

    . Nesse sentido, o exerccio do comando pela Coroa,

    atravs das prerrogativas do Moderador, se manifestava atravs da livre escolha do

    partido que subia ao poder, na entrega a este dos meios de fazer a maioria legislativa e

    na prpria seleo dos polticos que iriam titularizar as posies mais importantes

    (2001: 406) 12

    . Para Faoro, as funes da Cmara dos Deputados eram claramente

    secundrias no arranjo vigente, sobretudo quando comparadas fora de que gozavam

    sob a gide e o beneplcito da Coroa as instituies vitalcias, o Senado e o Conselho

    de Estado (2001: 396) 13

    .

    10

    Discutiu-se muito, no plano terico ou prtico, se o rei reina e no governa, ou se reina, governa e administra. A verdade que D. Pedro II no s reinou e governou, mas administrou. (...). O to referido

    parlamentarismo imperial apenas fora de expresso. A poltica aproximou-se, por vezes, desse modelo,

    mas no o realizou, que ele no estava nem no esprito nem na letra das leis nacionais, era impossvel com

    a precariedade eleitoral, com as constantes dissidncias dos partidos inconsistentes, pela falta de programas e estruturao, pouco mais que simples ajuntamento de pessoas -, com as mudanas contnuas

    e os atributos do poder imperial(Iglsias, 2004: 113-4).

    11 A labareda das disputas e das contradies deixa de p, verde e altiva, a verdade de que o Poder

    Moderador governa e administra. Ningum (...) nega a realidade. (Faoro, 2001: 413).

    12 A est um rei que reina e governa, entregue ao gabinete a prtica de atos secundrios. (...) o chefe do

    Conselho ser da sua confiana o imperador criar, em torno do cetro, os seus estadistas, ministeriais ao seu talante, mantidos alguns cardeais no ostracismo eterno. Ele suscita o partido ao governo, arrancando-o

    da oposio; ele d ao partido assim elevado a maioria parlamentar, por meio da entrega provisria dos

    meios compressivos que articulam as eleies (Faoro, 2001: 406). A passagem do autor de Os Donos do Poder evoca nitidamente trecho clebre do discurso do Sorites, pronunciado pelo senador Nabuco de

    Arajo, em 1868, o qual, na viso dominante sobre a poltica imperial, retrataria perfeio o modo de

    formao de governos e maiorias no perodo: O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministrios; esta pessoa faz a eleio, porque h de faz-la; esta eleio faz a maioria. Eis a

    est o sistema representativo de nosso pas!(Nabuco, 1949, vol. III: 110).

    13 (...). A presena da Cmara dos Deputados reduz-se a uma funo, a de expressar ao gabinete a

    confiana ou a desconfiana, sujeita, neste caso, dissoluo. Fora da o imperador tudo pode (Faoro, 2001: 406). Os rgos vitalcios, teoricamente apolticos, na verdade de contedo conservador, comandam o jogo, sob a presidncia vigilante do imperador, mal encoberto no biombo transparente (Faoro, 2001: 396).

  • 24

    Jeffrey Needell (2006: 6; 200; 2009: 62-3), brasilianista especializado no Brasil do

    sculo XIX, assinala que o transcurso do Segundo Reinado assiste ao progressivo

    alargamento do papel e do impacto da ao do Imperador no sistema poltico imperial.

    Para esse autor, por volta da dcada de 1860, a Coroa deixara para trs uma atitude

    predominantemente de superviso e correo, frente aos governos, para evoluir rumo a

    uma discreta mas firme conduo de algumas das principais diretrizes e polticas

    sustentadas pelos ministrios com conseqncias tanto para a ordem social como para

    desenvolvimento das instituies representativas (positivas, para as primeiras,

    negativas, para as segundas, na interpretao do historiador mencionado) 14

    .

    Mais recentemente, em reflexo sobre aspectos ligados ao tema, Fernando Limongi

    (2011: 2-4) chama a ateno acerca da avaliao normativa positiva, sustentada por

    parte dos estudiosos e pela historiografia dominante, a respeito do exerccio efetivo das

    prerrogativas do Moderador por Pedro II. Esse uso prudente e adequado, por parte da

    Coroa, das amplas prerrogativas a ela conferidas pela Constituio do Imprio (CI) teria

    sido a base sobre a qual foi possvel a estruturao de um sistema poltico estvel e

    capaz de comportar, durante quase 50 anos, a alternncia pacfica dos liberais e

    conservadores no poder. Esse julgamento sobre o perodo se reveste, segundo tais

    vises, de solidez adicional mediante a comparao usual feita do Segundo Imprio com

    as pocas precedentes (o Primeiro Reinado e a Regncia) e as posteriores (a Repblica

    Velha) - a primeira marcada por violncia e revolues, que, no limite, puseram em

    xeque a prpria integridade territorial do pas nascente; a segunda, pela supresso total

    das oposies, com o aprofundamento do contedo oligrquico do sistema poltico e a

    reduo do j precrio grau de contestao poltica tolerado pelo arranjo de poder

    (2011: 4).

    Essa observao aponta, com acerto, para esquemas explicativos que se

    consolidaram e, com o tempo, ampliaram sua abrangncia ao alcanar tambm grande

    parte dos estudos sociolgicos e de cincia poltica dedicados ao assunto. Ilustrao

    disso vem a ser o contraponto, reiterado por vasta literatura nas cincias sociais, entre o

    14

    Roderick Barman, outro brasilianista com importantes contribuies ao estudo da poltica imperial,

    converge na mesma direo de Needell, quanto centralidade do monarca, apenas antecipando o

    protagonismo de Pedro II para o incio da dcada de 1850: a essa altura, consoante esse historiador, o

    imperador j desfrutava de completo controle sobre o sistema poltico do Segundo Reinado (1988: 238).

  • 25

    Imprio e a Repblica Velha, em termos justamente dos respectivos arranjos

    institucionais estratgicos sobre os quais assentaram seus funcionamentos, o qual

    retoma, com maiores ou menores qualificaes, as interpretaes da historiografia

    convencional 15

    . Enquanto a experincia monrquica, como se assinalou, assentaria

    essencialmente seu funcionamento no Poder Moderador, a nossa primeira experincia

    republicana (1889-1930) teria sido caracterizada pela Poltica dos Governadores -

    pacto mediante o qual teria se estabelecido um modus vivendi entre o executivo

    presidencialista e as unidades estaduais emergentes, fortalecidas com o novo regime

    federalista.

    Esses esquemas explicativos costumam colocar o acento analtico, sobremodo, nas

    diferenas entre as duas experincias e embutem, consoante anotado acima, uma clara

    avaliao axiolgica: o Imprio teria tido a marca da centralizao e da atuao do

    Poder Moderador, responsvel por uma arbitragem estrutural exercida sobre o sistema

    poltico, a qual teria sido essencial ao prprio funcionamento bipartidrio do perodo,

    sendo condio do conflito regulado (Carvalho, 2006: 406; Buarque de Holanda,

    1985: 72; Barman, 1988: 227) 16

    . Nesse sentido, o Poder Moderador seria o rbitro que,

    ao desaparecer com a Repblica, teria liberado o sistema poltico para convergir em

    direo ao equilbrio da ordem oligrquica, necessariamente local e regional - dada a

    estrutura social concentradora de renda e riqueza dos ncleos agrrio-exportadores,

    fundados na grande propriedade, a extenso territorial do pas e o federalismo

    15

    Em texto produzido nos anos 1970, Cardoso, escrevendo sobre os primeiros e turbulentos anos da

    Repblica, assinala: (...) no plano efetivo da constituio no escrita, desde o governo provisrio, a questo fundamental que se colocava era a de saber quem substituiria, de fato, como fora organizada, o

    Poder Moderador, ou seja, como se definiriam as regras do novo establishment (1985: 38). Lessa, escrevendo j no limiar dos anos 1990, afirma que a Poltica dos Governadores, pactuada na Repblica, significou, no marco do novo sistema, um equivalente funcional do Poder Moderador (1988: 111). A viso de equivalncia est presente tambm na contribuio recente de Ana Luiza Backes (2006: 206-7).

    16 Em sua ausncia, (...) ou o conflito seria extralegal ou seria suprimido atravs de arranjos de

    dominao como o que se desenvolveu na Repblica Velha atravs dos partidos nicos estaduais (Carvalho, 2006: 406). O lado positivo [da ao do Poder Moderador no sistema poltico imperial] estava na possibilidade de se revezarem no poder os agrupamentos partidrios, sob o comando de uma

    entidade que se presumia estranha a eles. Sem a rotao, dificilmente se poderia evitar que um desses

    agrupamentos, elevado ao governo, nele se entrincheirasse e afinal se perpetuasse (Buarque de Holanda, 1985: 72). O sistema parlamentar de governo (...) teria se tornado uma iluso no fosse a existncia do Poder Moderador. Uma vez que eleies no podiam remover do poder um partido, recaa sobre o

    Imperador a responsabilidade de fazer o sistema poltico funcionar. S ele podia, grosso modo, equilibrar

    os partidos, promovendo sua alternncia no poder. O monarca situava-se acima das disputas,

    [constituindo-se em] rbitro supremo do poder e smbolo da legalidade (Barman, 1988: 227).

  • 26

    introduzido em 1889. A Poltica dos Governadores, costurada na presidncia Campos

    Sales (1898-1902), seria o atestado maior dessa realidade, um reconhecimento oficial

    das bases reais do poder no pas (Backes, 2006: 33), emergindo a descentralizao e o

    regionalismo de partidos nicos estaduais - suprimidas as oposies, no limite, pela

    fora - como as marcas emblemticas da experincia republicana em seu perodo inicial.

    Centralizao, com base na Coroa, e descentralizao, assentada nos estados,

    seriam, assim, as marcas caractersticas respectivas do Imprio e da Repblica,

    materializando a fonte ltima dos mecanismos gerais responsveis pelo equilbrio

    institucional de cada um dos regimes 17. Como assinala Limongi (2011: 4), o contraste

    no podia ser maior entre um regime de rotao partidria pacfica e outro fundado na

    violncia das oligarquias locais.

    Esse panorama geral das avaliaes do Imprio e de seu funcionamento

    institucional - contraposto este, inclusive, aos arranjos que o antecederam e sucederam

    - sugere, com vigor, a importncia emprestada, pelos especialistas, atuao da

    Coroa, revestida das prerrogativas do Poder Moderador, para o equilbrio do sistema

    poltico. Destaca-se, tambm, de algumas das vises assinaladas, uma visvel

    secundarizao do papel da Cmara dos Deputados, do gabinete e das prprias

    instituies representativas em geral, na dinmica poltica da poca. Por outro lado,

    ganham relevncia as instituies vitalcias, o Senado e o Conselho de Estado, atuando

    em articulao com o monarca, o qual, nas vises apresentadas, detinha pleno controle

    do regime.

    Cabe, agora, no propsito de fornecer uma contextualizao institucional adequada

    do perodo, expor com um pouco mais de mincia os elementos centrais do sistema

    poltico imperial, em especial aquele vigente entre 1840 e 1889, intervalo de interesse

    do trabalho. Antes, porm, de proceder-se descrio mais detalhada das principais

    instituies do Segundo Reinado, cumpre rever, a partir da historiografia pertinente, o

    processo histrico atravs do qual se desenvolveu o arranjo institucional em foco, o que

    equivale a descrever, em suas linhas mais gerais, as principais perspectivas a respeito da

    formao do Estado brasileiro nas suas primeiras dcadas de existncia independente.

    17

    Exceo ao tratamento dicotmico dos dois perodos vem a ser, na literatura recente, Dolhnikoff (2005

    a: 18; 295-9) e, antes, Pereira de Castro (2004: 599).

  • 27

    Esses dois procedimentos, como se ver, preparam o terreno para que o observador

    capte outras dinmicas institucionais em curso no perodo. Essas outras dinmicas

    tornam o cenrio poltico at aqui esboado mais complexo e nuanado, sugerindo os

    limites e insuficincias das avaliaes gerais acima alinhadas e estimulando as

    indagaes diante das quais se estrutura a presente pesquisa. a essa preparao de

    terreno que se dedicam as duas prximas sees do captulo.

    2.2 De 1822 a 1850: Sntese das Perspectivas Dominantes sobre a Evoluo do

    Estado Brasileiro em suas 3 Primeiras Dcadas

    As quase trs dcadas, grosso modo, que separam a independncia, em 1822, do

    final dos anos 1840, foram um perodo turbulento e complexo. Nesse intervalo, vrios

    projetos de poder, delineados com maior ou menor nitidez e associados a variadas

    alternativas de desenho territorial, se enfrentaram na tentativa de moldar o formato

    poltico do espao, ocupado pelas ex-possesses portuguesas na Amrica - marcado por

    vasta extenso e fraca integrao scio-econmica -, que emergia para a possibilidade

    de existncia poltica autnoma aps sculos de status colonial.

    Tratou-se, na expresso de Bolvar Lamounier, referindo-se s primeiras dcadas

    posteriores separao de Portugal, de um momento hobbesiano, no sentido do que o

    que estava em jogo naquele perodo era o problema (...) da criao do consenso, ou da

    pactuao de uma comunidade poltica (2005: 26), em um contexto de alta incerteza e

    de elevada tenso, no qual variados interesses, centrados nas diferentes regies da ex-

    colnia, se contrapuseram, inclusive belicamente, sem que uma soluo natural se

    afigurasse de pronto.

    Em geral, ao tratar da poca em questo, parcela importante da narrativa

    historiogrfica faz referncia, de modo um tanto anacrnico, a um centro desde logo

    identificado com a Corte no Rio de Janeiro em luta contra separatismos de carter

    regional, apontando para um cenrio marcado por conflitos que perpassaram, em

    diferentes nveis de intensidade, todo o Primeiro Reinado (1822-31) e o intervalo das

    Regncias (1831-40). A rigor, esses enfrentamentos somente alcanariam sua soluo

    definitiva na forma da estabilizao de um Estado monrquico unitrio, com

    considervel grau de concentrao de poderes poltico-administrativos no Rio,

    consoante boa parte dos estudiosos nos ltimos anos da dcada de 1840, com as

  • 28

    sucessivas derrotas de insurreies armadas em So Paulo e Minas (1842), no Sul

    (1845) e em Pernambuco (1848/9) 18

    .

    No entanto, como registra Evaldo Cabral de Mello, mencionando o trabalho do

    historiador norte-americano Roderick Barman, a criao do Estado unitrio no Brasil

    no foi um destino manifesto (2004: 11) 19: vrias outras solues apareceram como

    possveis no decorrer da conjuntura referida, algumas das quais teriam implicado a

    formao de vrios Estados nacionais no antigo espao portugus das Amricas 20

    , uma

    vez que a prpria noo de unidade territorial aparecia, na tica dos contemporneos

    queles acontecimentos, mais como um projeto de maior ou menor importncia, a

    depender de grupos especficos do que como uma realidade objetiva 21.

    Por tudo isso, talvez seja mais adequado entender o perodo em questo enquanto

    uma teia, progressivamente emergente, compreensiva de complexos e variados esforos

    18

    O perodo regencial foi um dos mais agitados da histria poltica do pas e tambm um dos mais importantes. Naqueles anos, esteve em jogo a unidade territorial do Brasil, e o centro do debate poltico

    foi dominado pelos temas da centralizao ou descentralizao do poder, do grau de autonomia das

    provncias e da organizao das Foras Armadas. (...).Nem tudo se decidiu na poca regencial. Podemos

    mesmo prolongar a periodizao por dez anos e dizer que s por volta de 1850 a Monarquia centralizada

    se consolidou, quando as ltimas rebelies provinciais cessaram. (Fausto, 2006: 161)

    19 Cabral de Mello refere-se ao livro Brazil. The Forging of a Nation, 1798-1852, de Roderick Barman,

    publicado pela Stanford University Press, em 1988. Fazendo referncia, por seu turno, a esforos

    contemporneos da historiografia de criticar e superar limitaes postas, entre outras coisas, por vises

    permeadas por anacronismo, Vilma Peres Costa refere-se s perspectivas que concebem a nacionalidade e

    o Estado brasileiro como mosaico, sublinhando simultaneamente a sua feio compsita e seu carter de artefato, de coisa operosamente construda (2005: 114). Tal perspectiva, que teve no recentemente falecido professor Istvn Jancs um dos seus maiores cultores, tem a vantagem de permitir pensar o processo de emancipao poltica ao arrepio da viso tradicional (a partir do Rio de Janeiro e de sua

    irradiao), mas tambm suplantar o horizonte que conforma seu oposto (o estudo das manifestaes

    regionais de um fenmeno pensado como unvoco) (2005: 114, nota 146, 115). Um trabalho pioneiro que antecipa essa linha de reflexo, e inspira estudos posteriores, vem a ser o ensaio A Herana Colonial - sua Desagregao, de Srgio Buarque de Holanda (1982).

    20 O triunfo do federalismo ou a criao de vrios Estados regionais, no de um Imprio unitrio, teria

    provavelmente ocorrido, caso trs momentos decisivos no houvessem infletido o curso dos

    acontecimentos: a transmigrao da dinastia bragantina para o Rio; a determinao da Corte fluminense

    de preservar a posio hegemnica recm-adquirida; e a incapacidade do Congresso de Lisboa em lidar

    com a questo brasileira (Cabral de Mello, 2004: 12).

    21 Como observava Horace Say [diplomara francs que viveu no Brasil entre 1815 e 1825], ao tempo da

    independncia, o Brasil era apenas a designao genrica das possesses portuguesas na Amrica do Sul, no existindo por assim dizer unidade brasileira. Da a preferncia da lngua inglesa pelo plural the Brazils (Cabral de Mello, 2004: 18). Buarque de Holanda, no trabalho pioneiro citado na nota 19 acima, tambm menciona, tendo-a por exata, a passagem assinalada de Horace Say, destacando, assim, a

    dinmica centrfuga caracterstica do espao colonial, a qual, s ceder ao domnio do Estado-nao, a passo lento, j bem adiantado o sculo XIX (1985: 15-6).

  • 29

    de state-building em que um dos projetos em curso centrado no espao fluminense,

    vinculado ao prspero caf do Vale do Paraba e organizado, politicamente, em torno do

    que vir a ser o Partido Conservador a partir dos anos 1840 - ganha a dianteira sobre

    alternativas e legitima-se, a partir de certo momento (essencialmente, no transcurso da

    dcada de 40 do sculo XIX), enquanto centro, procedendo, como parte de sua

    prpria consolidao, reorganizao e normalizao da vida poltica do territrio

    (Mattos, 1987: 105-9; 129-32; Barman, 1988: 6-7) 22

    .

    O grau de centralizao emergente desse processo em termos de distribuio de

    poder poltico entre o Rio de Janeiro e as demais regies da antiga Amrica lusitana

    foi substancial, para grande parte dos estudiosos, envolvendo um desequilbrio a favor

    do governo geral, em detrimento das elites vinculadas aos demais espaos 23

    . Mais

    recentemente, esse grau de centralizao tem sido, ele prprio, objeto de controvrsias,

    apontando-se, no interior do arranjo institucional cristalizado no Imprio, um cunho

    federativo mais largo do que o postulado habitualmente na literatura especializada 24

    .

    22

    Privilegiando, para pensar o processo histrico de construo do Estado brasileiro, uma perspectiva

    mais centrada na ideia da criao/mosaico do que nas noes de legado/continuidade, escreve Vilma

    Peres Costa (2005: 118): A ideia de que a Monarquia americana no um legado, mas uma reinveno um seguro ponto de partida nesse aspecto. Ela nos permite evitar alguns equvocos importantes, como o

    de deduzir o formato do estado brasileiro a que se chegou ao final dos anos 40 do sculo XIX da aparente

    continuidade institucional que foi peculiar ao processo poltico de nossa Independncia. Mirando-nos no

    caminho que tem sido trilhado pela reflexo sobre a nao, preciso que possamos ver o processo de

    separao de Portugal e a construo do Estado brasileiro (...) como processos que, embora articulados,

    no se reduzem um ao outro. A dinmica extrativa inerente ao Estado no pode ser dada, tampouco pode

    ser herdada. Ela se repe em intensa sinergia com a ordem econmica e com a vida social, gerando

    conflitos e provocando o enfrentamento, no cenrio interno e externo, de mltiplas alternativas de

    desenho territorial e organizao poltica. De um ponto de vista mais concreto e especfico, a questo dos motivos que conduziram manuteno da unidade territorial da antiga Amrica lusitana parece

    envolver variadas razes, constituindo uma trama complexa na avaliao dos estudiosos. Fausto (2006:

    183-5) salienta duas hipteses gerais que teriam atuado em favor daquela unidade e que, ao seu juzo, no

    seriam excludentes: a existncia de uma elite homognea do ponto de vista social, educacional e

    profissional, distribuda pela ex-colnia, e a questo da escravido no contexto internacional da poca,

    onde a poderosa Inglaterra assumia posio de aberta hostilidade contra a manuteno do regime servil,

    inibindo aventuras autonomistas de regies isoladas, sobremodo tendo em vista a extraterritorialidade do

    mercado de mo de obra s reproduzvel mediante o recurso ao trfico negreiro. As duas hipteses se

    associam, respectivamente, aos nomes dos historiadores Jos Murilo de Carvalho e Lus Felipe de

    Alencastro. Mais recentemente, Dolhnikoff (2005 a; 2005 b) argumentou que o contedo federalista

    embutido no arranjo institucional imperial foi no apenas mais amplo do que o admitido

    convencionalmente, mas, tambm, elemento decisivo para a incorporao das elites provinciais ao

    sistema poltico, sendo esse ltimo processo fundamental na viabilizao da unidade territorial sob a hegemonia do governo do Rio de Janeiro (2005 a: 14).

    23 Nesse sentido, ver estudos clssicos como Buarque de Holanda (1982: 9-39), Silva Dias (1986: 160-

    84), Mattos (1987: 105-6; 130-2, notas 84 a 86; 155-62) e Carvalho (2005: 155-88; 2006: 143-68; 255-7)

    bem como a contribuio de brasilianistas como Barman (1988: 212-3).

    24 Ilustrativos desse ponto de vista so os trabalhos referidos acima de Dolhnikoff (2005 a; 2005 b).

    Tambm nessa direo, de modo pioneiro, aponta Pereira de Castro (2004: 599).

  • 30

    Em 1824 foi promulgada a Constituio Imperial (CI), de cunho concentrador e

    centralizador, pela supremacia de que dotava a Coroa frente aos outros poderes e pela

    atribuio praticamente exclusiva ao governo geral das competncias e prerrogativas

    poltico-administrativas em prejuzo das demais circunscries regionais 25

    . Depois

    disso, ocorreram, no interior do disputado processo de construo estatal em curso, do

    ponto de vista poltico-institucional mais concreto, dois movimentos decisivos, durante

    os anos 1830 e 1840, que marcariam a face de todo o Segundo Reinado, a saber, as

    reformas descentralizantes, entre 1832 e 1834, executadas pelas elites polticas que mais

    tarde se identificariam com o Partido Liberal, e as reaes a essas iniciativas,

    sustentadas pelos grupos que formariam o Partido Conservador, reconcentradoras do

    poder poltico e administrativo - conhecidas na literatura por Regresso. Essas ltimas

    terminaram por se impor - mas no sem choques, inclusive armados, e concesses s

    provncias - durante o transcurso da dcada de 40, e moldaram, como assinalado, a face

    institucional e poltica do Estado nascente. Por outro lado, o iderio liberal, por todo o

    Imprio, ficaria vinculado, com mais ou menos nfase, ao programa descentralizador

    mencionado (Fausto, 2006: 162-4; 171; 175-6; Alonso, 2002: 68-9) 26

    .

    As reformas descentralizantes, do incio dos anos 1830, concederam maiores

    poderes e competncias exclusivas s unidades do Imprio as provncias mediante o

    fortalecimento de seus legislativos, de sua mquina administrativa e de seu aparato

    judicirio e policial local, em que pese a manuteno da nomeao dos presidentes

    provinciais pelo Rio de Janeiro (os vice-presidentes, no entanto, passavam a ser

    indicados pelas provncias). A instituio do jri e do habeas-corpus, tambm

    contemplados pelas reformas, sinalizaram preocupao com liberdades e garantias

    individuais. Ao mesmo tempo, as iniciativas em foco suprimiram a vigncia do Poder

    Moderador, durante a Regncia, e decretaram a extino do Conselho de Estado.

    Finalmente, no mbito dessas medidas tambm se inclui a criao da Guarda Nacional,

    milcia a ser formada por notveis locais, a quem se entregava grande parte da

    responsabilidade pela manuteno da ordem pblica. O somatrio disso tudo indicava,

    25

    A Carta de 1824, em seus aspectos de interesse para o trabalho, ser objeto de exame na prxima seo.

    26 Do ponto de vista do institucionalismo histrico, pode-se dizer que as dcadas em questo constituram

    uma tpica critical juncture, cujos resultados, de carter contingente diante de alternativas esboadas no perodo, vo, depois de consolidados, travar ou descartar, mediante mecanismos de auto-reforo, caminhos diversos e conformar a trajetria caracterstica do Segundo Reinado em termos poltico-

    institucionais. Sobre a noo de critical juncture e conceitos correlatos, ver Thelen (1999; 2003).

  • 31

    nitidamente, um fortalecimento poltico das elites locais frente Coroa (Uricoechea,

    1978: 110).

    Parte dessas medidas, contudo, foi revogada ou modificada por legislao do incio

    dos anos 1840 em especial, a Lei de Interpretao do Ato Adicional e a Reforma do

    Cdigo de Processo Criminal -, diminuindo-se as prerrogativas das Assemblias

    Provinciais e centralizando-se a maior parte do aparato judicirio e administrativo,

    inclusive policial, cujos postos passariam desde ento a ser preenchidos diretamente

    pela Corte (Needell, 2006: 100; Carvalho, 2005: 167-70; 2006: 143-68; 255-7; Barman,

    1988: 212-3; Uricoechea, 1978: 111). Do mesmo modo, as principais posies de

    comando da Guarda Nacional passaram a depender do gabinete e foi restabelecido o

    Conselho de Estado. Por fim, o incio do Segundo Reinado, em 1840, com a decretao

    antecipada da maioridade de Pedro II, restaurou a vigncia do Poder Moderador (Faoro,

    2001: 380-6) 27

    . O resultado desse processo de centralizao poltica e administrativa

    foi, naturalmente, desequilibrar a balana do controle poltico em favor do governo

    geral isto , da Corte, no Rio em detrimento das provncias. Como acentua Barman

    (1988: 213), os recursos de represso e patronagem, disponibilizados aos gabinetes por

    essas medidas, alcanando o preenchimento de postos e posies de poder e prestgio

    nos mais distantes rinces do Imprio, no tinham precedentes na histria poltica do

    pas.

    Deve-se ter, entretanto, certa cautela na interpretao dos resultados finais

    centralizadores, do ponto de vista poltico-administrativo, das disputas polticas

    assinaladas, de modo a que no se faa uma idia exagerada e distorcida do efetivo

    alcance e da natureza exata da ao estatal imperial sobretudo a emanada da Corte - a

    partir da segunda metade do sculo XIX. Em outras palavras, essa centralizao deve

    27

    A centralizao era poltica e administrativa. Pelo lado poltico, manifestava-se no Poder Moderador, que podia nomear e demitir livremente seus ministros; no senado vitalcio; na nomeao dos presidentes

    de provncia pelo governo central. Pelo lado administrativo, toda a justia fora centralizada nas mos do

    ministro da Justia. Este ministro nomeava e demitia, diretamente ou por meios indiretos, desde o

    ministro do Supremo Tribunal de Justia at o guarda da priso, em todo o territrio nacional. O juiz de

    paz eleito, poderoso durante a Regncia, perdera boa parte de suas funes em favor dos delegados de

    polcia nomeados pelo ministro do Imprio. Cabia ainda ao ministro da Justia nomear todos os

    comandantes e oficiais da Guarda Nacional, principal rgo de manuteno da ordem pblica. Alm de

    nomear os presidentes de provncia, o ministro do Imprio nomeava ainda os bispos e procos e os

    delegados de polcia que, por sua vez, indicavam os inspetores de quarteiro (Carvalho, 2005: 169). Um organograma amplo da organizao administrativa centralizada do Imprio que perduraria aps o

    Regresso abrangente de suas burocracias judiciria, policial, militar e extrativa-fiscal, com indicao detalhada das cadeias de subordinao fornecido por Jos Murilo de Carvalho (2006: 153).

  • 32

    ser lida luz de alguns elementos contextuais fundamentais, entre os quais se ressaltam

    o tipo de burocracia administrativa que efetivamente se estruturou no Segundo Reinado

    e as condicionantes sociais e territoriais do regime nascente - marcadas pela

    preeminncia da grande propriedade privada escravista, sob a gide da qual se

    estruturavam relaes sociais de dependncia e dominao, e pela vastido de um pas

    de dimenses continentais. Por outro lado, crucial tambm entender o Regresso

    mais como uma etapa adicional do ajuste entre centro e provncias, em termos da

    distribuio de poder poltico, do que como um esmagamento das ltimas pelo Rio de

    Janeiro.

    No que tange ao aparelho burocrtico, essencial ter em mente que a grande

    maioria dos postos no se organizava em termos de um servio pblico profissional,

    baseado em regras e normas impessoais, competncias bem definidas, hierarquia

    administrativa, sujeio a cadeias claras de comando, remunerao assalariada,

    distino entre o agente e o cargo, etc. Ao contrrio, a burocracia imperial foi uma

    burocracia de notveis, ou seja, uma burocracia patrimonial, em que as elites privadas

    locais desempenhavam, muitas vezes sem remunerao, funes pblicas (Carvalho,

    2006: 145-68). Afaste-se, pois, da mente a figura arquetpica do servidor pblico,

    associado s burocracias profissionalizadas modernas, e tenha-se claro que eram os

    prprios poderosos locais, ou figuras de sua indicao, que exerciam funes-chave

    como a de juiz de paz, delegado e subdelegado de polcia, juiz municipal, oficial da

    Guarda Nacional, promotor de justia, coletor de renda, etc (Carvalho, 2006: 156-9).

    Esse fato teve, naturalmente, largas conseqncias prticas, significando que o Estado

    imperial s logrou exercer efetivamente ao de governo quando estabeleceu relaes

    de cooperao com os grupos privados dominantes, reconhecendo os limites ao poder

    estatal e ao prprio contedo idealmente pblico de sua ao postos pelas estruturas

    privadas de mando e hierarquia 28

    . Adicionalmente, a natureza da ordem administrativa

    criada embutia, estruturalmente, elementos de irracionalidade, quando julgados de um

    ponto de vista puramente racional-legal, para utilizar os termos weberianos clssicos, os

    28

    O limitado alcance de ao das administraes imperiais no escapou a contemporneos como o

    visconde do Uruguai, para quem a organizao administrativa imperial uma cabea enorme em um corpo entanguido (2002: 205). Sobre o mesmo ponto, escreveu o importante poltico conservador: A ao administrativa fortificada somente no centro, inteiramente discricionria, sem conselho, e sem

    auxiliares prprios e naturais nos diferentes pontos de extensas provncias, mal pode fazer chegar at a a

    sua ao eficaz. So elas corpos cuja circulao no chega s suas extremidades (2002: 217).

  • 33

    quais se mostravam, por exemplo, na baixa diferenciao das funes - causa de

    crnicos conflitos de jurisdio entre os agentes burocrticos (Uricoechea, 1978: 112-3;

    Carvalho, 2006: 158-9) 29

    .

    Nesse sentido, parece acertada a posio de Jos Murilo de Carvalho (2006: 158)

    quando, luz dos elementos acima salientados, interpreta o Regresso conservador da

    dcada de 1840 como significando, essencialmente, a entronizao do governo central

    enquanto rbitro entre os interesses locais sobretudo, entre as pretenses dos mais

    poderosos (2006: 158) e no (...) simplesmente o esmagamento do poder local,

    como clamavam os liberais. Um dos preos, talvez o principal, a ser pago pelo Estado

    foi diagnosticado pelo mesmo autor: a privatizao, pelo menos parcial, do prprio

    contedo do poder exercido em nome do Estado: [Com o Regresso] o governo trazia

    para a esfera pblica a administrao do conflito privado mas ao preo de manter

    privado o contedo do poder. (...). O governo se afirmava pelo reconhecimento de

    limites estreitos ao poder do Estado (Carvalho, 2006: 159) 30.

    Adicionalmente, ainda no que concerne interpretao dos resultados finais do

    processo de centralizao discutido, crucial registrar que nenhuma das medidas

    regressistas, em que pese o inegvel fortalecimento do governo do Rio, suprimiu a

    diviso de competncias, inscrita no plano constitucional desde 1834, entre a Corte e as

    provncias, preservando-se, assim, para essas ltimas, espaos exclusivos de atuao

    29

    Qualquer que tivesse sido o grau de centralizao do governo durante todos esses perodos, em momento nenhum foi o estado capaz de governar efetivamente sem fazer acordos com grupos privados

    para contar com a sua cooperao. O governo central estava agudamente consciente dos limites frgeis de

    sua autoridade e da ordem legal que tinha conseguido instituir. Muito embora as bases patrimoniais da

    administrao local tivessem permitido ao estado a organizao de uma ao de governo com alguma

    continuidade, isto , uma ordem administrativa, essas mesmas bases comprometiam virtualmente uma

    execuo expedita e racional das decises do estado. Um governo vivel, em outras palavras, dependia do

    reconhecimento por parte do estado das demandas e interesses locais, que s podiam ser ignoradas a sua

    conta e risco (...). O estado e seus representantes estavam, assim, bastante conscientes da impossibilidade

    de governar isoladamente, sem angariar servios litrgicos de grupos privados. (Uricoechea, 1978: 112). No mesmo sentido, escreve Carvalho (2006: 158): A incapacidade do Estado brasileiro em chegar periferia bem ilustrada pelos compromissos que se via forado a fazer com os poderes locais. No Brasil,

    como nos exemplos histricos descritos por Weber, o patrimonialismo combinava-se com tipos de

    administrao chamados litrgicos. Na ausncia de suficiente capacidade controladora prpria, os

    governos recorriam ao servio gratuito de indivduos ou grupos, em geral proprietrios rurais, em troca da

    confirmao ou concesso de privilgios.

    30Emprestando maior nfase abertura de um espao de negociao entre Estado e chefes polticos locais,

    escreve, sobre o tpico, Mnica Dantas (2009: 45, nota 15): Se a centralizao das nomeaes significava maior poder Corte, tambm trazia para o jogo poltico institucional potentados que de outro

    modo continuariam adscritos s suas brigas faccionais para-institucionais. Assim, ampliar o escopo do

    Estado representava estender os braos do governo, mas paralelamente implicava a constituio de um

    campo privilegiado de negociao.

  • 34

    nos domnios tributrio, legislativo e coercitivo, atravs de seus prprios corpos

    parlamentares as Assemblias Provinciais. Na mesma linha, a participao provincial

    no arranjo decisrio central, mediante suas representaes Cmara dos Deputados,

    igualmente continuou garantida aps a edio das medidas do incio dos anos 1840, no

    se pondo, assim, em risco a canalizao da atuao das lideranas provinciais para o

    interior do aparato institucional oficial, sobremodo no plano parlamentar nacional, o

    qual oferecia um espao de negociao vital para o acerto de suas diferenas recprocas

    e das suas tenses com a Corte (Dolhnikoff, 2005 a: 14; 2005 b: 81-2) 31

    .

    Na mesma direo de enfatizar a abertura de condutos entre o centro e a periferia

    no sistema poltico brasileiro imperial vai a percepo, enfatizada por Bolvar

    Lamounier, de que, em meio s oscilaes descentralizantes e centralizantes do perodo

    em foco, nunca se cogitou de abolir o princpio representativo (2005: 28). Ainda que

    subordinado ao peso das instituies vitalcias (Alonso, 2002: 70-1, nota 20),

    emblemticas do centralismo patrimonialista imperial (Lamounier, 2005: 28) 32, o

    elemento representativo encarnado na Cmara dos Deputados e nos legislativos

    provinciais e municipais aparecia como um dos vetores necessrios prpria tarefa de

    organizao da autoridade ou de state-building ento em andamento (Lamounier, 2005:

    52), enxertando no sistema um contedo informacional imprescindvel ao incio da

    institucionalizao eficaz de um arranjo de poder 33

    . Desse modo, pode-se acrescentar, a

    representao permitiu ao governo central a identificao de parceiros locais adequados

    em termos de uma economia dos meios de violncia - aos esforos de pactuao e

    cooperao sublinhados acima.

    31

    Alencastro, em texto dos anos 1980, j assinalava, incidentalmente, o papel central do Parlamento,

    desde a Independncia, conquanto purgado da influncia popular, como espao de conciliao e

    negociao entre as diversas oligarquias regionais (1987: 69).

    32 Instituies essas corporificadas no Conselho de Estado, recriado, no Senado no temporrio, no Poder

    Moderador, reativado com a Maioridade (1840), e na prpria estrutura geral centralizada delineada acima.

    33 A esse respeito so esclarecedoras as seguintes passagens de Lamounier (2005: 52 e 25,

    respectivamente): (...) organizar a autoridade no era tarefa que se pudesse cumprir margem do sistema representativo, ou dele prescindindo, mas sim por meio dele, em conjuno com o princpio monrquico. Sem ele [isto , sem o mecanismo representativo] e, em consequncia, sem cmaras eletivas, o poder central ver-se-ia forado a recorrer a nomeaes, de forma indiscriminada, e a assumir sozinho a

    responsabilidade pela entrega do controle de localidades e regies a indivduos ou faces

    especificamente designados. Tal delegao de poder, praticada com demasiada frequncia, estimularia

    pequenas guerras civis e frustraria precisamente o objetivo principal: evitar a beligerncia generalizada.

  • 35

    O arranjo institucional cristalizado a partir dos anos 1840 teve tambm e esse um

    ponto fundamental - importncia crucial para a consolidao e nacionalizao do

    sistema partidrio imperial, como sublinham, de modo arguto e convincente, Needell

    (2006) e Barman (1988), dando molde mais preciso a uma evoluo j capturada,

    dcadas atrs, em suas linhas mais amplas, por Raymundo Faoro (2001: 423). Para

    esses autores, as medidas do Regresso anotadas em particular, a Lei de 03.12.1841

    (Lei de Reforma do Cdigo de Processo Criminal) criaram uma nova estrutura de

    incentivos hbeis a tornar imperativa, em um curto espao de tempo, do ponto de vista

    das elites locais, municipais e provinciais, a construo de vnculos com os partidos

    originariamente formados em torno das disputas da Corte. Para isso teria sido essencial

    a transferncia para o governo central, concretizada pela norma legal mencionada, do

    controle sobre cargos estratgicos de poder e prestgio nas localidades e provncias.

    Nos termos de Needell, [a partir da vigncia da] Lei de 03.12.1841 (...) aquelas

    oligarquias rurais locais que ainda no tinham escolhido, a partir de razes ideolgicas,

    um dos dois partidos da Corte tiveram que faz-lo simplesmente para defender a si

    prprias. Sem um vnculo com um dos dois partidos, lideranas locais no tinham meios

    para demandar, nem razes para esperar, que as nomeaes do lugar dependentes da

    Coroa favorecessem os seus interesses, a expensas dos adversrios. Questes

    ideolgicas, para algumas dessas famlias, tinham pouca importncia; lealdade

    partidria, no entanto, veio a tornar-se uma questo de vida ou morte. Durante o

    transcurso da dcada de 1840, as chefias nacionais dos saquaremas e luzias no Rio

    buscaram chegar at essas famlias e assegurar o seu apoio; em troca, oferecia-se

    patronagem (nomeaes e proteo) (2006: 124-5).

    Barman, por seu turno, sem deixar de enfatizar o carter centralizador das medidas

    do Regresso (1988: 212-3), no se furta a assinalar que os interesses das elites locais e

    provinciais foram contemplados no arranjo emergente e canalizados para o interior das

    instituies polticas consolidadas na transio entre os anos 1840 e 1850. Na sua

    perspectiva, convergente com a de Needell, o veculo privilegiado para essa articulao

    - entre os crculos dominantes na Corte e as elites regionais/locais - foi o sistema

    partidrio, mediante o qual se assegurava, a um s tempo, o controle do processo

    poltico pelas direes partidrias situadas no Rio e a partilha dos seus frutos em

  • 36

    termos essencialmente de patronagem - com os aliados nas diferentes localidades do

    Imprio (Barman, 1988: 217-8; 226) 34

    .

    Em sntese, em torno de 1850, com maior ou menor grau de centralizao poltico-

    administrativa, mas, sem dvida, com condutos institucionais articulando a Corte e as

    provncias, desenhava-se - aps quase trs dcadas de turbulncia, compreensivas,

    inclusive, de choques armados a cristalizao de uma ordem poltica relativamente

    eficaz abrangente de todo o territrio da antiga Amrica Portuguesa (Bethell e Carvalho,

    1985: 767-8; Barman, 1988: 235; Carvalho, 2006: 256-7; Fausto, 2006: 161). As

    caractersticas especficas desse arranjo poltico-institucional, focando em especial o

    sistema de governo, so o objeto da prxima seo do texto.

    2.3 As Insti