o guru, o iniciador e outras variações antropológicas

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Page 1: O GURU, O INICIADOR e Outras Variações Antropológicas

UFPB

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fredrik barthoraanização: Tomke Lask

O guru, o tnictodor e outras vonaçóea

Page 2: O GURU, O INICIADOR e Outras Variações Antropológicas

(>X"1". " iiiuiitílor c outras variaçõesantropológicas põe à disposição dopúblico lusófono um.i seleção d.iprofícua e densa produção deFredrik Barth, autor cujosignificado para a antropologiacontemporânea transcende emmuito o ejue o projetouinternacionalmente: os estudos

relativos ao fenômeno écnico.

Nascido na Noruega em 1928,mestre pela Universidade deChicago em 1949, Barchdoutorou-se em 1957 pelaUniversidade de Cambridge, sob aorientação de Edinund R. Leach.Ao longo de sua trajetória,realizou pesquisas de campo noOrienre Médio, na África, na

Nova Guiné, no Golfo Pérsico,

em Bali, no Butão e na própriaNoruega.

Barth encarna o ideal, semprereiterado porém cada vez maislongínquo e inaleançável, doantropólogo que cria teoricamenteà luz da investigação empírica.Os "ismos" fáceis com que temsido rotulado esvaem-se frente a

trabalhos como Political Uadershipamono lhe Swat-Pathan (1959), Therole of cntrcprcncur in social chcinge intwrthmi \!orwa\ (1963), Modcls ofsocial orgam^ation (1966), o célebreEllmicgroitps and Immdarics (1969).Ritual and hiowledgc ameng thcIiaktaman ofNew Cttinca (1975 ;.Cosmologics in thc niaking ( 1987) e

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Coleção ÇjypographosDircção:/4n/omo Carlos de Souça Lima

I. Processos cescolhas: estudos de sociologia políticaElisa Pereira Reis

2.O guru, o iniciador eoutras variações antropológicasFredrik Barth

•organização: Tomke Lask]

3.Criatividade social, subjetividade coletiva

camodernidade brasileira contemporâneaJoséMaurício Domingues

Fredrik Barth[organização: Tomke Lask]

oguru, o iniciadort outras variações antropológicas

0guru, oiniciador eoutras variações

03637/10

TraduçãoJohn Cunha Cotnerford

CCAE _MON

Page 4: O GURU, O INICIADOR e Outras Variações Antropológicas

Copyright © 2000, Fredrik Barth

TraduçãoJohn Cunha Comtrjord

M»urt <üoutorirtJo (xlo PPUAS/Muku Nií.oníl

Revisão técnica

AntônioCarlosdeSouzaLima

Projeto Gráfico t preparação

Contra Capa

RaKTH. Fredrik

O guru. o iniciador e outras variações antropológicas. - Fredrik Barth.

Tradução deJohn Cunha Comerford. Rio deJaneiro: Contra Capa Livraria,

2000.

[Typographos n" 2] —244 p-: 14 r 21 cm.

Inclui Bibliografia.

ISBN 85-8601 i-js-s

~UFPB~1 StSUOTECA C£_N.!g^

Centro

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2000

Todos os direitos desta edição reservados aContra Capa Livraria Ltda.

<[email protected]>Rua Barata Ribeiro, Í70 — Loja 32522040-000 — Rio de Janeiro — RJ

Tel (55 21) 256-1999Fax (55 21) 256-0526

Sumário

Apresentação —Tomke Lask 7

Os grupos étnicos e suas fronteiras 25

A identidade pathan e sua manutenção 69

Processos étnicos na fronteira entre os Pathan e os Baluchi 95

A análise da cultura nas sociedades complexas 107

O guru e o iniciador: transações de conhecimento emoldagem da cultura no sudeste da Ásia e na Melanésia 141

Por um maior naturalismo na conceptualização das sociedades 167

Metodologias comparativas na análise dos dados antropológicos 187

Entrevista 201

Referências bibliográficas 229

Posfácio — Marco Martiniello 239

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Apresentação

Existem boas razões para publicar uma antologia de textos do antropólogo norueguês Fredrik Barth. Em primeiro lugar, alguns aspectos de sua obra são muito difundidos no ensino de pós-graduação em antropologia no Brasil, e se pode afirmar, sem exagero, queesta obra faz parte dos clássicos da antropologia. Em segundo, aforça de sua teoria das fronteiras étnicas, datada do fim da décadade 1960, continua a estimular as discussões científicas entre as

novas gerações de antropólogos tanto no Brasil, quanto no restodo mundo. Por fim, em dezembro de 1998, Fredrik Barth completou seu septuagésimo aniversário e a publicação de uma antologiaque retraça a evolução de seu pensamento é uma bela maneira dehomenageá-lo.

Essa homenagem, contudo, não deve ser interpretada comouma indicação do ponto final das atividades de Fredrik Barth, poishomenagens costumam começar no fim da vida de uma personalidade ou depois da sua morte. Neste caso, ela deve ser vista comoênfase de seu grande dinamismo, pois Barth, além de se lançar cadavez mais navida pública, continua a pesquisar e a produzir textos elivros. Sua última experiência de campo, por exemplo, foi no Butão— um pequeno e isolado país no nordeste da índia — onde trabalhou durante dez meses entre 1985 e 1995. Aos setenta anos, ele

não perdeu nada de seu espírito empreendedor e projetos não lhefaltam. Como se pode ver na entrevista publicada neste volume, ohabttus da aventura científica lhe foi inculcado cedo e com muita

eficácia. Desde garoto, acompanhava o pai, geólogo, nas expedições cartográficas realizadas durante o verão, incorporando imper-ccptivelmente a sensibilidade para a relação entreo meio ambientefísico casinterpretações científicas sobre ele. Mais tarde, a necessidade

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de expor-se à convivência com o ambiente socioecológico se tornaria uma regra geral para aconcepção de seu trabalho antropológico.

Alimentar constantemente o debate intelectual com suas idéias

inovadoras e instigar o questionamento de conceitos aparentemente bem estabelecidos, tais como etnicidade egrupo étnico, é umdos maiores méritos da obra de Fredrik Barth. Adiscussão originada pela publicação de Ethnic groups and boundaries (1969)', porexemplo, e que na época provocou uma série de reações, continuaa sustentar o debate na comunidade científica internacional.2 Na

década de 1970, antropólogos como Abner Cohen, Ronald Cohene Charles Keyes, inspirados pelo conceito de etnicidade de Barth,tentaram desenvolver novos instrumentos teóricos para a pesquisa

' Para mais detalhes, cf. aintrodução de Barth aesta obra "Os grupos étnicos csuas fronteiras", p.25-67-2Olivro de Martiniello (1995) sobre aetnicidade nas ciências sociais representaum dos exemplos franceses mais recentes da persistência do interesse peloconceito de etnicidade. Atensão que se faz presente na França em relação aoproblema dos imigrantes —criada pelo evidente fracasso da política de tntegraçãoàlafrançaise— está presente tanto no contexto daconstrução européia, quantoem termos mundiais: osmovimentos migratórios mantêm aproblemática docontato interetnico na pauta do dia. Isso talvez explique ointeresse francês pelaintrodução de Fredrik Barth aolivro Ethnic groups and houndariis, finalmentepublicada em 1995. mesmo que demaneira bastante discreta, como umadendoao livro Thcorits de Véihniciti (Paris, PUF), de Philippe Poutignat etJocelyneStreiff-Fenart [Tradução brasileira: Teorias da etnicidade. São Paulo, UNESR1998). Aapresentação de Barth incluída na contracapa do livro deixa claro quetrata-se de uma descoberta recente de seu pensamento, pois as obras mencionadascomo asmais importantes deBarth selimitam a três obras do início de suacarreira. Ethnicgroups and boundaries i ooitavo livro deBarth. Os nove livros queoseguem não têm qualquer registro. Diga-se depassagem que alimitação dopensamento deBarth aos problemas ligados à etnicidade éencontrada tambémnoBrasil. Ver, porexemplo, Cunha (1986).N.doE. Originalmente, apresente coletânea foi concebida porTomke Laskpara um público francófono. Para aedição brasileira, aorganizadora, além de terredigido aintrodução, elaborou com Antônio Carlos de Souza Lima acomposiçãofinal eaordenação dos textos.

ArRüSKNTAÇÜD

antropológica'. Além disso, este conceito se tornou um dos instrumentos mais requisitados pela análise sociológica. Sob sua inspiração, outros conceitos como, por exemplo, o de nacionalismopuderam ser vistos com outros olhos e, dessa maneira, responderde maneira mais consistente às mudanças geopolíticas interpretadas pelas análises científicas.

Barth, porém, não se contentou em dar uma nova concepçãoao conceito de etnicidade. Aprimorando a lógica de seu raciocínioinicial, aplicou-o ao estudo das sociedades complexas e elaborouuma metodologia comparativa adequada para explicar adiversidadecultural nesse tipo de sociedade.4 Aliás, na sua introdução a Ethnicgroups and boundaries já há um esboço teórico dessa preocupação soba noção de sociedade poliétnica, na qual explica a existência devariáveis de uma mesma cultura a partir das diferentes condiçõesecológicas emque os subgrupos da sociedade vivem. Dito de outromodo, a relação entreo meio ambiente e seu efeito sobre as expressões culturais é onipresente na análise científica de Barth, que assim deixa transparecer sua formação inicial em ciências exatas. Paraele, descobrir os princípios que articulam em uma única base a diversidade cultural de uma civilização complexa é uma questão quepassa, cm primeiro lugar e necessariamente, pela etnografia.5

Assim, não foi fortuito que Barth, no início da sua carreira,quando ainda estudava paleontologia na Universidade de Chicago,tenha se encantado com a antropologia social britânica através daleitura da obra de Raymond Firth, com o qual estudaria na London

' O artigo "A class act: anthropology and thc racc to nation across ethnicterrain", deBrackette F. Williams, publicado naAnnualRcvicwsofAnthropology cm1989, apresenta um ótimo retrato desse debate nas décadas de 1970 e 1980.*Ver o capítulo "Metodologias comparativas na análise dos dados antropológicos"^. 107-59.' Seu último estudo publicado sobre Bali (Barth 1993) éum exemplo perfeitode sua exigência científica empirista. Este tema cabordado também no capítulo"A análise dacultura nas sociedades complexas", p. 187-200.

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School ofEconomics and Political Science (LSE). Nessa ocasião, conheceu Edmund Leach, que trabalhava nessa mesma instituição. Leachpassaria a exercer para Barth um papel, se não de mentor intelectual,degrande influência e inspiração científica, a ponto de este segui-lo até Cambridge para fazer o doutorado sob sua orientação, apoiado por uma bolsa do governo norueguês. Embora hoje Barth nãochegue a sedeclarar discípulo de Leach — e não deixe de lembrar afertilidade intelectual desse contato privilegiado6— ele considerao impacto da experiência da pesquisa de campo como o ponto maisimportante de sua formação intelectual: poder estudar uma sociedade em seu contexto e, a partir desses dados, desenvolver umateoria sobre seu funcionamento, e não o contrário. Esta atitude

intelectual cristalizou-se ao longo desuacarreira deexímio etnógrafopara se tornar um preceito metodológico imprescindível.

Assim, a obra de Barth se inscreve diretamente na tradição dodebate teórico entre as escolas antropológicas dualista e monista,que na época em que fazia seu doutorado em Cambridge, estava emplena efervescência entre os discípulos de Boas, Maünowski eRadcliffe-Brown (Leaf1981).7 Era necessário encontrar uma solução para a discrepância que havia entre os modelos conceituais desociedade ea realidade observada em que estes eram aplicados. Convencido da necessidade dos modelos teóricos como base de comparação científica, Leach acabaria aceitando as incongruências com relação às estruturas sociais como efeito da imprecisão das representações culturais. Para ele, somente as representações científicas podemser exatas, ainda que reconheça a necessidade de incoerências para ofuncionamento adequado dos sistemas sociais (Leach 1954: 4).

Barth, por sua vez, incorporou o desafio dessa problemáticacomo uma das preocupações fundamentais em suas pesquisas e,

*Ver aentrevista com Fredrik Barth. p. 201-28.

7Edmund Leach. aluno deMalinowski, também sedebateu com os problemasdecorrentes do dualismo em seu estudo sobre ossistemas políticos daAltaBirmânia. Cf.Leach (1954).

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APRIirNIAf^O

sem privilegiar cronologicamente teoria e etnografia, transformouas incongruências da realidade pesquisada na fonte de informaçãomais rica: a teoria tem de se adaptar à realidade, c não o inverso, istoé. as categorias êmicas são a base dos conceitos sociológicos. Enquanto Leach não abre mão da comparação posterior em termossociológicos, supondo uma sobreposição dos significados êmicose científicos nesse estágio da pesquisa, Barth desconfia do discurso idealizador da sociedade pesquisada e se apoia exclusivamentenas práticas sociais para descobrir o verdadeiro significado das categorias êmicas. As interações entre pessoas ediferences comunidades se tornam a chave de compreensão dos valores inerences dessasociedade. Apartir dessa avaliação, aquestão do timing da introduçãode qualquer instrumento analítico na pesquisa torna-se incontornávcl.

Até hoje adiscussão do valor da terminologia êmica ea maneira pela qual Leach tentou reapropriar-se dela continuam sendo objeto de análise e de crítica construtiva na obra de Barth, tendo ressurgido mais uma vez cm Balinese worlds. Neste livro, Barth analisa omomento oportuno da introdução da teoria antropológica durantea fase de coleta de dados partindo do exemplo elucidativo da análise de Leach sobre um vilarejo em Sri Lanka (Leach 1961. apudBarth I99í:98-ss). Em que momento da pesquisa a posição teórica do antropólogo deve se tornar predominante? Quando ede quemaneira transformar a terminologia dos nativos em terminologiatécnica, quer dizer, em conceitos sociológicos? Segundo Barth, nãose deve passar cedo demais para essa transformação porque essestermos dependem do contexto local em que estão inseridos c podem ter significados variados numa mesma sociedade.

Barth introduz algo novo na metodologia comparativa comopraticada pela antropologia até então: a comparação deve ser feitainicialmente dentro da mesma sociedade entre grupos ou vilarejosgeograficamente afastados. Deste modo, o significado dos valores

' Uma proposta semelhante foi defendida por Leach cm sua aula cm homenagema Malinowski, cm 3de dezembro I959 na LSE (Leach I974: 13-51).

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êmicos pode ser compreendido em sua plena complexidade social.Apenas num segundo momento torna-se possível comparar sistemas êmicos de diferentes sociedades. Nesse ponto, Barth ultrapassa as propostas de Leach em favor das categorias nativas e da necessidade de livrar-se "de todas as suposições apriori" (Leach 1974: 50).Como se sabe, para progredir, é necessário matar seus mestres.

Apesquisa comparativa se impõe então em vários níveis. Se oantropólogo não respeita este procedimento, pode se deparar comdivergências na interpretação dos dados, como ocorreu com Leach,que, oito anos depois de seu livro sobre o Sn Lanka, viu suamonografia contestada por uma interpretação completamente diferente da sua no que dizia respeito ao significado das categorias deparentesco eoelo delas com apropriedade (Robinson 1969). ComoBarth adverte, ouso da terminologia nativa não garante aconstrução de categorias científicas corretas. Suspeitas sobre avalidade deuma pesquisa podem aparecer quando trabalhos independentes dedois antropólogos — utilizando termos científicos idênticos, derivados da terminologia nativa de uma mesma cultura —apresentam resultados diferentes em relação ao significado dessas categorias. Há que se levar em conta contextos socioeconômicos distintos econdições de meio ambiente variadas. Aliás, o estudo de Barthsobre Bali deixa Clifford Geertz na mesma situação que oartigo deRobinson deixara Leach. Barth, porém, tem plena consciência daproblemática metodológica inerente àdivergência dos resultados,estimulando um debate científico construtivo aesse respeito, afimde elaborar uma solução para apersistência das divergências. Emoutras palavras, Barth não se atem tanto àexistência de diferenças—essas não osurpreendem —mas sim achegar auma explicaçãodas diferenças dentro de um mesmo sistema cultural e a comoaproveitá-las como dado científico positivo na análise antropológica de sociedades complexas.

Oque isto significa para aprática da pesquisa antropológica?Isto significa que, em vez de reificar os valores de um sistema apartir de suas aparências coletadas em uma única localidade, é nc-

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Aprrsentaçào

cessário analisar as atitudes e o comportamento das pessoas emseu cotidiano num raio de ação maior que o grupo ou a comunidade inicialmente estudada; é necessário aceitar a diversidade culcu-

ral, não se devendo recirar da realidade suas imperfeições ou seusenigmas.

Para desenvolver esta análise, escolhi inverter a lógicanormalmente ucilizada pelos antropólogos e, de saída, incluiraexperiência devida, assim como as preocupações eorientaçõesque a produzem; em seguida, derivei as constrições que elaspróprias teriam para as práticas eas interpretações das pessoas.Porém se esta construção é válida, devemos ser capazes demostrar como as próprias pessoas conceptualizam einstitucionalizam tais preocupações como sendo as suas,independentemente doquão pragmáticas e contextuais sejamsuas fontes. Para identificar as representações culturaisutilizadas por determinadas pessoas, devemos nos voltar parao conhecimento epara o discurso que essas pessoas empregampara interpretar eobjetivar suas vidas (Barth 1993: 346-7)-

Aetnografia, portanto, permite compreender um momento doprocesso da construção de um tecido sociocultural em que ainterdependência dos elementos presentes se torna visível.

Uma segunda característica do pensamento de Barth reside emsua visão diacrônica dos dados sociais. Todos os traços culturaistêm um passado e precisam ser compreendidos como resultado deum processo em que estão em jogo vários elementos. Pode-se dizerque Barth procura definir a cultura com base na força heurísticados significados que os nativos dão às suas interações. Um levantamento da competência interpretativa pode evidenciar adistribuição de uma cultura no espaço e indicar as fronteiras de um grupoétnico ou de uma sociedade complexa. Um determinado eventopode ser vivido e interpretado a partir de diferentes modelos, deacordo com o contexto cultural do participante. Em sociedadescomplexas como, por exemplo, a de Bali, esta constatação se liga àvisibilidade de uma riqueza cultural que, na verdade, precisa ser

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Fitiimik hARin

decodificada segundo dilerentes sistemas ou correntes de valores,que se encontram e se misturam como se fossem um único eventounificado.

Como mencionado, para Barth, abase da análise antropológicaválida éametodologia comparativa, ou melhor, a comparação entrediferentes versões êmicas de um mesmo fato social numa mesma

sociedade, enão acomparação de diferentes descrições de antropólogos sobre unidades conceituais arbitrariamente delimitadas, taiscomo "sociedade" ou "cultura", isto é, conceitos reificados ou fic-

ções.'1 Ele nos mostra que o desafio de repensar o papel eadefinição da comparação na antropologia social ecultural se liga àpersistência em identificar variantes de uma mesma categoria, que em seguida podem ser comparadas, valendo tanto para comparações dentro de uma mesma cultura, como para uma comparação através dediferentes culturas. Este procedimento, contudo, não estabeleceequivalências, pois a comparação se faz com base em descriçõesconceptualizadas de antemão pela interpretação do antropólogo enão dos nativos. Normalmente são comparadas representações deantropólogos, ou seja, versões no mínimo secundárias da interpretação êmica.

Em resumo, as idéias de Barth com relação à metodologia antropológica afirmam que acomparação depende do conhecimentode um amplo leque de definições êmicas de uma mesma categoria.Acontextualização das diferentes variantes dessa categoria permitedefinir oquadro de valores dentro do qual acategoria écompreendida pelos nativos. Entender o porquê das variações de significadopermite ressaltar o sentido empregado pelos nativos. Essa maneirade proceder a um estudo comparativo certamente evica mal-entendidos, presentes, por exemplo, nos casos de Leach e Robinson e deGeertz e Barth, anteriormente mencionados.

Cf. o capítulo "Metodologias comparativas na análise dos dadosantropológicos", p. 107-39.

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Al-RI.MN'IA<,.\0

Uma apresentação do antropólogo não seria completa sem evocar o cidadão Fredrik Barth, pois, sem esquecer um único segundosua profissão e a excelência acadêmica, ele sempre se engajou empromover o papel do antropólogo na vida pública ou, para usar ostermos de Pierre Bourdieu, ele luta incansavelmente pelo aumentodo capital simbólico dos antropólogos no espaço social. Isso significa que Barth considera imprescindível a presença dos antropólogos nos processos decisórios na política e lamenta que, em particular nos Estados Unidos, a "classe" dos ancropólogos tenha tãopouca visibilidade na vida pública.10

Quando Barth dá o exemplo das suas próprias acividades comohomem público ede consultor de diferentes governos ede agênciasinternacionais para o desenvolvimento, não se trata de motivaçãoegocêncrica de autopromoção. Ao contrário, trata-se da preocupação em dar um exemplo aos colegas para que também eles assumammais responsabilidades civis a fim de criar um espaço no campopolítico para o conhecimento antropológico, pois somente assim,acredita ele, a antropologia poderá obter um reconhecimento socialmaior e influenciar a política de maneira duradoura." Em outraspalavras, segundo Barth, os antropólogos têm de construir umaatitude mais polícica em seu trabalho12, assim como os cientistaspolíticos devem reapropriar-se das idéias antropológicas para melhorar as análises políticas."

"' Cf. a entrevista de Fredrik Barth para Anlhropology Newsletlir, da AmericanAnthropological Association, em fevereiro de 1997.p- 60." Ver, porexemplo, aentrevista com Fredrik Barth, p. 201-28.I: Quefique claroaqui quetambém não basta assumir uma posição depodersendo antropólogo ou sociólogo, se os conhecimentos c as sensibilidadesespecíficas dessas profissões são sacrificadas noaltar davaidade política." Cl.o postáciode Marco Martiniello. p.239-42.

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Franz Boas éuma das referências de Barth para este apelo. Segundo este, ninguém pedira a Boas: "por favor, mude as idéias sobre raça nos Estados Unidos! Ele tinha que afrontar asociedade econvencê-la"14. De certo modo, os cientistas devem assumir opapel do guru na sociedade em que vivem, formando discípulos edifundindo democraticamente oconhecimento.1'No Brasil, particularmente, observamos esse papel reservado sobretudo aos economistas (Loureiro 1995: 70-8; Bourdieu 1997). Omonopólio deportadores de um saber particular na elaboração de políticas nãopode dar resultados satisfatórios e, nesse sentido, Barth aprecia eapoia fortemente os estudos interdisciplinares.

Barth pode ser considerado uma efígie da antropologia aplicada, porém, na sua opinião, exemplos de sucesso em combinar origor científico com a cidadania, citados por ele numa entrevistaconcedida àAnthropology Newslctter em fevereiro de 1997, são os antropólogos da Europa, da Ásia e da América Latina:

Influenciar apolítica ou mudar atitudes públicas ésempreum trabalho exaustivo eingrato. Oquanto os antropólogossão capazes de fazê-lo em países europeus —ouasiáticos oulatino-americanos —se deve ao fato de eles opriorizarem,trabalharem duro ese recusarem adesistir (idem).

Oconceito de grupo étnico éum problema que concerne diretamente àpolítica brasileira eàs minorias étnicas que vivem no Brasil. Por exemplo, ser reconhecido ou não como indígena pelo governo acarreta uma série de conseqüências socioeconômicas paraesses grupos. Daí a necessidade de uma definição correta deste termo.

" Cf. aentrevista de Fredrik Barth para/lnthropolcgy Mewslettcr (1997: 60)." Ver também "O guru eoiniciador". p. 141-65.

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AmtsiiNrAçAo

na qual a obra de Fredrik Barth pode ser altamente útil, inclusivepara reanimar adiscussão em torno desta questão em bases científicas, que possivelmente reforçariam a posição institucional de antropólogos solicitados para pareceres em casos de decisão jurídicasobre o eventual estatuto indígena a ser atribuído a uma "comunidade". As contribuições de Barth ajudam a estabilizar a posição doantropólogo no campo político por meio dos instrumentos objetivos que ele nos fornece para a pesquisa antropológica. Melhorando a eficácia da análise científica, aumenta-se o reconhecimento

dos instrumentos de bordo (Oliveira 1998). Assim, a intervençãocientífica em favor de minorias étnicas, não somente no Brasil, como

no mundo inteiro, teria um lugar privilegiado. Ela seria, entre outras, uma porta que se abre para um exercício mais assíduo da responsabilidade civil dos antropólogos.

Em termos de uma percepção do senso comum, todavia, o auxílio da antropologia em processos jurídicos tem uma desvantagem: seus pareceres não podem ser produzidos com a rapidez desejada pelo sistema legal. São dois ritmos profissionais diferentespara os quais um modus vivendi deveria ser desenvolvido.16 Convenhamos: por mais adaptadas e elucidativas que as teorias de Barthse mostrem para estudos daconstrução e da manutenção de identidades étnicas ou nacionais, estas não podem ser mudadas por manuais do gênero vite fait, èíín/<íií.'7Não se pode garantir a mesmaqualidade científica dentro de um tempo otimizado, segundo regras impostas por uma lógica alheia à antropologia, no caso, as dodireito. Na pesquisa antropológica, o tempo hábil não existe e, sejamos

Profissionais como João Pacheco de Oliveira, lidando há bastante tempo comesse tipodeproblema na prática, chamam aatenção para aincompatibilidade degêneros entre aantropologia eoaparelho jurídico-administrativo orientado.Ct..entreoutros. Oliveira (1998).

Vários textos de Manuela Carneiro da Cunha (1986) dão essa impressão eOliveira (1998) critica apropriadamente essa maneira de vulgarizar umconhecimento científico.

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Prujrik IUriii

honestos, na justiça ele existe somente nos casos de interesseparticular.'"Isso, todavia, não deve impedir a colaboração inter-disciplinar entre a antropologia e o direito, embora as bases e ostermos dessa colaboração tenham de ser repensadas em conjunto.

Assiste-se a um encontro de duas narrativas diferentes, das

quais cada uma reclama a legitimidade de pronunciar o veredictosem que as condições originais sejam esclarecidas cm algum momento. Do lado do direito, o resultado esperado de um parecer sãorespostas claras sem ambigüidades em relação à definição deextensão do território e dos dados demográficos. Pouco interessam àjustiça as bases teóricas sobre as quais repousa apesquisa antropológica, e que podem sustentar que a cultura é "distributiva"'9, istoé, que ela não conhece fronteiras nacionais epode se deslocar transformando-se em correntes de contatos intereulturais aos quais éexposta.20 Por sua vez, odesequilíbrio em termos de capital simbólico no espaço social não facilita a posição do antropólogo empoder impor suas regras ao jogo. Na verdade, a combinação dosenso comum com o espírito do direito não representa uma plataforma muito ampla para anegociação científica.

" Adissertação de mestrado de Mércia Rejane Rangel Batista (1992) éumótimo exemplo para explicitar oproblema. Os índios Truká foram reconhecidoscomo tais em conseqüência desta tese de mestrado, que precisou quase cincoanos para ser feita. Certamente Batista não poderia ter fornecido em um mêsum parecer que tivesse amesma convicção: aqualidade científica da pesquisasimplesmente não poderia seramesma.

" Cf. ocapítulo "A análise da cultura nas sociedades complexas", p. 187-200.!0 Adivergência entre adefinição antropológica de fronteira, estabelecida apartirda prática social da mesma, cadefinição política como representada pelo Estado-nação éde difícil dissolução, pois ambas repousam sobre pré-requisitos científicos:a antropologia contra a geografia política. Mesmo antes da existência daantropologia como ciência, oEstado-nação se viu frente ao problema de inculcarem seus súditos um habitus que respeitasse a linha de fronteira, da qual ofuncionamento do Estado dependia. Qhabilus de populações fronteiriças semprefoi, econtinua aser, baseado na percepção de um zona de fronteira, independentemente de os cidadãos serem índios ou europeus. Ver Lask (1994; 1995).

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AíRIiSliNTAÇÃO

Barth enfatiza precisamente o aspecto diacrônico da construção das identidades que são mantidas por meio de uma permanentereconstrução do sistema de valores intrínsecos a essa sociedade.Diacrônico não quer dizer que esse processo teve um início preciso no tempo e que terá um fim delimitado. E preciso abstrair otempo histórico na análise diacrônica antropológica, permanecendo, contudo, a questão de como resolver a legitimidade entre otempo histórico eatradição da história oral. Aliás, adescoberta depopulações que exigem odireito de serem índios, apesar de já consideradas brasileiros, mostra que só é possível compreender umprocesso diacrônico de identificação em dois sentidos abertos.Não existe uma direção privilegiada para aqual todas as identidades evoluem, mesmo que isso seja o ideal para um Estado-naçãoque vise ahomogeneidade de atribuições de identidade. Adiscussão em torno do aspecto de "falsidade" ou "autenticidade" doíndio precisa ser empreendida no contexto dos anseios materiaisde todos os participantes nessa discussão. Trata-se de verificar sea reivindicação pode ser comprovada por meio de uma pesquisaantropológica.

Certamente o que Barth propõe aos antropólogos é um papelsocial bastante difícil. Precisamos, mesmo assim, participar ativamente na vida política por meio de uma aplicação responsável dosconhecimentos antropológicos, para que que se torne viável adquirir legitimidade no espaço social e quebrar o monopólio decisóriode certos saberes, particularmente a economia.

Apesar de fisgar opúblico em geral com um discurso científicosobre possíveis teorias universais com relação ao funcionamento detodas as sociedades humanas — o estatuto de ciência a obrigaa isso— aantropologia induz àcrença em uma diferença qualitativa entresociedades complexas e tribais. Todavia, quando lemos ocapítulo

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PiuimiK Bariii

"A análise da cultura nas sociedades complexas", o preconceito deque nossas sociedades são mais complexas que as tribais desaparece

Ateoria eos conceitos antropológicos devem ser testados naanálise da vida tal como ela ocorre em um determinado lugardo mundo. Qualquer lugar pode servir como provocação paradesafiar ecriticar ateoria antropológica [cf. p.I081.

Pondo em prática oque Barth afirma neste capítulo, uma análise da construção das identidades nacionais na Alemanha ena França, por exemplo, é um teste eficaz para aplicabilidade de seusconceitos.2'A questão da reconstrução permanente das identidades se impõe também no contexto sociopolítico na Europa atual,em que os fluxos migratórios provenientes do mundo inteiro obrigam as populações dos países receptores arepensar sua identidadenacional, desafiada pela presença do outro no seu território. Alémdisso, as pressões políticas para a instituição de uma identidadetransnacional européia no lugar das velhas e conhecidas identidades nacionais reanimaram o debate sobre o nacionalismo. Afacilidade de viajar ede se deslocar sem barreiras pela União Européiateve efeito surpreendente para alguns: no lugar de construir umaidentidade européia, o renascimento de movimentos nacionalistasde todas as cores.22

"Nesse contexto, apresentei uma tese de doutoramento sobre aconstruçãodas identidades alemã efrancesa com base nas teorias de Barth. Perguntava-mese ateoria das fronteiras étnicas realmente teria amesma força heurística emqualquer lugar do mundo. Oprincípio da construção eda manutenção de umaidentidade nacional não deveria ser diferente do funcionamento das fronteirasétnicas entre grupos pequenos, tais como Barth estudara. Assim, um alemão sedistingue de um francês pelos mesmos mecanismos que um pathan de umbaluch ou de um hazara. Todos dispõem dos mesmos instrumentos paradistingu.rcm-se. Afinal, construu uma identidade coletiva socialmentereconhecida éum processo que passa pelas mesmas etapas tanto em umasociedade tribal quanto em um Estado-nação.»Na era da globalização econômica, esse fenômeno não ficou circunscrito àEuropa. Omundo inteiro despertou para as espccificidades étnicas.

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APHCSKNrAÇÃO

Anecessidade da interação com ooutro para reafirmar ou mesmo descobrir aprópria identidade faz parte do exercício diário naantropologia. Isso significa que afronteira étnica —em sua acepçãomais extensa —na verdade élivre dos constrangimentos territoriais,éalgo "portátil". Basta encontrar com uma pessoa de outra cultura,mesmo em seu próprio país, para que a fronteira étnica como estandarte da alteridade e da separação indissolúvel seja suscitada.Assim, deve-se estudar aanálise das interações e de seus resultadosnuma fronteira étnica, e não a estrutura da sociedade.2'

Aidéia de Barth de enfatizar, em sua definição dos limites deum grupo étnico, os valores êmicos e sua interação com outrosgrupos como meio de afirmar as diferenças, em vez de insistir noselementos culturais visíveis emateriais, quer dizer objetiváveis, comoaqueles presentes nas definições primordialistas, fascina por suasimplicidade evidente. Aliás, toda solução genial parece tão simplesdepois que alguém adescobriu. Qualquer antropólogo que se insre em outra sociedade ou grupo social que não aquele de queparte, sabe que, por mais que tente se tornar um "nativo", aceios elementos visíveis e óbvios dessa outra cultura, defrontrdeterminados momentos de sua pesquisa, com _:a verdad n-tidade. Em outras palavras, aantropologia vive dessa col.fiação,dessa ida e volta entre sistemas de valores diferentes.

Obviamente este tipo de raciocínio causa problemas para asanálises políticas que acreditam depender J•fronteiras estatais fixas. Com base na prática social, pode-se afir r que não existemfronteiras lineares, mas sim zonas fronteiriças, em qr •diferentesidentidades se constituem à medida que se cruzai .o cor ^(Lask 1994). Para oantropólogo, trata-se de impor esse £>•tinco àcorrente da percepção linear dominante no campo

bm resumo, o conceito de fronteira étnica se presta r"lente àanalise dos processos multidimensionais ede longa ;ao

Cf. ocapítulo "Por um maior naturalismo na conceptualização das sociedades"P- 167-86.

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do estabelecimento de identidades nacionais. A aplicabilidade dosconceitos de Barth a outros tipos de sociedade que não as tribais,mesmo que inicialmente desenvolvidos a partir de estudosetnográficos realizados em tribos no Oriente, testemunha sua versatilidade e mesmo, diria, sua universalidade. A força analítica deseus princípios teóricos não diminui quando retirados de seu contexto original.

Parece-me que é neste sentido que deve serentendida a publicação da presente antologia: contribuir para a descoberta de novospotenciais científicos a partir das bases lançadas por Barth. Emportuguês, o acesso a sua obra torna-se possível para um númeromaior de estudantes de graduação, além, é claro, de um públicomais amplo interessado em questões étnicas, assim como na discussão teórica sobre o estudo de sociedades complexas e sobre ametodologia antropológica aserdesenvolvida para sua análise. Alémdisso, a reunião deartigos que comprovam a evolução de um pensamento formado durante uma vida acadêmica de praticamente cinqüenta anos permite àqueles que conheciam apenas o Barth "dosgrupos étnicos" descobrir outras dimensões de suas preocupaçõeshumanas e acadêmicas, e também explorar o potencial científicodas mesmas.

Liège, junho de 1998TomkeLask

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Os grupos étnicosesuasfronteiras

Esta coletânea de ensaios aborda a problemática dos grupos étnicos e de sua permanência1. Apesar de negligenciado, esse tema édegrande importância para a antropologia social. Praticamente todoraciocínio antropológico baseia-se na premissa de que a variaçãocultural é descontínua: supõe-se que há agregados humanos quecompartilham essencialmente uma mesma cultura eque há diferenças interligadas quedistinguem cada uma dessas culturas de todasas outras. Uma vez que cultura nada mais é do que uma maneira dedescrever o comportamento humano, segue-se disso que há gruposdelimitados depessoas, ouseja, unidades étnicas quecorrespondema cada cultura. Muita atenção tem sido dedicada às diferenças entreculturas, bem como às suas fronteiras e às conexões históricas en

tre elas; mas o processo de constituição dos grupos étnicos e anatureza das fronteiras entre estes não têm sido investigados namesma medida. Os antropólogos sociais têm evitado esses problemas usando umconceito extremamente abstrato de"sociedade" pararepresentar o sistema social abrangente dentro do qual grupos eunidades menores e concretos podem ser analisados. Este uso do

Dooriginal: "Introduction". F. Barth (td.),Elbnicgrcupsandbcundaries. Bergen-Oslo/Boston: Universitcts Forlaget/Little Brown, 1969-

N. do R. da T Esta coletânea detextos de autores escandinavos organizadapor Fredrik Barth a partir de um simpósio financiado pela Wenner-GvenFondation for Anthropological Research, realizado na Universidade de Bergende 23 a26de fevereiro de de 1967. teve conseqüências fundamentais para oestudo das questões relativas àetnicidade eàconstrução de fronteiras entregrupos étnicos.

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conceito, porém, desconsidera as características efronteiras empíricasdos grupos étnicos, bem como as importantes questões teóricasque uma investigação das mesmas levanta.

Ainda que hoje ninguém mais sustente aingênua suposição deque cada tribo ecada povo mantêm sua cultura através de uma indiferença hostil com relação a seus vizinhos, ainda persiste a visãosimplista de que os isolamentos social egeográfico foram os fatores cruciais para a manutenção da diversidade cultural. Uma investigação empírica do caráter das fronteiras étnicas, tal como apresentada nos ensaios que se seguem, traz duas descobertas que, apesar de não serem nem um pouco surpreendentes, demonstram bemainadequação dessa visão. Em primeiro lugar, torna-se claro que asfronteiras étnicas permanecem apesar do fluxo de pessoas que asatravessam. Em outras palavras, as distinções entre categorias étnicasnão dependem da ausência de mobilidade, contato einformação, masimplicam efetivamente processos de exclusão ede incorporação, através dos quais, apesar das mudanças de participação epertencimentoao longo das histórias de vida individuais, estas distinções sãomantidas. Em segundo lugar, há relações sociais estáveis, persistentese freqüentemente vitais que não apenas atravessam essas fronteirascomo também muitas vezes baseiam-se precisamente na existência destatus étnicos dicotomizados. Dito de outro modo, as distinçõesétnicas não dependem da ausência de interação e aceitação sociaismas, ao contrário, são freqüentemente a própria base sobre a qualsistemas sociais abrangentes são construídos. Ainteração dentro desses sistemas não leva àsua destruição pela mudança epela aculturação:as diferenças culturais podem persistir apesar do contato interétnicoe da interdependência entre etnias.

Princípios gerais da abordagemHá aqui, portanto, um importante campo de questões que precisaser repensado. E necessário um ataque simultaneamente teórico eempírico: precisamos investigar detalhadamente os fatos empíricosem diversos casos eadequar nossos conceitos aesses fatos, de modo

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OS CiKUPOS ÉTNICOS li SUAS FRON IURAS

aelucidá-los da maneira mais simples epertinente possível eapermitir explorar suas implicações. Nos ensaios seguintes, cada autoraborda um caso com oqual está intimamente familiarizado em função de seu trabalho de campo, etenta aplicar àanálise um conjuntocomum de conceitos. O principal ponto de partida teórico é composto por várias partes interconectadas. Em primeiro lugar,enfatizamos ofato de que grupos étnicos são categorias atributivase identificadoras empregadas pelos próprios atores; conseqüentemente, têm comocaracterística organizar as interações entre as pessoas. Tentamos relacionar outras características dos grupos étnicosa essa característica básica. Em segundo lugar, todos os trabalhosapresentados assumem na análise um ponto de vista gerativo: emvez de trabalharmos com uma tipologia de formas de grupos e derelações étnicas, tentamos explorar os diferentes processos queparecem estar envolvidos na geração emanutenção dos grupos étnicos. Em terceiro lugar, para observarmos esses processos, deslocamos o foco da investigação da constituição interna e da históriade cada grupo para as fronteiras étnicas easua manutenção. Cadaum desses pontos requer certa elaboração.

Definição de grupo étnicoAexpressão grupo étnico égeralmente entendida na literatura antropológica (ver, por exemplo, Narroll 1964) como a designaçãode uma população que:

1. em grande medida se autoperpetua do ponto de vista biológico;

2. compartilha valores culturais fundamentais, realizados demodo patentemente unitário em determinadas formas culturais;

3. constitui um campo de comunicação e interação;4. tem um conjunto de membros que se identificam esão iden

tificados por outros, como constituindo uma categoria que podeser distinguida de outras categorias da mesma ordem.

Essa definição típico-ideal não está muito longe, em termosde conteúdo, da proposição tradicional de que uma raça = uma

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cultura = uma língua, ede que sociedade = unidade que rejeita oudiscrimina outros. Mesmo assim, na forma modificada apresentadaacima, não deixa de ser uma definição que se aproxima suficientemente de muitas situações etnográficas empíricas, ao menos talcomo elas apareceram eforam relatadas, de modo que esse significado continua aser útil para os objetivos da maioria dos antropólogos. Minha discordância não diz respeito tanto ao conteúdosubstantivo dessas características, ainda que eu pretenda demonstrar que temos muito aganhar com uma certa mudança de ênfase;minha principal objeção éque. tal como está formulada, essa definição nos impede de compreender ofenômeno dos grupos étnicos eseu lugar na sociedade ena cultura humanas. Isso porqueela evita as questões mais fundamentais: ao tentar oferecer ummodelo típico-ideal de uma forma empírica encontrada recorrentemente, essa formulação traz implícita uma visão preconcebidade quais são os fatores significativos para agênese, aestrutura ea função de tais grupos.

Oprincipal problema desta visão éoseu pressuposto de que amanutenção das fronteiras não é problemática, e que isto se dácomo conseqüência do isolamento que as características arroladasimplicam: diferenças racial ecultural, separação social, barreiras lingüísticas, inimizade espontânea e organizada. Com isso, limita-setambém agama de fatores que usamos para explicar adiversidadecultural: somos levados aimaginar cada grupo desenvolvendo suaforma cultural esocial em isolamento relativo, respondendo principalmente a fatores ecológicos locais, através de uma história deadaptação por invenção eempréstimos seletivos. Essa história produziu um mundo de povos separados, cada qual com sua cultura eorganizado em uma sociedade, passível de ser legitimamente isolada para descrição como se fosse uma ilha.

Os grupos étnicos como unidades portadoras de culturaEm vez de discutir aadequação dessa versão da história da culturapara qualquer coisa que não ilhas pclágicas. apontarei algumas das

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OstiRUPOS f.TNICOS li SUAS FRONTEIRAS

inconsistências lógicas desse ponto de vista. Dentre as características listadas, geralmente ocompartilhamento de uma mesma culturaassume importância central. Na minha concepção, é muito maisvantajoso considerar essa importante característica como uma conseqüência ou resultado ao invés de tomá-la como um aspecto primário ou definidor da organização dos grupos étnicos. Quando seopta por considerar como característica primária dos grupos étnicos seu aspecto de unidades portadoras de cultura, há uma série deimplicações de longo alcance. Somos levados aidentificar edistinguir os grupos étnicos pelas características morfológicas das culturas das quais eles são os portadores. Esse ponto de vista contémum opinião preconcebida arespeito (i) da natureza da continuidade dessas unidades no tempo; e (ii) do locus dos fatores que determinam a forma dessas unidades.

I. Dada a ênfase na dimensão desses grupos como portadoresde cultura, a classificação das pessoas e dos grupos locais comomembros de um grupo étnico deve necessariamente depender dapresença de traços culturais particulares. Na tradição das áreas culturais, isso éalgo que pode ser julgado objetivamente pelo observador etnográfico, sem que se leve em conta as categorias epreconceitos dos atores. Diferenças entre os grupos tornam-se diferençasentre inventários de traços; a atenção concentra-se sobre a análisedas culturas, em detrimento da organização étnica. Conseqüentemente a relação dinâmica entre os grupos será descrita através deestudos de aculturação do tipo que atrai cada vez menos interessena antropologia, ainda que sua inadequação teórica nunca tenhasido discutida a fundo. E uma vez que a origem histórica de qualquer conjunto de traços culturais é sempre diversificada, esse ponto de vista abre espaço também para uma "etnohistória" que produz uma crônica de aquisições e mudanças culturais e tenta explicar a causa do empréstimo de certos itens. No entanto qual é efetivamente a unidade cuja continuidade no tempo é representadanesses estudos? Paradoxalmente, aí devem ser incluídas culturas

existentes no passado, que no presente seriam evidentemente

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excluídas devido a diferenças entre suas formas — justamente asdiferenças usadas para identificara diferenciação sincrônica de unidades étnicas. Essa confusão certamente não ajuda a esclarecer ainterconexão entre "grupo étnico" e "cultura".

2. As formas culturais aparentes que podem ser arroladas cmséries de traços exibem os efeitos da ecologia. Não me refiro aquiao fato de que elas refletem uma história de adaptação ao meioambiente: em um sentido mais imediato, elas também refletem ascircunstâncias externas às quais os atores têm que se acomodar.Será que as mesmas pessoas, com os mesmos valores e idéias, nãoadotariam diferentes padrões de vida e institucionalizariam diferentes formas de comportamento, se postas diante de oportunidades diferentes oferecidas por ambientes distintos? Além disso, também é razoável esperar que um dado grupo étnico, distribuindo-sesobre um território que apresenta circunstâncias ecológicas variáveis, mostre uma diversidade regional de comportamentosinstitucionalizados manifestos que não reflete diferenças deorientação cultural. Como então classificar essa diversidade, se adotamos as formas institucionais explícitas como critério diagnóstico?Um exemplo pertinente é a distribuição e a diversidade dos sistemas sociais locais dos Pathan2. Em função de seus valores básicos,um pathan das áreas montanhosas ao sul, nas quais há uma organização homogênea baseada em linhagens, necessariamente percebe ocomportamento dos Pathan, de Swat, como algo tão diferente e tãorepreensível em termos de seus próprios valores, que dizem queseus irmãos do norte "não são mais pathan". De fato, em termos decritérios "objetivos", o padrão explícito de organização destes últimos parece mais próximo daquele dos Punjabi. Mas eu descobrique, explicando aos Pathan do sul as circunstâncias existentes nonorte, era possível fazê-los concordar que os do norte eram também pathan, eaté mesmo admitir que, naquelas circunstâncias, eles

1N. do E. Ver. no presente volume, ocapítulo "A identidade pathan csuamanutenção", p.69-93.

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próprios talvez agissem da mesma maneira. II, portanto, inadequadoconsiderar que as formas institucionais manifestas constituem ascaracterísticas culturais que a todo momento permitem distinguirum grupo étnico, pois estas formas são determinadas tanto pelaecologia quanto pelo legado cultural. Também não écorreto alegarque toda diversificação interna aum grupo seja um primeiro passorumo à subdivisão e à multiplicação de unidades. Há casos bemconhecidos e documentados de um mesmo grupo étnico, caracte-nzando-se também por um nível relativamente simples de organizarão econômica, ocupando vários nichos ecológicos diferentes e, aindaassim, mantendo uma unidade cultural eétnica básica durante longos períodos de tempo, como, por exemplo, ocaso dos Chuckcheedo interior edo litoral (Bogoras 1904-9) ou dos lapões das renas,dos rios c do litoral (Gjessing 1954).

Em seu ensaio "Diferenciação étnica ecultural". Blom' apresentaargumentos convincentes arespeito desse ponto ao estudar os agricultores das regiões montanhosas da Noruega central. Ele mostracomo a participação e auto-avaliação desses agricultores no quediz respeito aos valores noruegueses mais gerais assegura umpertcncimento contínuo ao grupo étnico mais amplo, apesar dospadrões de atividade extremamente específicos c desviantes que aecologia local lhes impõe. Para analisar casos como esse, precisamos assumir um ponto de vista que não confunda os efeitos dascircunstâncias ecológicas sobre o comportamento com os efeitosda tradição cultural, tornando possível aseparação desses fatores eainvestigação dos componentes culturais e sociais não-ecológicosque agem no sentido da criação de diversidade.

Os grupos étnicos como tipo organizacionalAo se enfocar aquilo que ésocialmente efetivo, os grupos étnicos passam•1 ser vistos como uma forma deorganização social. Acaracterística

' Blom, Jan-Pctter. "Ethnic and cultural ditferentiation". Em: F. Barth (ed.)Ethnicgroups and boundaries. Op.cit.

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crítica passa a ser então o item 4 da lista da página 27: a auto-atribuição eaatribuição por outros. Aatribuição de uma categoriaéuma atribuição étnica quando classifica uma pessoa cm termos desua identidade básica, mais geral, determinada presumivelmente porsua origem e circunstâncias de conformação. Nesse sentidoorganizacional, quando os atores, tendo como finalidade ainteração,usam identidades étnicas para se categorizar ecategorizar os outros, passam a formar grupos étnicos.

Eimportante reconhecer que apesar das categorias étnicas levarem em conta diferenças culturais, não podemos pressupor qualquer relação de correspondência simples entre as unidades étnicaseas semelhanças e diferenças culturais. As características a seremefetivamente levadas em conta não correspondem ao somatório dasdiferenças "objetivas"; são apenas aquelas que os próprios atoresconsideram significativas. Por um lado, variações ecológicas às vezes marcam eexageram certas diferenças; por outro, algumas diferenças culturais são usadas pelos atores como sinais eemblemas dediferença, ignorando-se outras. Além disso, em algumas relaçõesdiferenças radicais são atenuadas edenegadas. Oconteúdo culturaldas dicotomias étnicas parece ser, em termos analíticos, de duasordens diferentes: (i) sinais esignos manifestos, que constituemas características diacríticas. que as pessoas buscam eexibem paramostrar sua identidade; trata-se freqüentemente de característicastais como vestimenta, língua, forma das casas ou estilo geral devida; e(ii) orientações valorativas básicas, ou seja, os padrões demoralidade eexcelência pelos quais as performances são julgadas.Uma vez que pertencer auma categoria étnica implica ser um certotipo de pessoa e ter determinada identidade básica, isto tambémimplica reivindicar ser julgado c julgar-se a si mesmo de acordocom os padrões que são relevantes para tal identidade. Nenhum desses tipos de "conteúdos" culturais deriva de uma simples lista descritiva de características ou diferenças culturais; não se pode prever apartir de princípios primários quais características os atores irãoeferivamente enfatizar etornar organizacionalmente relevantes.

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Em outras palavras, as categorias étnicas oferecem um recipienteorganizacional que pode receber conteúdo em diferentes quantidades e formas nos diversos sistemas socioculturais. Podem ter grande importância em termos decomportamento, mas não necessariamente; podem colorir toda avida social, mas também ser relevantesapenas em determinados setores de atividade. Há claramente aquium grande campo para descrições etnográficas e comparativas dasdiferentes formas de organização étnica.

A ênfase na atribuição como característica fundamental dosgrupos étnicos resolve também as duas dificuldades conceituaisdiscutidas anteriormente.

1. Quando as unidades étnicas são definidas como um grupoatributivo e exclusivo, a sua continuidade é clara: ela depende damanutenção de uma fronteira. As características culturais que assinalam a fronteira podem mudar, assim como podem ser transformadas as características culturais dos membros e até mesmo altera

da a forma de organização do grupo. Mas o fato de haver umacontínua dicotomização entre membros e não-membros nos permite especificar a natureza da continuidade e investigar forma econteúdo culturais em mudança.

2. Apenas os fatores socialmente relevantes tornam-se importantes para diagnosticar o pertencimento, enão as diferenças explícitas e "objetivas" que são geradas a partir de outros fatores. Nãoimporta quãodiferentes sejam os membros em termosde seu comportamento manifesto: se eles dizem que são A, em contraste comoutra categoria Bda mesma ordem, desejam ser tratados e ter seucomportamento interpretado e julgado como próprio de A e nãode B. Em outras palavras, declaram sua adesão à cultura compartilhada por A. Os efeitos disso, comparados com outros fatores queinfluenciam o comportamento efetivo, podem então ser tomadoscomo objeto para investigação.

Asfronteiras dos grupos étnicosDesse ponto de vista, o foco central para investigação passa aser a

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fronteira étnica que define ogrupo enão oconteúdo cultural porela delimitado. As fronteiras sobre as quais devemos concentrarnossa atenção são evidentemente fronteiras sociais, ainda que possam ter contrapartida territorial. Se um grupo mantém sua identidade quando seus membros interagem com outros, disso decorre aexistência de critérios para determinação do pertencimento, assimcomo as maneiras de assinalar este pertencimento ou exclusão.Os grupos étnicos não são apenas ou necessariamente baseados naocupação de territórios exclusivos; eas diferentes maneiras atravésdas quais eles são mantidos, não só as formas de recrutamentodefinitivo como também os modos de expressão evalidação contínuas, devem ser analisadas.

Além disso, afronteira étnica canaliza avida social. Ela implicauma organização, na maior parte das vezes bastante complexa, docomportamento edas relações sociais. Aidentificação de uma outra pessoa como membro de um mesmo grupo étnico implica umcompartilhamento de critérios de avaliação e de julgamento. Ouseja, é pressuposto que ambos estejam basicamente "jogando omesmo jogo", eisso significa que há entre eles um potencial paradiversificação eexpansão de suas relações sociais, de modo a eventualmente cobrir todos os diferentes setores edomínios de atividade. Por outro lado, adicotomização que considera os outros comoestranhos, ou seja, membros de outro grupo étnico, implica oreconhecimento de limitações quanto às formas de compreensão compartilhadas, de diferenças nos critérios para julgamento de valor ede performance, bem como uma restrição da interação àqueles setores em que se pressupõe haver compreensão comum e interessesmútuos.

Isso torna possível compreender uma última forma de manutenção de fronteiras étnicas através da qual unidades e fronteirasculturais persistem. Amanutenção de fronteiras étnicas implica também aexistência de situações de contato social entre pessoas dediferentes culturas: os grupos étnicos só se mantêm como unidades significativas se acarretam diferenças marcantes no comporta

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Os GRUPOS ÉTNICOS I. SUASFRON rtIRAS

mento, ou seja, diferenças culturais persistentes. No entanto, havendo interação entre pessoas de diferentes culturas, seria esperado que essas diferenças se reduzissem, uma vez que a interaçãotanto requer como gera certa congruência de códigos e valores —em outras palavras, uma similaridade ou comunidade cultural (cf.Barth, 1966 para minha argumentação a esse respeito). Assim, apersistência de grupos étnicos em contato implica não apenas aexistência de critérios e sinais de identificação, mas também umaestruturação das interações que permita a persistência de diferenças culturais. Considero que a característica organizacional quedeve ser geral em todas as relações interétnicas é um conjuntosistemático de regras que governam os encontros sociaisinterétnicos. Em toda vida social organizada, aquiloque pode sertomado como relevante para a interação emqualquer situação socialparricular é prescrito (Goffman 1959). Havendo conformidadequanto a essas prescrições, a concordância das pessoas quanto acódigos e valores não precisa estender-se para além daquilo que érelevante para aquelas situações sociais nas quais elas interagem.Relações interétnicas estáveis pressupõem precisamente esse tipode estrutura de interação: um conjunto de prescrições que governam as situações decontato e permitem uma articulação em algunssetores ou domínios de atividade específicos e um conjunto deinterdições ou proscrições com relação a determinadas situaçõessociais, de modo a evitar interações interétnicas em outros setores;com isso, partes das culturas são protegidas da confrontação e damodificação.

Sistemas sociais poliétnicosEvidentemente, é isso oque Furnivall (1944) retratou com grandeclareza em sua análise da sociedade plural: uma sociedade poliétnicaintegrada no âmbito do mercado sob o controle de um sistemaestatal dominado por um dos grupos, mas preservando amplos espaços de diversidade cultural nos setores de atividade doméstica erc'igiosa.

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O que os antropólogos posteriores não levaram suficientemente em conta foi a possível variedade dos setores de articulaçãoede separação, eavariedade de sistemajj^iynicos que isso implica. Sabemos alguma coisa a respeito dos sistemas melanésios detroca de objetos pertencentes à esfera de alto prestígio da economia, e até algo sobre a etiqueta e as prescrições que governam estasituação de troca que a isolam de outras atividades. Temos informações também arespeito de vários sistemas policêntricos tradicionaisdo Sudeste Asiático4 em que há integração tanto na esfera do comércio regulado pelo prestígio, quanto nas estruturas políticas quase-feudais. Já algumas regiões do sudoeste da Ásia mostram formas baseadas cm uma economia de mercado monetarizada de maneira mais

plena, concomitante auma integração política de caráter policêntrico.Devemos lembrar ainda acooperação ritual eprodutiva ea integraçãopolítica observadas no sistema de castas indiano, no qual talvez apenas oparentesco eavida doméstica permaneçam como setor proscri-to e fonte de diversidade cultural. Nada é ganho ao se juntar essesvários sistemas sob o rótulo cada vez mais vago de sociedade "plural", ao passo que a investigação das diferentes variedades de estrutura pode lançar luzsobre as formas sociais e culturais.

Aquilo que no nível macro podemos chamar de articulação eseparação corresponde, no nível micro, a conjuntossistemáticos derestrições com relação a papéis. Todos esses sistemas têm em comum o princípio de que a identidade étnica implica uma série derestrições quanto aos tipos de papel que um indivíduo pode assumir, equanto aos parceiros que ele pode escolher para cada tipo diferentede transação.5 Em outras palavras, se considerarmos a identidade

' CA'. Izikowitz, Karl. G. "Neighbours in Laos". Em: F. Barth (ed.) Ethmcgroups and boundaries. Op.cit.' Aenfática negação ideológica do primado da identidade étnica (eposiçãosocial) que caracteriza as religiões universais surgidas no Oriente Médio podeser compreendida nesta perspectiva, já que praticamente qualquer movimentode reforma social ou ética nas sociedades poliétnicas dessa região colidiriamcom convenções c normas de caráter étnico.

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étnica como um status, este será superior em relação à maioria dosoutros statuse definirá a constelação permissível de status, ou personalidades sociais, que um indivíduo com uma dada identidadeétnica pode assumir. Neste sentido, aidentidade étnica ésemelhante ao sexo eà posição social, pois ocasiona restrições em todas asáreas de atividade e não apenas em determinadas situações sociais6.Assim, pode-se dizer que é uma identidade imperativa, uma vez quenão pode ser desconsiderada e temporariamente deixada de ladoem função de outras definições da situação. As restrições quantoao comportamento de uma pessoa que decorrem de sua identidadeétnica tendem portanto a ter caráter absoluto e, no caso de sociedades poliétnicas complexas, bastante abrangente. As convenções sociaisemorais componentes dessa identidade tornam-se ainda mais resistentes à mudança ao serem agrupadas em conjuntos estereotipados, considerados característicos de uma identidade singular.

As associações entre identidades epadrões valorativosAanálise das características interacionais e organizacionais das relações interétnicas foi prejudicada pela falta de atenção dada aosproblemas da manutenção de fronteiras. Isso talvez sedeva ao fatode os antropólogos terem passado a raciocinar com uma idéia equivocada a respeito da situação interétnica prototípica. Atendênciafoi pensar em termos de povos diferentes, com histórias eculturasdiferentes, que em dado momento se reúnem e se acomodam unsaos outros, geralmente cm um contexto colonial. Mas euargumentaria que. para melhor visualizar os requisitos básicos dacoexistência de diferentes grupos étnicos, deveríamos nos perguntar o que énecessário para que as distinções étnicas surjam em uma dada área.Em termos organizacionais, fica claro que esses requisitos são, em primeiro lugar, uma classificação de setores da população em categorias

' Adiferença entre grupos étnicos eestratos sociais, aparentemente problemáticaneste momento daargumentação, será desenvolvida adiante.

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de status exclusivas e imperativas e, em segundo lugar, uma aceitação do princípio segundo o qual os padrões aplicados a uma dessas categorias podem ser diferentes daqueles aplicados a uma outra. Ainda que isso por si só não explique por que as diferençasculturais surgem, permite-nos perceber como elas persistem. Cadacategoria pode ser associada auma escala de valores distinta. Quantomaiores as diferenças entre esses padrões valorativos, maiores asrestrições à interação étnica, poisos status e as situações presentesna totalidade do sistema social que envolvam comportamentosdiscrepantes com relação às orientações valorativas de uma pessoadevem ser por esta evitados, uma vez que esses comportamentossofrerão sanções negativas. Além disso, dado que as identidadessão tanto sinalizadas como assumidas, todas as novas formas de

comportamento tenderão aserdicotomizadas; portanto, esperaríamos que as restrições em relação aos papéis sociais operassem demodo que houvesse relutância em agir de maneiras inovadoras porque uma pessoa teria medo de que o comportamento inovador fosse inadequado para alguém com sua identidade. Esperaríamos também que as pessoas rapidamente classificassem todas as formas deatividade associando-as a um ou a outro conjunto de características étnicas. Do mesmo modo que as dicotomizações em termos detrabalho masculino versus trabalho feminino parecem proliferar emalgumas sociedades, a existência de categorias étnicas básicas parececonstituir um fator que incentiva a proliferação de diferenciaçõesculturais.

Nesses sistemas, as sanções que produzem a adesão aos valores específicos de cada grupo não são exercidas apenas por aquelesque compartilham da mesma identidade. Também nesse aspecto oparalelo com outros status imperativos é útil: do mesmo modo queambos os sexos ridicularizam o homem que é efeminado, e todasasclasses punem o proletário com ares de riqueza, também é provávelque os membros de todos os grupos étnicos em uma sociedadepoliétnica ajam de modo amanter as dicotomias e diferenças. Ondeas identidades sociais são organizadas e alocadas de acordo com

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esses princípios, haverá uma tendência no sentido de canalizar epadronizar a interação e no sentido da emergência de fronteirasque mantêm eproduzem diversidade étnica dentro de sistemas sociais maiores e mais abrangentes.

A interdependência dos grupos étnicosOvínculo positivo que conecta vários grupos étnicos em um sistema social abrangente depende da complementaridade dos gruposcom relação a algumas de suas características culturais peculiares.Essa complementaridade pode dar origem auma interdependênciaou simbiose, constituindo as áreas de articulação às quais nos referimos. Já nos campos em que não há complementaridade, não existe também nenhuma base para aorganização de acordo com linhasétnicas: não haverá interação alguma ou haverá interação sem referência à identidade étnica.

Há grandes diferenças entre os sistemas sociais quanto ao grauem que aidentidade étnica como status imperativo cria restrições àvariedade de status epapéis que a pessoa pode assumir. Nos casosem que os valores distintivos ligados à identidade étnica foremrelevantes apenas para poucos tipos de atividade, aorganização socialnela baseada será igualmente limitada. Já os sistemas poliétnicoscomplexos claramente acarretam diferenças de valor amplamenterelevantes e múltiplas restrições quanto a possíveis combinaçõesde status emodalidades de participação social. Nesse tipo de sistema, os mecanismos de manutenção de fronteiras devem ser muitoeficazes pelas seguintes razões: (i) acomplexidade está baseada naexistência de diferenças culturais importantes e complementares;(ü) essas diferenças devem ser largamente padronizadas dentro decada grupo étnico — ou seja, o conjunto de status, ou a pessoasocial, de cada membro de um grupo deve seraltamente estereotipado para que a interação possa basear-se em identidades étnicas; e(iu) ascaracterísticas culturais de cada grupoétnico devem permanecer estáveis, para que as diferenças complementares que estão nabase do sistema possam persistir diante de contatos interétnicos

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bastante próximos. Nos casos em que estiverem presentes tais condições, os grupos étnicos podem adaptar-se uns aos outros de forma estável e simbiótica: os outros grupos étnicos presentes na região tornam-se parte do ambiente natural; os setores em que háarticulação oferecem áreas que podem ser exploradas e, do pontode vista dos membros de qualquer um dos grupos, os outros setores de atividade dos demais grupos parecem em grande medidairrelevantes.

Aperspectiva ecológicaEssas interdependências podem ser parcialmente analisadas doponto de vista da ecologia cultural: os setores de atividade em quediferentes populações com diferentes culturas se articulam podemser pensados como nichos aos quais o grupo está adaptado. Essainterdependência ecológica pode assumir diversas formas, das quaisé possível construir uma tipologia aproximada. Nos casos em quedois ou mais grupos étnicos estão em contato, suas respectivasadaptações podem ter as seguintes formas:

1. Cada grupo pode ocupar nichos distintos no ambiente natural e reduzir ao mínimo a competição por recursos. Nesse caso,sua interdependência será limitada apesar de residirem na mesmaregião, e a articulação tenderá a se dar principalmente através docomércio e talvez em uma esfera cerimonial-ritual.

2. Os grupos podem monopolizar territórios separados, enessecaso eles estarão em competição por recursos e sua articulação envolverá a política ao longo da fronteira e possivelmente incluiráoutros setores.

3. Os grupos podem oferecer bens e serviços importantes unsaos outros, ou seja, ocupar nichos recíprocos e portanto distintos,porém intimamente interdependentes. Caso não haja uma articulação muito próxima no setor político, decorrerá daí uma situaçãosimbiótica clássica e surgirá uma variedade de campos de articulação possíveis. Se houver também competição c acomodação atravésda monopolização diferencial dos meios de produção, decorrerá

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daí uma articulação política eeconômica bastante estreita, abrindopossibilidades para outras formas de interdependência.

Essas alternativas referem-se a situações estáveis. Mas é muitocomum encontrar uma quarta forma básica nos casos em que doisou mais grupos entremeados em um território competem, ao menos parcialmente, pelo mesmo nicho. Com o tempo, csperar-se-iaque um dos grupos deslocasse ooutro ou que surgisse uma acomodação envolvendo uma crescente complementaridade e interdependência.

Aliteratura antropológica sem dúvida oferece exemplos típicos dessas situações. Todavia a observação cuidadosa da maioriados casos empíricos mostra situações consideravelmente misturadas, eapenas através de simplificações bastante grosseiras se poderia reduzi-las a tipos simples. Em outro trabalho (Barth 1964b),procurei ilustrá-lo no caso de uma região do Baluquistão, eminhaexpectativa éque de maneira geral seja verdadeiro que um dadogrupo étnico, nas diferentes fronteiras que delimitam sua distribuição enas suas diferentes formas de acomodação, exiba simultaneamente diversas dessas formas em suas relações com outros

grupos.

Aperspectiva demográficaEssas variáveis, porém, descrevem apenas parcialmente aforma deadaptação de um determinado grupo. No que diz respeito a isso,mesmo que essas variáveis mostrem a estrutura qualitativa — eidealmente também quantitativa —dos nichos ocupados por umdeterminado grupo, não se pode ignorar os problemas de número eequilíbrio envolvidos em sua adaptação. Sempre que uma população depender da exploração de um nicho natural, haverá necessari-•ímente, para o tamanho que essa população pode alcançar, um limite superior que corresponde àcapacidade suporte desse nicho.Qualquer adaptação estável implica controle do tamanho da população. Alem disso, se duas populações são ecologicamente interdependentes, como no caso de dois grupos étnicos em uma relação

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simbiótica, isso significa que qualquer variação no tamanho de umadeve ter efeitos importantes no tamanho da outra. Assim, em qualquer análise de sistemas poliétnicos com um mínimo de profundidade temporal, devemos ser capazes de explicar os processos através dos quais os tamanhos dos grupos étnicos interdependentesatingem um ponto de equilíbrio. Cada equilíbrio demográfico envolvido ébastante complexo: aadaptação de um determinado grupo a um nicho natural é afetada por seu tamanho absoluto, mas aadaptação de um grupo étnico ao nicho constituído por um outroé afetada por seu tamanho relativo.

Os problemas demográficos envolvidos na análise das relaçõesinterétnicas em uma dada região concentram-se, portanto, em questões como as formas de recrutamento para os grupos étnicos e asensibilidade das taxas de recrutamento às pressões exercidas sobreos diferentes nichos explorados por cada grupo. Esses fatores sãocríticos para aestabilidade de qualquer sistema poliétnico, epoderia inclusive parecer que qualquer mudança populacional teria conseqüências destrutivas. Não é necessariamente isso o que ocorre,como podemos observar no trabalho de Siverts7. Na maioria dassituações, porém, os sistemas poliétnicos que temos observado envolvem processos bastante complexos de movimento eajuste populacional. Torna-se claro que vários outros fatores além da fertilidadee mortalidade humanas afetam os balanços demográficos. Tomandoum determinado território, há, por exemplo, fatores relativos aosdeslocamentos individuais cgrupais: aemigração que alivia apressão, a imigração que faz com que um ou vários grupos que residemno mesmo lugar se mantenham como postos avançados de reservatórios populacionais maiores situados em algum outro lugar. Amigração e as conquistas têm papel intermitente na redistribuição daspopulações c nas mudanças de suas relações. Mas o papel mais

' SlVKRTS. I lenning, "Ethnic stability and boundary dynamics in SouthernMéxico". Em: EBarth (ed.) Ethnicgroups and boundaries. Op. cil.

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interessante emuitas vezes fundamental édesempenhado por outro conjunto de processos que modificam as identidades de indivíduos cgrupos. Afinal de contas, omaterial humano organizado emum grupo étnico não éimutável, eainda que os mecanismos sociaisdiscutidos até aqui tendam amanter as dicotomias eas fronteiras,eles não acarretam necessariamente uma "estase" do material humano que organizam: as fronteiras podem persistir apesar do quepoderíamos qualificar figurativamente de "osmose" das pessoas queas atravessam.

Essa perspectiva leva aum importante esclarecimento arespeito das condições necessárias para o surgimento de sistemaspoliétnicos complexos. Ainda que o surgimento ea persistênciadesses sistemas pareçam depender de relativa estabilidade das características culturais associadas aos grupos étnicos — ou seja,grande rigidez nas fronteiras de interação —daí não decorre quehaja rigidez semelhante no que diz respeito aos padrões de recrutamento dos grupos étnicos ou de atribuição de pertencimento aeles:ao contrário, as relações interétnicas que observamos freqüentementeenvolvem diversos processos que ocasionam mudanças nas identidades individuais egrupais e, conseqüentemente, modificam os outros fatores demográficos presentes na situação. Exemplos de fronteiras étnicas estáveis e persistentes que, todavia, são atravessadaspor fluxos de pessoas são bem mais comuns do que a literaturaetnográfica nos levaria a acreditar. Os trabalhos apresentados nacoletânea Osgrupos étnicos csuasfronteiras por mim organizada trazemexemplos dos diferentes processos que acarretam essas travessias defronteira e também mostram que as condições que as causam sãodiversificadas. Abordaremos brevemente alguns desses processos.

Fatores envolvidos na mudança de identidadeOs Yao descritos por Kandre (1967b) são um dos muitos povosdas montanhas que vivem na borda sul da região chinesa. Os Yao seorganizam para aprodução em grupos domésticos compostos porfamílias extensas, que por sua vez se alinham em clãs ecm aldeias.

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Aliderança do grupo doméstico émuito clara, ao passo que acomunidade earegião são autóctones cacéfalas, ligadas de diversasmaneiras adomínios políticos poliétnicos. Aidentidade eas distinções são expressas em complexos idiomas rituais, envolvendosobretudo oculto aos ancestrais. Esse grupo, no entanto, apresentauma taxa de incorporação extremamente alta, com 10% de não-yaos tornando-se yaos acada geração (Kandre I967a: 594). Amudança de pertencimento ocorre de maneira individual eprincipalmente com crianças, envolvendo acompra da pessoa pelo líder deum grupo doméstico yao, aadoção, que acarreta assumir ostatusde parente, eaassimilação ritual completa. Ocasionalmente, amudança de pertencimento étnico étambém realizada por homens adultos através do casamento uxorilocal; os homens chineses sãocontrapartcs aceitáveis nesses arranjos.

As condições para essa forma de assimilação claramente envolvem um duplo aspecto: em primeiro lugar, apresença de mecanismos culturais que permitem implementar aincorporação, inclu.n-do-se a, aidéia de obr.gações para com os ancestrais, compensaçãopor pagamento etc, em segundo lugar, o incentivo representadopelas vantagens evidentes para ogrupo doméstico ao qual se dá aincorporas*,, bem como para oseu líder. Essas vantagens estãorelacionadas ao papel do grupo doméstico como unidade produtiva, as técnicas de gestão agrícola - em função das quais otamanho otimo da unidade éde seis aoito pessoas trabalhando _ etambém ao padrão de competição intracomun.tána entre os líderesdos grupos domésticos por riqueza e influência.

Por sua vez. ocaso dos movimentos através das fronteiras norte esul da área pathan* ilustra formas econd.ções bastante diferentes. Os Pathan do sul tornam-se baluchis. sem que ocorra ocontrário, hssa transformação pode ocorrer com indivíduos, mas émaiscomum que envolva grupos domésticos inteiros ou pequenos cor,-

' N. do EVer. no presente volume, ocapítulo "A identidade pa.han esuamanutenção . p. 69-93. '

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juntos de grupos domésticos; ocasiona a perda de posição dentrodo rígido sistema segmentar genealógico e territorial dos Pathan ea incorporação no sistema hierárquico e centralizado dos Baluchiatravés de conttatos clientelísticos. Aaceitação no grupo receptordepende da ambição edo oportunismo dos líderes políticos baluchis.Em contrapartida, os Pathan do norte, ao sofrerem uma perdaanáloga de posição em seu sistema nativo, geralmente se transferiram para o Kohistão e conquistaram aí novos territórios. Com otempo, o efeito foi uma reclassificação das comunidades que setransferiram, com sua incorporação aos conjuntos localmente diversificados de tribos e grupos kohistanis.

Talvez o caso mais marcante seja o de Darfur, apresentado porHaaland9, que mostra os membros do grupo Fur, do Sudão. Elessão agricultores e mudam de identidade, assumindo a de árabesnômades criadores de gado. Esse processo dependeu de uma circunstância econômica muito específica: a ausência de oportunidades de investimento de capital na economia das aldeias fur, inversamente ao ocotrido entre os nômades. O capital acumulado c asoportunidades para administrá-lo e aumentá-lo ofereceram incentivos para que grupos domésticos fur abandonassem seus campose aldeias e mudassem de vida, passando a acompanhar seus vizinhos Baggara. Nos casos em que a mudança foi bem-sucedida doponto de vista econômico, passaram também a unir-se a uma ououtra das unidades políticas frouxas, porém formalmente centralizadas, dos Baggara.

Esses processos que induzem um fluxo de pessoas que atravessam fronteiras étnicas afetam necessariamente o equilíbriodemográfico entre os respectivos grupos. Saber se esses processoscontribuem para a estabilidade desse equilíbrio é uma questãocompletamente diferente. Para que isso aconteça, esses processos teriam de ser sensíveis de forma homeostática a mudanças no grau de

vHaaland, Gunnar "Economie determinants inethnic processes". Em: F. Barth(ed.) Ethnicgroups and boundaries. Op.cit.

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pressão sobre os nichos ecológicos. Normalmente não parece seresse ocaso. Aassimilação de não-yaos parece aumentar ainda maisa taxa de crescimento eexpansão dos Yao às expensas de outrosgrupos, epode ser visto como um fator, ainda que de menor importância, contribuindo para oprocesso de progressivo predomínioda etnia chinesa, que vem ocasionando uma firme redução da diversidade étnica ecultural em uma grande região. Já ograu de assimilação de pathans por tribos baluch. apresenta indubitavelmente umasensibilidade àpressão populacional nas regiões dos Pathan masao mesmo tempo acarreta um desequilíbrio em função do qual astribos Baluch vêm se espalhando em direção ao norte, apesar damaior pressão populacional nessa região. Aassimilação pelos grupos do Kohistão, por sua vez, alivia apressão populacional sobre areg,ao dos Pathan ao mesmo tempo que mantém estável afronteirageográfica, já anomadização dos Fur reforça os Baggara, que emoutros lugares estão se tornando sedentários. Ataxa de assimilação, todav.a, não está correlacionada àpressão sobre as terras dosFur: uma vez que anomadização depende da acumulação de riquezas, essa taxa possivelmente decresce conforme oaumento da pressão populacional entre os Fur. Ocaso dos Fur demonstra também ainstabilidade inerente de alguns desses processos emostra que mudanças bastante limitadas podem ter resultados dramáticos: com ainovação tecnológica na horticultura ao longo dos últ.mos dez anossurgiram novas oportunidades de investimento, que provavelmentereduzirão em muito ou mesmo reverterão momentaneamente oprocesso de nomadização.

Assim, ainda que os processos que induzem àmudança deidentidade sejam importantes para acompreensão da maioria doscasos de interdependência étnica, eles não necessariamente conduzem aestabilidade populacional. Pode-se, no entanto, argumentarem termos gerais que, sendo as relações étnicas estáveis durantelongos períodos de tempo, eparticularmente nos casos em qUC ainterdependência éestreita, éprovável que haja um razoável equilíbrio demográfico. Aanálise dos diferentes fatores envolvidos nesse

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equilíbrio cuma parte importante da análise das relações interétnicasna região.

Apersistência das fronteiras culturaisNa discussão precedente a respeito da manutenção de fronteirasétnicas e dos fluxos de pessoas entre grupos étnicos, deixei de ladouma questão muito importante. Examinamos vários exemplos decomo indivíduos e pequenos grupos podem mudar de local demoradia, de padrão de subsistência, de lealdades e formas políticasou de pertencimento a grupos domésticos em função de circunstâncias econômicas c políticas específicas relativas à sua posiçãooriginal e em meio ao grupo assimilador. Mas isso ainda não explica completamente por que tais mudanças levam amudanças de identidade étnica, sem que essa troca de pessoal afete os grupos étnicosdicotomizados (a não ser quanto ao número de componentes decada grupo). No caso da adoção e incorporação de indivíduos isolados, geralmente imaturos, por grupos domésticos já estabelecidos, como no caso dos Yao, a assimilação cultural completa é compreensível: neste caso, cada pessoa incorporada é totalmente imersano padrão yao de relações e expectativas. Já nos outros exemplosnão fica tão claro por que ocorrem mudanças totais da identidade.Não sepode argumentar que isso decorra de uma regra universal deintegração cultural que faria com que assumir as práticas políticaspróprias a um dado grupo ou seus padrões de adaptação ecológicana esfera da subsistência eda economia implicasse necessariamenteadotar também as outras partes e formas que caracterizam ogrupoétnico. Na verdade, o caso dos Pathan (Ferdinand, 1967) mostradiretamente a falsidade desse argumento, já que as fronteiras dogrupo étnico Pathan cruzam os limites de unidades políticas e ecológicas. Com isso, um pequeno grupo pathan, usando aauto-iden-tificação como critério fundamental de identidade étnica, poderiaperfeitamente assumir obrigações políticas correspondentes aopertencimento a uma tribo baluchi ou adotar práticas agrícolas epecuárias kohistani, e mesmo assim continuar a identificar-se como

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pathan,. Do mesmo modo. poder-se-,a esperar que anomadizaçãoentre os Fur levasse ao surgimento de um setor nômade entre elessemelhante aos Baggara quanto ao modo de subsistência, mas distinto destes quanto aoutras características culturais eao seu rótu-Io étnico.

Evidentemente éisso oque aconteceu em muitas situaçõeshistóricas. Mas nos casos em que isso não acontece, podemos veros efeitos organizadores ecanalizadores das distinções étnica, Paraexplorar os fatores causadores dessa diferença, examinaremos primeiro as explicações específicas atribuídas às mudanças de identidade nos exemplos apresentados acima.

No caso das áreas fronteiriças dos Pathan, ainfluência easegurança que alguém pode obter, no contexto das sociedades seg,mentares eanárquicas dessa região, dependem de suas ações prévias, ou melhor, do respeito que se obtém com esses atos em funçãodo julgamento dos mesmos, de acordo com os padrões aceitos deaval.açacx Os principais espaços para exibir as v.rtudes pathan sãooconselho tnbal eas oportunidades para ademonstração de hospitalidade. Quem mora em uma aldeia no Koh.stão tem um padrãode v.da que não permite competir em hospitalidade nem mesmocom os servos conquistados pelos Pathan das regiões v.zmhas; eohente de um líder baluch, não tem odireito de se expressa no

conselho tribal. Manter uma identidade pathan nessas circunstân-emS;°U SC,a,deCla;ar-SC P-^-P-te da competição por ser melhorem termos de padrões valorativos pathan, eqüivale acondenar-seantecipadamente aum fracasso completo. Mas se apessoa optarpor assumir uma identidade kohistani ou baluch., poderá alcançarcom amesma performance uma posição bastante elevada em termosdas escalas de valores que tornam-se então relevantes. Assim nessecaso os incentivos para amudança de identidade são inerentes àmudança das circunstancias.

Eclaro que diferentes circunstâncias favorecem diferentesperformances. Uma vez que aidentidade étnica está associada aumconjunto culturalmente específico de padrões valorativos. segue-se

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que há circunstâncias em que tal identidade pode ser realizada comrelativo sucesso, e limites para além dos quais esse sucesso éimpossível. Meuargumentoé que as identidades étnicas nãosão mantidasquando esses limites são ultrapassados, pois o compromisso comdeterminados padrões valorativos não será sustentado em circunstâncias que tornam a performance comparativamente muito inadequada em termos desses padrões'". Os dois componentes dessa medida relativa de sucesso são, em primeiro lugar, a performance dosoutros e, em segundo lugar, as alternativas abertas para cada um. Deveficar claro que não se trata aqui de um apelo àadaptação ecológica. Aviabilidade ecológica eaadequação ao ambiente natural só importamse colocarem limitações à sobrevivência física, coisa que raramenteentra em questão quando se trata de grupos étnicos. O que importaé aqualidade da performance dos outros com quem se interage eaquem se é comparado, e também as identidades e conjuntos de padrões alternativos disponíveis para um dado indivíduo.

Identidade étnica e recursos materiais

Essa argumentação nãoesclarece, porém, os fatores de manutençãode fronteira no caso dos Fur. Haaland" discute como a vida nômade é avaliada de acordo com os padrões fur e mostra que desseponto de vista obalanço entre vantagens edesvantagens permaneceinconcluso. Para que esse caso seja comparável aoutros, temos queexaminar de maneira mais geral todos os fatores que afetam ocomportamento em questão. Apresentaremos dados que derivam de contextos etnográficos muito diferenciados, ocorrendo variações simultâneas em diversos fatores.

Arelação do indivíduo com os recursos produtivos aparececomo um significativo contraste entre o Oriente Médio ea região

" Estou preocupado aqui apenas com o fracasso individual em manter aidentidade, oque éconseguido pela maioria dos membros, enão com as questõesmais amplas davitalidade edaanomia culturais.

Haaland, Gunnar "Economic determinants inethnic processes". Op. cit.

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de Darfur. No Oriente Médio, os meios de produção são considerados como propriedade definida etransferível, seja de caráter privado, seja de caráter corporado. Uma pessoa pode obtê-la atravésde uma transação específica e restrita, como uma compra ou umarrendamento; mesmo quando há conquista, os direitos que seobtêm são padronizados elimitados. Em Darfur, por outro lado,

• bem como em boa parte do Cinturão Sudanês, prevalecem outrasconvenções. Aterra para cultivo éalocada para os membros da comunidade de acordo com suas necessidades. Adistinção entre oproprietário eaquele que trabalha a terra, tão importante para aestrutura social da maioria das comunidades do Oriente Médio,não pode ser feita nesse caso porque a posse não envolve direitosseparáveis, absolutos etransferíveis. Oacesso aos meios de produção em uma aldeia fur depende apenas da inclusão na comunidade,ou seja, da inclusão na identidade étnica fur. De modo semelhanteentre os Baggara, direitos sobre pastagens não são alocados c monopolizados, nem mesmo entre diferentes tribos. Ainda que grupos e tribos tendam a usar as mesmas rotas e áreas a cada ano, epossam algumas vezes tentar, de maneira ad hoc, evitar o acesso deoutros às áreas que querem usar, normalmente se misturam e nãotêm nenhuma prerrogativa definida eabsoluta. Oacesso às pastagens ocorre automaticamente desde que se exerça a atividade decriação animal, redundando em ser baggara.

Os mecanismos básicos de manutenção de fronteira em Darfursão portanto bastante simples: uma pessoa tem acesso aos meiosfundamentais de produção porque pratica uma certa modalidadede subsistência; isso traz como resultado todo um estilo de vida, eesse conjunto de características está subsumido nas denominaçõesétnicas fur ebaggara. Já no Oriente Médio, pode-se obter controlesobre os meios de produção através de transações que não envolvem outras atividades da pessoa; a identidade étnica, nesse caso,não énecessariamente afetada, oque abre caminho para adiversificação. Assim, no Oriente Médio os nômades, os camponeses eoscitadinos podem pertencer aum mesmo grupo étnico; apersistência

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Os GRUPOS ÉTNICOS li SUAS FRONTEIRAS

das fronteiras étnicas depende de mecanismos mais sutis e específicos, ligados principalmente à inviabilidade de certas combinaçõesde status e papéis.

Grupos étnicos eestratificaçãoOnde um grupo étnico tem controle sobre os meios de produçãoutilizados por outro grupo surge uma relação de desigualdade eestratificação. Portanto os Fur e os Baggara não compõem um sistema estratificado, pois ocupam nichos diferentes e têm acesso aeles de forma independente; já em certas partes da área pathan,encontramos uma estratificação baseada no controle da terra, comos Pathan na posição de senhores da terra eoutros grupos fazendoo cultivo em regime de servidão. Em termos mais gerais, pode-sedizer que os sistemas poliétnicos estratificados existem sempre queos grupos caracterizam-se por um controle diferenciado sobre recursos valorizados por todos os grupos participantes do sistema.Dessa forma, as culturas dos grupos étnicos de tais sistemas sãointegradas de uma maneira especial, pois compartilham certas orientações e escalas valorativas gerais, com base nas quais podem fazer julgamentos em termos hieráquicos.

Em contrapartida, um sistema de estratificação não implicanecessariamente a existência de grupos étnicos. Leach (1967) argumenta convincentemente que as classes sociais distinguem-se pordiferentes subeulturas e que essa caraterística é mais fundamentaldo que o ordenamento hierárquico entre as classes. Em muitossistemas deestratificação, todavia, não háestratos claramente delimitados: nesses casos a estratificação baseia-se simplesmente emuma noção de escalas e no reconhecimento de um nível centradoem Ego, de "pessoas que são como nós", em oposição àqueles quesão vistos como mais seletos e àqueles que são vistos como maisvulgares. Nesses sistemas, quaisquer que sejam as diferenças culturais, elas se apresentam de maneira gradativa, sem que surja algumtipo de organização social de grupos étnicos. Em segundo lugar, amaioria dos sistemas de estratificação permite ou implica uma

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mobilidade de acordo com as escalas de avaliação que definem ahierarquia: um fracasso moderado no setor "B" da hierarquia transforma apessoa em "C", eassim por diante. Por sua vez, os gruposétnicos não têm abertura para esse tipo de entrada, pois a atribuição da identidade étnica baseia-se em outros critérios mais restritivos. Isso éclaramente ilustrado pela análise de Knutsson arespeitodos Galla no contexto da sociedade etíope'2. Trata-se de um sistema social em que grupos étnicos inteiros são estratificados de acordo com suas posições de privilégio ou de incapacidade dentro doEstado. No entanto chegar ao governo não transforma um galla emum amhara, nem aexpulsão como fora-da-lei redunda em perda daidentidade galla.

Dessa perspectiva, osistema de castas indiano apareceria comoum caso especial de sistema poliétnico estratificado. As fronteirasentre as castas são definidas por critérios étnicos: fracassos individuais na performance levam a uma expulsão da casta, e não a umrebaixamento para uma casta inferior. Oprocesso pelo qual osistemahierárquico incorpora novos grupos étnicos é demonstrado pelasanscritizacão dos povos tribais: a aceitação das escalas básicas de valoresque definem sua posição na hierarquia de pureza epoluição rituais éaúnica mudança de valores necessária para que um desses povos setransforme em uma casta indiana. Creio que uma análise dos diferentes processos de manutenção de fronteiras envolvidos em diferentesrelações entre castas eem diferentes variações regionais do sistemade castas esclareceria muitas desuas características.

Adiscussão precedente traz àtona uma característica geral umtanto anômala da identidade étnica como status: aatribuição' *não

'• Knutsson. Karl Eric "Dichotomization and integration". Em: F. Barth fcd.lEthnicgroups and boundaries. Op. cit." Em oposição àclassificação presumida em encontros sociais fortuitospenso em uma pessoa cm seu contexto social normal, no qual os outros possuemquantidade considerável de informações prévias sobre ela, c não naspossibilidades propiciadas ocasionalmente para mascarar aprópria identidadediante de estranhos.

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depende do controle de algum recurso específico, mas baseia-se emcritérios relativos à origem e ao compromisso, enquanto em outrossistemas aperformance no status, ou seja, o desempenho adequadodos papéis necessários para realizar a identidade requer tais recursos. No caso de um cargo burocrático, contrastantemente, apessoaque ocupa o cargo recebe osrecursos necessários para aperformancede seu papel; já as posições no sistema de parentesco, atribuídassem referência aos recursos possuídos por uma pessoa, tambémnão dependem da performance —apessoa continua aser pai mesmo que não consiga suprir o filho com alimentos.

Assim, quando os grupos étnicos se inter-relacionam em umsistema estratificado, são necessários processos especiais que mantenham o controle diferencial de recursos. De modo esquemático,uma premissa básica da organização de grupos étnicos éque todapessoa do grupo A possa desempenhar os papéis I, 2 e 3- Se háconcordância dos atores quanto a isso, a premissa necessariamentese realiza, a menos que o desempenho desses papéis necessite derecursos que estão distribuídos de acordo com um padrão discre-pante. Sc esses recursos são obtidos ou perdidos por vias queindependem do fato de uma pessoa ser um A, e se eles são buscados ou evitados sem nenhuma referência à identidade da pessoacomo A, apremissa será falsificada, pois alguns As tornam-se incapazes de desempenhar os papéis esperados. Na maioria dos sistemas estratificados, a solução para manter a integridade do sistemaquando isso ocorre é deixar de considerar essas pessoas como A.Mas no caso da identidade étnica ocorre o contrário: a solução épassar a reconhecer que todos os As não podem mais ou não maisassumirão, por exemplo, os papéis 1e 2, porexemplo. Apersistência de sistemas poliétnicos estratificados implica, portanto, a presença defatores que gerem e mantenham uma distribuição de recursos diferenciada, de acordo com as categorias étnicas: controlesestatais, como no caso de alguns sistemas modernos, plurais e racistas; diferenças bem demarcadas nos padrões de avaliação, quecanalizem os esforços dos atores em direções distintas, como nos

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sistemas que incluem ocupações consideradas poluidoras; ou distinções culturais que gerem diferenças marcantes na organizaçãopolítica ou econômica ou nas habilidades individuais.

Aquestão da variaçãoApesar desses processos, um rótulo étnico subsume várias características simultâneas que sem dúvida nenhuma se apresentam agrupadas em termos estatísticos, sem se tornarem interdependentes econectadas de forma absoluta. Assim, haverá variações entre membros, alguns mostrando muitas das características próprias ao grupo eoutros, poucas. Especialmente nos casos em que há mudançasnas identidades das pessoas, isso cria ambigüidades, pois nessescasos opertencimento étnico étanto uma questão de origem quanto de identidade atual. Haaland, por exemplo, foi levado acertoslugares para conhecer "os Fur que moram em acampamentos nômades", eeu próprio ouvi membros de seções tribais baluchi explicarem que eles na verdade eram pathans. Nesses casos em que asdistinções efetivas são tão difusas, o que resta dos processos demanutenção de fronteira e das dicotomias categóricas? Em vez dedesesperar-se ante ofracasso do esquematismo tipológico, élegítimo registrar que as pessoas de fato usam rotulações étnicas e quede fato há, em muitas partes do mundo, diferenças bastante marcantesde acordo com as quais determinadas formas de comportamento seagrupam; assim.grupos inteiros tendem a se encaixar em tais categorias em termos de seu comportamento objetivo. Oque ésurpreendente não éaexistência de alguns atores que se posicionam entre essas categorias e de algumas regiões do mundo nas quais aspessoas não tendem a se distinguir dessa maneira, mas o fato deque as variações tendem efetivamente a se agrupar. Não se trata denos preocuparmos com oaperfeiçoamento de uma tipologia, masde tentarmos descobrir quais são os processos que produzem talagrupamento.

Outra abordagem que tem sido adotada na antropologia é adicotomização do material etnográfico em que se opõe oideal ao

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real. ou o conceituai ao empírico, concentrando-se então nas con-sistencias (a "estrutura") da parte ideal ou conceituai dos dados eempregando alguma noção vaga referente anormas eadesvios individuais para dar conta dos padrões reais, estatisticamenteobservados. Éclaro que éperfeitamente viável distinguir omodeloque um povo tem de seu sistema social do padrão agregado de seucomportamento pragmático, e de fato ébastante importante nãoconfundir as duas coisas. Mas os problemas mais férteis na antropologia social dizem respeito justamente ao modo como essas duascoisas se interconectam; a dicotomização c o confronto dos doisaspectos como sistemas totais não énecessariamente amelhor maneira de elucidá-los. Nos trabalhos de Os grupos étnicos esuasfronteiras, tentamos construir aanálise enfocando um nível mais básico deinterconexão entre status ecomportamento. Acredito que épara oagir que as pessoas têm categorias, e que é a interação, e não acontemplação, que as afeta significativamente. Ao indicar aconexão entre os rótulos étnicos e a manutenção da diversidade cultural, estou preocupado basicamente em mostrar como, dependendodas circunstâncias, certas constelações de categorias e de orientações valorativas acabam por realizar asi próprias, outras tendem aser falsificadas pela experiência, eoutras ainda são impossíveis deserem realizadas nas interações. As fronteiras étnicas sópodem emergir cpersistir na primeira situação, tendendo ase dissolver ou estarausentes nas outras. Havendo essefudback entre as experiências dosindivíduos e as categorias que eles empregam, torna-se possívelmanter dicotomias étnicas simples ereforçar os diferenciais estereotipados de comportamento, apesar da considerável variação objetiva. Isso ocorre porque os atores lutam por manter definições desituação convencionais nos encontros sociais, através da percepçãoseletiva, do tato e de sanções, além da dificuldade de encontraremoutras codificações mais adequadas para aexperiência. Arevisão sóocorre nos casos em que as categorizações se mostram grosseiramente inadequadas —e não apenas porque são não-verdadeirasem algum sentido objetivo, mas porque agir em termos dessas

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categorias não traz nenhuma recompensa no domínio em que oator torna essa categorização relevante. Assim, a dicotomia entrefurs aldeões ebaggaras nômades émantida apesar da presença evidente de um acampamento de nômades fur nas vizinhanças: ofatode que aqueles nômades falam fur etêm conexões de parentescocom aldeões fur de algum lugar não muda asituação social em queos aldeões interagem com eles; simplesmente facilita as transaçõescomuns que normalmente se dariam com os Baggara, como acompra de Iene, aalocação de áreas para acampamento ou aobtenção deestéreo. Já adicotomia entre donos de terra pathan etrabalhadoresnao-pathan não pode ser mantida em uma situação na qual estesobtém apropriedade da terra edeixam constrangidos os Pathan aose recusarem atratá-los com orespeito que aposição atribuída deservos imporia.

Minorias, párias eas características organizacionais da periferiaEm alguns sistemas sociais, os grupos étnicos residem lado aladoainda que nenhum aspecto fundamental da estrutura baseie-se nasrelações interétnicas. Esses casos são normalmente referidos comosociedades com minorias, eaanálise da situação das minorias envolve uma variante especial das relações interétnicas. Penso que namaioria dos casos, essas situações surgiram como resultado de eventos históricos externos. Nestes, as diferenças culturais não surgiram a part.r do contexto organizacional local; ao contrário umcontraste cultural preestabelecdo passa ase conjugar com um sistema socai também preestabelecido, tornando-se relevante de diversas maneiras para a vida local.

Uma forma extrema da posição de minoria, eque ilustra algumas mas não todas as suas características, éasituação dos grupospanas. Esses grupos são ativamente rejeitados pela população queos recebe por causa de comportamentos ou características que sãoclaramente condenados, ainda que na prática se mostrem úteis dealguma maneira específica. Nos últimos séculos, os grupos de páriasna Europa, como os carrascos, os negociantes de carne ecouro de

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cavalo, os coletores de dejetos humanos, os ciganos etc, exemplificam a maioria das características: como não respeitavam tabusbásicos, eram rejeitados pela sociedade abrangente. Sua identidadeimpunha uma definição da situação que resultava em muito poucoespaço para a interação com pessoas da população majoritária e aomesmo tempo, comostatus imperativo, representava uma incapacidade permanente que os impedia deassumir os status normais envolvidos em outras definições da situação de interação. Apesar dessas enormes barreiras, esses grupos não parecem terdesenvolvido acomplexidade interna que nos levaria aconsiderá-los como gruposétnicos no sentido pleno, exceto os ciganos14, um grupo culturalmente estrangeiro.

As fronteiras delimitando um grupo pária são mantidas fortemente pela população receptora que os exclui. Os párias freqüentemente são forçados a fazer uso de sinais diacríticos facilmenteperceptíveis para anunciar sua identidade (mas muitas vezes essaidentidade fornece a base para um determinado modo de vida, ainda que altamente inseguro, e por isso essa sobre-comunicação daidentidade pode em alguns casos servir aos interesses individuaisde um pária em sua competição com outros párias). Nos casos emque os párias tentam ingressar na sociedade mais abrangente, normalmente já têm bom conhecimento da cultura da populaçãoreceptora; com isso, o problema reduz-se àquestão de como evitaros estigmas de incapacidade, separando-se da comunidade pária esimulando outra origem.

Muitas situações deminoria têm um traço dessa rejeição ativapor parte da população receptora. Mas a característica geral de todas as situações minoritárias está na organização das atividades eda interação: no sistema social total, todos os setores de atividade

14 O comportamento condenado que confere uma posição de pária aos ciganosé composto, mas baseia-se sobretudo na sua vida errance, originalmente emcontraste com oslaços deservidão naEuropa, cdepois em sua flagrante violaçãodaética puritana da responsabilidade, dotrabalho árduo cdamoralidade.

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estão organizados de acordo com status abertos para os membrosdo grupo majoritário, enquanto osistema de status da minoria érelevante somente para as relações entre os membros da populaçãominoritária e apenas em alguns setores de atividade, sem ofereceruma base para ação nos demais setores, também valorizados na cultura minoritária. Há, portanto, uma disparidade entre valores e facilidades organizacionais: os objetivos mais valorizados estão forado campo organizado pela cultura e pelas categorias da minoria.Apesar de esses sistemas conterem vários grupos étnicos, ainteraçãoentre os membros de diferentes grupos não provém da complementaridade das identidades étnicas; ela ocorre dentro da moldura dasinstituições e status do grupo dominante e majoritário, na qual aidentidade como membro da minoria não dá nenhuma base para oagir, ainda que possa em algum grau implicar uma incapacidadepara assumir status operativos. Otrabalho de Eidheim oferece umaanálise muito clara dessa situação, tal como encontrada entre oslapões do litoral.

Em outro sentido, contudo, pode-se dizer que em um sistemapoliétnico desse tipo as características culturais contrastantes dosgrupos componentes estão localizadas nos setores da vida em quea articulação não ocorre. Para a minoria, esses setores constituem"bastidores" em que as características que são estigmatizantes emtermos da cultura dominante podem implicitamente transformar-se em objetos de transação.

Aatual situação de minoria dos lapões surgiu em função decircunstância externas recentes. Anteriormente, o contexto deinteração mais importante era asituação local em que dois gruposétnicos, com suficiente conhecimento mútuo das respectivas culturas, mantinham uma relação relativamente limitada eparcialmentesimbiótica, baseada em suas respectivas identidades. Com acrescente integração àsociedade norueguesa, que trouxe aperiferia nortepara dentro do sistema nacional, avelocidade da mudança culturalaumentou drasticamente. Apopulação do norte da Noruega tornou-se cada vez mais dependente do sistema institucional da sociedade

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OS GRUPOS ÍTSICOS I;SUAS IKONIURAS

mais ampla, eavida social dos noruegueses do norte passou aorganizar-se crescentemente no sentido da realização de atividades eda obtenção de benefícios na esfera do sistema mais amplo. Essesistema, por sua vez, até muito recentemente não levava em contaem sua estrutura aidentidade étnica, eaté uma década atrás naohavia praticamente nenhum lugar no sistema em que se pudesseparticipar como lapão. Por outro lado, os lapões como cidadãos noruegueses são perfeitamente livres em sua participação, ainda quesofrendo de uma dupla deficiência em função de sua localização naperiferia edo seu domínio inadequado da língua ecultura norueguesas. Nas regiões interioranas de Finmark, essa situação abriuespaço para lapões inovadores, com um programa político baseadono ideal do pluralismo étnico (ver Eidheim 1967). mas eles naoconseguiram seguidores na região dos lapões do litoral (ver E.dh«mI969). Para esses lapões, arelevância de seus status econvençõestorna-se bastante reduzida em um número cada vez maior de setoresde suas vidas (ver Eidheim 1966), enquanto sua performance relativamente inadequada no sistema mais abrangente ocasiona frustrações ecrises de identidade.

Contato emudança culturaisTrata-se de um processo que nas atuais condições tornou-se muitogeneralizado, conforme adependência dos produtos einstituiçõesda sociedade industrial se espalha por todas as partes do mundo.Omais importante éreconhecer que uma drástica redução das diferenças culturais entre os grupos étnicos não se correlaciona demaneira simples com uma redução na relevância das identidadesétnicas em termos organizacionais ou com uma ruptura dos processos de manutenção de fronteiras. Isto fica demonstrado em boaparte dos estudos de caso.

Amelhor maneira de analisar essa interconexão éoexame dosagentes de mudança: quais estratégias se abrem esão interessantespara eles, equais são as implicações organizacionais das diferentesescolhas que eles venham arealizar? Os agentes, nesse caso, sao os

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indivíduos que costumam ser chamados, um tanto etnoccn-tricamente, de novas elites: aquelas pessoas que, nos grupos menosindustrializados, têm maior contato com os bens eas organizaçõesdas sociedades industrializadas, bem como maior dependência dosmesmos. Em sua busca por participação nos sistemas sociais maisamplos, visando obter novas formas de valor, eles podem escolherentre as seguintes estratégias básicas: (i) tentar passar para asociedade eogrupo cultural industrial previamente estabelecido, incor-porando-se a ele; (ii) aceitar um status de "minoria" ao mesmotempo que tentam se acomodar às deficiências relacionadas com oseu caráter de minoria e reduzi-las encapsulando todos osdiferenciadores culturais nos setores em que não há articulação eparticipando do sistema mais amplo nos outros setores de atividade; (iii) optar pela ênfase de sua identidade étnica, usando-a paradesenvolver novas posições epadrões afim de organizar atividadesnaqueles setores previamente não encontrados em sua sociedade,ou que não eram suficientemente desenvolvidos no que diz respeito aos novos objetivos surgidos. Caso os inovadores culturais tenham sucesso na primeira estratégia, seu grupo étnico perderá suafonte de diversificação interna eprovavelmente permanecerá comoum grupo étnico conservador e pouco articulado à sociedadeabrangente, situado em uma posição baixa na hierarquia da mesma.Uma aceitação geral da segunda estratégia fará com que se evite osurgimento de uma organização poliétnica claramente dicotomizantee. dada adiversidade da sociedade industrial eaconseqüente variação emultiplicidade de campos de articulação, provavelmente ocorrerá com otempo uma assimilação da minoria. Aterceira estratégiagera muitos dos interessantes movimentos que podem ser observados hoje. desde movimentos nativistas até os novos Estados.

Não sou capaz aqui de apresentar as variáveis que afetam aopção por uma ou outra das estratégias básicas, a forma concretaque essa estratégia tomará em cada caso, ograu de sucesso alcançado equais suas implicações cumulativas. Tais fatores abrangem desdeo número de grupos étnicos incluídos no sistema até as caracterís-

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Os GRUPOS ÍTNICOS L SUAS FRONI LIRAS

ticas do regime ecológico edetalhes relativos às culturas que constituem tal sistema. Muitos exemplos desses fatores podem ser encontrados nos trabalhos de Os grupos ítmeos esuasfronteiras. Todaviapode ser interessante registrar aqui algumas das formas pelas quaisa identidade étnica assume relevância organizacional em relação aosnovos setores surgidos na atual situação.

Em primeiro lugar, os inovadores podem optar por enfatizarum dado nível de identidade dentre os vários presentes na organização social tradicional. Tanto tribo como casta, grupo lingüístico,região ou Estado, têm características que os tornam uma identidade étnica primária potencialmente adequada para servir como referência do grupo; qual delas será adotada efetivamente depende dapresteza com que se possa fazer outras pessoas assumirem essasidentidades, bem como dos fatos táticos friamente avaliados. Assim, mesmo que o tribalismo pareça ser capaz de obter omais altonível de adesão em muitas regiões da África, os grupos resultantesdesse processo parecem ser incapazes de resistir ao aparatosancionador de uma organização estatal, ainda que esta seja muitorudimentar.

Em segundo lugar, variam tanto o modo de organização dogrupo étnico como aarticulação interétnica que ébuscada em cadacaso. O fato de que as formas contemporâneas sejam predominantemente políticas não reduz em nada seu caráter étnico. Esses movimentos políticos constituem novas maneiras de tornar organiza-cionalmcnte relevantes as diferenças culturais (Kleivan, 1967). etambém de articular os grupos étnicos dicotomizados. Aproliferação de grupos de pressão, partidos políticos, ideais de Estadosindependentes, bem como um grande número de associaçõessubpolíticas (Sommcrfelt 1967). todos com base étnica, demonstram a importância dessas novas formas. Em outras regiões, movimentos religiosos ou seitas introduzidas pelas missões religiosassão usados para dicotomizar earticular grupos de novas maneiras.Um aspecto marcante é que esses novos padrões só muito raramente trazem uma preocupação com aesfera econômica fa tor

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tão fundamental nas situações de contato cultural — com exceçãode algumas formas de socialismo estatal adotadas por novas nações. Isso contrasta com os sistemas poliétnicos complexos tradicionais, que sebaseiam predominantemente na articulação com essaesfera de atividade, através da diferenciação ocupacional e articulação no mercado, como ocorre em muitas regiões da Ásia e da América Central, ou de forma mais elaborada através da produção agrícola, como no sul da Ásia. Atualmente, os grupos étnicos em oposição tendem a sediferenciar quanto ao nível educacional e tentamcontrolar ou monopolizar as estruturas educacionais com essa finalidade (Sommerfelt 1967). mas isso ocorre não tanto na perspectiva da diferenciação ocupacional, mas sobretudo por causa daóbvia conexão entre competência burocrática e oportunidades desucesso na política. Poderíamos especular que uma articulação queimplica uma complexa diferenciação de habilidades, sancionada pelaconstante dependência com relação a um modo de ganhar a vida,será muito mais forte e estável do que uma articulação baseada emafiliações políticas revogáveis, sancionada pelo exercício da força edo decreto político, de modo que essas novas formas de sistemaspoliétnicos talvez sejam inerentemente mais turbulentas e instáveisdo que as formas mais antigas.

Quando os grupos políticos articulam sua oposição em termos de critérios étnicos, a direção da mudança cultural também éafetada. Um confronto político só pode vir aser implementado seosgrupos se situarem como semelhantes cportanto comparáveis, eisso terá efeitos sobre todos os novos setores de atividade que setornarem politicamente relevantes. Assim, partidos que se opõemtendem a se tornar estruturalmente semelhantes, diferenciando-seapenas através de poucos sinais diacríticos. Nos casos em que osgrupos étnicos se organizam em um confronto político, o processo de oposição deverá levar a uma redução das diferenças culturaisentre eles.

Por isso, boa parte da atividade dos inovadores políticos estávoltada para a codificação dos idiomas: a seleção dos sinais de iden-

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OS GRUPOS ÉTNICOS E SUAS PROKItIRAS

tidade e a afirmação do valor desses sinais diacríticos, bem como asupressão ou a negação da relevância de outros traços diferen-ciadores. Aquestão de quais são as novas formas culturais compatíveis com a identidade étnica nativa sempre ocasiona um debateacalorado, mas normalmente é resolvida afavor do sincretismo, pelasrazões observadas acima. E possível, contudo, que se dê grandeatenção ao reavivamento de traços culturais tradicionais selecionados e ao estabelecimento de tradições históricas que justifiquem eglorifiquem os idiomas e identidades adotados.

A interconexão entre os sinais diacríticos escolhidos para serem enfatizados, as fronteiras definidas e os valores diferenciadores

adotados constituem um fascinante campo de estudos". Evidentemente, há diversos fatores relevantes nesse sentido. Os idiomas

variam quanto ao seu grau de adequação aos diferentes tipos deunidades. Eles não são igualmente adequados para os objetivosdos inovadores, seja como meios de mobilizar apoio, seja comobase para as estratégias de confrontação com outros grupos. Sãoimportantes também suas implicações em termos dos padrões deestratificação dentro de eentre os grupos. Eles implicam diferentesfontes e formas de distribuição de influência dentro do grupo ediferentes reivindicações de reconhecimento por parte de outrosgrupos, por meio da supressão ou valorização de diferentes formasde estigmatização social. Evidentemente, não existe nenhuma conexão simples entre a base ideológica de um movimento e os idiomas escolhidos pelo mesmo; ambos os aspectos, no entanto, têmimplicações para a subseqüente manutenção das fronteiras e para adireção das futuras mudanças.

Variações no cenário das relações étnicasEssas variantes modernas da organização poliétnica emergem emum mundo marcado pela administração burocrática, por sistemas

1' Ao que me consta, o ensaio de Mitchell (1956) sobre adança kalela é oprimeiro eainda o mais instigante estudo sobre o assunto.

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de comunicação bem desenvolvidos epela crescente urbanização.Evidentemente, sob condições radicalmente diferentes, os fatoresfundamentais para adefinição emanutenção das fronteiras étnicasseriam diferentes. Ao nos basearmos em dados limitados econtemporâneos, nós temos dificuldade para produzir generalizações arespeito de processos étnicos, já que épossível que estejamos ignorando variáveis fundamentais simplesmente porque elas não estão presentes nos casos disponíveis para exame. Não há dúvida queos antropólogos sociais em geral realizaram seus estudos na situação um tanto quanto especial da paz colonial eda administraçãoexterna, que éopano de fundo da maioria das monografias maisinfluentes, como se isso representasse as condições existentes namaioria dos lugares eépocas. Isso pode ter criado um bias na interpretação tanto dos sistemas pré-coloniais como das formas emergentes contemporâneas. Os trabalhos apresentados em Os gruposétnicos esuasfronteiras tentam cobrir casos regionalmente muito diferentes, mas isso por si só não é uma defesa adequada contra omencionado bias, eessa questão merece ser enfrentada diretamente.

Os regimes coloniais são um caso bastante extremo quanto aograu em que aadministração esuas regras se apresentam divorciadas da vida social local. Sob tal regime, os indivíduos têm certosdireitos àproteção distribuídos de maneira uniforme através degrandes regiões eagregados populacionais, estendendo-se, portanto, bem para além do alcance das próprias relações sociais einstituições desses indivíduos. Isso não só permite aproximidade físicaeoportunidades de contato entre pessoas de diferentes grupos étnicos, independentemente da ausência de entendimento compartilhado entre cias, como também remove com clareza uma das restrições que normalmente operam nas relações interétnicas. Nessa situação, as interações podem se desenvolver eproliferar; na verdade,apenas as formas de interação que forem inibidas por outros fatoresnão estarão presentes eformarão setores de não-articulação. Assim,nessas situações as fronteiras étnicas representam uma organizaçãopositiva das relações sociais cm torno de valores diferenciados ccom-

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Os l.RUPOS CÍNICOS I SUAS FROS-TURAS

plementares, cas diferenças culturais tendem aser reduzidas com otempo, aproximando-se de um mínimo necessário.

Contudo, na maioria dos regimes políticos em que há baixograu de segurança eas pessoas vivem sob ameaça de arb.tranedade ede violência se estiverem fora de sua comunidade primária, aprópriainsegurança age como uma restrição aos contatos interétnicos. Nessasituação, muitas formas de interação entre membros de diferentesgrupos étnicos podem não se desenvolver, inclusive quando ha umapotencial complementaridade de interesses. Pode haver bloqueio deformas de interação em razão da falta de confiança ou da falta deoportunidades para realizar transações. Além disso, há também sanções internas em tais comunidades que tendem aaumentar aconformidade explícita dentro delas eas diferenças culturais entre elas. Seuma pessoa depende, para sua segurança, do apoio voluntário eespontâneo de sua própria comunidade, aidentificação de si própriocomo membro dessa comunidade precisa ser explicitamente expressaeconfirmada, equalquer comportamento desviante em relação aopadrão pode vir aser interpretado como um enfraquecimento da iden-t.dade e. portanto, das bases para asegurança. Em tais situações,diferenças históricas fortuitas entre diferentes comunidades tenderão ase perpetuar sem qualquer base organizacional positiva; ass.m,muitas das diferenças culturais observáveis talvez sejam de relevânciamuito limitada para aorganização étnica.

Os processos pelos quais as unidades étnicas se mantêm sãoclaramente afetados, ainda que não fundamentalmente transformados pela variável "segurança regional". Isso também pode ser demonstrado pelo exame dos casos apresentados em Os grupos étnicos emasfronteiras, que trazem uma gama considerável de situações, desde acolonial até apolicêntr.ca. chegando asituações relativamenteanárquicas. Éimportante, contudo, reconhecer que essa variável defundo pode mudar muito rapidamente, oque cria uma dificuldademuito grande para as projeções de processos alongo prazo. Assim,no caso fur, vemos uma situação de paz mantida por fatores externos eatividade política local em escala extremamente pequena, e

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podemos formar um quadro dos processos interétnicos c mesmo desuas proporções nesse cenário. Mas sabemos que ao longo das últimas gerações, asituação variou de um confronto baggara—fur sob umsultanato fur expansivo, até uma anarquia quase total no tempo dosturcos e dos Mahdi, ou seja, é muito difícil estimaros efeitos dessasvariações sobre os processos de nomadização eassimilação cchegar aalguma projeção de longo prazo sobre taxas e mudanças.

Grupos étnicos eevolução culturalA perspectiva das análises apresentadas em Os grupos étnicos esitasfronteiras tem relevância para o tema da evolução cultural. Ahistóriahumana sem dúvida é o relato do desenvolvimento de formas emer

gentes, tanto de culturas como de sociedades. A questão para aantropologia tem sidoencontrar a melhor maneira de retratar essahistória, e de quais são os tipos de análise adequados para descobrir princípios gerais nas mudanças. Aanálise evolutiva no sentidorigoroso que o termo assume no campo da biologia tem um método baseado na construção de linhas filogenéticas. Esse método pressupõe a presença de unidades em que as fronteiras e os processosde sua manutenção podem ser descritos, tornando possível especificar acontinuidade. Concretamente, as linhas filogenéticas são significativas porque fronteiras específicas impedem atroca de material genético; com isso, pode-se insistir que o isolado reprodutivo éa unidade, e que ele manteve sua identidade sem ser perturbadopelas mudanças nas características morfológicas da espécie.

Argumentei que entre as unidades étnicas as fronteiras também são mantidas, e que conseqüentemente épossível especificar anatureza da continuidade e da persistência destas unidades. Os trabalhos citados tentam mostrar que as fronteiras étnicas são mantidasemcada caso por um conjunto limitado decaracterísticas culturais.A persistência da unidade depende, portanto, da persistência dessas diferenças culturais, enquanto acontinuidade também pode serespecificada através das mudanças na unidade ocasionadas por transformações nas diferenças culturais definidoras de fronteiras.

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Os GRUPOS r.TNICOS I SUV. I RONII IRAS

No entanto a maior parte da matéria cultural que a qualquermomento do tempo está associada a uma população humana nãotem seu movimento impedido por essa fronteira; ela pode variar,ser aprendida e mudar, sem que isso tenha qualquer implicaçãopara a manutenção da fronteira do grupo étnico. Assim, quandoalguém reconstitui ahistória de um grupo étnico através do tempo.não está ao mesmo tempo eno mesmo sentido descrevendo ahistóriade "umacultura": os elementos dacultura atual dogrupoétnicoem questão não surgiram do conjunto específico que constituía acultura do grupo em um momento anterior, ainda que este grupotenha existência contínua do ponto de vista organizacional, comfronteiras (critérios de pertencimento) que, apesar de modihca-rem-se, demarcam efetivamente uma unidade que apresenta continuidade no tempo.

Aimpossibilidade de especificar as fronteiras das culturas impede aconstrução, referida aelas, de linhas filogenéticas no sentido mais rigoroso, evolutivo, do termo. Apartir da análise apresentada, porém, deve ser possível fazê-lo para os grupos étnicos c,nesse sentido, para os aspectos da cultura que têm aí sua ancoragem organizacional.

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A identidade pathane sua manutenção

Os Pathan (pashtuns, pakhtuns, afegãos) constituem um grupoétnico grande e muito autoconsciente, habitante das regiões próximas à fronteira entre o Afeganistão eo oeste do Paquistão. Organizam-se, demodo geral, em umsistema social segmentar, replicante,sem instituições centralizadas.1

Uma população com essas dimensões e essa organização, dispersa em uma área ecologicamente diversificada, em contato comoutras populações de culturas diferentes em várias das regiões quehabita, expõe alguns problemas interessantes. Ainda que os membros de tal grupo étnico tenham firme convicção desua identidade,o conhecimento que cada um tem das comunidades distantes quetambém afirmam compartilhar dessa mesma identidade será semprelimitado. Não se pode presumir despreocupadamente que a inter-comunicação dentro do grupo étnico consiga disseminar de maneira adequada informações que permitam amanutenção, ao longo dotempo, de um conjunto compartilhado de valores e percepções,apesar deessa intercomunicação formar uma rede contínua. Assim,mesmo que possamos demonstrar que a manutenção da identidadepathan é um objetivo explícito de todos os membros do grupo.

° Do original: "Pathan identity and itsmaintenance". Em: F Barth (cd.) Eihnicgroups and boundanes. Bergen-Oslo/London: Univcrsilcts Forlagct/Gcorgc Allcn& Unwin, I96Ç.

' N.do T. Nooriginal, "generall)' organized in asegmentar)', replicating socialsystem without centralized institutions". Traduzimos por np/iran/r nosentidode algo que se reproduz segundo omesmo modelo, em analogia com oprocessode replicação da molécula de DNA.

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será sempre uma meta buscada apartir da perspectiva limitada doscenários locais, que são altamente discrepantes entre si. Como conseqüência, o resultado agregado não será automaticamente a persistência de um grupo étnico indiviso, distinto e singular. Como,então, explicar o caráter eas fronteiras dessa unidade? Aanáliseapresentada aseguir tenta respondê-lo investigando ecomparandoos processos de manutenção de fronteiras em diferentes setores doterritório pathan. Uma vez que nossas questões dizem respeito aprocessos que ocorreram ao longo do tempo e que produziram esustentaram um padrão que podemos observar ainda hoje, vou medeter sobretudo nas formas de organização tradicional que predominaram epodem ser facilmente encontradas nessa região, deixandode lado os processos mais recentes de penetração de formas modernas de administração em algumas partes do território pathan.

As comunidades pathan exibem uma ampla gama de formasculturais esociais (ver mapa ao lado); (I) em um cinturão centralformado por montanhas áridas, que atravessa amaior parte do território, encontramos aldeias de camponeses que praticam uma agricultura diversificada, organizadas em segmentos patrilineares igualitários com forma política acéfala; (2) em algumas localidades privilegiadas nas montanhas, bem como nos vales eplanícies mais amplos, pratica-se uma agricultura mais intensiva, baseada na irrigaçãoartificial; nessas áreas, os Pathan propriamente ditos são donos deterras ou agricultores-proprictários, enquanto parte da populaçãodas aldeias é formada por arrendatários tajiks (no sul e no oeste)ou castas de camponeses servis (leste enorte). As formas políticasbaseiam-se em grande parte na organização segmentar dos gruposde descendência pathan, em alguns lugares formando sistemasacéfalos, em outros, integradas em sistemas quase feudais existentes no interior de Estados mais abrangentes e cada vez mais subordinados à administração burocrática; (?) outros setores da população pathan vivem como administradores, mercadores, artesãos outrabalhadores nas cidades do Afeganistão c do Paquistão, formando uma parte integrada desses dois Estados; (4) especialmente no

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sul muitos membros desse grupo étnico vivem como pastores nômades, organizados politicamente como tribos, em parte, com grandeautonomia. Finalmente, alguns grupos realizam grandes migraçõesem busca de trabalho ou com finalidades comerciais, levando indivíduos epequenos grupos periodicamente para bem longe das fronteiras geográficas do território pathan.

Área pathan: distribuição das formas de adaptação.Os números se relerem furtes p.oenlc» no t«io. im pÁgii» 70.

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Adiversidade de estilos de vida não parece prejudicar significativamente a auto-imagem dos Pathan como unidade étnica característica edistintiva, com nítidas fronteiras sociais edistributivas. Assim as diferenças culturais que observamos entre distintas comunidades pathan, e que objetivamente parecem ser de uma ordem degrandeza comparável àquela existente entre qualquer dessas comunidades eos grupos vizinhos que não são pathan, não se constituemem critérios para diferenciar as pessoas em termos de sua identidadeétnica. Ao contrário, os membros dessa sociedade selecionam apenasalguns traços culturais eos tomam como os únicos critérios paradeterminar, sem ambigüidades, opertencimento ao grupo étnico.

Os Pathan parecem considerar os seguintes atributos como necessariamente associados àsua identidade (cf Caroe 1958; Barth 1959):

I. descendência patrilinear. Todos os Pathan têm um ancestral comum, que viveu há vinte ou 25 gerações, de acordo com as genealogiasaceitas. Ainda que haja um considerável interesse por elas, oconhecimento efetivo das genealogias aceitas varia tanto de região para região como de indivíduo para indivíduo. Aaceitação de um critérioestritamente patrilinear de descendência, contudo, éuniversal.

2. Islã. Um pathan precisa ser um muçulmano ortodoxo. Quaisoancestral putat.vo. viveu na época do Profeta. Ele procurou oProfeta em Medina. abraçou afé. erecebeu onome de Abdur-RashidOs Pathan, portanto, não têm um passado de infiéis, nem carregamem sua história amancha da derrota eda conversão forçada.

?. costumes pathan. Um pathan vive de acordo com um corpo decostumes que é pensado como sendo comum a, e distintivo detodos os Pathan. Alíngua pashto pode ser aí incluída: éuma característica necessária ediacrítica. porém não suficiente em si própria,ou seja, não estamos lidando simplesmente com um grupolingüístico. Os Pathan tem um ditado explícito: "É pathan aqueleque age como pashto, não aquele que (apenas) fala pashto"'; e,

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nestesentido, "agir" comoumpashto significa viver deacordo comum código bastante severo, cm termos do qual alguns falantes depashto claramente estão excluídos.

Os atores imaginam os costumes pathan como sendo consistentes com e complementares ao Islã. Parte desse corpo de costumes foi formalizada e explicitada pelos conselhos tribais e pelosadministradores como lei consuetudinária, ao passo que algunstextos escritos e considerável literatura oral se preocupam com aespecificidade da cultura pathan de modo patriótico e normativo.As orientações valorativas nas quais esse corpo se baseia enfatizama autonomia, o igualiiarismo, a capacidade de expressar-se e aagressividade masculinos, e formam umconjuntodecaracterísticasconcorrentes, que pode ser sintetizado pelo conceito de honra(i^af), assumindo aqui um sentido diferente daquele que lhe foiatribuído nos estudos mediterranistas, como ficará claro no decor

rer da análise.

Juntas, essas características podem servistas como o "modelonativo" (cf. Ward 1965) dos Pathan. Esse modelo oferece a umpathan uma auto-imagem e serve para ele como cânone geral para aavaliação tanto de seu comportamento como o dos outros pathans.Evidentemente, ele só será mantido se oferecer uma auto-imagemque possa ser posta em prática e que seja moderadamente consistente com as sanções que sãoexperimentadas nas interações sociais.Alguns de meus argumentos na análise do processo de "travessiade fronteiras" serão baseados precisamente nesse ponto. Esse "modelo nativo", no entanto, não precisa ser uma representação exatados fatos empíricos, e para nossas finalidades analíticas creio queseja mais útil abordar os costumes pathan através dealgumas instituições centrais da vida pathan. Essas instituições combinam algumas orientações valorativas centrais através das quais aperformancee a excelência podem ser julgadas, com certos foros ou outros arranjos organizacionais em que o comportamento relevante podeser posto cm prática e exibido. Aanálise dos processos de manutenção de fronteiras em diferentes partes da área pathan, que será

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feita adiante, requer acompreensão de três dessas instituições, quedominam três grandes setores de atividade: mclmastia = hospitalidade e uso honrado dos bens materiais; jirga = conselhos e açãohonrada para com as questões públicas; epurdah = reclusão eorganização honrada da vida doméstica.

Ahospitalidade envolve um conjunto de convenções segundo asquais apessoa que está em seu espaço próprio tem obrigações paracom oestranho, no sentido de incorporá-lo ao grupo local, tornar-se temporariamente responsável por sua segurança c suprir suasnecessidades. Aobrigação surge quando ovisitante se apresenta emum cenário que lhe é estranho. Da mesma maneira, um forasteiroque passe pela estrada no momento em que há alguém fazendouma refeição receberá uma oferta de comida, alguém que chegue auma aldeia será saudado eauxiliado pelos moradores, eum amigoque apareça receberá prontamente as boas-vindas. Em troca, o hóspede c obrigado a reconhecer a autoridade e soberania do anfitriãosobre a propriedade e as pessoas presentes. Nessa relação entrehóspede eanfitrião, cada um dos encontros étemporário eos statussão portanto reversíveis e recíprocos; por isso, ahospitalidade torna-se facilmente um idioma de igualdade ealiança entre partes. Emcontrapartida, uma relação claramente unilateral entre anfitrião ehóspede implica dependência esubmissão política por parte deste.

Entre os Pathan, o foro apropriado para ahospitalidade variaem termos de grau de distinção e escala, de acordo com as circunstâncias locais, mas envolve sempre aalocação de espaço publicamente acessível: uma casa especial para os homens, um quarto separado para os hóspedes ou simplesmente um lugar para sentar.Juntos, o espaço e a ocasião podem ser descritos como um foro.pois oferecem aoportunidade de pôr em ação um comportamentoque pode ser publicamente julgado quanto àsua escala cqualidade.Especificamente, dá ao anfitrião aoportunidade de exibir sua competência no que diz respeito à administração dos recursos, seusexcedentes ca confiança que os outros nele depositam. Mais doque isso. mostra nfacilidade com que ele assume responsabilidades

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edeixa implícitas sua autoridade esua autoconfiança —virtudesmasculinas fundamentais entre os Pathan. Em um nível mais profundo, confirmam-se algumas premissas básicas da vida pathan: ariqueza não deve ser acumulada mas usada cnão tem muita importância; apenas os fracos se apegam àpropriedade epassam adeladepender; ohomem forte fundamenta sua posição em qualidadesque traz dentro de si eno reconhecimento dessas qualidades pelosoutros, enão no controle das pessoas através do controle dos objetos. Aauto-estima de um pobre agricultor das montanhas pode manter-se mesmo diante da riqueza edo luxo das civilizações orientaisvizinhas. Ao mesmo tempo, porém, em termos dos valores pathan, hápossibilidade de converter riqueza em influência política justamenteatravés da hospitalidade. Se por um lado se impõe aos forasteirosque reconheçam a soberania das pessoas do local, por outro seuslíderes podem multiplicar seus seguidores ao regalarem, de modounilateral, pessoas da própria aldeia. Essas idéias sobre hospitalidadefacilitam acirculação de pessoas einformações em um território anárquico eprotegem os habitantes locais de comparações desagradáveiscom os forasteiros, podendo, além disso, acelerar aassimilação política de dependentes servis sob atutela de líderes pathan.

O conselho é. entre os Pathan, uma reunião dos homens, convocada por um ou mais dos presentes, a fim de chegar a umadecisão conjunta a respeito de alguma questão do interesse detodos; pode, portanto, referir-se tanto auma reuniãoaihoc comoaum tribunal instituído. Aquestão de interesse comum pode serum conflito entre partes ali presentes ou oplanejamento de umaação comum. Arelação entre os membros de um conselho éumarelação entre iguais, sem que alguém se faça dono da palavra oulíder; a igualdade é enfatizada pelo fato de as pessoas sentarem-se cm círculo no chão c pela igualdade do direito à fala. Essecorpo não toma decisões pelo voto: a discussão e a negociaçãocontinuam até que a decisão não encontre mais oposição c seja.portanto, unânime, implicando um grau de compromisso igualao que existiria se adecisão tivesse sido tomada por cada um dos

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participantes individualmente. Uma facção que não aceite umadeterminada decisão só pode evitar comprometer-se com ela se abandonar o círculo cm protesto.

O conselho é um foro no qual valores importantes para osPathan, tais como a coragem, a capacidade de julgamento, aconfiabilidade eamoralidade, podem ser apresentados ao mesmotempo cm que se evidencia o grau de influência de cada um e orespeito que lhe éconcedido. Em um nível ainda mais fundamental,essa organização em conselhos confirma aintegridade eautonomiabásicas dos homens, assim como a natureza essencialmente voluntária do contrato social entre os Pathan. Esta organização permiteque grupos de homens cheguem a decisões conjuntas sem comprometer aindependência de qualquer dos participantes, eproduzdecisões corporadas arespeito de ações coordenadas, com as quaisas pessoas se comprometem, sem que isso implique introduzir odireito de alguém dar ordens, oque levaria ao desmonte da estrutura de segmentos igualitários e equilibrados.

Por fim, a reclusão organiza as atividades de forma apermitirsimultaneamente a ênfase na virilidade ea primazia da sociedademasculina, evitando que aperformance na esfera doméstica afete aimagem pública de um homem. As orientações valorativas dos Pathanapresentam várias contradições se forem todas simultaneamenteacionadas no comportamento diante de públicos heterogêneos.Assim, a ênfase namasculinidade c na virilidade tem uma dimensãode apetite ecompetência sexuais, mas aansiedade pela satisfação deseus desejos évista como sintoma de fraqueza eéfortemente ridicularizada. Aideologia agnática eaênfase na virilidade implicamgrande valorização dos homens eda companhia de outros homensem detrimento das mulheres, mas só em companhia das mulheresse pode consumar a essência da virilidade. Finalmente, há ainda oproblema da vulnerabilidade em função das "coisas" ou bens materiais, edo desrespeito aos direitos. Vimos como avalorização explícita da liberdade eda autonomia érealizada por meio da hospitalidade, da negação do apego aos bens materiais cda negação da

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importância destes. Os direitos que os homens têm sobre as mulheres, suas irmãs esuas esposas, contudo, não podem ser negadose liqüidados dessa mesma maneira: um homem depende de suasmulheres, e elas o tornam vulnerável.

Diante de todas essas contradições, a reclusão das mulheres coencapsulamento da vida doméstica se apresentam como uma soluçãocomportamental adequada. Esta também torna possível uma organização da esfera doméstica que permite uma acomodação realista entre os cônjuges. Asexualidade, adominância eopatriarcalismo necessários para que haja coerência com os valores masculinos públicosnão precisam ser realizados publicamente; aprimazia das relaçõescom outros homens pode ser confirmada na esfera pública sem queisso traga nenhuma conotação de passividade sexual; ao mesmo tempo, a interação entre cônjuges não precisa ser distorcida por umaperformance masculina dirigida aum público também masculino.É difícil documentar o padrão resultante de performance na esferadoméstica; aadequação desse padrão, todavia, ésugerida pela relativaausência entre os Pathan de divórcios ou assassinatos causados poradultério, pela confiança que têm em suas mulheres os nômades emigrantes que se ausentam periodicamente de suas casas, epela visãotradicional das mães e irmãs como sustentáculos da honra familiar,incentivando sempre os homens aagir corajosamente etc.

Essas três instituições centrais se combinam de modo asupriros Pathan de mecanismos organizatórios através dos quais podemrealizar seus valores com razoável grau de sucesso, dadas as circunstâncias externas necessárias.

Essas instituições facilitam também a manutenção de valorescompartilhados e de uma identidade comum nessa população caracterizada por uma organização acéfala cpolissegmentar. Os forospúblicos oferecem oportunidades para se apresentar diante de outras pessoas eser avaliado por elas, independentemente do local deresidência e das lealdades políticas; são espaços em que se produza mediação das avaliações e opiniões públicas, que são reconhecidas em áreas bastante amplas. Sempre que os homens se reúnem

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nos conselhos, toda vez que chegam convidados e são recebidoscom hospitalidade, há uma apresentação dos valores pathan maisfundamentais e um julgamento e sanção da qualidade da performance. Deste modo, é possível configurar c manter certos acordosbásicos, bem como a realidade da identidade étnica compartilhada,apesar da ausência de qualquer exemplo paradigmático ou modelocentral.

Além disso, os valores assim realizados são compartilhados,em termos gerais, pelos povos vizinhos, de modo que o sucessocomo pathan implica um comportamento que também é admiradopelos não-pathans. A identidade étnica permanece altamente valorizada pelos que a compartilham, mesmo nas situações de contato,e continua aser mantida sempre que isso é possível. Uma compreensão dos mecanismos de fronteira da unidade étnica pathan depende, portanto, da compreensão de fatores específicos, que podem tornar impossível ou pouco interessante a manutenção dessaidentidade. Esses fatores variam entre as diferentes regiões de fronteira do território pathan, e serão discutidos a seguir.

Na fronteira sul, os grupos de descendência dos Pathan, organizados politicamente em conselhos de linhagem, se confrontam,ao longo de uma fronteira territorial claramente demarcada, comtribos baluchi, organizadas centralizadamente. Essa fronteira nãocoincide com qualquer diferença ecológica fundamental, ainda quehaja uma diferenciação gradual das áreas mais baixas c secas ao sulaté a zona montanhosa um pouco mais úmida ao norte. Ao longoda história recente da região, a fronteira étnica tem se deslocadopara o norte por meio de processos intermitentes de ocupação deáreas marginais por tribos baluchi.

Os principais fatores envolvidos nesse processo foram analisados em outro trabalho', e serão mencionados rapidamente. O fatorfundamental é a diferença entre as estruturas políticas baluchi e

1N.do I:. O autor sereicre aqui aocapítulo "Processos étnicos na fronteiraentreos Pathan e os Baluchi", p. 95-106

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pathan. As tribos baluchi têm como base ocontraio de submissãopolítica entre agente comum eos chefes esubchefes (Pchrson1966). Essa forma permite alivre reorganização eassimilação depessoas, ehá evidências bastante conclusivas do crescimento histórico das tribos baluchi através da confederação e da agregação deindivíduos e pequenos grupos.''

Os Pathan do sul, por outro lado, organizam-se em grupos dedescendência segmentares localizados. Ainda que muitos deles tenham chefes, são nesse caso líderes de segmentos de descendênciados quais os clientes estão excluídos, sendo as decisões políticastomadas através de conselhos igualitários. Aassimilação de pessoasque não fazem parte do grupo de descendência só épossível através do estabelecimento de laços clientelísticos com pessoas ou seções da tribo. Para o cliente, isso significa assumir uma posiçãoinferior e servil, sem inclusão na tribo, esó é interessante em último caso. Além disso esse arranjo não émuito interessante tambémpara o patrão potencial, por diversas razões ecológicas csociais.Um cliente, numa região, só consegue produzir um excedente muito limitado para seu patrão; ao mesmo tempo as obrigações dopatrão em relação aseu cliente são consideravelmente amplas. Elenão apenas éresponsável pela proteção edefesa de seu cliente, comotambém torna-se responsável por qualquer ofensa que o clientevenha acausar. Numa sociedade igualitária em que asegurança decorre da capacidade que se tem de angariar o apoio coletivo, asvantagens políticas de ter alguns clientes sob seu controle são muito limitadas. Assim, enquanto os chefes baluchi competem entre sipor influência e impostos através da tentativa de incorporar maismembros às suas respectivas tribos, no caso dos Pathan as pessoasque buscam ligar-se aos grupos são desprezadas porque esses grupos estão estruturados de maneira que dificulta essa incorporação.

4No Baluquistão. há também algumas pessoas que são clientes de pessoascomuns ou de grupos corporados de pessoas comuns. São poucas, cpassampor privações sociais ceconômicas.

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Qualquer pessoa ou pequeno grupo que. em função de guerra, acidentes ou crimes, se desprende de seus laços sociais originais seráconseqüentemente incorporado auma estrutura política baluchi. Alémdo mais, dado que são unidades centralizadas, os agrupamentosbaluchi têm mais capacidade de seguir estratégias a longo prazo doque os grupos pathan, mobilizados através de fusão e de conselhosad hoc. E embora as tribos baluchi possam perder batalhas, elas tendem a vencer as guerras, aumentando nesse processo as suas dimensões pormeio do desenraizamento de fragmentos de outros grupos;com isso, têm tomado terras pathan.

O resultado é um fluxo de pessoas dos grupos pathan para osgrupos baluchi, sem que a recíproca seja verdadeira. De fato, parcelas importantes de tribos baluchi reconhecem sua origem pathan,contudo a incorporação de pathans em estruturas políticas do tipobaluchi se dá concomitantemente com a perda da identidade étnicapathan, o que permite que a dicotomia categórica entre as tribosbaluchi epathan permaneça. As causas disso devem serbuscadas noconflito entre os valores pathan e as circunstâncias políticas.

Naturalmente, a participação e o sucesso social em uma tribobaluchi requer o domínio do idioma e da etiqueta baluchi e, emconseqüência, uma certa assimilação da cultura baluchi.Aversatilidade e o domínio de duas línguas, entretanto, são característicasamplamente distribuídas, de modo que a situação externa não implica a necessidade de mudança de identidade étnica quando háincorporação por um grupo baluchi. Na verdade, os fatores maisimportantes estão ligados àescolha de identidade pelo próprio ator,e tudo contribui para que haja uma opção pela identidade baluchi.Procurei mostrar como o conselho representa um foro fundamental para aatividade política pathan epermite que osPathan ajam emconjunto, sem que isso signifique abrir mão da autonomia de cadaum. O pertencimento a uma tribo baluchi com direção centralizada,por outro lado, compromete de maneira irrevogável essa autonomia: é preciso que um homem se torne um dependente, um clientede um líder, o que significa não poder falar em seu próprio nome

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no foro público. Pelos padrões pathan, um homem que se tornaum cliente é um fracassado desprezível, um subordinado em meio apessoas comuns independentes. Já entre os Baluchi, oauto-respei-to e o reconhecimento como homem comum honrado não requeresse grau de afirmação e autonomia; de acordo com os padrõesbaluchi, os custos desetornar cliente de um chefe nobre são muitopequenos. Avirilidade eacompetência não precisam ser demonstradas nos conselhos políticos, aos quais a gente comum não temacesso; busca-se isso em outros campos de atividade. Um homemque tentasse reter aidentidade pathan em um contexto baluchi correria o risco de ser julgado de acordo com padrões pelos quais suaperformance éum fracasso, enquanto essa mesma performance, sejulgada pelos padrões do grupo envolvente, éperfeitamente honrada. Não ésurpreendente, então, que alguém que tenha sido assimilado escolha a identidade que torna mais tolerável sua situação.Disso decorre o fato de que as mudanças de pertencimento político associam-se amudanças de identidade étnica, mantendo-se claradicotomia entre pessoas e tribos apesar da movimentação de pessoas entre as categorias. Há apenas uma pequena categoria de pessoas que éexceção: umas poucas famílias esegmentos pathan queforam assujeitados pelos Baluchi como servos ou escravos (cf.Pehrson 1966: 12) e, sendo dependentes de baluchis comuns, apegam-se auma identidade que pode ao menos abrir-lhes apossibilidade de afirmar uma origem honrada, ainda que isso não impliqueem reconhecimento pelos pathans livres.

Na margem oeste do território pathan, asituação ébem diferente (cf. Fcrdinand 1962). Ali, aregião adjacente éocupada pelosHazara, um povo de língua persa. Os pastores emercadores nômades pathan invadem bastante oterritório hazara elá se estabelecemem números cada vez maiores. Aparentemente essa situação é recente, tendo surgido depois que Amir Abd-ur-Rahman. doAfeganistão, derrotou esubjugou os Hazara. Antes disso, tudo indica que a mistura étnica era limitada. Os Hazara formavam umapopulação de agricultores pobres das montanhas, organizados sob

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a liderança de pequenos chefes ecapazes de defender seu território,enquanto os Pathan ocupavam os amplos vales e as planícies.

Abase para essa clara separação territorial precedente deve serbuscada em uma combinação de fatores políticos eecológicos. Comopraticavam uma agricultura mista, os Hazara ocupavam tanto umnicho agrícola como pastoral, de modo que tanto os agricultorescomo os nômades pathan eram seus competidores. Além disso, osistema político tribal baseado na liderança de pequenos chefes, talcomo encontrado em ambos os grupos, não tem capacidade de articular em um sistema maior grupos étnicos distintamente organizados. Arelação entre as comunidades tribais hazara epathan só poderia ser uma relação de competição envolvendo tentativas mútuas demonopolizar os recursos existentes ao longo da fronteira. Aaparente estabilidade da fronteira entre eles pode ser compreendidacomo resultado de um equilíbrio entre ganhos e perdas: com ostipos de unidade política existentes, os custos envolvidos na conquista e invasão do território hazara para uma tribo pathan erammaiores do que os retornos esperados.

Arelativa pacificação resultante da incorporação do territóriohazara pela estrutura estatal do Afeganistão mudou radicalmenteessas circunstâncias. Acompetição pelos recursos tornou-se independente dos custos concomitantes relacionados com a defesa e apenetração do território, eos pastores nômades pathan começaramaentrar sazonalmente em busca das pastagens de verão. Além disso,amaior liberdade de movimento criou um nicho para mercadores, eos Pathan, tendo acesso às fontes de bens comercializáveis, rapidamente ocuparam esse nicho. O comércio nas vilas é uma atividaderelativamente desprezada, a cargo, cm grande medida, de gruposespecíficos de baixa posição social; mas avida de nômade mercadorque, fortemente armado, penetra em territórios alheios, arriscando-se tanto do ponto de vista pessoal quanto financeiro, oferece muitas oportunidades para demonstrar as qualidades masculinas valorizadas pelos Pathan. Através do mecanismo institucional do crédito garantido pela terra, esses mercadores conseguiram não apenas

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desenvolver uma atividade comercial derazoáveis proporções, comotambém passaram acontrolar terras agricultáveis. Como resultado,há uma tendência de crescente assentamento de pathans como donos de terras no território hazara.

Essa tendência exemplifica um padrão de expansão e coabita-ção étnica característico de muitas áreas pathan. E verdade que aexpansão dos Pathan para norte epara leste, que vem ocorrendo hámuito tempo, ocasionalmente tomou a forma de migração e conquista, com o desalojamento total da população que anteriormenteocupava o território; porém mais freqüentemente resultou apenasem um deslocamento parcial da população não-pathan autóctone.Nesse caso, os Pathan se estabeleceram em comunidades estra-

tificadas, na posição de grupo dominante, dono das terras, em umsistema poliétnico. Em boa parte da área a oeste, a dicotomia existente é entreos Pashtunt e osTajik, que são servos de língua persa,ao passo que nas regiões a leste os Pakhtun estabelecem um contraste com um grupo mais heterogêneo de castas dependentes quegeralmente falam pashto.

Uma das precondições para esses sistemas compostos é claramente de caráter ecológico. Doponto de vista pathan, é óbvio quedependentes só serão aceitos quando as desvantagens disso decorrentes, como a maior vulnerabilidade, são consideradas menores do

que as vantagens econômicas e políticas. Argumentei que, no casoda região de montanhas áridas ao sul, isso leva à rejeição dos clientes. Nas regiões agrícolas mais ricas, por outro lado, especialmentenaquelas cm que há possibilidade de agricultura irrigada, o trabalhoagrícola produz excedentes muitograndes, demodo que o controleda terra permite realizar empreendimentos lucrativos. Conseqüentemente, aopção de se estabelecer como proprietário de terrasc patrono de outras pessoas passa a ser atraente. Asupremacia política pode ser buscada c mantida seja pela integração dos servoscomo verdadeiros clientes (hamsaya), seja por meio das obrigaçõesmenos comprometedoras relacionadas com a hospitalidade unilateral. Onde os excedentes são muito grandes é mais comum esse

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último padrão, que pode ser observado quando passam a ser promovidos banquetes no caso dos homens, como na região norte(Barth 1959a: 52-ss); por esse meio, os Pathan podem ganhar influência política sobre seus dependentes sem aumentar muito asua própria vulnerabilidade.

Nessas circunstâncias a identidade pathan pode ser facilmentemantida uma vez que épossível realizar uma performance adequadanos vários foros em que essa identidade é validada. Aautonomiapolítica nesse sistema, porém, baseia-se na propriedade da terra.Amanutenção alongo prazo da fronteira étnica pressupõe, portanto, mecanismos para a monopolização e retenção das terras nasmãos dos Pathan. Aqueles que perdem suas terras recebem terrasrealocadas com base na posição em termos de descendência, oupassam a ter negados seus direitos como descendentes de pathans,sendo rejeitados pelo grupo. Ao mesmo tempo a aquisição de terras por não-pathans deve ser contida easua participação nos forospathan deve ser evitada, a menos que possam ser completamenteassimilados ao status pathan.

Vários padrões desse tipo podem efetivamente ser observados,como em Svvat, onde aqueles que perdem suas terras perdem também sua posição em termos de descendência, ao mesmo tempo queos santos e outros que ganham terras são ainda assim excluídos daparticipação nas reuniões dos conselhos ou da hospitalidade nacasa dos homens. Assim os pathans que conquistam uma regiãoconseguem integrar outras populações em um sistema político esocial sem assimilá-las; outros grupos étnicos e de status tambémpodem se infiltrar no sistema em posições dependentes desde quehaja nichos disponíveis, como no caso dos pastores gujars e doscomerciantes parachas. No entanto as diferenças culturais existentes nesses casos em que a identidade pathan se contrapõe a umgrupo dependente formando uma dicotomia tendem claramente ase reduzir com o passar do tempo. Na comunidade estratificadacomo um todo. há uma integração muito íntima e multifacetadaque impulsiona essa tendência. Amaior parte da vida social guarda

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relação nesse caso com um contexto religioso em que se afirma aigualdade de maneira dogmática. Há constante circulação de pessoas através de casamentos hipergâmicos, bem como em função daperda de terras c de posição social. Finalmente, há múltiplos contextos em que o compartilhamento de ideais e padrões torna-serelevante para grupos que se configuram cortando os diversos estratos: nos jogos, na caça, na guerra e na valentia, tanto os não-pakhtun como os Pakhtun se aproximam e são julgados e premiados de acordo com os mesmos padrões de masculinidade.' Dissoresulta que todos os estratos da população tendem a assumir umestilo de vida pathan, bem como a sua língua. Conseqüentemente,ainda que a versão local do nome étnico (Pakhtun em Swat ePeshawar) continue a indicar internamente o estrato dominante, écrescentemente empregada também para designar toda apopulaçãoem contraste com a população de outras regiões em que não se falapashto. Nesse sentido, portanto, a fronteira interna tende aperderum pouco de seu caráter étnico.

As margens do território pathan a leste, na direção da rica epopulosa planície do Indo, ilustram uma combinação diferente dealguns desses fatores. Ao longo da história, tribos e grupos depathans repetidamente desceram das montanhas e conquistaramgrandes ou pequenas áreas de terra no Punjab ou mais a leste, esta-belecendo-se como senhores de terras. Nesse caso, houve um progressiva assimilação dos conquistadores, e os limites do territóriopathan não se distanciaram muito do início da região montanhosa,a não ser no caso da região quase isolada das planícies de Peshawar.Aetnodinâmica dessa fronteira pode, portanto, ser simplificada-mente caracterizada por uma pressão contínua e pela migração depessoas a partir da área pathan, contrabalançada por uma contínuaabsorção de migrantes pela população das planícies, atingindo os

' Exceto no caso de alguns grupos claramente discrepantes, como os santos, osmullahs (sacerdotes), osdançarinos etc,que evitam ou são excluídos dessasatividades.

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