o grotesco e sua semiose: o caso ficção científica · enquanto característica inerente à...

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O grotesco e sua semiose: o caso ficção científica 12/02/2007 Thiago Falcão* Resumo: O presente ensaio tem como objetivo refletir, de modo geral, sobre o lugar da categoria estética do grotesco na produção de sentido da Ficção Científica (FC) – do gênero e de seus adeptos, como produção e produtores midiáticos – trazendo, para isso, conceitos formais sobre a categoria estética citada, mas questionando sua transmutação mediante a ação de mais de um século de revolução industrial – tecnológica e comunicacional. Como o grotesco passou a integrar o imaginário da FC, como ele se transformou lá dentro e como, por meio de uma semiose cultural natural da subcultura cyberpunk para a cibercultura, ele integra hoje diversos níveis de atuação dentro do campo midiático são algumas questões que merecem atenção especial e serão pontuadas no decorrer do texto. Palavras-chave: Ficção Científica; Neo Grotesco; Cibercultura. Desde a criação do fantástico monstro de Victor Frankenstein[1] , nos maravilhamos dia após dia com a concepção de futuros imaginários vinda das mentes dos escritores de Ficção Científica (FC). Inegável o fato de que o estilo, que nem sempre é visto com bons olhos pelas academias de literatura, sempre esteve fortemente associado à corrida tecnológica a qual o homem vem trilhando no decorrer dos séculos. Fosse a simples, porém eficaz, máquina do tempo de H.G. Wells[2] ou os dispositivos de teletransporte instalados na U.S.S. Enterprise, do heróico Capitão Kirk[3] , as distopias construídas pelas mentes de seus autores, vieram acompanhadas de um leque de elementos de enredo que sugeriam um desenvolvimento tecnológico incomum ao contexto espaço-temporal por elas habitadas, e essa foi, desde sempre, a característica motriz do gênero – que mais tarde deixaria as páginas de papel para povoar a película, e atualmente todo o imaginário cibercultural. Só mais recentemente, com o advento, primeiro da New Wave (década de 1950/60), depois da Ficção Cyberpunk[4] (década de 1980), contudo, as obras de Ficção Científica passaram a se estruturar não só como expectadoras da evolução maquínica da humanidade, mas sim como mecanismo de reflexão sobre o impacto dessas tecnologias no nosso dia a dia. Importante perceber, aqui, que a FC é considerada herdeira de diversas características do romantismo que vão cruzá-la com outros referenciais teóricos que virão a ser invocados mais à frente: A herança do romantismo na FC se manifesta e se apresenta principalmente através da idéia de utopia, da nostalgia de se retornar aos valores perdidos; pela estetização do presente; pela rejeição e euforia em relação à modernidade e, principalmente, pela idéia de maquinização do mundo e das relações puramente utilitárias entre os seres humanos. (AMARAL, 2005, p. 57). Mais que natural, então, que as Novas Tecnologias da Comunicação (NTC), que tanto modificaram nosso mundo real (lebenswelt) nas últimas décadas, passem pelo crivo dos escritores de FC, que hoje mantém uma relação menos ortodoxa com a narrativa[5] e mais presenteísta para com a realidade. O ponto principal que deve ser considerado quando focamos nossos olhares em direção ao universo da cibercultura é que todo o imaginário que hoje é tido como senso

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O grotesco e sua semiose: o caso ficção científica 12/02/2007 Thiago Falcão*

Resumo: O presente ensaio tem como objetivo refletir, de modo geral, sobre o

lugar da categoria estética do grotesco na produção de sentido da Ficção Científica (FC) – do gênero e de seus adeptos, como produção e produtores midiáticos – trazendo, para isso, conceitos formais sobre a categoria estética citada, mas questionando sua transmutação mediante a ação de mais de um século de revolução industrial – tecnológica e comunicacional. Como o grotesco passou a integrar o imaginário da FC, como ele se transformou lá dentro e como, por meio de uma semiose cultural natural da subcultura cyberpunk para a cibercultura, ele integra hoje diversos níveis de atuação dentro do campo midiático são algumas questões que merecem atenção especial e serão pontuadas no decorrer do texto.

Palavras-chave: Ficção Científica; Neo Grotesco; Cibercultura. Desde a criação do fantástico monstro de Victor Frankenstein[1], nos

maravilhamos dia após dia com a concepção de futuros imaginários vinda das mentes dos escritores de Ficção Científica (FC). Inegável o fato de que o estilo, que nem sempre é visto com bons olhos pelas academias de literatura, sempre esteve fortemente associado à corrida tecnológica a qual o homem vem trilhando no decorrer dos séculos. Fosse a simples, porém eficaz, máquina do tempo de H.G. Wells[2] ou os dispositivos de teletransporte instalados na U.S.S. Enterprise, do heróico Capitão Kirk[3], as distopias construídas pelas mentes de seus autores, vieram acompanhadas de um leque de elementos de enredo que sugeriam um desenvolvimento tecnológico incomum ao contexto espaço-temporal por elas habitadas, e essa foi, desde sempre, a característica motriz do gênero – que mais tarde deixaria as páginas de papel para povoar a película, e atualmente todo o imaginário cibercultural.

Só mais recentemente, com o advento, primeiro da New Wave (década de

1950/60), depois da Ficção Cyberpunk[4] (década de 1980), contudo, as obras de Ficção Científica passaram a se estruturar não só como expectadoras da evolução maquínica da humanidade, mas sim como mecanismo de reflexão sobre o impacto dessas tecnologias no nosso dia a dia. Importante perceber, aqui, que a FC é considerada herdeira de diversas características do romantismo que vão cruzá-la com outros referenciais teóricos que virão a ser invocados mais à frente:

A herança do romantismo na FC se manifesta e se apresenta principalmente através da idéia de utopia, da nostalgia de se retornar aos valores perdidos; pela estetização do presente; pela rejeição e euforia em relação à modernidade e, principalmente, pela idéia de maquinização do mundo e das relações puramente utilitárias entre os seres humanos. (AMARAL, 2005, p. 57).

Mais que natural, então, que as Novas Tecnologias da Comunicação (NTC), que

tanto modificaram nosso mundo real (lebenswelt) nas últimas décadas, passem pelo crivo dos escritores de FC, que hoje mantém uma relação menos ortodoxa com a narrativa[5] e mais presenteísta para com a realidade.

O ponto principal que deve ser considerado quando focamos nossos olhares em

direção ao universo da cibercultura é que todo o imaginário que hoje é tido como senso

comum foi, na verdade, construído seguindo a velha máxima de que “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. O terreno onde pisamos hoje é composto pela sedimentação de várias outras teorias já idas, e que às vezes voltam transmutadas para se adequarem ao contexto atual.

Os esqueletos no armário da sociedade tecnológica ainda não foram enterrados e ressurgem nas fobias anti-tecnológicas, nas visões horrendas das fantasias genéticas apontadas pelos grupos religiosos ao acusarem a ciência em sua decodificação do DNA, no discurso da vigilância full time da rede e da pervasividade das tecnologias móveis que nos acompanham em momentos de afetação cotidiana feito o espelho de Dorian Grey. (AMARAL, 2006, p. 01).

Esse é, precisamente, o caso do grotesco: categoria estética cuja principal

característica é a presença da figura do rebaixamento (bathos, na retórica clássica) em seu discurso, utilizando-se assim do fenômeno da desarmonia (ou disgusto, para os estetas italianos) para promover um deslocamento de realidade que, muitas vezes, trabalha as características de um signo[6] de forma hiperbólica (embora haja outras formas menos sutis de ação do grotesco) para levar tal signo ao ridículo, provocando assim “um mesmo padrão de reações: riso, horror, espanto, repulsa” (SODRÉ e PAIVA, 2001, p. 17).

Em cada expressão de nossa mídia atual – sobretudo nas expressões da mass

media – encontramos cada vez mais elementos de bathos que tornam o grotesco uma categoria estética absolutamente recorrente: clichês culturais, exibição de aberrações humanas (do monstruoso, no caso), preconceito explícito, escatologia.

Contudo, não é só nesse tipo de manifestação da mídia, na maioria direcionada

para as classes menos privilegiadas culturalmente[7], inclusive, que se vê a figura do grotesco permeando nosso lebenswelt. A situação se agrava quando chegamos, através principalmente da figura do monstruoso, aos processos de civilização, de onde vemos que a recorrência de tal imagem inscreve nela uma resistência inesperada a ideais fundamentais, tais como proporção, ordem, harmonia e controle.

Essa monstruosidade está inscrita em personagens da FC como Frankenstein e

Robocop, mas também atinge o nosso dia a dia, com os produtos transgênicos e toda uma gama de seres cibernéticos que corroem a fronteira entre ficção e realidade, agindo em favor da dissolução da barreira “civilizadora” entre humano (natural) e tecnológico (cultural).

Para chegar ao ponto onde o grotesco toca a fronteira da estética da cibercultura,

contudo, precisamos regredir a meados do século XVIII, onde foi forjado um conceito bastante interessante, o de sublime:

Em 1756, Edmund Burke formula o conceito de sublime como o efeito estético que inspira o terror e tem a dor como uma de suas bases, provocando emoções e contrapondo-se à placidez da beleza. O sublime é o efeito condutor do gótico, “(...) aquilo que desafia a compreensão racional invocando uma mistura de prazer e terror no espectador” (DERY apud AMARAL, 2005, p. 64)

Pelo fato de que é uma alegoria constante do romantismo[8], essa característica estética de ‘sublime’ vai retornar várias vezes no decorrer dos séculos, sobrevivendo às mais diversas tendências literárias e persistindo na era contemporânea como “figura de poder emotivo na escrita pós-moderna, mediado agora pela ciência e pela tecnologia” (TABBI apud AMARAL, 2006, p. 65). Daí o fato de que o “sublime romântico” vai se transformar em “sublime tecnológico”, elemento incisivo da ficção cyberpunk da década de 1980, que foi a portadora de uma série de elementos semióticos para dentro do imaginário da cibercultura, como pontua Lemos:

O imaginário cyberpunk vai marcar toda a cibercultura. O termo tem suas origens no movimento homônimo da ficção-científica que associa tecnologias digitais, psicodelismo, tecno-marginais, ciberespaço, cyborgs, e poder mediático, político e econômico dos grandes conglomerados multinacionais. Além da ficção, todo o imaginário da cibercultura vai ser alimentado pela ação dos cyberpunks reais: o underground da informática. (LEMOS, 2002, p. 200).

Para traçar, finalmente, a ponte até o conceito de grotesco de Sodré e Paiva

(2001), recorremos então, a Mark Dery (1999), que define a estética da cibercultura não como “sublime tecnológico”, mas sim como Neo Grotesca[9] (New Grotesque), valendo-se de exemplos retirados da cultura popular norte-americana (seja artes plásticas, literatura ou outros)".

Curiosamente, um dos fundamentos básicos da cultura cyberpunk da década de

1980 foi o de, justamente, reavivar o conceito mente versus corpo nascido no método cartesiano. Dentro de sua estética, principalmente nos primeiros anos de vida do movimento, havia, entre os escritores do estilo, um desprezo pela carne e um desejo vívido de descorporificação, que é justamente refutado pela recorrência do Neo Grotesco enquanto característica inerente à produção da época. Talvez por isso os escritores da geração intitulada de pós-cyberpunk já segurem um pouco essa utopia cartesiana em nome de uma estratégia de re-encaixe desse sujeito pós-humano que é enfocado na FC pós-moderna[10], re-corporificando alguns personagens.

Desse modo, fica óbvio então o potencial civilizador que a categoria do grotesco,

quando estendida ao monstruoso – no que concerne à produção midiática de Ficção Científica – carrega consigo, quando atualizada para o Neo Grotesco.

Civilizador no sentido de quem define limites, de quem mostra fronteiras que

devem ser respeitadas, não importando o que aconteça. Fronteiras das quais dependem não só nossa integridade moral e física, mas até mesmo nossa sanidade. Talvez sejam só mais estratégias de controle, claro, mas desse modo, acredito que fica claro o valor limitador da própria alteridade – volto então aos meios de comunicação de massa (em especial à TV), de onde posso sugerir que o verdadeiro propósito de nos pegarmos de olhos fixos na tela com tais demonstrações do ridículo, do escatológico, é deitarmos a cabeça, à noite, no travesseiro e nos regozijarmos no fato de que somos absolutamente normais, definidos por fronteiras que são claras como a luz.

Saindo um pouco da teorização do ensaio, mas indo a um ponto bem interessante,

isso seria só mais uma estratégia de agenciamento (assemblage) (Rose, 2001) para que sejamos montados como aquilo que somos: exemplares mais que verdadeiros de um sujeito que finalmente descobriu que não sabe nada sobre si mesmo, mas que é definido por inúmeras variáveis dentro do que David Pringle e Peter Nicholls chamariam de Media Landscape, ou Ambiente Midiático.

Voltando ao Neo Grotesco, então, vemos aqui uma imagem que segue exatamente

os preceitos postos por Sodré e Paiva, os de hipérbole, de espanto, de horror, de repulsa. Os elementos sígnicos da FC vão conter, então, uma coleção inteira de itens que vão trabalhar todos esses sentimentos dentro do psi da massa de modo que o fator ‘grotesco’ vai abandonar um pouco o riso, fazendo com que nos perguntemos coisas que a mídia – composta principalmente pelo que Debord chamou de Espetáculo e, por incrível que pareça, nem um pouco preocupada com essa estratificação do sujeito – insiste em negar, em sua institucionalização de discursos e construção de um real que não passa de um simulacro.

Não falar de simulacro quando se fala de mídia atual é praticamente impossível. A

cada dia que passa vemos mais e mais realidades serem construídas de nada – justiça poética, então, saber que todas as estruturas virtuais sobre as quais postamos nossa sociedade hoje são feitas do mesmo elemento dos castelos de areia: silício. No próprio simulacro – que a FC muito bem abordou com Daniel F. Galouye, em 1964, com Simulacrum-3 – o elemento do grotesco está contido, pois ele próprio é um reflexo da realidade que às vezes se torna tão palpável quanto a própria. O terror está contido no simulacro, a partir do momento em que ele não passa de uma ilusão, fumaça e espelhos que inspiram terror e prazer vindos da instabilidade, vindos do fato de que aquela imagem se revela no real, se apóia no real, mas no seu âmago, o nega.

Etimologicamente falando, um simulacro é um fantasma, uma ilusão (...) Tanto o terror como o prazer que o simulacro inspira vem de sua transparência, de sua instabilidade, do fato de que ele se revela no real, enquanto, também, o renega. (DYENS, 2001, p.82).

A diferença mais gritante que a releitura – o Neo Grotesco – imprime sobre o

imaginário do próprio grotesco é simplesmente o fato de que a parcela animal, um dos pontos fundamentais na equação do ridículo designada por Sodré e Paiva, é substituído completamente pelas facilidades (ou pelos problemas) trazidos pela tecnologia. É o caso simples de decepção para com a revolução tecnológica, um pensamento que é relativamente novo, se pensarmos que a esperança de que a tecnologia fosse resolver todos os nossos problemas durou por mais de 100 anos.

Sodré e Paiva dizem, sobre o “Juízo Final”, de Tintoreto e “O Jardim das Delícias”,

de Bosch, que:

No labirinto narrativo dessas cenas pintadas – cuja característica mais inquietante talvez seja a reversibilidade entre humano e animal – os outros mundos sugeridos não são apenas virtuais ou “compossíveis”, como no barroco, mas reais, em sua alteridade inquietante. (...) E o desafio se expressa no disparate, na hibridização desordenada, na metamorfose in actu, na forma que se abrem as contenções para o outro, para o estranho. (SODRÉ e PAIVA, 2001, pg. 27).

Hoje, contudo, não vivemos essa época de medo – de admiração, até – pelo

hibridismo humano-animal. Talvez nossa relação com a cultura tenha chegado num nível em que não podemos distinguir um do outro. “Nossa cultura se encaminha para produzir indistinguível do que é produzido pela natureza”, diz Tavares (2005), enquanto suas palavras já são eco de Santaella (2004): “Cultura é mediação. Onde houver vida, há

cultura, pois a vida só se explica porque em seu cerne, reside a inteligência: outro nome para mediação”.

Vivemos, então, uma era de admiração – de medo – do hibridismo humanidade-

tecnologia, que desafia o próprio desenvolvimento. Hoje, enquanto povoamos nossas ficções com chips de implante subcutâneo, já vimos, em nosso lebenswelt, uma outra série de sonhos tornarem-se realidade. Se os meios de comunicação são extensões do homem (McLuhan), então não seríamos nós, desde sempre, ciborgues? A figura do ciborgue, quando cruzamos a categoria do Neo Grotesco com a cibercultura, é a primeira a aparecer, desencadeando as mais adversas reações na massa, que às vezes se prende a purismos trazidos pela simples institucionalização de um pensamento.

Vide a Igreja Católica, por exemplo, em seu discurso antitecnologia, promulgando

um pensamento de que os usuários de preservativos – anticoncepcionais – estão pecando gravemente contra a vontade de Deus. A digressão não se prende ao tema, mas a considero válida, visto que a própria instituição supracitada é responsável pela maior onda de protestos anticlonagem. Não discuto aqui nenhum mérito, nem o da igreja, nem o da ciência: apenas constato os fatos, para neles aplicar essa visão crítica formada com a ajuda do pensamento de alguns autores.

A mídia de massa, as instituições e mesmo os próprios escritores e entusiastas de

FC utilizam-se de seus devidos meios para transformar o mundo numa vitrine do monstruoso, numa tentativa vã (no caso das instituições e da mídia) de refrear o impulso evolutivo que domina a raça hoje em dia. Entramos aqui no território delicado da ética científica, o qual devemos deixar imediatamente, com a certeza que os escritores de FC não estão totalmente sujeitos a essas estratégias de controle, embora sua produção artística – e aqui eu devo estender à filmografia, pois venho sendo injusto com o cinema, no decorrer do artigo – sirva, sim, para definir limites claros entre humano e monstruoso.

Vejamos o exemplo de Tetsuo, personagem do anime[11] Akira (1988): a partir do momento que ele se envolve com a tecnologia, que permite com que ele realize atos dos quais ele não seria capaz normalmente, um preço lhe é estipulado, que ele acaba pagando, perdendo o controle do próprio corpo – por conseqüência, da própria humanidade que então, lhe é negada.[12]

Os exemplos não param por aí: o monstruoso tecnológico se instaurou no senso

comum, e a presença do Neo Grotesco enquanto categoria estética contribui para transformar o ridículo numa simples estratégia de re-encaixe (como citado superficialmente antes) do sujeito pós-moderno:

(...) A relação que o pensamento clássico estabelece com a alteridade do monstruoso pode, com mais justeza, ser formulada como anseio de retorno ao próprio, ao mundo civilizado da proporção e da ordem. (FERREIRA e MORAIS, 2000, p. 42).

É a velha fábula onde, não importa o que as máquinas façam, a parte humana,

nossa subjetividade, vai triunfar no final. Talvez, por ironia ou pelo simples fato de que estão relacionadas, ainda haja muito do próprio romantismo na FC pós-moderna.

Há muito mais nessa discussão do que esse ensaio pode encerrar, mas é ainda

importante vislumbrar um último conceito, que particularmente considero vital para estabelecer essa relação civilizadora do Neo Grotesco, do monstruoso. Ferreira (2000) mostra que o humanismo grego ainda é uma forte herança no nosso modo de pensar, e que a FC, principalmente como vitrine dessa hipérbole, desse simulacro de nós mesmos,

guardadas as devidas proporções, quebra isso, guardando dentro de si boas ‘lições de moral’ que tem, senão essa função, pelo menos essa noção de limites civilizadores.

O paradoxo do mundo da ciência, mundo cultural ainda percebido como produto da ação civilizadora masculina sobre o mundo passivo e reprodutivo do feminino, reside em que ao realizar uma hipérbole de si mesmo, ele destruiria sua própria base de sustentação. Em outras palavras, a tecno-ciência destruiria um certo “naturalismo residual” que a modernidade herdou do humanismo grego. Essa herança nos ensina que o artesão deve “imitar” e não “transformar” a natureza. (FERREIRA e MORAIS, 2000, p. 43).

Concluindo, o grotesco, através de suas imbricações em diversas esferas da

cultura, é, ainda hoje, uma categoria estética de suma importância, pois além de trabalhar para a assimilação artística, ainda contém, em si, um potencial de definição de fronteiras, no que se refere à sua relação com a produção midiática da Ficção Científica. É vital entender sua semiose no universo cultural, para poder, principalmente, perceber que frações dele impregnam diversos produtos midiáticos que consumimos, e para identificar suas formas variadas e suas nuances, nesse multiverso que é nosso modo cultural contemporâneo, a cibercultura.

Notas [1] Frankenstein de Mary Shelley (1797–1851) é considerado por muitos dos

estudiosos de Literatura de Gênero como a primeira obra de Ficção Científica a ser produzida;

[2] Em A Máquina do Tempo; [3] Na antológica série de TV Star Trek – Jornada nas Estrelas, criada por Gene

Roddenberry (1921-1991); [4] Ambos subgêneros da FC; [5] “Scholes considera que o romance mimético (...) foi posto em xeque pela

literatura mais recente a tal ponto que ocasionou uma perda de inocência por parte dos leitores”. (TAVARES, Bráulio. O Rasgão no Real. Marca de Fantasia, João Pessoa, 2005)

[6] “Um signo, ou representâmen, é algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém (...)” (PEIRCE, Charles S. apud EPSTEIN, Isaac. O Signo. Editora Ática, São Paulo, 1986, p. 18-19); Me refiro aqui ao signo de modo que ele possa ser tanto Comportamento Social como Expressão Artística;

[7] Meu purismo aqui é nulo e me eximo completamente de uma terminologia preconceituosa. Embora tais produtos midiáticos sejam dirigidos especialmente para as classes menos abastadas – C, D e E, no mundo do Marketing – não deixo de perceber que sua recepção nas classes A e B é igualmente bem sucedida: prova de que em nenhum mundo – talvez só numa distopia da FC – o dinheiro compra cultura;

[8] Estilo invocado anteriormente como ancestral da FC; [9] “Novo em contradistinção à estética grotesca do último fim de século,

manifestada no apreço vitoriano pelo esquisito e pelo deformado”. {“New in contradistinction to the grotesque aesthetic of the last fin-de-siècle, manifested in the Victorian fondness for the droll and the deformed.”} (DERY, 1999, p.148);

[10] “Os símbolos visíveis da aspiração tecnológica que caracterizou a Era Espacial alcançaram uma apoteose com os massivos foguetes Saturn V saindo de Cape Kennedy, mas desapareceram de nossas visões e de nossas consciências. (...) Sobrou à Ficção Científica, narrar um novo sujeito que pode, de algum modo, interagir diretamente – e dominar – as tecnologias cibernéticas da Era da Informação, uma era em que, como Jean Baudrillard observa, o sujeito se tornou um ‘terminal de múltiplas redes’”. (BUKATMAN, 2002, p. 02);

[11] Os animes são desenhos animados japoneses, baseados na estética do Mangá. Ao contrário do que se possa pensar, nem todos os animes são direcionados para um público infantil, sendo que a própria cultura japonesa acostumou-se a cultuá-los, reservando até o horário nobre de suas TVs para trabalhar o segmento. Mais informações sobre o tema podem ser encontradas no livro do jornalista francês Étienne Barral Otaku: os Filhos do Virtual (Senac, 2000);

[12] No anime, experiências do exército japonês liberam um poder fenomenal que provém da mente. Tetsuo passa pela experiência, mas como ele usa os poderes desenfreadamente sem que tenha havido um desenvolvimento prévio, há um efeito colateral: Tetsuo funde seu corpo com peças, que contribuem mais e mais para que o controle sobre sua integridade corpórea seja minado. Como resultado, há um show escatológico onde ele vira uma massa de carne desesperada, que no último segundo grita pela ajuda de Kaneda, seu melhor amigo e arquiinimigo, com quem ele tem uma relação de amor-e-ódio por que sempre esteve à sombra deste.

Referências

AMARAL, Adriana. Visões Perigosas: uma arque-genealogia do cyberpunk — Do Romantismo Gótico às Subculturas.Comunicação e Cibercultura em Philip K. Dick. Tese de Doutorado, FAMECOS, PUCRS, 2005. AMARAL, Adriana. O imaginário gótico da cibercultura: notas randômicas e iniciais sobre o lado obscuro das tecnologias de comunicação. Artigo (não publicado), Universidade Tuiuti do Paraná, 2006. BARRAL, Étienne. Otaku: os Filhos do Virtual. São Paulo: Senac: 2000. DYENS, Ollivier. Metal and flesh. The evolution of man: technology takes over. Cambridge: MIT Press, 2001. EPSTEIN, Isaac. O Signo. São Paulo: Ática: 1986. FERREIRA, Jonatas e MORAIS, Jorge Ventura de. O Monstruoso: Inovação Tecnológica e Crise do Humanismo. In. ______. São Paulo, Perspectivas, 2000. LEMOS, André. Cibercultura: Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea. Porto Alegre: Sulina: 2002. ROSE, Nikolas. Inventando nossos eus. In. Nunca Fomos Humanos: Nos Rastros do Sujeito. Org. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica: 2001. SANTAELLA, Lúcia. Culturas e Artes do Pós-Humano: Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus: 2004. SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense: 1983. SODRÈ, Muniz e PAIVA, Raquel. A Indústria do Grotesco. São Paulo: Mauad: 2001. TAVARES, Bráulio. O Rasgão no Real. João Pessoa: Marca de Fantasia: 2005.

* Thiago Falcão é Aluno do Curso de Comunicação Social da UFPB, habilitação em Jornalismo e Integrante do Grupo de Estudos em Tecnologia e Sociedade; o artigo acima foi elaborado para a disciplina Sociologia da Mídia, do Prof. Wellington Pereira.

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