o grito da gaivota

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O GRITO DA GAIVOTA Emmanuelle Laborit (2.a edio) Ttulo original: Le cri de la mouette Traduo: ngela Sarmento O Editions Robert Laffont direitos de Traduo para Portugal reservados por Editorial Caminho, SA, Lisboa - 2000 Tiragem: 1500 exemplares Impresso e acabamento: Tipografia Lousanense, Lda. Data de impresso: Junho de 2000 Depsito legal n.o 148 811/00 ISBN: 972-21-1328-3 www.editorial-caminho.pt NOTA AO LEITOR PORTUGUS Esta nota tem o objectivo de o advertir, caro e eventual leitor. Se tem o hbito de entrar na livraria, procurar com interesse disfarado por ttulos novos, manusear os volumes expostos, sentindo o aroma a papel fresco e, finalmente, deixar-se convencer por uma capa que lhe prometeu algumas horas de prazer, cabe-nos avis-lo sobre a obra que tem em mos, cabe-nos desengan-lo. O Grito da Gaivota no um sugestivo ttulo de suspense ao estilo hitchcokiano; no se trata, tambm, de um romance aventureiro, com descries de paisagens fabulosas que abraam heris feitos mesmo nossa medida; no , de modo algum, um livro tcnico-cientfico sobre a vida selvagem, nem to-pouco a continuao da histria da gaivota que queria voar mais alto... est longe de pretender ser um documento de crtica social e no , definitivamente, um livro de poesia desejoso de animar o nosso imaginrio potico. Se procura algum destes tipos de leitura nosso conselho que largue de imediato o livro que tem em mos e no arrisque a ser enganado pelo seu ttulo simples, mas tambm misterioso. Aquilo que neste momento est prestes a comear a ler nada mais nada menos que o testemunho de uma vida, visto pelos olhos de uma menina, contado pelo sentir de uma mulher. o relato pessoal e subjectivo de uma criana que cresceu no mundo do silncio, que nunca aprendeu a viver distncia da comunicao, que, e finalmente, se liberta de um mundo que

no precisava de ser assim. Neta do cientista Henri Laborit, actriz agraciada com o Prmio Molire e surda profunda, Emmanuelle Laborit a protagonista deste testemunho, marcado pela memria de um crescimento que se viveu diferente. Mais por aquilo que no dito do que pelo que est expresso nestas breves linhas, fez sentido AFAS - Associao de Famlias e Amigos dos Surdos e Caminho jogar este livro nas livrarias, acreditando que de alguma forma ele venha a ser um enorme grito. Aqueles que sabem o que ser surdo, numa sociedade ainda no suficientemente amadurecida, nem preparada, certamente, rever-se-o em algumas situaes, identificar-se-o com muitos dos sentimentos e tero para si mais do que uma leitura, mais do que uma histria, mais do que um exemplo, pois ganharam um depoimento que por ter sido impresso e tornado pblico deixou de estar na sombra do desconhecido. Mas para si que ouvinte e pouco contactou com a comunidade surda, esperamos sinceramente que este livro o toque, o incomode e o revolte na percepo de como, muitas vezes, sem inteno e apenas por ignorncia, ns fomos cmplices destes isolamentos, ns, de facto, prendemos inocentes. Apenas para concluir, seria bom que este livro no fosse guardado em qualquer prateleira, que estivesse vista, que criasse curiosidades, que ostentasse embaraos, mas fosse sobretudo uma das referncias da qualidade humana, para hoje e para amanh. Maria Bispo Direco da AFAS ndice 1. Confidncia 2. O grito da gaivota 3. O silncio das bonecas 4. Ventre e msica 5. Gato branco, gato preto 6. "Tifiti" 7. Chamo-me "eu" 8. Maria, Maria 9. A cidade dos surdos 10. Flor que chora 11. proibido proibir 12. Piano solo 13. Paixo da baunilha 14. Gaivota engaiolada

15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 1

Perigo roubado Contactos de veludo Amor veneno Gaivota de cabea vazia Sol-sis Sida sol Isto enerva-me Silncio exame..... Olhar em silncio O senhor implantador O voo Gaivota em suspenso Adeus

Confidncia Desde a minha infncia que considerei as palavras como uma coisa bizarra. E digo bizarra pelo que inicialmente continham de estranho. O que quereria dizer aquela mmica das pessoas minha volta, com a boca num crculo ou esticada em diferentes caretas, os lbios formando trejeitos esquisitos? Eu "sentia" a diferena quando se tratava de zanga, de tristeza ou de alegria, mas o muro invisvel que me separava dos sons correspondentes quela mmica era ao mesmo tempo de vidro transparente e de beto. Imaginava encontrar-me dum lado desse muro e os outros, de igual modo, do outro lado. Quando eu tentava reproduzir a sua mmica como um macaquinho de imitao, continuavam a no ser palavras, mas letras visuais. Por vezes ensinavam-me palavras de uma s slaba, ou de duas slabas, como "pap", "mam", "tt,". Os mais simples conceitos eram ainda mais misteriosos. Ontem, hoje, amanh. O meu crebro funcionava no presente. O que quereriam dizer o passado e o futuro? Quando compreendi, com o auxlio de gestos, que ontem significava atrs de mim e amanh minha frente, dei um salto fantstico. Tratou-se de um progresso imenso, que aqueles que ouvem tm dificuldade em imaginar, habituados como esto desde o bero a entender palavras e conceitos repetidos exaustivamente, sem mesmo se darem conta. Em seguida apercebi-me de que outras palavras designavam pessoas. Emmanuelle, era eu. Pap, era ele. Mam, era ela. Maria, a minha irm. Eu era Emmanuelle, existia, tinha uma definio, por conseguinte, uma existncia.

Ser algum, compreender que se est vivo. A partir da pude dizer "EU",. Anteriormente eu dizia "ELA," quando me referia a mim prpria. Procurava o meu lugar neste mundo, quem eu era, e porqu. E encontrei-me. Chamo-me Emmanuelle Laborit. Depois, pouco a pouco, pude analisar a correspondncia entre os actos e as palavras que os designam, entre as pessoas e os seus actos. E de sbito o mundo pertencia-me e eu fazia parte dele. Teria ento sete anos. Nascera e crescera de uma s vez. Tinha tanta fome e sede de aprender, de conhecer, de compreender o mundo que desde ento nunca mais parei. Aprendi a ler e a escrever em francs. Tornei-me tagarela, curiosa acerca de tudo, exprimindo-me no entanto noutro idioma, como uma estrangeira bilingue. Fiz o liceu, como quase toda a gente. E tive mais medo da prova escrita que da oral. Isto pode parecer estranho para algum com dificuldade em oralizar palavras, mas escrever ainda um exerccio difcil para mim. Quando pensei fazer este livro, algumas pessoas disseram-me: "No vais conseguir!" Vou sim! Quando resolvo fazer uma coisa vou at ao fim. Queria conseguir. Tinha decidido que havia de conseguir. Dei incio minha pequena tarefa pessoal com a obstinao que me caracteriza desde sempre. Outras pessoas mais curiosas perguntaram-me como que eu ia fazer. Ser eu prpria a escrever? Contar o que tencionava escrever a algum que ouvisse e traduzisse os meus sinais? Fiz as duas coisas. Cada palavra escrita e cada gesto encontraram-se como irmos. Por vezes como gmeos. O meu francs um pouco liceal, como uma lngua estrangeira que se aprendeu separada da sua cultura. A linguagem gestual a minha verdadeira cultura. O francs tem o mrito de descrever objectivamente o que pretendo exprimir. O gesto, esta dana de palavras no espao, a minha sensibilidade, a minha poesia, o meu eu ntimo, o meu verdadeiro estilo. Ambos em conjunto permitiram-me escrever este relato da minha jovem existncia em algumas pginas; de ontem, quando me encontrava ainda atrs daquele muro de beto transparente, at hoje, aps ter ultrapassado esse muro. Um livro um importante testemunho. Um livro vai a todo o lado, passa de mo em mo, de esprito em esprito, deixando ali a sua marca. Um livro um

meio de comunicao raramente proporcionado aos surdos. Em Frana, terei o privilgio de ser a primeira, assim como fui a primeira actriz surda a receber o Prmio Molire de teatro. Este livro uma ddiva da vida. Vai permitir-me dizer aquilo que sempre calei, quer em relao a outros surdos quer em relao queles que ouvem. uma mensagem, um empenhamento no combate pela lngua gestual, que separa ainda muita gente. Nele utilizo o idioma dos que ouvem, a minha segunda lngua, pois afirmo com absoluta certeza que a lngua gestual a primeira lngua, a nossa, a que nos permite ser seres humanos "comunicantes". Para dizer tambm que nada deve ser recusado aos surdos, que todas as linguagens podem ser utilizadas, sem guetos nem ostracismos, para que possam ter acesso VIDA. 2 O grito da gaivota Dei vrios gritos, muitos gritos, autnticos gritos. No por ter fome ou sede, medo ou dores, mas porque queria comear a "falar", porque queria ouvir a minha voz e os sons no chegavam at mim. Eu vibrava. Sabia que estava aos gritos, mas os gritos nada significavam para a minha me ou para o meu pai. Segundo eles, eram gritos agudos de ave marinha, como os de uma gaivota planando sobre o oceano. Ento, apelidaram-me de gaivota. E a gaivota gritava acima de um oceano de rudos que no ouvia, e eles no compreendiam o grito da gaivota. A me disse: "Eras um lindo beb, nasceste sem dificuldades, pesavas trs quilos e meio, choravas quando tinhas fome, rias, palravas como os outros bebs, e brincavas. No nos apercebemos logo do que se passava. Achmos que eras sossegadinha porque dormias profundamente num quarto ao lado da sala onde a msica tocava ensurdecedoramente nas noites em que havia festas com os nossos amigos. E tnhamos muito orgulho no nosso beb to tranquilo. Achmos que era "normal" porque viravas a cabea quando batia uma porta. No sabamos que o que tu sentias era o vibrar do cho, em cima do qual tu brincavas, e tambm a deslocao do ar. Do mesmo modo que danavas, no teu parque, balanando-te e agitando as pernas e os braos de cada vez que o teu pai punha um disco a tocar. Estou na idade em que os bebs brincam no cho, de gatas, e comeam a querer dizer mam e pap. Mas eu no digo nada.

Registo as vibraes atravs do soalho. Sinto a vibrao da msica que acompanho dando os meus gritos de gaivota. Foi o que me contaram. -Sou uma gaivota perceptiva, tenho um segredo, um mundo s meu. Os meus pais descendem de uma famlia de marinheiros. A minha me filha, neta e irm dos ltimos homens que nos veleiros passaram o cabo Horn. Assim, resolveram chamar-me gaivota. Seria eu muette ou mouette? Esta curiosa semelhana fontica faz-me rir actualmente. Foi o meu tio Fifou, o irmo mais velho do meu pai, quem primeiro aventou a hiptese: "A Emmanuelle grita porque no ouve a prpria voz." O meu pai disse: "Foi a primeira pessoa que nos alertou!" Esta cena ficou para sempre gravada na minha memria, como uma imagem fixa", disse a minha me. Os meus pais preferiram ignorar. De tal maneira que, por exemplo, s muito mais tarde soube que os meus avs paternos tinham casado na capela do Instituto Nacional dos Jovens Surdos de Bordus, cuja direco estava a cargo do sogro da minha av! Tinham-se "esquecido",! Para esconder a sua inquietao, talvez para no terem que encarar a realidade. Resumindo, estavam radiantes por no terem uma "chorona" a acord-los de manh cedo. E assim habituaram-se a brincar chamando-me gaivota com medo de admitirem que eu era diferente. Grita-se o que se quer calar, costuma dizer-se. Quanto a mim, devia gritar para tentar distinguir a diferena entre o meu grito e o silncio. Para compensar a ausncia de todas aquelas palavras que eu via mexer nos lbios da minha me e do meu pai, cujo sentido ignorava. E como os meus pais ocultavam a sua angstia, talvez eu gritasse tambm em seu nome, quem sabe? A me disse: "O pediatra achou que eu era doida. Ele tambm no acreditava. Havia sempre aquela histria das vibraes que tu sentias. Mas quando se batia as palmas ao teu lado ou atrs de ti, no voltavas a cabea na direco do rudo. Chamvamos por ti e tu no respondias. E eu dava-me conta de todas essas coisas bizarras. Parecias surpreendida a ponto de teres um sobressalto quando eu chegava ao p de ti, como se eu surgisse inesperadamente. De incio, pensei em problemas psicolgicos, sobretudo porque o pediatra que te via todos os meses no queria acreditar no que eu lhe dizia.

"Marquei consulta mais uma vez para lhe dar parte dos meus receios. Disse-me categoricamente: "Minha senhora, aconselho-a a que se v tratar!" "E ao dizer isto bateu propositadamente com a porta, e como por acaso tu viraste a cabea por teres sentido a vibrao ou simplesmente porque o seu comportamento te parecia estranho, disse: "Bem v que absurdo!" "No lhe perdoei. Nem a mim prpria por ter acreditado nele. Depois dessa consulta eu e o teu pai demos incio a um perodo de angstia e permanente observao. Assobivamos, chamvamos-te, batamos com as portas, vamos-te bater palmas, agitares-te como se danasses ao som da msica... To depressa acreditvamos como j no acreditvamos. Sentamonos perdidos. "Aos nove meses levei-te a um especialista que me disse de imediato que tinhas nascido com uma surdez profunda. Foi um rude golpe. Eu no queria admiti-lo nem o teu pai. Repetamos: "Foi um erro de diagnstico. impossvel " Fomos a outro especialista e eu ia cheia de esperanas que ele sorrisse e nos mandasse embora, sossegando-nos. "Fomos ter com o teu pai ao Hospital Trousseau, tu estavas sentada ao meu colo e a compreendi. Durante os testes faziam sons fortssimos que me dilaceravam os tmpanos, e tu ficavas impvida. "Fiz perguntas ao especialista. Trs perguntas: "- Vir a falar? "- Sim. Mas ser um processo demorado. "- O que hei-de fazer? "- Vai usar um aparelho, fazer reeducao ortofnica precoce e sobretudo nada de lngua gestual. "- Posso avistar-me com adultos surdos? "- No seria aconselhvel, pertencem a uma gerao que no conhece a reeducao precoce. Ficaria desmoralizada e desiludida. "O teu pai estava completamente desesperado e eu chorava. De onde teria vindo aquela "maldio"? Hereditariedade gentica? Alguma doena durante a gravidez? Sentia-me culpada, assim como o teu pai. Procurmos em vo quem que na famlia poderia ser surdo, quer de um lado quer do outro." Compreendo o choque que tiveram. Os pais culpabilizam sempre, procuram sempre algum a quem culpar. Mas atirar as culpas da surdez de um filho a um ou a outro, ao pai ou me, terrvel para a criana. Ningum deve faz-lo. No que me

diz respeito, no se sabe nada. Possivelmente no se saber nunca. E talvez seja melhor assim. A minha me diz que j no sabia o que fazer comigo. Olhava para mim incapaz de inventar fosse o que fosse que permitisse estabelecer um elo entre ns. Por vezes j nem conseguia brincar. J no me dizia nada. Pensava: "No posso dizer que a amo, pois ela no me ouve.", Encontrava-se em estado de choque. Petrificada. No conseguia sequer reflectir. Da minha primeira infncia, as recordaes so estranhas. Um caos na minha cabea, uma sequncia de imagens sem relao entre si, como sequncias de um filme montadas umas atrs das outras, com longas tiras negras, grandes espaos perdidos. Entre os zero e os sete anos, a minha vida est cheia de lacunas. S tenho recordaes visuais. Comoflash-backs, imagens de que ignoro a cronologia. Creio que no havia rigorosamente nada no meu crebro durante esse perodo. Futuro, passado, tudo estava na mesma linha de espao-tempo. A me dizia ontem... e eu no sabia onde era ontem, o que era ontem. E amanh tambm no. E no podia perguntar-lhe. Estava impotente, no tinha a menor conscincia da passagem do tempo. Havia a luz do dia, a escurido da noite e era tudo. Ainda no consigo pr datas nesse perodo de zero a sete anos. Nem ordenar aquilo que fiz. O tempo era o momento presente. Descobria as situaes em cima da hora. Talvez haja recordaes enterradas na minha cabea mas sem ligaes entre si e no consigo reencontrlas. Os acontecimentos, devo dizer mais concretamente as situaes, as cenas, pois tudo era visual, vivia-as eu todas como uma situao nica, a do agora. Ao tentar juntar o puzzle da minha primeira infncia para escrever, s encontrei farrapos de imagens. As outras percepes esto num caos inacessvel recordao. Ignoro sinceramente como consegui desembaraar-me durante aquele perodo em que vivi mergulhada entre a ausncia da linguagem, a solido e o muro de silncio. A me diz: "Estavas sentada na cama, vias-me desaparecer e regressar com surpresa. No sabias onde eu ia, cozinha, por exemplo; eu era a imagem da me que desaparecia, e em seguida a me

que voltava, sem ligao entre ambas." 3 O silncio das bonecas A aprendizagem da comunicao comeou pelo mtodo de Borel-Maisonny, com uma ortofonista, uma mulher extraordinria, que soube ouvir os queixumes da minha me, suportar o seu desespero e as suas lgrimas. Brincava comigo s bonecas, com gua, aos jantarinhos. Mostrou minha me que era possvel estabelecer uma relao comigo, fazer-me rir, para que eu continuasse a viver como "antes", de ela se ter apercebido da minha surdez. Aprendi a articular os AA, os BB, os CC, mostravam-me as letras atravs de movimentos dos lbios e de gestos das mos. A minha me assistia s sesses. Era um estabelecer de contacto me/filha. Foi por se identificar com aquela mulher que a minha me reaprendeu a falar comigo. Mas a nossa maneira de comunicar era instintiva, animal, poderia chamarlhe "umbilical". Tratava-se de coisas simples, como comer, beber, dormir. A minha me no me impedia de fazer gestos, embora lho tivessem recomendado. Tnhamos sinais s nossos, completamente inventados. A me disse: "Fazias-me chorar a rir tentando comunicar comigo por todos os meios! Eu virava a tua cara de frente para a minha para que tentasses ler palavras simples e tu mimavas ao mesmo tempo, era lindo e irresistvel." Quantas vezes fez ela esse gesto de virar o meu rosto de frente para o seu, aquele gesto do frente a frente me-filha, fascinante e terrvel, que nos serviu de linguagem? Desde essa altura, no houve mais lugar para o outro, para o meu pai. Quando ele voltava do trabalho, as coisas tornavam-se mais difceis, eu passava pouco tempo com ele e no tnhamos o cdigo "umbilical". Eu articulava algumas palavras, mas ele quase nunca as entendia. Custava-lhe ver a minha me comunicar comigo numa linguagem de grande intimidade, que lhe escapava a ele. Sentia-se excludo. E ficava realmente excludo por no se tratar de um dilogo que pudssemos partilhar entre os trs, nem com qualquer outra pessoa. E ele queria comunicar directamente comigo. Aquela excluso revoltava-o. Quando voltava para casa ao fim da tarde, no conseguamos partilhar nada. Era frequente eu ir puxar pelo brao da minha

me para ela interpretar o que ele dizia. E eu teria gostado tanto de "falar" com ele. Tanto de saber coisas acerca dele. Comecei a dizer algumas palavras. Como todas as crianas surdas, usava um aparelho auditivo, que suportava mais ou menos. Produzia rudos na minha cabea, sempre os mesmos, impossveis de diferenciar, impossveis de utilizar, era mais cansativo do que outra coisa. Mas segundo os reeducadores assim tinha que ser! Quantas vezes os auscultadores caram dentro da sopa? A minha me diz que a famlia se consolava com lugarescomuns: " surda, mas to bonitinha!" "E vai ser muito mais inteligente ! " Tenho uma soberba coleco de bonecas. Nem sei quantas. Mas tenho bonecas. Que idade terei eu? No sei. A idade das bonecas. A situao das bonecas. hora de ir dormir preciso arrum-las, bem alinhadas. Aconchego-as, deixando-lhes as mos por fora da colcha. Fecho-lhes os olhos. Levo muito tempo com esta tarefa antes de me ir deitar. Falo com elas, usando certamente o mesmo cdigo que a minha me usa comigo. O gesto para dormir. E uma vez todas as bonecas metidas na cama, posso tambm eu ir deitar-me e dormir. engraado, arrumo as bonecas de forma metdica, embora na minha cabea tudo esteja completamente desordenado. Tudo vago e misturado. Ainda hoje me interrogo por que que eu faria isso. Por que que eu demorava sculos a arrumar as bonecas. Sacudiam-me para que eu fosse para a cama. Aquilo enervava o meu pai, enervava toda a gente. Mas eu no conseguia adormecer se as minhas bonecas no estivessem bem arrumadas. Era preciso que ficassem perfeitamente alinhadas, de olhos fechados, a colcha esticada ao milmetro, os braos por cima. Era duma preciso diablica, apesar da desordem que ia dentro da minha cabea. Talvez eu estivesse a arrumar todas as experincias que vivera durante o dia, em plena desordem, antes de ir dormir. Talvez eu estivesse a tentar exprimir a arrumao dessa mesma desordem... noite, dormia sossegada e calma, como uma boneca. Uma boneca no fala. Vivi no silncio porque no comunicava. Ser isso o verdadeiro silncio? A escurido completa da

incomunicabilidade? Para mim, toda a gente representava um negro silncio, a no ser os meus pais, sobretudo a minha me. O silncio tem pois um significado que a meu ver no seno a ausncia da comunicao. Embora eu nunca tenha vivido num completo silncio. Tenho os meus prprios rudos, inexplicveis para quem ouve. Tenho a minha imaginao e ela tem os seus rudos em imagens. Imagino sons a cores. O silncio que eu vivo a cores, nunca a preto e branco. Os rudos daqueles que ouvem so tambm em imagens, para mim, feitos de sensaes. A onda que rola na praia, calma e suave, d uma sensao de serenidade, de tranquilidade. A que se ergue e galopa encapelada representa a ira. O vento so os meus cabelos soltos no ar, a frescura, uma doce sensao na minha pele. A luz importante. Gosto do dia, no da noite. Durmo num sof na sala do pequeno apartamento dos meus pais. O meu pai estuda medicina, a minha me professora. Interrompeu os estudos para me educar. No somos ricos, a casa pequena. Noes que eu no tinha ainda, uma vez que a organizao da sociedade, do mundo daqueles que ouvem, me era totalmente estranha. De noite durmo Sozinha no sof. Ainda hoje o vejo, um canap amarelo e cor de laranja. Vejo uma mesa em madeira castanha. Vejo a mesa da casa de jantar, branca com os ps em cavalete. H sempre uma ligao entre as cores e os sons que eu imagino. No posso dizer se o som que imagino azul ou verde ou vermelho, mas as cores e a luz so suportes da imaginao do rudo, da percepo de cada situao. Com os meus olhos, luz, posso controlar tudo. Negro sinnimo de incomunicabilidade, portanto de silncio. Ausncia de luz: pnico. Mais tarde aprendi a apagar a luz antes de adormecer. Tenho o flash de uma recordao da escurido da noite. Estou na sala, estendida na cama e vejo atravs da janela a sombra dos faris na parede. Aquilo assusta-me, aquelas luzes que aparecem e desaparecem. Ainda tenho essa imagem na cabea. Entre a sala e o quarto dos meus pais no h divisria, uma grande diviso sem porta. H um cadeiro e uma cama e o grande sof cheio de almofadas onde eu durmo. Vejo-me criana, mas no sei que idade teria. Estou com medo. Sempre com

medo, da noite, dos faris dos carros, daquelas sombras na parede que aparecem e desaparecem. Por vezes os meus pais explicam-me que vo sair. Mas compreenderia eu realmente o que significava aquela histria de sair? Para mim eles desapareciam, abandonavam-me. Os meus pais saam e voltavam. Mas iriam regressar? Quando? Eu no tinha a noo do quando. No tinha palavras para o dizer, no tinha lngua, no podia exprimir a minha angstia. Era horrvel. Creio que adivinhava, por um certo nervosismo no seu comportamento, que eles iam "desaparecer",, mas a partida deles era sempre uma surpresa para mim, porque me apercebia da sua ausncia durante a noite. Davam-me de jantar, metiamme na cama, esperavam que eu adormecesse e quando os meus pais supunham que eu dormia profundamente, achavam que podiam sair e eu sem saber de nada. Acordava sozinha. Talvez acordasse precisamente por esse motivo. E tinha medo dos faris como de fantasmas na parede. Eu no podia dizer nem explicar aquele medo. Os meus pais deviam julgar que nada conseguiria acordar-me, uma vez que eu era surda! Mas as luzes eram sons imaginrios, desconhecidos, que me enchiam de angstia. Se eu tivesse conseguido fazer-me entender, estou certa de que nunca me teriam deixado sozinha. preciso algum durante a noite junto de uma criana surda. imprescindvel uma presena. Tenho ainda na cabea outro pesadelo. Vou no banco de trs do carro e a minha me conduz. Chamo a minha me, quero fazer-lhe algumas perguntas, quero que me responda, chamo-a e ela no vira a cabea. Insisto. Quando finalmente se volta d-se o acidente, o carro precipita-se numa ravina e em seguida no mar. Vejo a gua minha volta. pavoroso. Insuportvel. O acidente deu-se por minha culpa e acordo cheia de angstia. Durante o dia chamo frequentemente a minha me para comunicar. Quero saber o que se passa, quero estar sempre a par de tudo, uma necessidade. Ela a nica pessoa que me compreende de facto, usando aquela linguagem inventada desde o incio, aquela linguagem "umbilical", animal, aquele cdigo particular, instintivo, feito de mmica e de gestos. Tenho tantas coisas amontoadas na minha cabea, tantas perguntas, que preciso dela o tempo todo. Aquele pesadelo em que ela no me responde, no vira a cabea para olhar para mim, era a angstia profunda da minha idade de ento.

Para as crianas que aprendem muito cedo a lngua gestual ou que tm pais surdos, diferente. Esses fazem progressos notveis. Quanto a mim, estava nitidamente atrasada, s aprendi essa lngua aos sete anos. Anteriormente, eu devia ser considerada uma "dbil mental", uma selvagem. de loucura. Como que as coisas se passavam? Eu no tinha lngua. Como que consegui construir-me? Como que tive entendimento? Como que eu fazia para chamar as pessoas? Como que eu fazia para pedir alguma coisa? Lembrome de usar de mmica amide. Teria pensamentos? evidente que sim. Mas em que pensaria eu? Na sensao de estar fechada atrs de uma porta enorme que no conseguia abrir para me fazer entender pelos outros. E puxava a minha me pela manga, pelo vestido, mostrava-lhe objectos diversos, uma quantidade de coisas, ela compreendia e respondia-me. Lentamente ia fazendo progressos. Imitava palavras. "gua", por exemplo, foi a primeira palavra que eu disse. Imitava o que via nos lbios da minha me. Eu no me ouvia, mas fazia um "", punha a boca em "" (som idntico a eau igual a gua.). Um "" que fazia vibrar a minha garganta transmitindo minha me um som particular. E assim as palavras tornaram-se coisa nossa, minha e dela, que mais ningum conseguia entender. A minha me queria que eu fizesse um esforo para falar, e eu tentava, para a ajudar, mas sobretudo porque tinha vontade de apontar, de mostrar as coisas. Para pedir para fazer chichi, apontava a casa de banho, para comer indicava o que queria comer e punha a mo na boca. At idade de sete anos no existem na minha cabea nem palavras nem frases. Unicamente imagens. Quando puxava pela minha me para lhe dizer alguma coisa, no queria que ela olhasse para outro lado, queria que olhasse nica e exclusivamente para mim. Lembro-me disso, por conseguinte havia um pensamento uma vez que eu "pensava", na comunicao e a desejava. Havia situaes especficas. Por exemplo, numa reunio de famlia. Muita gente, com as bocas a moverem-se sem parar. Eu aborrecia-me. Ia para outro quarto da casa olhar para os objectos, para as coisas. Agarrava-as com as mos para as ver melhor. Depois disso regressava para junto das outras pessoas e puxava pela minha me. Puxar por ela era cham-la. Para que olhasse para mim, se lembrasse de mim. Era difcil quando havia mais pessoas: perdia a comunicao com ela. Sentia-me s no meu planeta e queria que ela voltasse. Ela era a minha nica ligao

com o resto do mundo. O meu pai olhava para ns, continuando a nada entender. Percebo que o meu pai est zangado. Reconheo aquela expresso. Pergunto: "Est alguma coisa errada?", Reproduzo em mmica a zanga do meu pai. Ele responde: "No, no, est tudo bem.", s vezes puxo pela minha me para que ela traduza, quero saber mais, quero perceber o que se passa. Porqu, porqu... por que que eu vi que o meu pai estava aborrecido? Mas ela no pode estar sempre a traduzir. E ento regresso escurido do silncio. Quando h visitas olho muito para as suas caras. Observo todos os tiques, todas as manias. H pessoas que no encaram os interlocutores quando esto mesa a conversar. Mexem nos talheres. Enrolam o cabelo nos dedos. So imagens que fazem coisas. No sei exprimir o que sinto. Vejo. Vejo se esto contentes ou se no esto. Vejo se esto enervados. Ou se no esto a ouvir os outros. Tenho olhos para ouvir, mas h um limite. Apercebo-me de que comunicam uns com os outros atravs da boca; e a que eu sou diferente. Fazem barulho com a boca. Quanto a mim, no sei o que barulho. Nem silncio. So duas palavras sem sentido. A no ser dentro de mim, onde o silncio no existe. Oio assobios, muito agudos. Suponho que viro de outro lado, do exterior, do meu lado de fora, mas no, so rudos meus, que s eu escuto. Tiveram que me pr um aparelho aos nove meses. As crianas surdas tm muitas vezes um aparelho com auriculares ligados a um cordo em Y, com um microfone sobre a barriga: um aparelho monofnico. No me lembro de ter ouvido nada atravs dele. Talvez alguns rudos? Mas rudos que oio ainda agora, como a vibrao dos carros a passar na rua, a vibrao da msica; com o aparelho tornam-se insuportavelmente fortes. Mas barulhos de crianas? No. Os brinquedos so mudos. Cansavam-me aqueles sons to intensos, sons sem qualquer significado, que no conduziam a nada. Tirava o aparelho para dormir, o barulho angustiava-me. Um rudo alto sem nome, sem qualquer ligao, deixava-me nervosa. A me disse: "O ortofonista disse para no nos preocuparmos, que tu havias de vir a falar. Deram-nos esperanas: com a reeducao e os aparelhos, vais acabar por ser uma "ouvinte". Com atraso, evidentemente, mas hs-de conseguir. Tnhamos esperana tambm que um dia acabasses por ouvir de facto, mas isso no tinha

a menor lgica. Seria como um golpe de magia. Custava-nos tanto aceitar que tivesses nascido num mundo diferente do nosso." 4 Ventre e msica Foi a partir do uso da aparelhagem, mas ignoro quando, que comecei a fazer a distino entre as pessoas que ouvem e os surdos. Simplesmente porque os que ouvem no usavam aparelho. Havia os que os usavam e os outros. Era to simples como muro e eu ficava triste. Via a tristeza do meu pai e tambm a da minha me. Sentia verdadeiramente a tristeza e queria que os meus pais sorrissem, que fossem felizes e eu queria darlhes essa felicidade. Mas no sabia como agir. Dizia para comigo: O que que eu tenho? Por que que eles esto tristes por minha causa?" Nessa altura ainda no tinha compreendido que era surda. Somente que existia uma diferena. A primeira recordao? No h nem primeira nem ltima recordao de infncia na minha desarrumao interior. S sensaes. Olhos e um corpo para registar a sensao. Recordo-me do ventre. A minha me est grvida da minha irm, sinto intensamente as vibraes. Apercebo-me de que h ali qualquer coisa. Com a cara enterrada no ventre da minha me, "escuto" a vida. -me difcil aceitar que haja um beb no ventre da minha me. Acho que impossvel. Vejo uma pessoa e existe outra dentro dela? Digo que no verdade. Que brincadeira. Mas amo o ventre da minha me e o som da vida que h l dentro. Tambm amo o ventre do meu pai, quando noite conversa com os amigos ou com a minha me. Estou cansada, estirao-me ao lado dele com a cabea encostada barriga e oio a sua voz. A voz dele passa pela barriga e eu sinto as vibraes. O que me acalma, me d segurana, como uma cano de embalar e eu adormeo com aquelas vibraes, serenamente. Percepo fsica de conflito, diferente: a minha me d-me um aoite. Lembro-me bem desse aoite. Na altura devo ter compreendido o motivo daquele aoite, mas agora j no me lembro. A minha me sai com dores nas mos e eu fico com dores nas ndegas. Choramos ambas. Os meus pais nunca me batiam, imagino pois que ela devia estar realmente zangada, mas ignoro qual a razo. a nica recordao que tenho de ter sofrido um castigo.

De resto, as relaes conflituosas com a minha me so complicadas. Por exemplo, eu no quero comer uma coisa qualquer. A minha me diz: "Tens que acabar o que est no prato.", Mas eu no quero. Ento ela faz o jogo do avio com a colherzinha. Uma colher para o pap, uma para a av... eu percebo muito bem aquela histria... e uma para mim. Abro a boca e engulo. Mas por vezes acontece que no quero comer. No quero mesmo. Enfureo-me com a minha me. A gaivota fica zangada. E quando me farto levanto-me da mesa. Todos julgam que estou a brincar, mas no estou. Fao a mala, meto-lhe dentro as bonecas, estou de facto furiosa. Desejo ir-me embora. A mala uma mala de boneca. No lhe meto dentro o meu casaco, meto os casacos das bonecas juntamente com elas. No sei porqu. Talvez as bonecas sejam eu prpria e eu queira fazer crer que sou eu quem parte. Saio para a rua. A minha me entra em pnico, vai atrs de mim. Fao isto quando estou realmente zangada ou se tivemos uma briga. Sou uma pessoa, no posso obedecer sempre. preciso estar sempre de acordo com a minha me, mas eu quero ser independente. Emmanuelle diferente. Somos diferentes uma da outra. Com o meu pai brinco, divertimo-nos, rimos muito, mas ser que comunicamos realmente? No sei. Ele tambm no. E isso di-lhe. Quando soube que eu era surda, interrogou-se de imediato como que eu ia conseguir ouvir msica. Ao levar-me a concertos, bem pequena ainda, o seu desejo era transmitir-me a sua paixo ou ento "recusava" admitir que eu era surda. Quanto a mim, achava aquilo formidvel. E ainda , o facto de o meu pai no ter erguido obstculos entre mim e a msica. Eu sentia-me feliz por estar com ele. E creio que me apercebia profundamente da msica; no com os meus ouvidos, mas com o meu corpo. O meu pai acalentou por muito tempo a esperana de me ver acordar de um longo sono. Como a Bela Adormecida. E estava convencido de que a msica operaria essa magia. Uma vez que eu vibrava com a msica, e que ele era louco por msica, clssica, jazz, Beatles, o meu pai levava-me aos concertos e eu cresci achando que podia partilhar tudo com ele. Uma noite o meu tio Fifou, que era msico, estava a tocar viola. Eu olhava para ele, uma imagem que ficou marcada nitidamente na minha memria. Toda a famlia escuta. Ele deseja partilhar comigo a viola. Diz-me que finque os dentes

no brao da viola. Eu mordo e ele pe-se a tocar. Fico ali horas. Sinto no meu corpo todas as vibraes, as notas agudas e as notas graves. A msica entra no meu corpo, instala-se, pe-se a tocar dentro de mim. A minha me olha-me, maravilhada. Tenta fazer a mesma coisa mas no aguenta. Diz que lhe ressoa na cabea. Ainda hoje h a marca dos meus dentes na viola do meu tio. Tive muita sorte, na minha infncia, por ter acesso msica. H muitos pais de crianas surdas que acham que no vale a pena e que privam os filhos do contacto com a msica. E algumas crianas surdas no querem saber da msica para nada. Quanto a mim, adoro. Sinto-lhe as vibraes. E o espectculo de um concerto tambm exerce em mim a sua influncia. Os efeitos de luz, o ambiente, a sala cheia, tudo isso so vibraes. Sinto que estamos todos juntos para um mesmo fim. O saxofone que brilha com reflexos dourados maravilhoso. Os trompetistas que enchem de ar as bochechas. Os baixos. Sinto com os ps, com o corpo todo se estiver estendida no cho. E imagino o barulho, sempre o imaginei. atravs do meu corpo que oio a msica. Com os ps nus no cho, colados s vibraes, assim que a vejo, a cores. O piano tem cores, a viola elctrica, os tambores. E a bateria. Vibro com todos eles. Quanto ao violino, no consigo alcan-lo. No sou capaz de o ouvir com os ps. O violino eleva-se, deve ser agudo como um pssaro, como o canto de um pssaro, impossvel agarr-lo. uma msica que se eleva em altura, no no sentido da terra. Os sons no ar devem ser agudos, os sons na terra devem ser graves. E a msica um arco-ris de cores vibrantes. Adoro msica africana. O tam-tam uma msica que vem da terra. Oio-a com os ps, com a cabea, com o corpo inteiro. Quanto msica clssica, tenho dificuldade. Paira muito alto, no ar. No consigo alcan-la. A msica uma linguagem para l das palavras, universal. a arte mais bela que existe, consegue fazer vibrar fisicamente o corpo humano. difcil reconhecer a diferena entre a viola e o violino. Se eu viesse de outro planeta e encontrasse todos os homens a falar de forma diferente, estou certa de que conseguiria compreend-los ao entender os seus sentimentos. Mas o campo da msica muito vasto, imenso. Por vezes perco-me nele. o que acontece no interior do meu corpo. H notas que se pem a danar. Como as chamas numa lareira. O ritmo do fogo, pequeno, grande, pequeno, mais rpido, mais lento...

Vibrao, emoo, cores em ritmo mgico. No que respeita ao canto, constitui um mistrio. Uma nica vez se rompeu esse mistrio. No sei quando nem que idade teria. Mas est ainda presente. Estou a ver a Callas na televiso. Os meus pais olham e eu estou sentada com eles frente ao ecr. Vejo uma mulher forte, que aparenta um carcter forte. De sbito surge um grande plano e como se eu tivesse ouvido a sua voz. Olhando-a intensamente, compreendo a voz que deve ter. Imagino uma cano no muito alegre, mas vejo bem que a voz vem do interior, de longe, que aquela mulher canta com o ventre, com as entranhas. Causa-me um efeito estranhssimo. Terei realmente ouvido a sua voz? No fao a menor ideia. Mas no h dvida de que me emocionou. Foi a nica vez que isto me aconteceu. Maria Callas comoveu-me. Foi a nica vez na minha vida em que ouvi, em que imaginei uma voz a cantar. Os outros cantores no me dizem nada. Quando olho para eles, num programa de televiso, sinto muita violncia, muitas imagens que se sucedem, no se percebe nada. No consigo sequer imaginar a msica que paira acima deles, de tal maneira tudo rpido. Mas h certos cantores, como Carole Laure, Jacques Brel, Jean-Jacques Goldman, cujas palavras me emocionam. E o Michael Jackson! Quando o vejo danar acho que o seu corpo elctrico, o ritmo da msica elctrico, associo-o a imagens elctricas, sinto-o elctrico. A dana est-me no sangue. Quando adolescente adorava ir a boites com os meus colegas surdos. o nico local onde se pode pr a msica altssima sem termos que nos preocupar com os outros. Eu danava toda a noite com o meu corpo colado aos balastres da pista, vibrando ao ritmo da msica. As outras pessoas, aquelas que ouvem, olhavam para mim espantadas. Deviam julgar que eu era louca. 5 Gato branco, gato preto O meu pai levava-me ao infantrio e eu gostava muito de ir com ele. Ficava sozinha a um canto a desenhar. noite, com a minha me, voltava a fazer muitos desenhos. Lembro-me tambm dum jogo que se chamava a batalha. Cada um de ns tinha cores diferentes. Ou ento a minha me fazia um desenho e eu tinha que acrescentar um olho, um nariz - adorava aquele

jogo. Havia desenhos espalhados por toda a parte. Recordo tambm uma sala e um disco esquisito que anda roda e sobre o qual se coloca uma folha de papel. Em cima desse papel ponho desenhos de todas as cores e a minha me tambm; as cores espalham-se velocidade do disco, ao acaso. No consigo perceber como que isso acontece. Mas lindo. Vemos tambm desenhos animados na televiso ou no cinema. Lembro-me do Piu-Piu e Silvestre. Ao fim de um quarto de hora de filme j eu choro, soluo e fungo tanto que a minha me se aflige. Eu via os outros rirem dos disparates que fazia o Silvestre e no conseguia perceber por que achavam aquilo divertido. Sofria muito com aquela crueldade prpria das crianas. No era justo que o Silvestre se deixasse sempre apanhar ou que o esborrachassem de encontro s paredes. Era assim que eu via as coisas. Talvez fosse demasiado sensvel e gostasse tambm muito de gatos. Tinha um gato branco. Para mim no tinha nome, era o gato. E gostava muito dele. Fazia-o saltar no ar, fingia que era um avio, brincava aos helicpteros com ele. Puxava-lhe a cauda. Devia ser infernal, mas o facto que o gato me adorava. Eu massacrava-o o tempo todo e ele cada vez gostava mais de mim. Fez um enorme ferimento na barriga. No sei como nem quando. Estvamos no campo. O meu pai, que estudava ento medicina, cuidou dele, coseu-lhe o ferimento, mas no resultou. O gato morreu. Perguntei o que tinha acontecido. O meu pai disse: "Acabou-se." Aquilo queria dizer que o gato tinha desaparecido, que se tinha ido embora. Que no voltaria a vlo. Eu no sabia o significado de morte. Tornaram a explicar-me que tinha sido o fim, que ele no voltaria nunca mais. "Nunca",, eu no sabia o que era. "Morte" tambm no. Finalmente entendi uma nica coisa: morte era o fim, algo que terminava. Eu julgava que os adultos eram imortais. Os adultos iam e vinham. Nunca acabavam. Mas eu no. Eu havia de "partir",. Tal como o gato. No me imaginava como adulta, via-me sempre criana. Toda a vida. Julgava-me limitada ao meu estado actual. E sobretudo achava que era nica, s no mundo. S a Emmanuelle que surda, mais ningum. Emmanuelle diferente. Emmanuelle nunca h-de crescer. Eu no podia comunicar com as outras pessoas, portanto no era como as outras pessoas, os adultos. ia pois "acabar",. E houve alturas, quando eu no conseguia mesmo comunicar,

perguntar tudo aquilo que pretendia compreender, ou quando no havia resposta, ento a pensava na morte. E tinha medo. Sei agora porqu: nunca tinha visto um adulto surdo. S tinha visto crianas surdas na aula de ensino especial que eu frequentava no infantrio. Portanto aquilo que eu achava era que as crianas surdas no cresciam. Iramos todos morrer assim, em pequenos. Creio que ignorava mesmo que aqueles que ouvem j tinham sido crianas! No havia qualquer referncia possvel. Quando compreendi que o gato j l no estava, que tinha "partido,", tentei entender com todas as minhas foras. Precisava de voltar a ver o gato para entender. Ver, uma vez que s os meus olhos me ajudavam a entender as coisas. Mas ningum me mostrou o gato morto. Fiquei s com a ideia de que se tinha "ido embora,". Era demasiado complicado. Quando a minha irm nasceu, surgiu um outro gato, desta vez preto. Demos-lhe um nome, chamava-se Bobine. Foi o meu pai quem escolheu o nome, em memria do Fort-Da de Freud, segundo disse. Andava sempre a brincar com carrinhos de linhas. Sabia que eu era surda. E eu sabia que ele sabia. Era evidente. Quando Bobine tinha fome chamava a minha me, miava atrs dela, rodeava-a, escapava ao seu olhar, mas ela ouviao, claro est. De incio tinha experimentado comigo, mas compreendeu que eu no respondia, e isso enervava-o. Ento, ps-se mesmo minha frente, para miar na minha cara. Era bvio: tinha compreendido que precisava mergulhar os seus lindos olhos verdes nos meus para se fazer entender. Eu bem gostaria de comunicar com ele. Por vezes, quando me encontrava em cima da cama, mordiscava-me os ps na brincadeira. Apetecia-me dizer-lhe que era um "chato". Tentava por gestos dizer: "Pra, ests a maar-me!" Mas no resultava. Apercebia-me quando ele ficava zangado: a, no me respondia. Parecia a esttua de um gato. Quando eu vi Piu-Piu e Silvestre, aquela violncia contra o pobre gato encheu-me de horror em relao ao Piu-Piu. Fazia o que queria, arreliava o pobre gato; e o bichano, esse, no compreendia nada e perdia sempre. Era um ingnuo. E o Piu-Piu muito desleal. Procuro uma independncia difcil num mundo difcil. Tenho mesmo dificuldade em pronunciar a palavra difcil. Digo: " tifiti." "tifiti" dizer "tifiti". E "tifiti", a minha existncia sem a minha me. Aventurome a fazer coisas sem o meu cordo umbilical. Sozinha, para

me aborrecer menos. Que idade teria? Aquela aventura ter sido antes ou depois da morte do gato? No sei. Disse: "Vou sozinha casa de banho.," Na realidade, no o disse minha me. Disse aquela frase para mim mesma. Habitualmente, vou sempre acompanhada pela minha me. Mas estamos em casa de amigos, ela est entretida a conversar, no me presta ateno e eu resolvo desenvencilhar-me sozinha. Entro na casa de banho e fecho-me por dentro, como um adulto. No consigo sair. Talvez eu tenha emperrado o fecho, talvez o tenha entortado, no sei. Ponho-me aos gritos, aos gritos e aos murros na porta. Fechada, sem conseguir sair. angustiante. A minha me est ali, atrs da porta; ela ouviu o barulho, mas eu, claro, no sei nada disso. De repente, a comunicao caiu completamente. H um verdadeiro muro entre mim e a minha me. assustador. Tenho a certeza de que a minha me tentou sossegar-me, deve ter dito: "No te aflijas, fica calma.", Mas como no a vejo, tambm no a oio. E julgo que ela ficou conversa com a amiga, que estou sozinha. Fico apavorada. Vou ficar toda a vida fechada naquele cubculo, aos gritos no silncio! Finalmente vejo um papel deslizar por debaixo da porta. A minha me fez um desenho, visto que eu no sei ler. H a figura de uma criana a chorar, que ela riscou. A seu lado, uma outra criana ri. Compreendo que ela est atrs da porta e que me recomenda que sorria, que est tudo bem. Mas no me diz que vai abrir aquela porta. S diz para eu sorrir e no chorar. Continuo em pnico. Sinto-me gritar. Sinto as vibraes nas cordas vocais. Se eu der um guincho, as cordas vocais no vibram nada, mas quando utilizo, os graves, quando grito, sinto as vibraes. Vibrei at perder o flego. Enquanto um serralheiro no veio abrir aquela porta, aquele muro que me isolava da minha me, devo ter gritado num desespero, como uma gaivota enfurecida no meio da tempestade. 6 "Tifiti" Tudo difcil, a coisa mais simples para uma criana que ouve tremendamente difcil para mim. A minha escolaridade no infantrio, numa classe de integrao para crianas surdas. Os meus primeiros colegas. Foi ali que comeou a minha vida social.

A ortofonista conseguiu fazer-me pronunciar algumas palavras audveis. Comeo a exprimir-me numa miscelnea oral e gestual, minha maneira. A me diz: "At aos dois anos foste para um centro de reeducao, situado precisamente por cima dum consultrio para doenas venreas. Isso enfurecia-me. Surdez: seria uma doena vergonhosa? Em seguida, pusemos-te no infantrio do bairro. Um dia fui buscar-te, a professora estava a contar histrias s crianas para elas aprenderem a falar. Tu estavas a um canto, sozinha, sentada a uma mesa sem prestar a menor ateno, a desenhar. No parecias l muito feliz.", No tenho recordaes especficas dessa poca. verdade que fao desenhos. Os desenhos so importantes para mim, substituem a comunicao. Posso exprimir um pouco do que enche a minha cabea de perguntas sem resposta. Quanto quele infantrio, com a sua aula supostamente destinada integrao, esqueci-o por completo. Ou prefiro esquecer. Poder realmente ser considerado integrao todos aqueles midos sentados em crculo volta de uma professora que lhes conta uma histria? O que que eu fao ali sozinha diante dos meus desenhos? O que que me ensinam? Na minha opinio, nada. Para que serve aquilo? A quem que agrada? No ptio do recreio brinco a saltar corda. Conservo algumas imagens. Especialmente uma. Uma angstia de criana. O meu pai vem buscar-me. Estou a lavar as mos torneira do ptio. Diz: "Despacha-te, vamo-nos embora." No sei como que ele disse aquilo, como que fez para me comunicar que estava com pressa e que eu devia despacharme para nos irmos embora, mas eu senti-o. Talvez me tenha empurrado levemente, devia estar com um ar apressado, no estava calmo. Em todo o caso, adivinhei a situao atravs do seu comportamento: "No temos muito tempo.," Pelo meu lado, quero fazer-lhe entender outra situao, a que diz: "Ainda no acabei de lavar as mos." E de repente ele desaparece. Farto-me de chorar. Houve um mal-entendido, no nos compreendemos. O meu pai foi-se embora e eu fiquei para ali sozinha a chorar. A chorar por causa da nossa incompreenso ou por ter ficado sozinha? Ou porque ele desapareceu? Creio que choro sobretudo por causa do mal-entendido. Esta cena simboliza os mal-entendidos permanentes que existem entre eles e ns, aqueles que ouvem e os surdos. S posso entender uma informao se a visualizar. Para mim,

trata-se de uma cena na qual misturo sensaes fsicas e a observao da mmica. Se a situao expressa rapidamente, no fico certa de a ter compreendido. Mas tento responder ao mesmo ritmo. Naquele dia o meu pai, diante da torneira onde lavava as mos, no compreendeu a minha resposta. Ou ento fui eu que compreendi mal. E o resultado dessa incompreenso foi ele ir-se embora! Claro que ele voltou para me buscar mais tarde, passado um perodo de tempo que no posso definir, mas que representou para mim um tempo de solido e desespero. Depois no consegui explicar-lhe as minhas lgrimas, pois a seguir a uma situao no compreendida tudo se complica. Instala-se outra situao ainda mais difcil do que a anterior. Estranha, esta imagem. No tenho a certeza se se trata de uma recordao real ou se a imaginei. Simboliza, no entanto, de forma notvel, a dificuldade que eu tinha de comunicar com o meu pai. "Tifiti" uma palavra que faz parte da minha infncia nascida dessa dificuldade. Um dia, devia j ser mais velha na altura, estamos sozinhos, ele e eu. O meu pai est a fritar carne. Quer saber se eu a quero bem passada, mal passada... Apercebo-me que quer explicar-me a diferena entre cozinhado e cru e, com a ajuda do aquecedor, entre quente e frio. Compreendo quente e frio, mas no cozinhado e cru. Aquilo prolonga-se. Por fim ele aborrece-se e frita dois pedaos de carne da mesma maneira. De outra vez, j com outra idade, estamos a ver televiso. Um dos personagens chama-se Laborie, como ns, mas com ue". O meu pai tenta explicar-me com pedaos de papel a diferena entre o "t" do nosso nome e o "e" do personagem. Para mim incompreensvel, e repito sem parar: - u tifiti. tifiti",. Ele no percebe o que eu oralizo e, exaustos ambos, deixamos cair o assunto at que chegue a minha me. A ele pergunta-lhe o que que eu queria dizer e ela larga gargalhada: " difcil". Ora isto era to "tifiti" para mim como para ele, e ele suportava mal a situao. No fundo, eu tambm. Na infncia, um surdo ainda mais vulnervel. -se ainda mais sensvel do que qualquer outra criana. Sei que muitas vezes saltei da fria para o riso. Fria quando por exemplo mesa ningum se preocupa em comunicar comigo. Bato na mesa violentamente. Quero "falar". Quero perceber o que esto a dizer. Estou saturada de ser prisioneira daquele silncio que ningum se d ao trabalho de

romper. Eu esforo-me todo o tempo, eles nem por isso. Os que podem ouvir no se esforam o suficiente. E guardo-lhes rancor por esse motivo. Recordo-me de uma pergunta na minha cabea: como que eles se entendem quando esto de costas voltadas uns para os outros? "tifiti" para mim imaginar que a comunicao possvel mesmo sem se estar frente a frente. Eu s assim consigo entender. S sou capaz de chamar algum se lhe der um puxo. Uma manga, a borda da saia ou das calas. Ao fazer isso estoua dizer: "Olha para mim, mostra-me o teu rosto, os teus olhos, para eu entender." VER. Se no vir, estou perdida. Preciso da expresso dos olhos, do movimento dos lbios. Tambm chamo com a minha voz. Chamo o meu pai quando ele est a tocar piano. Grito bem alto "pap, pap" para que ele olhe para mim. Mas para lhe dizer o qu? Nem sei. Tambm "bato". "Bato" na minha me, viro-lhe a cabea fora para mim. Quando o mdico me vem ver, procura o local onde eu posso ter dores e carrega ali at me magoar e eu gritar. assim que as coisas se passam, a minha comunicao infantil com o mdico, quando estou doente. Fao muitas coisas s escondidas. Resumindo, so as minhas experincias pessoais. Adoro xarope. Acabo todos os frascos sem ningum ver e, claro est, fico doente. Ningum me disse que o xarope faz mal. Como que eu posso achar que mau para a sade se to doce, to bom e tira as dores, visto que o doutor que o receita? Adoro "tatito",. Tambm o roubo, escondo-o no meu armrio, entre as pilhas de roupa, onde calha. Pedaos de salsicho comidos gulosamente, cujo cheiro intenso alerta a minha me. O salsicho substituiu os rebuados da minha infncia. Terei cinco, seis anos. Agora vou escola com crianas surdas. A professora sabe que sou surda, no estou isolada. Aprendo a contar com domins. Aprendo as letras do alfabeto, desenho e pinto. Agora um prazer ir escola. Tenho um colega surdo que vem brincar l para casa. Pem-nos juntos no mesmo quarto. A comunicao mais fcil entre ns dois. Temos gestos e mmicas pessoais. Brincamos com o lume, com velas. Porque proibido. Gosto de

experimentar o que proibido. Vemos Goldorak e imitamo-lo, brincamos com as bonecas e brigamos ao pontap. Observo atentamente como vivem os meus pais e tento reproduzir as suas atitudes nas minhas brincadeiras. Fao o papel de me, responsvel pela casa, os jantarinhos, a cozinha. Ele tem que tomar conta das crianas, das bonecas. Quando ele volta do trabalho, mimamos: "Tu fazes isto. Eu fao aquilo." "No, eu que fao isso." Brigamos um pouco, faz parte do jogo. Compreender a diferena entre uma mulher e um homem tambm "tifiti". J vi que a minha me tem seios e o meu pai no. Vestem-se tambm de maneira diferente, uma a me, outro o pai. Mas alm disso? Pretendo tambm saber qual a diferena entre mim e o meu amigo. Estamos de frias na Provena, em Lurs. Brincamos os dois na gua e como somos pequenos no temos fato de banho. A diferena bem visvel entre ele e eu. Acho engraado. simples, j compreendi: somos duas crianas surdas mas no somos bem iguais. Eu sou igual minha me, embora ela oia e eu no. Ela alta e eu no o hei-de vir a ser. Tanto o meu pequeno companheiro como eu, brevemente "terminamos",. Estamos na poca em que ainda no tnhamos encontrado adultos surdos, e -nos impossvel pensar que, sendo surdos, havemos de crescer. No h referncias, no h nenhum plo de comparao que nos permita pens-lo. Portanto, no tarda que "partamos", que "terminemos", enfim. Na realidade, que a morte chegue. E quando eu morrer acho que a minha "alma" ir habitar o corpo de outro beb, mas esse beb poder ouvir. Acerca dessa estranha mutao no tenho explicaes. Como que eu sei que tenho alma? A que que eu chamo alma naquela idade? Compreendi-o minha maneira ao ver um desenho animado na televiso. Trata-se da histria de uma menina. Durante muito tempo no se vem imagens dos pais dela, de forma que parto do princpio que desapareceram, como o gato branco... Partir igual a morrer. Conveno-me pois que morreram. Mais tarde a menina volta a encontrar os pais; como evidente, so as mesmas pessoas do princpio do filme. Tinha-os perdido, simplesmente. Mas eu contei outra histria a mim mesma: os pais regressaram da morte e alojaram-se noutros corpos. a isso que eu chamo uma alma: apartir e regressar". Isso que uma alma, uma coisa que se tem ou que se , que parte e

regressa. Aos cinco ou seis anos a aprendizagem dos conceitos j difcil para uma criana que ouve; para mim, no podiam seno basear-se em imagens visuais. E por isso que quando eu "terminar",, quando chegar a minha vez de partir, assim como o meu colega, as nossas almas viro habitar os corpos de outros bebs. Mas eles ho-de poder ouvir. E se eu decido na minha cabea de criana surda que a outra criana que herdar o meu lugar poder ouvir, porque talvez naquela idade eu j lamentasse o facto de no ouvir. De no possuir ainda uma linguagem libertadora. Devo ter misturado o desaparecimento do gato branco e este desenho animado para construir uma ideia da morte. Devo ter pedido ao meu companheiro que me mostrasse o pirilau na praia para saber qual a diferena entre os paps e as mams. E nisso no h, creio, grande diferena em relao s crianas que ouvem... "tifiti" compreender este mundo, mas c nos vamos arranjando. Nesta idade, antes da lngua gestual, a diferena principal reside em dois elementos: a necessidade absoluta de ver para entender. E uma vez que se viu, a impossibilidade momentnea de ver de outra forma. Que haja duas situaes possveis a partir do mesmo elemento visual no evidente. Por exemplo, gosto muito dos meus avs maternos. A comunicao com eles no era fcil, mas eles cuidaram muito de mim na idade do infantrio. Mas se procuro a minha primeira imagem-recordao acerca deles, essa imagem a de um co! Aquele co estar na minha memria antes da morte do gato? Depois? Em todo o caso, uma situao-recordao associada aos meus avs e compreenso forada de duas definies de pessoas que ouviam a partir de uma situao muda para mim. Primeira situao: aquele co, um grande basset de plo avermelhado, est ali ao lado do dono. Parece bonzinho e fao-lhe festas. Segunda situao: o dono foi trabalhar e o co ficou sozinho dentro do carro. Aproximo-me do carro, abro a porta e o co ladra na minha cara, arreganhando os dentes. Fico aterrorizada. Primeiro fiz-lhe festas, agora parece querer morder-me! Naquela altura, eu no conseguia entender a possibilidade de dois comportamentos diferentes numa mesma imagem de animal. Quando da primeira situao, ningum me explicou os conceitos de "bom ou mau", a respeito do co.

Sinto o perigo, corro, o co corre atrs de mim, morde-me num ombro e eu caio. O meu pai apareceu e o co fugiu. O meu pai quer dar-me uma injeco. Eu no quero injeco nenhuma, aquilo apavora-me. A minha me sabe que eu tenho medo da agulha e tenta serenar-me. Acima da minha cabea vejo-os gesticular, um a querer dar a injeco e outro a recomendar-me calma. Uma discusso entre eles, da qual s registo a ameaa de uma injeco. Quem me dera fugir para casa dos avs. Representam para mim a imagem da proteco total. Procuro um refgio que amo. (Como no podia deixar de ser, levo a injeco.) Sinto aquele reflexo de fuga de cada vez que querem impor-me alguma coisa, ou quando no entendo. Quer se trate de acabar a sopa, quer de uma injeco, uma qualquer forma de quererem forar-me, reajo como posso, visto no ter o uso da palavra. Uma aco serve-me de discurso. Na verdade devo dizer que aquela reaco de fuga perante uma ordem se mistura tambm com a minha maneira de ser. Sou independente, voluntariosa, obstinada. A solido do silncio talvez tenha contribudo para o acentuar. "tifiti" de dizer... 7 Chamo-me "Eu" Mas Emmanuelle de algum modo uma pessoa exterior a mim. Como um duplo. Quando falo comigo digo: "A Emmanuelle no te ouve." A Emmanuelle fez isto, fez aquilo..." Em mim, transporto a Emmanuelle surda e tento falar para ela, como se fssemos duas. Tambm sei dizer mais algumas palavras, umas que consigo articular mais ou menos bem, outras no. O mtodo ortofnico consiste em colocar a mo sobre a garganta do educador para sentir as vibraes da pronncia. Aprendem-se os r, o r vibra como ra. Aprendem-se os f, os ch. O ch coloca-me um problema, a coisa no funciona. Das consoantes para as vogais, sobretudo das consoantes, passa-se para as palavras inteiras. Durante horas repete-se a mesma palavra. Imito o que vejo nos lbios da ortofonista, com a mo no seu pescoo; imito como um macaquinho. De cada vez que se diz uma palavra, aparece uma frequncia no ecr de um aparelho. Linhas verdes, como as de um electrocardiograma feito nos hospitais, que danam diante dos meus olhos. preciso seguir aquelas linhas que sobem, e descem, caem, e saltam e voltam a cair. O que que representa para mim uma palavra naquele ecr?

Um esforo para que a minha pequena linha verde alcance a mesma altura que a da ortofonista. cansativo, e repete-se uma palavra atrs da outra sem saber o seu significado. Um exerccio de garganta. Um mtodo de papagaio. Nem todos os surdos conseguem articular, quem disser o contrrio mente. E quando conseguem a expresso limitada. No meu prximo regresso escola vou fazer sete anos e estou ao nvel de um infantrio. Mas a minha existncia, o universo restrito no qual me movimento, a maior parte do tempo em silncio, esto prestes a estoirar de uma s vez. O meu pai ouviu qualquer coisa na rdio. Essa qualquer coisa um milagre que est para chegar e que eu nem imagino. A rdio um objecto misterioso que fala com aqueles que ouvem e qual no presto a menor ateno. Mas naquele dia, na estao France-Culture, disse o meu pai, um surdo quem fala! O meu pai explicou minha me que aquele homem, actor e encenador de teatro, Alfredo Corrado, fala em silncio a lngua gestual. Trata-se de uma lngua completa, por inteiro, que se fala no espao, com as mos, a expresso do rosto, do corpo! Um intrprete, tambm ele americano, traduz em voz alta, em francs, para os ouvintes. Aquele homem diz que criou em 1976 o Teatro Visual Internacional (International Visual Theatre, IVT), o teatro dos surdos de Vincennes. Alfredo Corrado trabalha nos Estados Unidos. Em Washington existe uma universidade, a Universidade Gallaudet, destinada a surdos e foi ali que ele fez os seus estudos universitrios. O meu pai fica em estado de choque. Um surdo capaz de fazer estudos universitrios, quando em Frana mal conseguem atingir a primeira classe do secundrio! Est ao mesmo tempo louco de alegria e furioso. Furioso porque como mdico, confiou nos colegas. Os pediatras, os otorrinolaringologistas, os ortofonistas, todos os pedagogos que lhe afirmaram que s a aprendizagem da lngua falada me poderia ajudar a sair do isolamento. Mas ningum lhe deu qualquer informao acerca da lngua gestual. a primeira vez que ouve falar disso e ainda por cima atravs de um surdo ! Louco de alegria, porque em Vincennes, perto de Paris, se encontra uma soluo para mim! Quer levar-me l. Tem um grande desgosto por no conseguir falar comigo e est disposto a tentar aquela experincia.

A minha me diz que no quer ir com ele. Tem medo de ficar perturbada, talvez tambm de ter uma nova desiluso. Est prestes a dar luz, vai deixar que seja o meu pai a levar-me a Vincennes. Tem o pressentimento de que a criana que traz no ventre no surda. Sente a diferena entre aquele beb aninhado dentro dela e eu. Aquele beb mexe-se muito, reage aos rudos do exterior. Quanto a mim, dormia demasiado tranquila, ao abrigo da algazarra. A chegada da segunda criana da famlia, quase sete anos depois de mim, de momento a sua maior preocupao. Precisa de estar calma, de pensar um pouco em si prpria. Compreendo que a emoo ligada quela nova esperana seja demasiado violenta para ela; receia uma nova decepo. E depois ns temos o nosso complicado sistema de comunicao, ela e eu, aquele que apelido de "umbilical,". J nos habitumos ambas a ele. Quanto ao meu pai, esse no tem nada. Sabe que sou feita para comunicar com os outros, que o desejo o tempo todo. Aquela possibilidade que lhe caiu do cu atravs da rdio entusiasmou-o. Creio que foi a primeira vez que aceitou verdadeiramente a minha surdez, ao oferecer-me aquele presente inestimvel. E oferecendo-o tambm a si prprio, pois queria desesperadamente comunicar comigo. Como evidente, eu no sei de nada, no entendo nada do que se passa. O meu pai est muito perturbado, essa a minha nica recordao daquele dia comovente para ele e formidvel para mim: o rdio e a expresso do meu pai. No dia seguinte leva-me a Vincennes. Recordo algumas imagens desse dia. Subimos umas escadas na torre da aldeia e entrmos numa grande sala. O meu pai conversa com duas pessoas que ouvem. Dois adultos sem aparelho e que portanto, para mim, no so surdos. Naquele tempo eu s identificava os surdos atravs dos seus aparelhos auditivos. Ora, acontece que um era surdo e o outro no. Um chama-se Alfredo Corrado e o outro Bill Moody, uma pessoa que ouve e sabe interpretar a lngua gestual. Vejo Alfredo e Bill fazerem gestos entre si, vejo que o meu pai compreende o Bill, uma vez que Bill fala. Mas aqueles gestos no me dizem nada, so espantosos, rpidos, complicados. O cdigo simplista que inventei com a minha me base de mmica e de palavras oralizadas. a primeira vez que vejo aquilo. Fito aqueles dois homens de boca aberta. Mos, dedos a mexer, o corpo tambm, a expresso dos rostos. belo e fascinante.

Quem o surdo? Quem o que ouve? Um verdadeiro mistrio. Ento digo para mim mesma: "Olha, algum que ouve e que discute com as mos!" Alfredo Corrado um belo homem, alto, do tipo italiano, cabelos muito negros e um corpo delgado. O rosto um pouco severo e tem bigode. Bill tem os cabelos um pouco compridos, lisos, olhos azuis e "uma barriguinha". uma pessoa um pouco sobre o gordo, irradiando simpatia. Aparentam ambos a mesma idade do meu pai. Tambm l est Jean Grmion, director e fundador do centro social e cultural para surdos, que nos recebe. Alfredo chega minha frente e diz: "Sou surdo como tu, uso os gestos. a minha lngua." Usando a mmica, perguntei: Por que que no usas aparelho auditivo?" Ele sorriu. Para ele evidente que um surdo no precisa de aparelho, enquanto para mim representa um ponto de referncia visvel. Alfredo , pois, surdo, no usa aparelho e ainda por cima adulto. Creio que levei algum tempo a compreender aquela tripla bizarria. Em contrapartida, aquilo que eu compreendi de imediato foi que no estava s no mundo. Revelao que foi um choque. Um deslumbramento. Eu, que me julgava nica e destinada a morrer criana, como imaginam tantas crianas surdas, descubro que tenho um futuro possvel, uma vez que Alfredo adulto e surdo. Esta lgica cruel dura enquanto as crianas surdas no se cruzam com um adulto surdo. Necessitam dessa identificao com o adulto, necessitam de forma crucial. preciso convencer todos os pais de crianas surdas que tm que as pr em contacto com adultos surdos o mais cedo possvel, desde a nascena. preciso que os dois mundos se misturem, o do rudo e o do silncio. O desenvolvimento psicolgico da criana surda farse- mais depressa e muito melhor. Vai crescer livre daquela solido angustiante de quem se julga s no mundo, sem pensamento construdo e sem futuro. Imaginem que tm um gatinho a quem nunca mostraram um gato grande. Ele vai pensar que ser eternamente um gato pequeno. Imaginem que esse gato no convive seno com ces. Vai julgar que um gato nico. Vai esgotar-se a tentar comunicar como o co. Atravs da mmica conseguir transmitir algumas coisas aos ces: comer, beber, medo, ternura, obedincia ou agressividade. Mas ser bastante mais feliz no meio dos seus,

pequenos ou grandes. Miando como um gato! Ora, segundo a tcnica da oralizao que desde o incio tinham imposto aos meus pais, eu no tinha qualquer hiptese de me encontrar com um adulto surdo, com o qual me identificar, uma vez que isso tinha sido desaconselhado. No tinha contacto seno com pessoas que ouvem. Aquela primeira entrevista, que me deixou estupefacta, em que permaneci de boca aberta de espanto olhando aquelas mos que se agitavam, no me deixou recordaes muito ntidas. Ignoro o que foi dito entre o meu pai e os dois homens. S ficou o espanto de chegar concluso de que o meu pai compreendia o que diziam as mos do Alfredo e a boca do Bill. Naquele dia eu no sabia ainda que iria ter acesso a uma lngua graas a eles. Mas trouxe dentro de mim a revelao formidvel de que Emmanuelle poderia tornar-se adulta! Isso tinha eu visto com os meus prprios olhos! Na semana seguinte o meu pai leva-me novamente a Vincennes. Trata-se de um "atelier de comunicao pais-filhos". Esto l muitos pais. Alfredo comea a trabalhar com as crianas que instala em seu redor. Mostra os gestos e os pais olham para aprenderem ao mesmo tempo. Lembro-me de sinais simples, por exemplo: "casa", "comer", "beber", "dormir", "mesa". Nas folhas de um quadro desenha uma casa e mostra-nos o gesto que lhe corresponde. Em seguida desenha uma pessoa adulta, dizendo: " o teu pai, tu s filha do teu pai; a tua me, tu s filha da tua me." Mostra tambm algum procura de qualquer coisa. Primeiro atravs de mmica, seguidamente por gestos, pergunta-me: "Onde est a tua me?" Eu respondo por mmica. "A me no est." Ele corrige-me. "A me est onde? A me est em casa." Faz o gesto de me e de casa. Uma frase completa. "A me est em casa." Aos sete anos exprimo finalmente, com as minhas duas mos, a identificao da minha me e do local onde se encontra! Encarando Alfredo de olhos nos olhos, repito com as minhas duas mos, radiante: "A me est em casa." Nos primeiros dias aprendo palavras do quotidiano, seguidamente os nomes das pessoas. Ele Alfredo, eu sou Emmanuelle. Um gesto para ele, outro para mim. Emmanuelle: "O sol que parte do corao." Emmanuelle para os que ouvem, o sol que parte do corao para os surdos.

Pela primeira vez ensinam-me que se pode dar um nome s pessoas. E tambm isso formidvel. Eu no sabia quem na minha famlia tinha nome, a no ser o meu pai e a minha me. Encontrava pessoas, amigos dos meus pais, membros da famlia, mas para mim nenhum tinha nome, qualquer definio. Fiquei to surpreendida ao saber que ele se chamava Alfredo e o outro Bill... E eu, sobretudo eu, Emmanuelle. Percebi enfim que tinha identidade. EU: Emmanuelle. At ento eu falava de mim como de uma outra pessoa, uma pessoa que no era "eu". Diziam sempre: "A Emmanuelle surda." Era assim: "Ela no te ouve, ela no te ouve." No havia "eu". Eu era "ela". Para aqueles que nascem com o nome na cabea, o nome que o pai e a me repetem, que tm por hbito virar a cabea quando algum chama por esse nome, deve ser difcil entenderem-me. A sua identidade -lhes dada nascena. No precisam de pensar no assunto, no se interrogam acerca de si mesmos. So "eu", so "eu, mim" naturalmente, sem esforo. Conhecem-se, identificam-se, apresentam-se s outras pessoas com um smbolo que os representa. Mas a Emmanuelle surda no sabia que era "eu" ou "mim". Compreendeu-o com a lngua gestual, e agora sabe. Emmanuelle agora pode dizer: "Chamo-me Emmanuelle." Que felicidade, essa descoberta! Emmanuelle j no aquele duplo cujas necessidades, desejos, recusas, angstias, tinha tanto trabalho em explicar. Descubro o mundo que me rodeia e eu estou no meio do mundo. Foi tambm a partir desse momento, ao conviver com adultos surdos, que deixei completamente de pensar que ia morrer. Deixei mesmo de pensar nisso. E foi o meu pai quem me ofereceu esse magnfico presente. Foi como renascer, como uma vida que comea. O primeiro muro a ser derrubado. Existem ainda alguns minha volta, mas a primeira brecha na minha priso j se abriu, vou compreender o mundo com os olhos e as mos. Adivinho-o j. E estou to impaciente ! Diante de mim est aquele homem maravilhoso que me ensina o mundo. Os nomes das pessoas e das coisas; h um gesto para Bill, um para Alfredo, um para Jacques, meu pai, outro para a minha me, para a minha irm, para a casa, a mesa, o gato... Vou viver! E tenho tantas perguntas para fazer. Tantas, tantas... Estou vida, sedenta de respostas, j que podem finalmente responder-me ! De incio misturo todos os meios de comunicao. As palavras que saem oralmente, os gestos, a mmica. Estou um pouco perturbada, confusa. Aquela lngua gestual caiu-me em cima de

forma sbita, s ma deram aos sete anos, preciso de me organizar, de fazer uma triagem de todas as informaes que vo surgindo. E so considerveis. Por exemplo, a partir do momento em que se pode dizer com as mos, numa linguagem acadmica e construda: "Chamo-me Emmanuelle. Tenho fome. A minha me est em casa, o meu pai est comigo. O meu colega chama-se Jlio, o meu gato chama-se Bobine..." A partir desse momento, tornamo-nos um ser humano comunicante, capaz de se construir. Como evidente, no aprendi tudo isto em dois dias. Em casa continuo a utilizar um pouco o cdigo materno, acrescentando-lhe uns gestos. Lembro-me de que me compreendiam, mas no me recordo qual foi a primeira frase que disse por gestos e que foi entendida. A pouco e pouco, arrumei as coisas na minha cabea e comecei a construir um pensamento, uma reflexo organizada. E sobretudo a comunicar com o meu pai. Depois a minha me resolve vir juntar-se a ns em Vincennes. Tambm ela vai sair do tnel onde encerraram os meus pais quando eu nasci, dando-lhes falsas informaes e falsas esperanas. Foi um choque para a minha me, aquele local de reunio especificamente para surdos. Local de vida, de criao, de ensino para surdos. Local de encontro com outros pais mergulhados nas mesmas dificuldades, com profissionais da surdez, que pem em causa as informaes e as prticas da classe mdica. Porque eles decidiram ensinar uma lngua. A lngua gestual. No um cdigo, no uma algaraviada, mas uma verdadeira lngua. Ao recordar a primeira vez que foi a Vincennes, a minha me diz: "Fiquei cheia de medo. Vi-me confrontada com a realidade. Era como que um segundo diagnstico. Toda aquela gente era muito calorosa, mas ouvi os relatos do seu sofrimento de crianas, o terrvel isolamento em que tinham vivido anteriormente. As dificuldades dos adultos, o seu permanente combate. Davame nuseas. Como eu me tinha enganado. Como me tinham enganado quando me disseram: "Com a reeducao e as prteses auditivas, ela h-de vir a falar.. "" O meu pai diz: "Foi por pouco que na altura no ouvi, ou desejei ouvir, "um dia ela vai poder OUVIR"." Vincennes outro mundo, o da realidade dos surdos, sem indulgncia intil, mas tambm o da esperana dos surdos.

claro, um surdo consegue falar, melhor ou pior, mas no passa de uma tcnica incompleta para muitos de ns, os surdos profundos. Com a lngua gestual, acrescida da oralizao e da vontade devoradora de comunicar que eu sentia dentro de mim, comecei a fazer progressos espantosos. O primeiro, o imenso progresso em sete anos de existncia, acabava de se dar: chamo-me "EU". 8 Maria, Maria. . . Quando a minha irm nasceu perguntei como se chamava. Maria. Maria, Maria, tenho dificuldade em fixar o nome. Decidi escrev-lo num papel vrias vezes, como nas cpias da escola. Vou amide ter com a minha me para perguntar de novo como se chama a minha irm, para ter a certeza... E repito: Ma-ria, Ma-ri-a, Ma-ri-a. Eu sou eu, Emmanuelle; ela ela, Maria. Maria, Maria, Maria... Afinal como que ela se chama?", Escrevi-lhe o nome mais de cem vezes, uma letra atrs da outra para me lembrar bem, para o fixar visualmente. Mas pronunci-lo ainda muito difcil para mim. Tenho dificuldade em oralizar o seu nome. O meu pai leva-me ao hospital ver a minha irm. Tenho horror ao hospital. Vi a minha me tirar sangue quando estava grvida e tive tanto medo que me escondi debaixo da cama. Ainda hoje me custa ver sangue. Hospital igual a injeco, igual a sangue... Hospital igual a stio ameaador. A minha irm est numa incubadora. No prematura, mas como no h aquecimento no hospital puseram-na ali com os outros bebs simplesmente para que no tenha frio. No sei se fiquei contente quando a vi. uma imagem mistrio. Vejo a incubadora e uma coisa pequena l dentro. difcil imaginar alguma coisa relacionada com ela, atrs daquele plstico. J no sei muito bem, mas os meus sentimentos so pouco ntidos naquele momento. Interrogo-me: "Seremos iguais?", No sei se fiz a pergunta. Sinto-me sobretudo surpreendida diante daquele beb. E vagamente inquieta: ir crescer?" A minha me volta para casa, j no tem barriga, a barriga dela agora est lisa. Creio que no percebi como que o beb

saiu. Havia ali um beb, por onde ter passado? A relao entre o beb que me mostram e o ventre liso da minha me no nada evidente. Talvez o beb tenha sado pela boca? Ou pelas orelhas? confuso e muito misterioso. Toda a famlia quer saber se a Maria surda, claro est. A minha me j se tinha tranquilizado durante a gravidez visto a Maria se mexer muito. Por exemplo, a minha me batia com a porta e sentia logo o beb reagir, a dar-lhe pontaps... Vi logo que a Maria era diferente de mim. Mas a me pediu ao especialista que o confirmasse, no lhe bastava o instinto. Queria ouvi-lo dizer. A minha irm ouve. Tenho uma irm que ouve, "como os outros". Apercebo-me de que ela como os meus pais e que eu estou s contra trs. Julgo que no incio pensei: uTalvez ela seja como eu, ficaremos assim mais fortes." Naquela idade, sinto-me um pouco estranha no seio da famlia. No tenho a possibilidade de me sentir cmplice de algum parecido comigo. No consigo identificar-me. Essa diferena far-me- sofrer? No. Quando a minha me regressa a casa com ela, sinto-me feliz ao ver aquele bebezinho nos seus braos. Pem-na ao meu colo fazendo-me milhares de recomendaes, que lhe segure a cabea porque ela muito frgil; tenho medo de a partir, seguro-lhe com cuidado. Vejo que aquela "coisinha," est viva, que tem que se lhe prestar ateno, no pode ser sacudida em todas as direces como as bonecas. Tive um certo receio. Antes de ela nascer os meus pais davam-me muito mimo, toda a sua ateno se concentrava em mim. Actualmente essa ateno -lhe dirigida a ela; vejo bem que as coisas mudaram. De cada vez que a Maria chora, a minha me corre, precipitase para o bero. Ouve-a, compreende quando tem sono ou quando no quer dormir. Isso perturba-me. Digo minha me que quando for grande no quero ter filhos. No percebe logo a minha reaco; que ideias terei eu na cabea? Estarei com cimes da minha irm? Por ela no ser como eu? No. A razo que me leva a decidir aos sete anos que no hei-de ter filhos mais simples e importante. Dificilmente consigo fazer entender minha me que teria medo de no

poder ouvir o meu filho chorar, portanto no poderia correr, como ela, para o consolar, para o ajudar quando precisasse de mim. O problema insolvel. Portanto, no terei filhos. A me diz: "Uma me sente quando um filho chora. Uma me tem uma relao muito especial com o filho. No precisa forosamente de o ouvir." Sentir, para mim, no resposta. Preferia poder ouvir o meu filho. Tenho demasiado medo. No conseguindo tirar-me da cabea aquela recusa, a minha me aconselha-me a que fale sobre o assunto com os adultos surdos de Vincennes. "Eles podero responder-te melhor do que eu ou o teu pai." A simplicidade da resposta que me do surpreende-me: basta pr um pequeno microfone debaixo da almofada do beb! O microfone faz funcionar um sinal luminoso quando a criana chora. Entendi. E um dia serei me. No futuro tambm eu poderei ser me. Se conseguisse lembrar-me das mil perguntas deste gnero que me vinham cabea naquela altura, de bom grado faria uma lista. Mas -me impossvel. A minha relao com o mundo exterior, naquela idade, muito especial. Muitas vezes fico isolada e aborreo-me rodeada de pessoas que falam minha volta. frequente irritar-me por no compreender. D-me ideia de que os outros no se esforam grandemente para comunicar comigo, a no ser os meus pais, e o mundo limita-se a eles dois e Maria, que ainda no fala mas que emite sons, e chora, e ri, e que absorve todas as atenes. Por vezes digo: "Eu tambm estou aqui!" E respondem-me: "Mas j no s s tu. H outra criana, tens que aprender a partilhar." De incio no fcil partilhar o amor dos meus pais. Queria que me mimassem tanto como anteriormente. Sinto-me bem com as outras crianas surdas. Na escola tento ensinar-lhes a minha nova lngua, mas proibido. Estamos numa classe oralista, pois no recreio que consigo praticar os gestos. Tento dizer aos meus colegas que "pap" e "mam", no se dizem como na ortofonia, mas sim por gestos. Aparentemente no ligam nenhuma. Acham um disparate o que eu lhes digo.

Aquelas crianas tm a minha idade, mas para eles dizer pap em cdigo ou pap em gestos no muda nada. Enquanto comigo houve uma reviravolta. Ainda no est muito definida, mas de facto estou diferente. Deu-se em mim uma pequena revoluo que muito gostaria de partilhar com eles. Revolucionar os surdos minha volta, abrir-lhes o mundo como fizeram comigo. Dar-lhes a possibilidade de se exprimirem livremente, de fazer com as mos, como diz Alfredo Corrado, "flores no espao Comeo a gestualizar bem. Entre os cursos do IVT e a classe de insero fao bastantes progressos. Mais no IVT do que na escola, onde continuam a ensinar-me que trs carrinhos mais um carrinho fazem quatro; a escrever at ao infinito AA e BB; a ler nos lbios; a matar-me a repetir milhares de vezes a mesma slaba com a ortofonista. Creio que os adultos que ouvem e que privam os filhos da lngua gestual nunca conseguiro compreender o que se passa na cabea de uma criana surda. H a solido e a resistncia, a sede de comunicar e por vezes a ira. A excluso na famlia, em casa, onde toda a gente fala sem se preocupar connosco. Porque preciso perguntar todo o tempo, puxar algum pela manga ou pelo vestido para saber um pouco, um bocadinho, do que se passa nossa volta. Seno, a vida no mais do que um filme mudo, sem legendas. Eu tive a sorte de ter estes pais. Um pai que se precipitou para Vincennes para aprender a mesma lngua que eu, e uma me que o seguiu. Que no me bate nas mos sem compreender quando eu gesticulo: "Amo-te, me!," A maior parte das crianas da minha classe so filhos de adeptos da oralizao. Nunca iro para o curso de lngua gestual de Vincennes. Vo levar anos a tentar transformar as suas gargantas em caixas-de-ressonncia, a fabricar palavras cujo sentido nem sempre conhecem. Na escola no gosto das professoras da classe dita de integrao". Querem que eu me assemelhe s crianas que ouvem, impedem-me de fazer gestos, obrigam-me a falar. Com elas fico com a sensao de que preciso esconder que se surdo, imitar os outros como um pequeno rob, quando afinal no percebo metade do que se diz na aula. Mas no IVT, com as crianas e os adultos surdos, sinto-me melhor. Naquele ano tambm houve momentos alegres na minha famlia.

O meu primeiro dente de leite, por exemplo. No dia em que caiu, os meus avs contaram-me a histria do ratinho que ir pr uma moeda debaixo do meu travesseiro. Imagino o ratinho como os dos desenhos animados, com umas lindas orelhinhas. Acredito piamente, como todas as crianas da minha idade. No se trata duma histria, a realidade. De resto, tenciono averiguar. noite ponho conscienciosamente o meu precioso dente debaixo do travesseiro e adormeo na esperana de que o ratinho no falte ao encontro. Sem o menor medo que se esgueire para debaixo da minha cama. No dia seguinte, quando acordo, encontro uma moeda de cinco francos, juntamente com um desenho que representa o rato. Sempre veio visitar-me! Muito excitada com o acontecimento, decido recomear na noite seguinte, uma vez que guardei o dente. No fundo, com a inteno de verificar se o ratinho mesmo um ratinho. Na manh seguinte encontro efectivamente outra moeda, mas o dente desapareceu! Corro para os meus avs a perguntar o que poder ter acontecido. Explicam-me que o ratinho resolveu simplesmente lev-lo com ele. Fico furiosa. Primeiro, Porque se trata do MEU dente. Depois porque fazia tenses de repetir a experincia. Fiquei realmente furiosa. O MEU dente! H uma outra imagem que nunca esquecerei. Certa noite fomos convidados para ir a casa duns amigos dos meus pais. Eu tenho um vestido lindo, est tudo em ordem. A minha me arranja o beb. Enquanto junta as coisas dela pe-mo ao colo. De repente o beb faz um ar de espanto e apercebo-me de que fez as suas necessidades. Eu toda pronta, com o meu lindo vestido, e o beb a fazer tudo em cima de mim! Fico enervadssima. Tenho que mudar de roupa e a Maria de fralda! No fiquei nada satisfeita. No sei porqu mas nunca esquecerei aquela imagemrecordao. Talvez tivesse sido a minha confrontao com a realidade da existncia de um outro ser, o facto de ter que assumir a vida de algum no bloco familiar, que at ento reservava s para mim. Eu dizia o beb quando a Maria era pequenina porque me esquecia. Esquecia-me como se pronunciava o seu nome correctamente. Muitas vezes apetecia-me dizer-lhe: "Maria, olha para mim", para conversar com ela por gestos, mas no consigo. Por ela ser muito pequena e eu prpria no ser ainda muito hbil.

Tento pois comunicar com ela como fazem os meus pais, falando um pouco, com as minhas palavras pronunciadas de forma desajeitada: "Ma-ri-a... Ma-ri-a... Ma-ri-a..." 9 A cidade dos surdos Ainda h pouco dei incio aprendizagem da lngua gestual e j vamos deixar a Maria em Frana para podermos ir a Washington, a espantosa "cidade dos surdos". Depois de todo o tempo que passou sinto-me um pouco envergonhada; eles deviam t-la levado, privei-a dos nossos pais durante um ms. Foram eles que resolveram deix-la entregue aos meus avs, eu no fui minimamente responsvel, mas mesmo assim tenho uma certa sensao de desconforto. Os meus pais fazem aquele esforo por mim, para que eu possa ir aprender a lngua gestual e deixam ficar o beb. Washington antes de mais nada o avio. a primeira vez que ando de avio e no sei para onde vou. Sei que vou para o estrangeiro, mas para onde? Quem que pode explicar-me Washington? Na altura da partida, ningum. Compreendi mais tarde, chegada. Aquela viagem foi organizada por Bill Moody, o intrprete de Alfredo Corrado, com o grupo do IVT. Vo tambm um socilogo, Bernard Mottez, um ortofonista, Dominique Hof, e alguns adultos surdos que se ocupam de crianas surdas. O objectivo da viagem descobrir como vivem os surdos americanos, conhecer a sua Universidade Gallaudet, saber como resolvem os seus problemas no quotidiano. Clara a nica criana da minha idade que faz parte do grupo. loira, surda como eu e vai tornar-se minha amiga inseparvel. Nunca esquecerei a primeira vez que a vi. to viva quanto eu sou tmida e reservada, mas os nossos olhares cruzaram-se intensamente e o contacto foi imediato. juntas que partimos para aquela aventura, a maravilhosa descoberta que ignoramos ainda, ela e eu. A descolagem do avio assusta-me. O cho estremece, as rodas deslizam. Sinto o avio vibrar, seguindo-se uma espcie de poo de ar, como num elevador quando sobe muito depressa. Sinto-me esmagada contra as costas da minha cadeira. Uma vez no ar as coisas melhoram. Eu e a Clara lemos um Mickey, sentadas lado a lado, sossegadas, e em seguida adormecemos at aterragem. Nessa altura sinto dores horrveis nos ouvidos, a ponto de morder a almofada. Foi um

grande sofrimento que me surpreendeu em absoluto, dando-me a impresso de que vou explodir. Disseram-me para comer pastilha elstica, e mastigo, mastigo, mas aquilo no passa. Clara no sente nada, est louca de alegria. J no solo, recupero lentamente, as dores desaparecem. Estamos em Nova Iorque; no me diz nada de concreto, Nova Iorque, a no ser os arranha-cus. Seguidamente partimos para Washington, desta vez em autocarro. O sol brilha, est calor. Chegamos a uma espcie de prdio grande, onde os meus pais alugaram um apartamento e os pais da Clara outro. Na rua o espectculo d-me um choque tremendo. Mais do que um choque, uma revoluo! E compreendo: estamos na cidade dos surdos. H pessoas a gesticular por todo o lado; nos passeios, nas lojas, em volta da Universidade Gallaudet. H surdos por todo o lado. O vendedor numa loja faz gestos para a compradora, as pessoas cumprimentam-se, conversam por gestos. Estou realmente numa cidade de surdos. E imagino que em Washington toda a gente surda. Fico como se tivesse aterrado noutro planeta onde todas as pessoas fossem como eu. H dois, trs, quatro conversa, e depois cinco, seis... mal posso crer nos meus olhos! Fito-os com a boca aberta de espanto, impressionada, com a cabea roda. Uma verdadeira conversa de surdos em grupo, em qualquer coisa que eu nunca tinha visto at ento. Tento perceber onde que me encontro, o que que se passa naquele local, mas no consigo. No h nada para compreender, aterrei simplesmente aos sete anos num mundo de surdos, mais nada. Primeira ida Universidade. Alfredo Corrado explica-me que nem toda a gente surda, o que d essa impresso o facto de haver muitos professores que ouvem mas que sabem a lngua gestual. Como que eu podia reconhec-los, se ningum tem um letreiro na testa? Mas no me parece que isso seja necessrio, pois tm todos um ar to feliz, to vontade. No h a menor reticncia, nem mesmo a que pressenti na escola de Vincennes. Inconscientemente, as pessoas em Frana tm um certo pudor em usar a lngua gestual. E eu apercebi-me desse pudor. Preferem esconder-se como se tivessem algum defeito

vergonhoso. Vi surdos sentirem essa humilhao durante toda a sua infncia e ainda hoje no conseguirem ultrapassar completamente esse problema, falando a sua prpria lngua. Adivinha-se que o seu passado foi difcil. Talvez por a lngua gestual ter sido proibida em Frana at 1976. Os gestos eram considerados indecentes, provocantes, sensuais, fazendo apelo ao corpo. Mas em Washington no se passa nada disso. No h o menor problema, toda a gente est perfeitamente vontade. A lngua praticada normalmente, sem complexos. Ningum se esconde, ningum tem vergonha. Pelo contrrio, os surdos tm at um certo orgulho, tm a sua cultura e a sua lngua prpria como qualquer pessoa. O Bill leva-nos a passear na cidade e vai traduzindo ao mesmo tempo o francs e o ingls, a ASL (American Sign Language) e a LSF (Langue des Signes Franaise). Uma ginstica fascinante; nunca percebi como que ele conseguia. Cada pas tem a sua lngua gestual como tem a sua prpria cultura, mas mesmo assim dois estrangeiros surdos conseguem facilmente entender-se. Temos um cdigo bsico internacional que nos permite compreender-nos com bastante facilidade. Por exemplo, comemos obviamente com a boca, no com os ouvidos, de forma que o gesto da boca aberta e os dedos a apontarem a abertura j suficientemente claro. A casa a mesma coisa. A primeira vez que me disseram "Home" no compreendi, mas assim que fizeram o gesto de "casa", em forma de telhado, entendi de imediato. Quanto ao resto - o abstracto, as particularidades - cada lngua gestual exige uma certa adaptao, como alis qualquer lngua estrangeira. Ficmos um ms em Washington, na residncia perto da Universidade Gallaudet. No prdio todos os locatrios falam por gestos. Tomamos as refeies no selfservice e temos que nos apresentar e dizer em lngua gestual qual o nosso nmero. Sinto-me orgulhosa, orgulhosa como nunca me tinha sentido antes. A universidade acolhe mdicos surdos, advogados surdos, professores de psicologia surdos... Todas essas pessoas tiraram cursos superiores; aos meus olhos so gnios, so deuses! Em Frana no h nada semelhante. Tive um encontro emocionante e impressionante com uma mulher surda e cega. Como comunicar com ela? Dizem-me para soletrar o meu nome em dactilologia na palma

da sua mo. Ela sorri e repete o meu nome na minha mo. Fico profundamente perturbada com aquela mulher. simplesmente magnfica. Eu julgava que todos os cegos tinham os olhos fechados; no entanto o olhar dela parece "fitar-me" como se estivesse de facto a ver-me. Pergunto-lhe como que faz para falar, visto no ser possvel soletrar todas as palavras na mo de algum. Explica-me atravs de lngua gestual: "Tu utilizas a lngua dos gestos, eu ponho as minhas mos volta das tuas, para tocar cada gesto, e assim compreendote." Aquilo um mistrio para mim; eu preciso dos meus olhos para entender um gesto, tenho que estar de frente para uma pessoa. Compreender ela de facto? Realmente? Volto a fazer a mesma pergunta. "No te aflijas, eu entendo-te, no h problema!," Interrogo-me como que ela cresceu, como que aprendeu. Aquela mulher, cujas mos envolvem suavemente as minhas, seguindo no espao o desenho de cada gesto, impressiona-me