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7/23/2019 o Fim Da Amazonia http://slidepdf.com/reader/full/o-fim-da-amazonia 1/170  O FIM  da Lúcio Flávio Pinto Desmatamento e Grilagem

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O FIM   da

Lúcio Flávio Pinto

Desmatamento e Grilagem

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CONSELHO EDITORIAL

Otávio Velho - PPGAS-MN/UFRJ, Brasil

Dina Picotti - Universidad Nacional de General Sarmiento, Argentina

Henri Acselrad - IPPUR-UFRJ, Brasil

Charles Hale - University of Texas at Austin, Estados Unidos

 João Pacheco de Oliveira - PPGAS-MN/UFRJ, Brasil

Rosa Elizabeth Acevedo Marin - NAEA/UFPA, Brasil

 José Sérgio Leite Lopes - PPGAS-MN/UFRJ, Brasil

 Aurélio Vianna - Fundação Ford, Brasil

Sérgio Costa Jr. - LAI FU - Berlim, Alemanha 

Alfredo Wagner Berno de Almeida - CESTU/UEA, Brasil

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Desmatamento e Grilagem

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P659f Pinto, Lúcio Flávio

  O fim da Amazônia: grilagem e desmatamento / Prefácio de

Rosa Elizabeth Acevedo Marin. – Manaus : UEA Edições, 2014.

  170 p. ; 27 cm.

  ISBN 978-85-7883-294-0

  1. Amazônia – Desmatamento. 2. Grilagem. 3. Conflito. I. Marin,

Rosa Elizabeth Acevedo.

  CDU 572.9:340(811.3)

 

© Lúcio Flávio Pinto, 2014

Editor

Alfredo Wagner Berno de AlmeidaUEA, pesquisador CNPq

Rosa Acevedo MarinhoUFPA

Projeto Gráfico e Diagramação

Stefany Coelho

UEA - Edifício Professor

Samuel Benchimol

Rua Leonardo Malcher, 1728

Centro

Cep.: 69.010-170Manaus, AM

E-mails:

[email protected]

[email protected]

 www.novacartograf iasocial .com

Fone: (92) 3232-8423

Colaboração

Ruthane Saraiva

Daiana Brito dos Santos

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Sumário

Prefácio 

“O Campo de forças do desmatamento e da grilagem na Amazonia”

Duas Palavras

Vai a oresta, vem o deserto?

A grande decisão

Volkswagen faz na Amazônia o maior incêncio da terra

O Devastador Alemão

O Escândalo ignorado : As Grandes Queimadas

O Grande desmatamento : Apagado pela História Ocial

Adeus à oresta

A Amazônia está morrendo

Desmatamento recorde: Triste marca Brasileira

Desao em Carajás: Mudar o remo do arco

Carvão: O monstro

A Amazônia vai acabar 

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Floresta: Só parar inglês ver ?

Os deserdados da terra: A fronteira como tragédia

O Paraiso perdido ( O m do Xingu)

Como se apossar de terras públicas

A Justiça como cúmplice

Cartórios com centrais da Grilagem

 No m de tudo, a condenação

Como funciona o esquema ilegal da madeira

Morre de infarto o maior grileiro da Amazônia

Os Grileiros

O roteiro da destruição de 1 milhão de hectares

 

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Prefácio

O CAMPO DE FORÇAS DO DESMATAMENTO

E DA GRILAGEM NA AMAZONIA 

O sociólogo e jornalista Lúcio Flávio de Farias Pinto realiza, neste livro, aretomada de argumentos desenvolvidos em artigos já publicados, a maioria no Jornal Pessoal , sobre desmatamento e grilagem na Amazônia, temas que emdiversos discursos e ações enunciados pela tecnocracia, políticos prossionais eintelectuais torna-os a tragédia anunciada, também magistralmente consumada, elaé seguida, quase dramaticamente, por um coro de vozes que buscam os louros dasalvação da Amazônia, com anúncios de novas políticas, legislações, instituiçõescom medidas legais e politicas para conter o desmatamento, os conitos agrários,em todo coerente com as recomendações de organizações internacionais. Hoje,

esses mesmos personagens da destruição pretendem ser os artíces da preservaçãoe desfazer o trágico das intervenções econômicas, ecológicas e políticas. Para LúcioFlávio Pinto, entretanto, o espectro maior continua sendo o “m da Amazônia” ecom esta sentença tem o propósito de provocar a conversão, a revolta de segmentosda sociedade amazônica, melhor que os gestos e palavras consolatórios.

 Nesta coletânea, encontram-se vários eixos de leitura sobre as inter-relações,conexões ou a construção de um campo de forças que provoca e potencializa odesmatamento e a grilagem na Amazônia. Nele, a linguagem que utiliza termos taiscomo “cenário”, “contexto”, “perspectiva” não faculta visualizar outro futuro, que

não o m da oresta. Qual outro futuro? Se as “safras de fogo”, de desmatamentocontinuam elevadas no Pará, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia e Tocantinse dissimuladas em Roraima, Amapá e Acre; se as medidas punitivas têm efeitoinócuo, se os povos e comunidades, que preservam a oresta continuam acuados pelos projetos desenvolvimentistas que avançam sobre as terras indígenas e osterritórios quilombolas.

Lúcio Flávio Pinto, com perspicácia, utiliza a alegórica expressão “safra” para comentar as magnitudes ocias a propósito de áreas desmatadas, queimadase devastadas. A precisão estatística dada por instrumentos e técnicas de medição

avançadas não resolve as polêmicas, sobre veracidade dos procedimentos e as

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mensurações. Não existe a certeza. O que se recomenda é a prudência diante aslimitações para retratar as ocorrências do desmatamento, das queimadas e docálculo de terras griladas. Os artigos indicam, por extenso, de forma inconfundível

quem é o sujeito da ação ambiental, também identica seu discurso e o senso desuas práticas.

As analises destes temas são expostas para públicos diversos, reiteradas eminúmeros eventos em que o jornalista é convidado e declara coerente, seu lugarde fala. As observações sobre os empreendimentos instalados nos últimos 40 anos

são densamente descritas e os públicos, nos diferentes auditórios, são convidadosa tomar “consciência dos lugares” da destruição - Trombetas, Carajás, Barcarena.Este posicionamento é construtor de sentido sobre a realidade. Nessas páginas, aarticulação do discurso crítico informa, cuidadosamente sobre os procedimentos da

 pesquisa e a partir deste conhecimento, o jornalista procede a mapear os sentidos.Isto, ao mesmo tempo em que, insiste em provocar a reexão, o posicionamento doouvinte, do leitor.

O jornalista problematiza e constrói questões sobre a visão colonialista queimpera sobre Amazônia por parte do Estado e das elites. Assim, assinala uma dessasrepresentações: “A ‘terra sem homens’ da denição ocial colonialista, que data daconstrução da Transamazônica, a partir de 1970, o ano zero da ‘nova Amazônia’”,e a sequência de avançadas que produzem a exploração irracional e destruição daoresta amazônica. É o tempo da destruição que está acelerado.

O debate sobre o desmatamento inicia com o artigo “Vai a Floresta, vem oDeserto”, escrito em 1971 no qual indica uma linha de trabalho com dimensãohistórica no tratamento das fontes e a denição dos pressupostos que orientam acoleta de dados, a problemática conceitual construída orientadora da análise. Váriosartigos tem a forma de reportagem etnográca, de entrevista em profundidade dediversos agentes sociais para obter dados precisos que são construídos com base emleituras da Economia, da Sociologia, da Política e, sobretudo, um diálogo abertocom intelectuais, grupos de decisão do mundo acadêmico, de setores políticos.

Esse diálogo uiu com graus de diculdades e Lúcio Flávio Pinto assinala: “Fuie continuo a ser convidado para essas reuniões, nas quais, frequentemente, sou oúnico leigo. E ainda por cima, um jornalista, expressão que muitos acadêmicosdizem com um virar de ombros, sem reprimir essa atitude de desdém por um ofícioque consideram menor, marcado pela imprecisão, esta avivada pelo preconceitoacadêmico”.

O desmatamento é, ao mesmo tempo, fato e dado inserido na luta de informaçõese de classicações. Pinto enfatiza o caráter desproporcional dos avanços da perdada oresta. Em 1985, o Brasil foi o campeão mundial de desmatamento por causa

do avanço sobre a “fronteira” amazônica com sua média de derrubadas, entre 1,2 e

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2,5 milhões de hectares por ano, o que vinha preocupando o mundo. O Relatóriode Competitividade Global 2012 -2013 elaborado pelo Fórum Econômico Mundialdestaca a nova colocação do Brasil, de 58ª para 53ª. Por outro lado, reconhecia

a posição do Brasil em termos de “competitividade sustentável, consideradorelativamente bom, entretanto não são descartadas preocupações ambientaisreferentes, por exemplo, aos desmatamentos na Amazônia, já que Brasil temregistrado os maiores índices de desmatamento do mundo”1.

A luta de informações no relativo ao desmatamento move vozes que rapidamente

constroem consensos e acordos com base em interesses convergentes e, consoanteselaboram dispositivos para evitar os obstáculos ao avanço dos cultivos de sojae da pecuária para exportação, à expansão dos biocombustíveis, à exploraçãomadeireira ou ainda à instalação de obras de infraestrutura. A representação políticano Congresso Nacional2  articula-se para aprovação de leis, decretos, políticasde crédito que favorece amplamente o agronegócio, a exploração madeireiraclandestina, a mineração irregular, o que sustenta novos processos de desmatamentoe devastação. As campanhas de negação e exibilização de direitos territoriais dos povos e comunidades territoriais constituem mecanismos para garantir a expansãodo agronegócio, controlar os pontos negativos do desmatamento na economiaglobal, ainda, cumprir as metas da politica ambiental.

O desmatamento é, na argumentação política de Lúcio Flávio Pinto, um processo vivido tensamente pela pesquisa, por um posicionamento que desenvolveao longo de sua prática prossional quando parte para as experiências de observar,entrevistar, investigar em diversas instituições de planejamento, de pesquisa, ler eatualizar as controvérsias nos diferentes problemas e campos entre as ciências da

natureza e as ciências sociais. Notadamente, realiza observação detalhada sobre adestruição seletiva, pois, continua a procura de madeiras de lei nas partes mais ricasda região, nas terras rmes, também ali se destroem as cabeceiras dos rios, igarapés emananciais, o efeito é a alteração do equilíbrio ecológico. Entre os vários cientistasconsultados para estudar a ruptura do equilíbrio da oresta amazônica cita HaroldSioli, Rocha Penteado, Lúcio de Castro Soares, José Candido Mello de Carvalho,Jean Dubois e no diálogo com estes intelectuais debate hipóteses e observações in

loco. Na década de 70 e 80 acumula registros na Zona Bragantina, Paragominas,

1 FERNANDES, Ketllyn. Brasil é o único do Brics a avançar no ranking mundial de competitividade.http://www.jornalopcao.com.br/posts/ultimas-noticias/brasil-e-o-unico-do-brics-a-avancar-no-ranking-mundial-de-competitividade. Data 05.09.2012. Consulta em 20 de maio de 2014.

2 No Projeto Mapeamento Social como instrumento de gestão territorial contra o desmatamento e a

devastação: processo de capacitação de povos e comunidades tradicionais (UEA/INCS/BNDES/FUNDOAMAZONIA) estão sendo feitos levantamentos sistemáticos nessa linha informativa e analítica.

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Tomé Açu e sul do Pará3 , com outras possibilidades de realizar pesquisas esteve noAcre, Rondônia, Mato Grosso - Norte/oeste e em varias oportunidades na regiãodo Xingu.

 No discurso do governo, das ONGs, das empresas e dos acadêmicos seconvencionou designar “Arco do Desmatamento”4, expressão debatida pelo jornalista,que retoma a questão desta gura geométrica alegorizada: “Ao invés do simples“arco”, como estava caracterizado, o desmatamento já forma um semicírculo, comespirais que avançam pelo eixo da Santarém-Cuiabá (que já ultrapassou o nível dasustentabilidade) e pelo rio Madeira, não por acaso eixos de exportação, seja paraa passagem de produtos oriundos do Centro-Oeste como para nucleação das novas

atividades no próprio território amazônico”.

 No artigo “Desao em Carajás: mudar o rumo do arco” revisa o modelo de “arcode desenvolvimento sustentável” apresentado pela CVRD como “instrumento deação pública, suprindo uma terrível lacuna do governo”. Com 38% de desmatamentoem sua extensão o “arco da destruição” seria objeto de uma “ferramenta-síntese, ozoneamento ecológico-econômico”, transformada em modelo de sustentabilidade.

3 O Estado do Pará acumula 136.127 Km2, a segunda maior área territorial desmatada em toda aAmazônia. Dados divulgados pela Folha de São Paulo, indicam que em 2013, o Pará liderava com 2.379 Km2em polígonos grandes acima de 1000 hectares desmatados, predominantemente em torno da BR 163 queindicaria a grilagem para especulação. O Estado de o Mato Grosso com 1.149 Km2 ocupa o segundo lugar.http://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2013/11/1371434-desmatamento-na-amazonia-sobe-28-em-2013.shtmlNa primeira unidade federal apresenta a maior extensão de áreas degradas pela exploração seletiva desua cobertura florestal. Essa continuidade com tendência crescente do desmatamento mobilizou noveorganizações não governamentais que lançaram, em Brasília, o “Pacto Nacional pela Valorização daFloresta e pelo Fim do Desmatamento na Amazônia”. Entre as ONGs estão: Instituto Socioambiental,Greenpeace, Instituto Centro de Vida, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, The NatureConservancy, Conservação Internacional, Amigos da Terra-Amazônia Brasileira, Imazon e WWF-Brasil, queestão provocando o compromisso entre diversos setores do governo e da sociedade brasileira para adotarmedidas urgentes para a preservação da floresta amazônica.O grupo propõe um pacto de governança ambiental e meta para o desmatamento zero, em 2015.  http://www2.uol.com.br/sciam/noticias/ongs_unidas_pelo_fim_do_desmatamento_da_amazonia.html

4 O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal apresenta o contextode cristalização deste termo, dentro do Grupo Permanente de Trabalho Interministerial para a redução dosÍndices de Desmatamento da Amazônia Legal. (Decreto de 3 de março de 2003). O INPE fez estimativasentre agosto de 2001 e agosto de 2012 do desmatamento de 25.500 km2 na Amazônia Legal, o querepresenta um aumento de 40% em relação ao período anterior. A região apresentava a maior parte dodesmatamento concentrado ao longo de um “Arco” que se estende entre o Sudeste do Maranhão, o nortedo Tocantins, Sul do Pará, Norte de Mato Grosso, Rondônia, Sul do Amazonas e Sudeste do Acre. Nela,o 70% do desmatamento na Amazônia Legal ocorriam em cerca de 50 municípios, nos Estados de MatoGrosso, Pará e Rondônia. Informando que a pecuária ocorria é responsável por cerca de 80% de toda aárea desmatada, acrescentando o efeito da expansão da soja. Conforme: PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA.Casa Civil. Grupo Permanente de Trabalho Interministerial para a redução dos Índices de desmatamento da

Amazônia Legal. Brasília, DF, março de 2004.

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Lúcio Flávio Pinto aponta que a iniciativa não é altruística. A empresa tinha fechado,em 2003, um novo negócio para a produção de ferro gusa e montagem do parqueque precisava dos recursos da oresta. Nesse ano, o governo lança o Plano de Ação

 para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal.O modelo “arco do desenvolvimento sustentável” institucionaliza-se no

Estado do Pará pelo Decreto No. 54 de 2011, portanto, atrasado sete anos emrelação às ações adotadas pelo governo federal. Paragominas é atualmente o

lócus do Programa Municípios Verdes que sugere formas de marketing  político,segundo o qual 93 municípios poderão aderir. Algumas dúvidas e criticas sobrea efetividade ou eciência desta política têm surgido. A migração das serrariastem sido constatada nos municípios vizinhos - São Domingos do Capim e maisdistante, em Portel, Arquipélago de Marajó. Ali, o empreendimento da CIKEL SA

e de Elmo Balbinot, no alto rio Pacajá, produzem tensões com os quilombolas deSão Sebastião de Cipoal, avançando sobre terras tradicionalmente ocupadas paraexploração intensiva da madeira, diferente dos propalados planos de manejo. Asquestões sociais são replicadas na nova situação social - ameaças aos territórios de

 povos e comunidades tradicionais, ocorrência de denúncias de trabalho escravo.

A compreensão crítica do pesquisador “acostumado a estar isolado emseus laboratórios e gabinetes, no lugar de criar as oportunidades de dar às suascompetências prossionais a dimensão de fato político” está na base do entendimentoda ciência enquanto reexão sobre a dimensão de fato político e as diculdadesdessa “guerra contra a destruição do que há de amazônico na região”. Os eventos

narrados de relacionamento jornalista e cientista estão marcados por críticas à visãoasséptica que negligencia tal dimensão, pois:

Bitolados por uma visão asséptica, especicista e setorial da ciência, muitoscientistas aprofundaram bastante o conhecimento parcial da oresta, mas poucotêm contribuído para uma visão global, para melhorar a interação do homemcom a mata ou para desviar o processo econômico da sua trilha irracional e anti-

social. Como a oresta vem abaixo com uma velocidade incrível, esses estudos – que, para terem o rigor exigido por Huber, demandariam muito tempo deobservação – acabam se transformando em mero registro museológico. Outros,mais ainda do que isso, tornam-se habeas corpus para a continuidade do saque.

O jornalismo produz informações datadas, identicadas, em outras palavrasexiste um sujeito da ação que possui uma identidade discursiva. Patrick Charaudeau5 

5 CHARAUDEAU, Patrick. “Identidade social e identidade discursiva, o fundamento da competência

comunicacional”, In: PIETROLUONGO, Márcia. (Org.) O trabalho da tradução. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2009, p. 309-326. 2009, consultada o 16 agosto 2014 no site de Patrick Charaudeau - Livres, articles,

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apresenta a questão nos termos da: “existência de um sujeito, o qual se constróiatravés de sua identidade discursiva, que, no entanto, nada seria sem uma identidadesocial a partir da qual se denir”. Esse sujeito também é identicado por ser sujeito

da ação. Almeida6

  (2008, capitulo II) entende que é necessário identicar quemé o sujeito da ação ambiental. De um lado, constata-se a monotonia do discursoracional sobre Amazônia e, de outro, a ação ambiental, como política de Estado,que incorpora reivindicações de movimentos sociais.

A política de Estado está menos concernida a identicar e se impor sobre osujeito do desmatamento, o mesmo pode ser dito em relação à grilagem de terras e,em outro campo, o do produtor de conhecimentos e informação. Outro é o discursodo pesquisador - jornalista que aponta o sujeito da ação ambiental e por isto pagaum alto preço pessoal.

 No artigo “O devastador alemão” escrito em 2013, Lúcio Flávio Pinto se refereà pessoa de Wolfgang Sauer, executivo da empresa Volkswagen, que chegou aoBrasil em 1961, idealizador e executor do projeto de criação e beneciamento degado em “uma área de quase 140 mil hectares no sul do Pará”. O projeto colocou60 mil cabeças de gado nos pastos. No ano 1976, a queimada realizada na fazendaVale do Rio Cristalino foi de 11 mil hectares, motivo para aplicação de multa peloIBDF, que entretanto, não foi aplicada. Sauer reaparece em 2012 como autor dolivro de memórias O homem Volkswagen – 50 anos do Brasil 7, oportunidade emque Lúcio Flávio Pinto retoma o tema em comentário à identidade discursiva dequem foi considerado e se auto identicou como um visionário, que pode ter sidotal no polo industrial paulista, mas na oresta amazônica, foi um devastador. Aaceleração do desmatamento no Pará e no Mato Grosso corresponde às áreas de plantação de soja. O maior plantador mundial da soja é o rei do desmatamento emMato Grosso. Os sujeitos da ação ambiental elaboram uma identidade discursiva,construída pelo sujeito falante para responder à questão do desmatamento. No livrode Sauer não menciona a multa recebida do IBDF. Nos discursos do Senador Blairo

Maggi (PR MT), membro da Comissão de Meio Ambiente, Fiscalização e Controleem entrevista dada ao jornalista Evandro Éboli, quando assumia essa Comissão,elaborou discurso elucidativo:

O senhor está preparado para enfrentar os integrantes de movimentos ambientais?

publications.URL: http://www.patrick-charaudeau.com/Identidade-social-e-identidade.html

6 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Antropologia dos Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro. Casa8 – Fundação Universidade do Amazonas, 2008.

7 SAUER, Wolfang. O homem Volkswagen – 50 anos no Brasil. São Paulo, Geração Editorial, 2012. 527páginas.

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Quando assumi o governo de Mato Grosso, o índice de desmatamento eracrescente. Quando me elegi, disseram que tinham colocado a raposa para

tomar conta do galinheiro. Mas, se pegarem os números de depois que eusaí, verão que houve redução de 90% no desmatamento. É possível aliar produção e preservação. Houve enfrentamento com os ambientalistas,que me deram o famoso prêmio “Motosserra de Ouro”, e acharamuns humoristas para fazer graça. Não z nada para merecer esse título.

O senhor não receia que essas investidas voltem com sua nomeação para

a Comissão de Meio Ambiente? Não. Minha história como empresário eagricultor é bem diferente da história que plantaram de minha atuação como

governador na área ambiental. Chamei os setores produtivos, reorganizei osetor e disse que a pressão estava muito grande. Haveria o risco de produzirmos

e, por barreiras ambientais, não vendermos para ninguém. Comecei a meentender com as ONGs. Procurei as ONGs fora do Brasil, em Washington,mostrei as intenções de meu governo. Houve resistência no início. O acordofoi feito, e avançamos muito. Teve período em que as ONGs começaram afrequentar o estado, a ir ao meu gabinete. Internamente, conversávamos muito bem. Mas, fora, era difícil. Tratavam-me como se trata uma amante: dentro decasa, é beijinho, beijinho. E, do lado de fora, ngiam que nem me conheciam.O Greenpeace e o WWF foram para dentro do governo, e criamos programade recuperação de oresta que virou até modelo para o Código Florestal. Nom, o Greenpeace me deu um bombom de cupuaçu, simbolizando nossoentendimento com a oresta.8 

A noção de desmatamento está submersa em nomeações arbitrarias. O INPE

e o governo criaram o termo “desorestamento” e explica o pesquisador AlbertoSetzer em entrevista dada a Lúcio Flávio Pinto que tal artifício permitia deixar defora o cerrado da Amazônia. Optava Setzer por se referir a desmatamento como à

destruição da vegetação amazônica de maneira geral. Por que o exercício frenético

de produzir novas nomeações, o que se coaduna com classicações e objetos daação legal? Atualmente, as capoeiras são alvo de destruição na justicativa deserem áreas antropozadas e aptas para o monocultivo de dendê, arroz e cana deaçúcar, assim revalorizadas pelo mercado de terras, mas cam de fora dos númerosda devastação. A reexão de Setzer – funcionário do INPE - insiste sobre o“razoável descontrole. Eu diria com a conivência das autoridades”. Novamente na

8 Blairo Maggi: ‘Os radicais nos querem pendurados em árvores’. Rei da soja vai comandar Meio Ambienteno Senado. POR EVANDRO ÉBOLI. 26/02/2013 22:30 / ATUALIZADO 27/02/2013 14:40.

http://oglobo.globo.com/brasil/blairo-maggi-os-radicais-nos-querem-pendurados-em-arvores-7684349

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guirlanda dos números do desmatamento, o pesquisador fez questão de mencionaro desgosto do INPE e do governo pelos seus trabalhos iniciais, pois “eles criavamuma imagem negativa do pais no exterior, e prejudicavam interesses econômicos

gigantescos”.Lúcio Flávio Pinto discorre em vários argumentos sobre o desmatamento como

uma economia “irracional” e destaca a necessidade de romper com o colossal

etnocentrismo que empareda os caminhos de acesso à Amazônia”. Desde uma

 perspectiva econômica, escreve: “O mais trágico, no entanto, é que o desmatamentosignica simplesmente a queima de oresta, sem qualquer relação com um processo produtivo em bases racionais”, portanto, associado verticalmente ao modelo dedesenvolvimento estão o desmatamento, a especulação, a grilagem, a ilegalidade ea violência. Os empreendimentos da soja, dendê, arroz irrigado, acácias, eucalipto,

de exploração do carvão e madeira na Amazônia têm um rastro de destruição derecursos e formas de existência de povos e comunidades tradicionais. Na contramão são produzidas as alegorias do “arco do desenvolvimento sustentável” que

aparenta ser uma luta de posição com os desenvolvimentistas de turno. Dessas

reexões marca o sociólogo o que observava visível no horizonte, o m da oresta.

As relações entre desmatamento e grilagem são da ordem das formas e

mecanismos de apropriação dos recursos naturais e da posição dos agentes sociais,econômicos e políticos envolvidos. O Plano de Ação para a Prevenção e controledo Desmatamento na Amazônia Legal (2004) destacava a força dessa relação:

Desmatamento e grilagem de terras públicas: Em muitos casos, o desmatamentorecente tem se relacionado a práticas de grilagem de terras públicas. Este

fenômeno reete uma série de fatores, como: i) a falta de supervisão adequadado Poder Público sobre cartórios de títulos e notas, que frequentementereconhecem transações fundiárias ilegítimas, ii) fragilidades nos processosdiscriminatórios e outras ações de averiguação da legitimidade de títulos, eiii) interesses políticos-eleitorais, tipicamente com apoio de funcionários deórgãos fundiários, em que ocupações por posseiros são incentivadas com

 promessas da concessão futura de lotes. Frequentemente, a grilagem de terrasse relaciona a outros atos ilícitos, como o porte ilegal de armas, trabalhoescravo e outras violações dos direitos trabalhistas, evasão de impostos,garimpagem ilegal de madeira, lavagem de dinheiro do narcotráco, etc.

6. O papel da indústria madeireira: A abertura de estradas clandestinas pormadeireiros em lugares isolados da Amazônia tem facilitado a entrada de

grileiros e posseiros, que praticam derrubadas para estabelecer a posse da terra.Em muitos casos, a exploração madeireira é realizada de forma intensiva sem práticas de manejo, gerando um expressivo aumento de biomassa seca que

torna a oresta altamente vulnerável à invasão do fogo, oriundo de pastagens

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e roçados em áreas vizinhas. Estima-se que a exploração madeireira não-sustentável chega até 90% de toda madeira extraída da oresta amazônica.

 Nesta observação dos agentes sociais envolvidos Lúcio Flávio Pinto relata oencontro com o senhor José de Ribamar de Souza, maranhense, de quem ouviuo “relato dos seus sofrimentos, em anos de migração compulsória, Amazôniaadentro”. O artigo tem o título “Os deserdados da terra: a fronteira como tragédia”.Em 1976, ocorreu em Xapuri, Acre o encontro de ambos, no último PIC - ProjetoIntegrado de Colonização, de tal forma que “se avançasse mais, passaria para olado da Bolívia, como muitos brasileiros já haviam feito e fariam ainda mais nosanos seguintes”. A narrativa continua: “Mal se instalava, porém, e alguma causade expulsão também se estabelecia. Na maioria das vezes, na forma de um jagunço

que chegava para lhe dizer que aquelas terras já tinham dono”. E quando ele “exigiua apresentação do papel que comprovasse a propriedade. O jagunço lhe mostravacomo resposta um ‘três oitão’ engatilhado”. A descrição é arguta sobre a violência,frequente das expulsões de terra praticadas pelos grileiros. O senhor Souza haviaconseguido terra em um lote e estava na iminência de vender a um fazendeiro.

Como outros trabalhou em uma área de terra com oresta derrubada.

O jornalista acompanhou em diferentes direções da Amazônia o desmatamentoe a grilagem. Neste livro lê-se uma frase insurgente: por que os ladrões de terras e de

madeiras são bem sucedidos? Eles contratam bons e espertos advogados, a justiça

tem sido imponente para bloquear lhes o caminho, a lei é omissa, a indiferença ea conivência dos magistrados. Aponta, em seguida, que “Os madeireiros realizamoutras manobras para consumar seus propósitos especulativos”.

O processo de expropriação apoiado na grilagem está enraizado na Amazônia.Diferente de uma ação sem sujeito, Lúcio Flávio Pinto observa, acompanha os casose indica explicitamente os nomes envolvidos na forma de uma cadeia intrincada ecomplexa, de dispositivos e chama atenção do Estado, pois a grilagem é no seuentendimento uma ação sem vigilância, processo e ação obnubilado, produzidaentre redes de reconhecidos e protegidos. Com essa segurança indica a denição

formalizada: “A apropriação ilegal de terras públicas, fenômeno a que se dá aqualicação de grilagem, é simples, embora de aparência complexa para os nãoiniciados nos seus meandros. Ainda mais porque lendas são criadas em torno da

artimanha dos espertos e passam a ser representadas como verdade”. Lúcio FlávioPinto dirá que a expressão grilagem é de origem romana caracteriza a terra usurpadaque serve à especulação imobiliária e à formação de latifúndios improdutivos...

torna-se pasto para grilos. Uma maneira de estigmatizar de forma popularizada o

roubo de terras públicas, que tantos danos causa à nação”.

Em 2002, foi realizada a CPI Federal sobre Grilagem e no mesmo ano

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divulgou-se o “Livro Branco da Grilagem de Terras9  no Brasil, pelo Ministériode Desenvolvimento Agrário. Segundo o relatório o Brasil” possui um total de

93.620.587 hectares griladas. No Pará são 422 imóveis que somam 20. 817.483

hectares.A grilagem possui uma série de denições, publicações, instrumentos de

contagem. O estudo “A Grilagem de Terras Publicas na Amazônia Brasileira”

(IPAM, 2006, p. 11, 12)10  dene como sendo: “A apropriação privada irregular ouilegal de terras públicas”, detendo-se na discussão sobre o caráter “irregular” ou“ilegal” que estrutura os mecanismos de apropriação privada dos bens públicos e a

violência agrária e ambiental”11 .

Em diversas oportunidades a decisão foi o cancelamento do cadastro das

 propriedades. A Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a Grilagem no

Brasil deslocou-se de Brasília a Belém em junho de 2000 e, segundo Lúcio FlávioPinto ocorreram ações quase simultâneas: a) a frente que investia ilicitamente sobreo patrimônio fundiário brasileiro estava muito ativa e agora lançava-se no crescente

mercado de uso da terra para ns ecológicos; b) o relatório ocial dos trabalhos daCPI não foi aceita por parte dos seus integrantes que decidiram apresentar outro.

c) O presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou que estava cancelando 45112 

imóveis rurais irregularmente constituídos e anunciou novas medidas de repressão àgrilagem. d) a fazenda da Incenxil - e a operação de grilagem realizada por CecílioRego de Almeida e Roberto Beltrão de Almeida continuava intocada, pois o imóvel jamais foi cadastrado junto ao INCRA; e) no governo seguinte foi editada a PortariaConjunta INCRA/MDA no 10, de 1° de dezembro de 2004 determinando que os proprietários com mais de 400 hectares de terra, na Amazônia Legal tinham até odia 30 de janeiro de 2005 para o recadastramento do imóvel com os documentos provatórios da posse da terra. Até 31 de marco, cou estabelecido o prazo para osque tinham área de 100 até 400 hectares. O grupo com área inferior a 100 hectares

estava livre desta norma13.

De acordo com essas anotações existem dispositivos legais para “combater a

9 INCRA. Livro branco da grilagem de terras no Brasil, Brasília, Ministério de Política Fundiária e doDesenvolvimento Agrário, 1999,

10 IPAM. Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. A grilagem de Terras Públicas na AmazôniaBrasileira. Série Estudos 8. Brasília, 2006.

11 Essa definição também inspirada no Livro Branco da Grilagem que estabelece: “toda ação ilegal queobjetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de terceiros constitui uma grilagem ou grilo”.

12 Existe discrepância de informações entre os dados de Lúcio Flávio Pinto e o estudo realizado pelo IPAM,que informa que o MDA, por meio do INCRA confirmou o cancelamento do cadastro de 1.899 grandespropriedades rurais com área equivalente a 62,7 milhões de hectares.

13 Outras medidas foram a institucionalização do DETER – Detecção do Desmatamento em Tempo Real

na Amazônia, pelo INPE, do SIAD, – Sistema Integrado de Alerta do Desmatamento, gerido pelo Sistema deProteção da Amazônia – SIPAM.

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grilagem”, conforme atesta a visão ocial. O IPAM em suas recomendações eformulação de critérios para regularização fundiária em terras públicas, de ocupaçõescom até 500 hectares retoma a questão da utilização da ação discriminatória;

igualmente menciona critérios para utilização da Ação Discriminatória no Processode Regularização Fundiário, justicando que esse instrumento jurídico pode ajudarna resolução dos conitos fundiários e agilizar o processo de regularização. É aAção Discriminatória prevista na Lei n° 6.383, de 07 de dezembro de 1976.

 Na esteira de acelerar a regularização de ocupações informais em terras públicas

federais na Amazônia Legal foi primeiro promulgada a Lei 11.952/2009 e emseguida o Programa Terra Legal para implementar essa lei e beneciar até 300 mil posseiros. O objetivo inicial do programa era emitir títulos de terra em até 60 dias por meio de cinco fases principais: cadastramento de posses, georreferenciamento,

vistoria, titulação e monitoramento pós-titulação. As críticas ao Programa por partedo MPF relaciona-se à prioridade das titulações de terras indígenas e territóriosquilombolas, além da crítica à dispensa de vistoria de áreas inferiores a 4 módulosscais. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) à Lei 11.952/20091 dependeainda de julgamento.

A questão que se distingue neste livro é como o Estado está estruturado para

 produzir a proteção do sujeito da ação de grilagem. Lúcio Flávio Pinto descreve ocaso da Fazenda Incenxil (inicialmente matriculada como terras da Fazenda Curuá).De acordo com os Procuradores a operação fraudulenta teve três etapas: a primeira

de “falsidade ideológica” praticada em 1984, no Cartório Moreira de Altamira, asegunda “outra falsidade da mesma natureza e no mesmo cartório, que data de1993, “que ultimou a grilagem” e a terceira “em negócio que encerrou a falsidadeideológica” ocorrido em 1995. Não havia novidade nos “cartórios como centraisda grilagem” que nesta operação facilitou superpor 2,7 milhões de hectares doEstado do Pará, 2,5 milhões de hectares do INCRA, 2,7 milhões do Estado Maiordas Forças Armadas (EMFA) e 200 mil hectares da Fundação Nacional do Índio.Aponta igualmente que realizaram um dos maiores roubos de madeira no Pará

(7.200 toras de mogno, com 18 metros cúbicos de madeira).

O “Processo” de grilagem arquitetado se desenrola grotescamente em 1996quando o Juiz a pedido do ITERPA mandou a escrivã do Cartório de Altamiraaverbar uma advertência à margem do registro imobiliário da fazenda Curuá. A

nova ação, de um desembargador suspende em 1999 a decisão do juiz. No totalestão citados pelo autor deste livro 19 autoridades do judiciário estadual, mais4 procuradores e uma lista de advogados, os mais caros do Estado do Pará e deBrasília e a dona do Cartório. Lúcio Flávio Pinto escreve sobre o caso de grilagemde Cecílio Rego de Almeida, que urdiu uma trama contra o jornalista.

O “Processo” tem outra questão particular. Lúcio Flávio Pinto foi denunciado

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 pelo desembargador João Alberto Castelo Branco de Paiva com base na Lei deImprensa (5.260 de 1967) e condenado. Ainda, o desembargador entrou com umaação ordinária de indenização por danos morais perante o foro cível, por ofensa.

Como produzir a leitura da ação do Estado para a Amazônia? Parece queo ponto de partida é compreender a intrincada rede de sentidos da ação, os atosda burocracia, dos agentes, das tramas de poder, dos dispositivos e os atos deresistência, de um jornalista, de povos e comunidades tradicionais.

A detida leitura (e também demorada) relevada neste Prefácio quer nalmenteagradecer amistosamente ao Lúcio por ter autorizado a publicação, igualmentedizer da alegria compartilhada de ter aceito o convite para reunir artigos sobre o

tema Amazônia: desmatamento e grilagem, por colaborar, no ano 2012, no “ProjetoMapeamento Social como instrumento de Gestão Territorial contra o desmatamentoe a devastação: processos da capacitação de Povos e Comunidades Tradicionais”.

 Nessa condição ele esteve presente em eventos em Manaus e Belém. O atode assistir a suas conferências e trocar informações com o jornalista destaca-se pela atualidade e análise crítica da contemporaneidade da Amazônia sob diversos planos. Um deles ajuda a compreender e compartilhar de sua postura dinâmica ede resistência aos desmatamentos e à destruição da Amazônia. A partir de suas

observações e capacidade de pensar relacionalmente se estabelece um diferencial

de conteúdos, e desta forma, tal conhecimento circunstanciado e rigoroso sobre

a Amazônia para os participantes dos movimentos sociais e pesquisadores doProjeto Nova Cartograa Social da Amazônia (PNCSA) consegue ser revelador dedinâmicas politicas e econômicas amplas.

 Rosa Elizabeth Acevedo Marin.

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DUAS PALAVRAS

Meus livros sempre tiveram a marca da urgência e da agonia. Este não fogeà regra. Nunca consegui que minha parte de sociólogo prevalecesse sobre a de

 jornalista. O trabalho mais bem acabado, a pesquisa nalmente arrematada, aobservação levada às suas últimas consequências, todos esses momentos foramatropelados pela dinâmica do cotidiano. O trabalho com arte nal foi cando paradepois porque era preciso fazer o registro do acontecimento marcante ou mesmo

insólito, sob pena de a página car em branco e a memória ser desfalcada.

Refazendo uma trajetória de 47 anos como prossional da informação descubromomentos em que meu esforço de captar os fatos tiveram signicação. Ela advém dacircunstância, que sempre me causa perplexidade, de que fui o único a me aventurar por esses domínios. A singularidade se manteve mesmo quando o tempo se escoou.Parece que ninguém se animou a seguir o exemplo. Meu registro permaneceucomo o único daquele acontecimento enfocado, como foi o caso do desmatamentode 1987. Esse foi o ano recorde da destruição de orestas na Amazônia, mas asséries estatísticas e analíticas passaram a ignorá-lo. Todos os estudos remontam a1988, evitando o tema incômodo e desaador. Volto a ele antes que me invada ainsinuação de que escrevi sobre cção, fantasia.

A sensação do absurdo é comum quando se trata de Amazônia. Por que a região

é tão maltratada? Por que seus atores desempenham papeis tão irracionais? Por queessa falta generalizada de sensibilidade? Os problemas são antigos, assim como asua percepção, conforme mostro no texto de abertura deste livro, que é de 1971.Passados mais de 40 anos, parece que estamos condenados à quadratura do círculo.

Mais uma vez, tento rompê-lo. E deixo um convite aos que desejarem fazer essa

mesma opção, em favor da melhor história e do melhor destino.

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das árvores. Sem ela, os solos cam automaticamente sujeitos à laterização, lixiviaçãoe rápida degradação. Isso faz com que a areia, que ca normalmente sob o solo graçasao húmus produzido pelas folhas caídas ao chão, irrompa desenfreadamente e ocupe o

lugar das árvores. Em cinco anos a erosão se torna célere.O uso dos métodos tradicionais de agricultura na região (desmatamento, queima e

 plantio) deixa em três ou quatro anos o solo improdutivo, a fauna e a ora dizimadas, oequilíbrio ecológico rompido. Inicia-se então a fase das “capoeiras”, cujo crescimentonatural pode durar vários anos, dependendo das espécies vegetais, até atingir – caricataem relação à anterior – de oresta secundária.

José Cândido de Mello Carvalho, ex-diretor do Museu Emílio Goeldi. Calcula que pelo menos 70% da fauna local não apareça mais nas capoeiras. Embora persistamorestas próximas, um repovoamento só se fará se elas forem de considerável extensão.

 Nessas áreas os animais são facilmente caçados ou não encontram condições para

manterem o ciclo biológico durante todo o ano.

Também a exploração da madeira, segundo os métodos tradicionais empregados pelas pequenas, médias e mesmo grandes serrarias, é tão destrutiva quanto as queimas porque não há replantio. Os madeireiros deixam à própria oresta a tarefa de replantar. Na maioria das vezes isso não acontece porque as frondes das árvores, espessas elargas, não permitem a passagem de luz em quantidade suciente para favorecer odesenvolvimento das mudas ou de árvores mais novas. Os técnicos Dammis e MirandaBastos constataram que as espécies arbóreas extraídas de qualquer trecho de mata nãoreaparecem senão em proporções desprezíveis.

Os cientistas que nos últimos 30 anos zeram pesquisas na Amazônia descobriram,assim, que a oresta, ao contrário de ter uma vida própria, autônoma, têm funções paralelas importantíssimas. São a proteção mais ecaz contra a evaporação rápida e odessecamento do solo. Constataram ainda que, desnudo, o solo tem sua camada superior

 – que contém húmus – rapidamente eliminada pela erosão, chegando a um índiceassustador: as terras revestidas de orestas perdem dois quilos de solo por hectare (umaárea de 100 por 100 metros) anualmente, devido à ação da erosão, enquanto os solosdesnudos perdem, no mesmo período e na mesma área, 34 toneladas. Para formar outravez de dois a três centímetros de solo fértil, a natureza precisaria de um período derepouso superior a 300 anos.

Esse desnudamento do solo aumenta, em proporções gradativamente maiores, asfrações de areia no solo. Assim, a água da chuva desaparecerá do solo por três fatores:drenagem imediata na superfície, ltração da água da superfície para subterrâneos eevaporação. As plantas adaptadas ao clima da oresta pluvial equatorial cam sem aágua, que antes permanecia congestionada sob o solo e se alimentavam.

Dessa maneira, forma-se uma reação em cadeia no microclima, que, persistindo pormais tempo, termina por atingir o macroclima. Ampliando-se essa destruição, poderiaatingir não apenas o macroclima da Amazônia ou do Brasil, mas também o do mundointeiro. Podia provocar uma elevação geral na temperatura a níveis insuportáveis em

algumas áreas.

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Ao fazer pesquisas limnológicas na área da Estada de Ferro de Bragança, no Pará,em 1960, Harold Sioli, diretor do Departamento de Estudos Tropicais do Instituto MaxPlanck, da Alemanha, descobriu que o desorestamento de toda a grande área (com

quase 1,2 milhão de hectares de extensão) trouxe consigo uma alteração se não domacro, ao menos do microclima: “as chuvas se tornaram mais regulares e, às vezes, períodos mais compridos de secas parece que se estabeleceram”.

Um habitante da cidade de Tomé-Açu revelou ao assustado Sioli que vários igarapés

secaram e nunca mais tiveram água: todas as manhãs, ao acordarem, os moradoresda cidade notavam uma evaporação de aproximadamente 30 centímetros de água nointerior do poço até ele praticamente secar.

Procurando uma causa para a “seca” relatada pelos habitantes dessa área, Siolichegou à conclusão de que precisamente entre os anos de 1950 e 1951 se completou odesorestamento da Zona Bragantina. Sessenta anos antes a região era extremamenterica e alimentava sozinha toda a população de Belém. “A transposição de métodos

da agricultura do Nordeste, sem adaptação às condições do solo, destruiu o potencialagrícola da região”, diria, um pouco depois, o geógrafo Antonio da Rocha Penteado.

Seis anos depois da pesquisa de Sioli, o engenheiro-agrônomo Jean Dubois realizou pesquisa semelhante às proximidades de Paragominas, também no Pará, onde se iniciavaem larga escala uma pecuária do tipo sulista. Dubois constatou que os colonizadores,empregando a técnica de desmatamento tradicional, já haviam destruído uma faixa deterras que atingia três quilômetros de largura em ambas as margens da rodovia Belém-

Brasília.

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A GRANDE DECISÃO

 

Quando a Amazônia não fazia parte dos grandes planos do governo, a destruiçãofoi localizada e de pequenas dimensões ao longo de séculos. A decisão de promover a

ocupação em larga escala iria multiplicar por várias vezes a escala dessa destruição.

“A opção existe”, diz Alfonso Wisniewsky, ex-diretor do Ipean. “ou a oresta permanece como está, produzindo os benefícios que lhe são inerentes, mas sem promover o desenvolvimento, ou terá que ser explorada, ainda que se sacrique algumacoisa do seu habitat natural”.

Se para Wisniewsky o prejuízo da colonização que o governo pretende fomentaré, pelo menos em tese, correto, para outros técnicos há algumas coisas que já estãosendo feitas incorretamente. Uma delas é a ocupação do sul do Pará pela pastagem.

Está havendo aí apenas uma ocupação e não um processo racional – diz um engenheiroorestal de um órgão federal. São áreas ricas em orestas que estão sendo desmatadas.São implantadas fazendas sobre solos frágeis, que não têm condições de resistir ao

 pisoteio do gado e podem se degenerar em áreas pouco férteis.

Esse técnico acha que para evitar a repetição das experiências malsucedidas do

 passado, deve ser feito um zoneamento ecológico e pedológico para delimitar as áreasaptas para o reorestamento, para a agricultura e para a pecuária. Regiões onde os solosseriam destinados à agricultura. As orestas econômicas podiam ser desenvolvidas emsolos mais pobres. A pecuária caria restrita às regiões de campo e cerrado, estimadasem 925 mil quilômetros quadrados. Algumas áreas especícas (mananciais, terrenos emdeclive, etc.) não seriam tocadas.

Wisniewsky considera que a localização de fazendas no sul do Pará já é umadistorção ecológica: A região é para o plantio de orestas, nunca para o gado. Mas nãoé só nessa área que há distorção.

Outro exemplo que aponta é o projeto de colonização ocial. A colonizaçãoda região deve ser, sobretudo, orestal. Embora seja uma novidade em matéria decolonização, não é uma novidade em agricultura, porque o solo amazônico é próprio

 para o plantio de árvores.

Além de recomendável em função das condições ecológicas da Amazônia, acolonização orestal seria ideal do ponto de vista econômico. A Sudam elaborouum estudo, pouco divulgado, no qual mostra que os projetos orestais são os maisrentáveis para a Amazônia. Comparando custos e receitas, o estudo revela que os

 projetos agropecuários têm uma porcentagem de lucro de 18%, os agrícolas de 28% eos orestais de 55,4%.

Apesar disso, o número de projetos orestais aprovados pela Sudam é insignicante

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(33 até 1970), contra mais de 300 agropecuários. Estes, ocupam uma área de

aproximadamente 8 milhões de hectares, devendo destruir quase a metade nos próximos10 anos para formar pastagens. A dúvida que surge: apesar da rotação que é feita nessas

 pastagens, o solo é ou não resistente a ela? Se não for, a agressão ecológica irá provocara degradação de quase 400 mil quilômetros quadrados em uma década.

Isso poderá ocorrer apesar de a Sudam exigir que metade da área seja mantidacomo reserva orestal e scalizar, por enquanto muito precariamente, o cumprimentoda obrigação. Mas há um fator básico que pode tornar nulo esse cuidado: o solo da áreaé frágil e, sem a mata, todos os desequilíbrios ecológicos já surgidos em outras partesda Amazônia, como a Zona Bragantina e Paragominas, ambas no Pará, poderão levá-loao empobrecimento e à exaustão.

Reunindo-se todos os trabalhos já produzidos pelas nove instituições de pesquisa pura ou aplicada da Amazônia, seria possível formular um plano ao mesmo tempo

racional e econômico para a Amazônia. Mas, como diz Wisniewsky, “eu nunca vi nóstodos reunidos para discutir um plano”.

Essas instituições vivem o drama de terem seus programas de pesquisas limitados

 pelas verbas, como é o caso do Ipean: “nós acomodamos nossas pesquisas ao dinheiroque nos dão para fazê-las; assim, só as desenvolvemos até onde dá o dinheiro”, lamentaum técnico federal. Ou o caso do famoso Museu Emílio Goeldi, sem pessoal técnico ouinstrumentos de pesquisa até para estudar suas próprias coleções, que se acumulam em

 prédios velhos e apertados, agora em fase de modernização.O Ipean, em mais de 30 anos de existência, tem se dedicado quase que exclusivamente

a pesquisa aplicada, procurando indicar as potencialidades econômicas das diversasculturas amazônicas, mas sem fazer intensivamente estudos ecológicos. Essa função podia ser preenchida pelo Goeldi, dedicado a pesquisas puras, mas o museu se ressenteda falta de dinamismo.

Fica assim um conhecimento fragmentário sobre a situação ecológica da Amazônia,que até provocou uma demanda do então diretor do Departamento de Planejamentoda Sudam, durante o II Fórum da Amazônia, realizado no Rio de Janeiro: “Nãocompletamos o mapeamento geológico da região, não dispomos do seu inventárioorestal, não sabemos como aproveitar rapidamente as suas terras para uma agriculturade alto rendimento”.

Se sabe-se tão pouco sobre o que é possível retirar da oresta mantendo sua integridadeecológica, sabe-se mais sobre o que retirar dela com rendimento econômico, crescecada vez mais a ameaça de extinção de recursos que ela pode fornecer. A conservaçãoda natureza não é considerada prioridade. A delegacia do IBDF e a superintendência da

Sudam não dispõem de quadro técnico para realizar essa tarefa.

O IBDF mal consegue saber das devastações mais signicativas nas áreas mais próximas a Belém. A Sudam age como um órgão de fomento, não como agente de preservação da natureza. Só agora a questão ecológica está se inltrando pelos órgãosociais. O 1º Plano Quinquenal de Desenvolvimento da Sudam para 1967-71 nem se

refere a problemas ecológicos, como se sua jurisdição não fosse sobre a maior oresta

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tropical e a maior bacia hidrográca do planeta.Preocupados com a falta de um planejamento cientíco para a ocupação da

Amazônia, os cientistas formulam individualmente suas ideias. Desolado, Alfonso

Wisniewsky acha que a ciência está perdendo a melhor oportunidade de estudar anatureza em um momento de transformação: “daqui a pouco, quando algumas partes daoresta desaparecerem, nós caremos sem nada sabermos delas, como nada sabemos daoresta atlântica. É uma perda irreparável”. Sem dúvida. (1971)

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VOLKSWAGEN FAZ NA AMAZÔNIA

O MAIOR INCÊNDIO DA TERRA

A Amazônia resulta de uma combinação rara e maravilhosa de luz, água e oresta.O centro desse organismo harmônico, que nos encanta e fascina por sua unidade nadiversidade, graças a essa tríade máxima da natureza, é a oresta. Mesmo sem uma

formação técnica ou acadêmica a respeito, quem consegue certa intimidade com aregião chega inevitavelmente a essa constatação.

Pode ser ao andar pelo meio da mata, ouvindo seus sons, seus silêncios, percebendoa relação da copa com o chão colmatado, acompanhando a movimentação da fauna.Pode ser também através do trauma do incêndio, quando o homem o desencadeia (e,mais recentemente, pela combustão natural, que a antropia inocula na natureza). Podeser ainda, depois desse aprendizado in situ, nas cidades, ao detectar o desperdício demadeira. Uma prancha serve de tapume precário para uma obra levantada com elementos

que demandaram muito menos energia, menos tempo, menos natureza. E depois é

 jogada fora, inservível, sem valor. Quantos animais essa árvore de lenho branco não podia continuar a abrigar? Quanta água não lançaria à atmosfera? Quantos nutrientesnão depositaria no solo? Quantos processos biológicos não ajudaria a compor?

Sou um homem da Amazônia. Logo, sou um produto da oresta. Como a orestaestá desaparecendo, meu habitat se reduz a cada ano, evolando-se em fumaça tóxica, eminha razão de ser se corrói, aderna, vira tumba. Ao defender a oresta, defendo minhavida e a dos que vieram ao mundo no ambiente que nos dá sentido e valor. Por isso, meu

 jornalismo ocupa um lugar muito próprio. Meu nicho me chega quase por gravidade, por derivação da ausência alheia. Não preciso concorrer, nem é necessário que eu me

 preocupe em chegar primeiro. Meu lugar me espera. Não por eu ser um predestinado: é porque outros não querem ocupar esse lugar. A

grande imprensa, por exemplo. Ou meus colegas que deixaram de seguir a rota naturala ser trilhada por quem quer realmente conhecer a Amazônia – e defendê-la dos seus

 predadores, aqueles que arrancam suas enormes e frágeis árvores para transformá-lasem tapumes da construção civil, subproduto do lixo do labor humano.

A seguir, reproduzo parte do texto inicial publicado na edição 21 do JornalPessoal, da 1ª quinzena de julho de 1988, porque ela exemplica essas considerações.O JP foi o único que deu a essa assustadora informação o signicado que ela tem:

em 1987 foram desmatados 80 mil quilômetros quadrados de oresta nativa em

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apenas três Estados amazônicos, quatro vezes mais destruição do que a média dessaque foi a década do fogo.

O dado foi contestado. Nunca foi aceito pacicamente pela comunidade aca-

dêmica, até hoje. Mas pelo menos um dos cientistas que o produziu sustenta a va-

lidade da informação. A dúvida persiste. Mas é dúvida tão grave que devia ter sidocompromisso de honra da ciência não deixar que ela perdurasse. Mas ela perdura.

Desde então, meu jornal parece ser o único a não perder a memória desse nú-

mero terrível, marco da destruição de que a Amazônia é vítima, a pretexto de serocupada, desenvolvida. Sempre que posso, reavivo a lembrança e cobro respostas.Como z, assim que a informação saiu dos laboratórios do Inpe, em São Paulo,

durante um encontro cientíco realizado no Rio de Janeiro.Fui e continuo a ser convidado para essas reuniões, nas quais, freqüentemente,

sou o único leigo. E ainda por cima, um jornalista, expressão que muitos acadêmi-cos dizem com um virar de ombros, sem reprimir essa atitude de desdém por umofício que consideram menor, marcado pela imprecisão, esta avivada pelo precon-

ceito acadêmico.

Participar de atividades cientícas, de distintas origens e diversas nalidades,tem sido fonte de conhecimento precioso para mim e também uma ocasião para tes-

tar o que sei junto aos que devem, por sua função, saber sempre mais. Mas tambémuma oportunidade para fazer ecoar a voz de um amazônida, lho das orestas, queresiste à sua destruição, ainda que morra com elas.

Foi com espanto que os cientistas da Nasa, a agência espacial dos Estados Uni-dos, viram a imagem transmitida pelo satélite NOAA-9 naquele dia, no início desetembro do ano passado. Ao longo das principais estradas que cortam o sul do

Pará, o norte e o oeste de Mato Grosso e quase todo o Estado de Rondônia, a orestaestava incendiada. Eram 6.800 pontos de fogo naquele dia.

Desde 1976, quando outro satélite norte-americano, o Skylab, “fotografou” umincêndio de 11 mil hectares, praticado em sua fazenda, a Vale do Rio Cristalino, (jávendida), no município de Santana do Araguaia, no sul do Pará, os monitoradoresdos satélites da Nasa se acostumaram a acompanhar as queimadas amazônicas. Masnada se podia comparar ao que aconteceu em 1987.

Até 1978 todo o desmatamento praticado no Pará, desde as primeiras derru-

 badas dos seus mais remotos habitantes, alcançara 1,5% dos seus 1,2 milhões dequilômetros quadrados. Em 1986 a devastação já se espalhava por 15% do território paraense. Depois de precisar de milênios para por abaixo 18 mil km2 de oresta, o

homem destruiu, em apenas oito anos, uma área 10 vezes maior, ou 180 mil km2

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de cobertura vegetal, o equivalente a cinco vezes o tamanho da Bélgica e a metadeda Finlândia, que é um país com atividade orestal muito maior. Os desmatamentosmais do que dobrarem a cada ano.

A atividade humana alterou, no ano passado, 205 mil quilômetros de coberturavegetal, área quase igual à da Guiana, ex-colônia inglesa. Só Rondônia destruiu praticamente 20% das suas matas numa única safra de fogo. Foi algo despropor -cional: o Brasil, campeão mundial de desmatamento por causa do avanço sobre a“fronteira” amazônica, vinha preocupando o mundo com sua média de derrubadas,entre 1,2 e 2,5 milhões de hectares por ano. Em toda a faixa tropical do planeta,onde ainda se abrigam as maiores reservas orestais, essa faixa tem variado entre8,5 milhões e 11,5 milhões de hectares anuais. Subitamente, só os três Estadosamazônicos “fotografados” pelo NOAA-9, entre maio e outubro, desmataram 20,5milhões de hectares, recorde sem paralelo na história humana.

Os incêndios provocados na Amazônia zeram subir para a atmosfera 500 mi-lhões de toneladas de compostos de carbono, 100 mil vezes mais fumaça e gases doque o que o vulcão “El Chinchón” liberou no México, em abril de 1982. Os cien-

tistas já comprovaram que as erupções do “El Chinchón” alteraram a composiçãoquímica da atmosfera e do clima da Terra. Falta vericar cienticamente a extensãodas repercussões das queimadas de oresta sobre a camada de ozônio que protegea Terra da radiação ultravioleta do sol. Que há interferência, ninguém mais duvida.

O impacto dos números – Quando alguns dos participantes do seminário inter-

nacional sobre manejo das orestas tropicais, promovido no Rio de Janeiro, na úl -

tima semana de abril, pela Fundação SOS Mata Atlântica e o World Wildlife Fund,se referiram a esses números, cientistas estrangeiros relutaram em acreditar. Aindadesconados, só começaram a baixar as resistências ao saberem que o IBDF (Ins-

tituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal – hoje Ibama) referendavam os da-

dos, produzidos pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de São Josédos Campos, São Paulo, com base nas imagens do satélite NOAA-9.

Procura-se atenuar o impacto da revelação com uma relativização: dos 20 mi-lhões de hectares atingidos por desmatamentos, 12 milhões de hectares seriam áreasde mata na, cerrados, capoeiras ou mesmo pastos degradados, “Somente” oito mi-lhões de hectares constituiriam orestas densas nativas. Mesmo aceitando-se essatemerária atenuação, é impossível minimizar o signicado da destruição: com 100metros cúbicos de madeira por cada hectare, em avaliação conservadora, seriam800 milhões de metros cúbicos de madeira. Numa cotação quase simbólica, de 30dólares por metro cúbico (as espécies mais valorizadas estão acima de US$ 300),signicaria rendimento potencial de 2,4 bilhões de dólares, mais de 10 vezes o que

o Brasil faturou com as exportações de madeira no ano passado.

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Este cálculo simplório pode parecer – e é – arbitrário, mas é igualmente ob-

tuso. Um metro cúbico de oresta tropical contém mais energia do que um barrilde petróleo. A diferença está em que 80% desse potencial energético são simples-

mente destruídos, pelo fogo ou pelo desperdício. Segundo os cálculos dos técnicosque atuam na indústria madeireira, para cada metro cúbico que chega ao pátio dasserrarias, sete metros cúbicos cam apodrecendo na mata ou se perdem pelo cami-nho até o local de beneciamento. E a metade de cada metro cúbico que é serradoacaba sendo jogada fora como coisa inaproveitável ou queimada a céu aberto, aolado da serraria, como se pode testemunhar no centro da cidade de Açailândia, noMaranhão.

O raciocínio adquire tonalidades ainda mais lúgubres quando deixa a bitola da

madeira sólida. Uma oresta não se reduz a ser fonte de fornecimento de madeira:ela pode permitir múltiplos aproveitamentos, conforme o homem esteja disposto aampliar a sua percepção. Durante o seminário no Rio de Janeiro, o cientista GerardoBukowski, nome conceituado, que aparece entre os pesquisadores de tendências pragmáticas, apresentou uma das raras experiências de manejo orestal, que vemsendo conduzida na Costa Rica; e reconheceu que em determinados bosques o ho-

mem só tem a ganhar deixando a oresta com seus processos criativos naturais (dosquais resultam sementes, essências, princípios ativos e a própria complexidade davida selvagem), sem qualquer interferência.

O cientista armou que um hectare de oresta amazônica pode render oito mildólares ao ano se, além da madeira, forem obtidos outros produtos orestais. Nes-

se caso, os 20 milhões de hectares desmatados (o que pressupõe que a coberturavegetal foi de alguma maneira alterada) representariam 160 bilhões de dólares seo agente da atividade econômica na Amazônia não fosse o predador alucinado que

é – e que o governo nancie para que assim continue a ser.

Muito fogo para nada – Muitos cálculos e raciocínios espantosos podem serfeitos se o autor se desvencilha do cálculo econômico estreitamente pobre que está

na base do processo de ocupação da Amazônia. Mas ainda que não se chegue aosrenamentos de etnobiologia ou não se rompa o colossal etnocentrismo, que empa-

reda os caminhos de acesso à Amazônia, uma análise mais racional ainda consegue produzir choques muito fortes.

Essas análises não estão mais saindo apenas das agências ecológicas ou de enti-

dades preservacionistas. Entre os que as produzem começam a aparecer órgãos go-

vernamentais e associações ligadas ao empresariado. E as matrizes desses ensaios

são as “imparciais” imagens dos satélites, a fonte de maior credibilidade na socie-

dade contemporânea. O Landsat, por exemplo, mostrou que 72% dos 12,3 milhões

de hectares de orestas alterados até 1980 serviram para a formação de pastagens

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em fazendas de criação extensiva. Avaliações dos efeitos dessa atividade, como aefetuada em dezembro de 1985 pela Comif (Comissão de Avaliação de IncentivosFiscais), chegam a conclusões melancólicas. Quase 80% do aplicado nessas fazen-

das foram desperdiçados. E, junto com o dinheiro, o capital da natureza.Quando realmente chega a substituí-la (muitas vezes é só destruição), o produto

criado pelo homem no lugar da oresta vale menos. Depois que 1,5 bilhão de dó-

lares – dos US$ 2 bilhões investidos – volatizaram-se na ciranda de especulaçõesformada pela política de incentivos scais, a Amazônia é, quando muito, um centrode recria e em gorda de boi. Continua comprando cada vez mais alimentos fora de

suas divisas. O mais trágico, no entanto, é que o desmatamento signica simples-

mente a queima de oresta, sem qualquer relação com um processo produtivo em

 bases racionais.Se tanto, apenas 1% do potencial de madeira chega a ter algum tipo de bene-

ciamento. É também com 1% que o Brasil participa do comércio internacional demadeiras tropicais, embora tenha a maior oresta do planeta. Esse paradoxo apare-

ce sempre nos discursos do IBDF, sem que o órgão tenha condições de resolvê-lo.Toda retórica sobre o destino orestal da Amazônia não conseguiu diminuir o enor -me fosso que separa o potencial da região da sua produção real. A madeira continua

a ser consumida na pira especulativa.

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O DEVASTADOR ALEMÃO

Em 1973 Wolfgang Sauer foi chamado para conversar com os executivos ale-

mães da Volkswagen na sede alemã da empresa. Voltou como o chefe da maior fá-

 brica de automóveis em funcionamento do hemisfério sul, instalada em São Paulo.O alemão de Stuttgart estava há 12 anos no Brasil. Chegou no ano traumático de1961, marcado pela crise de poder desencadeada pela renúncia do presidente JânioQuadros (o mais votado até então) e a reação militar à posse do vice-presidente,João Goulart.

Depois de 10 anos de peregrinação entre Portugal e a Venezuela, Sauer seriao diretor comercial da multinacional alemã Bosch. O novo posto era um salto: de

fabricante de autopeças se tornaria montador de automóveis. A ambição de Sauer, porém, era muito maior: queria ser um dia presidente mundial da Volkswagen.

Ele divisou a oportunidade ainda em 1973, quando foi a Brasília conversar,a convite do então ministro do interior, Rangel Reis. O ministro lhe disse que ogoverno federal queria mudar a diretriz da ocupação da Amazônia. Desde o inícioda construção da Transamazônica, três anos antes, a ênfase era na colonização.Lavradores nordestinos, atingidos pela grande seca de 1970, eram levados para asmargens da grande rodovia de penetração e assentados em lotes de 100 hectares.

Essa política, de objetivos sociais, não atendia mais à prioridade denida peloterceiro governo militar desde o golpe de estado de 1964: tornar a Amazônia uma

fonte de divisas para o país. Para isso, seria preciso atrair grandes investidores pri-vados, nacionais e estrangeiros, para acelerar a ocupação territorial e a produção demercadorias de aceitação e competitividade nacional e internacional. O empresário

 passaria a ser o parceiro preferencial do governo, não mais os colonos.

 Não passou pela cabeça de Sauer instalar uma lial da Volks na selva amazôni-ca. O que ele concebeu na hora foi um grande projeto de criação de gado e bene-

ciamento de carne. Com tecnologia de ponta e capital intensivo, o empreendimento podia alcançar escala econômica suciente para vencer as distâncias dos grandescentros consumidores e superar as desvantagens de uma zona pioneira.

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Conseguiu convencer os dirigentes alemães da Volks a embarcar numa aven-

tura inteiramente nova em seus mais de 40 anos de história de sucesso: ao invés de

continuar a lidar com veículos automotores, a Volks iria tratar de boi na jungle sel -

vagem. Se os êxitos se repetissem, Wolfgang Sauer teria credenciais para se apre-sentar como pretendente ao topo da direção de uma das maiores multinacionais.

Tudo deu errado, como ele admite em seu recente livro de memórias, nadamodestamente intitulado O homem Volkswagen – 50 anos de Brasil 14. Mas pareciaque tudo daria certo. A Volks comprou uma área de quase 140 mil hectares no sul

do Pará, a pouca distância dos limites com Mato Grosso e o atual Tocantins. Laudosde dois institutos alemães atestavam a qualidade do solo e a aptidão para a pecuária.

Sauer reuniu sócios poderosos na indústria e na atividade nanceira, brasilei-

ros e estrangeiros – quase todos céticos sobre a iniciativa, mas conantes no avaldo executivo. Implantou a fazenda e, em seguida, o frigoríco. Colocou 60 milcabeças de gado nos pastos, com exemplares de Nelore cruzados com outras raçaseuropeias.

Quando o caminho já estava aberto e a produção em série, começaram as rea-

ções. Primeiro na Alemanha, por parte de ecologistas, com o forte apoio do PartidoVerde. Depois em outras paragens do mundo e também no Brasil. A Volks estava

destruindo a natureza e eliminando o oxigênio do planeta, impedindo a Amazôniade funcionar como pulmão do mundo. Toda a humanidade seria vítima dessa de-

vastação.

Quando políticos e militantes alemães ameaçaram boicotar os carros da Volks,a direção da empresa se alarmou. Sauer foi chamado e recebeu a ordem de passar

em frente o projeto amazônico. Tudo tão às pressas e sem uma checagem nos argu-

mentos dos críticos que o comprador escolhido deu um tombo na poderosa indústriaalemã: pagou apenas a primeira parcela da venda, retirou o gado e sumiu.

A Volks teve que encontrar outro dono. A partir de então a Fazenda Vale do RioCristalino se desfez. Por incompreensão ou má fé dos que a combateram. Talvez as

duas coisas juntas. Mais um dos grandes projetos de ocupação e modernização daAmazônia, para colocá-la no mercado mundial, fracassou. Como, antes, a plantaçãode borracha de Henry Ford e de arroz de Daniel Ludwig.

Mas a história não é bem essa, ou não é só essa que Sauer conta. Ele não faza menor referência à autuação que a fazenda sofreu do IBDF (Instituto Brasileiro

do Desenvolvimento Florestal), antecessor do Ibama, três anos após o início do projeto. A Volks desmatou em 1976 sem pedir licença ao instituto, que só descobriu

14 SAUER, W. O homem Volkswagen - 50 anos de Brasil. São Paulo, Geração Editorial, 2012. 527 p.

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o fato quando uma imagem feita pelo satélite Skylab identicou uma queimada, amaior até então registrada documentalmente pelo homem. Espantados pela exten-

são do incêndio, os cientistas da Nasa enviaram a imagem para seus colegas do Inpe

(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de São Paulo. A fotograa do satéliteengendrou escândalo de dimensões internacionais.

A Volks se defendeu alegando que a Sudam (Superintendência do Desenvol-

vimento da Amazônia), ao aprovar seu projeto agropecuário, autorizara também aexecução do que estava previsto, o que exigia o desmatamento. Logo, estava legal.

Mas o IBDF sustentou que a empresa precisava de uma autorização especíca para fazer a derrubada. Sem essa licença, tinha que ser multada. A multa, incidindosobre cada árvore queimada ou derrubada, chegava a valor superior ao do próprio

empreendimento. Estabeleceu-se intensa celeuma. Ao nal, a multa foi mantida,mas não foi aplicada. A Volks já estava saindo da área e retornando apenas ao quesabe fazer: veículos automotores.

Foi mesmo só incompreensão a causa desse nal desastroso? Claro que não.A resposta estava na forma de encarar a região na qual a poderosa multinacional

 pretendia se estabelecer. Ao invés de investir contra a oresta, que dominava a paisagem, como o próprio Sauer admite nas suas memórias, devia se posicionar afavor da oresta.

Assim, não teria provocado o desastre ambiental de que foi acusada, com todarazão. É o que hoje faria um empreendedor consciente. Mas não naquela época,em que a palavra de ordem era desenvolvimento e não ecologia, se defende Sauer.

 Não é a sua gura de visionário, além e acima do seu tempo, a imagem que olivro projeta, com sua capa made by Hans Donner, o mago do design da TV Globo,e o prefácio de Delm Netto, o sacerdote tecnocrata do desenvolvimento daquelesidos? Talvez Wolfgang Sauer tenha sido visionário no polo industrial paulista, omaior do continente. Na selva amazônica ele foi um devastador.

A admissão do uso

PS – A única entidade que admitiu ter usado o agente laranja na Amazônia foio – na época – Instituto de Pesquisa e Experimentação Agrícola do Norte (Ipean),depois absorvido pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). Oinstituto usou o desfolhante químico entre 1971 e o início de 1974, nas plantaçõesexperimentais de seringueiras da Pirelli e da Goodyear, localizadas próximo a Be-

lém, para apressar a queda das folhas e a renovação da folhagem das árvores.

O emprego do agente laranja nas pesquisas com seringueiras foi estimulado pelo agrônomo Vicente Moraes, que depois dirigiu o Centro de Pesquisas de Serin-

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gueiras em Manaus. Ele considerou os resultados excelentes porque reduziram aomínimo o uso de fungicida. “O rendimento com o desfolhante é muito bom. Ele nãomata as plantas e atua ecientemente no combate às doenças, que de uma maneira

ou de outra atacam as seringueiras”, declarou Moraes no nal de 1973, quando setornaram públicas as experiências feitas pelo Ipean.(2013)

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O ESCÂNDALO IGNORADO:

AS GRANDES QUEIMADAS

Entre 1º de janeiro e 10 de agosto de 2005, os satélites que monitoram os recur -

sos naturais da Terra registraram 23,6 mil incêndios no Brasil. No mesmo períodode 2006, a soma atingiu 40,2 mil focos de fogo. É um crescimento impressionante.Mais assustadora ainda é a previsão do Inpe.

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de São Paulo, que faz esse acom-

 panhamento há quatro décadas, acredita que as queimadas prosseguiram intensa-

mente depois dessa data e persistirão até outubro, muito além do verão normal.

 Nesse caso, acredita que as queimadas chegarão a 200 mil ou mesmo 250 mil,cinco vezes mais do que a marca do ano recorde, o de 2010, quando foram anotados

44,8 mil incêndios.Parte dessa multiplicação se deve à estiagem incomum que assola todo país. É

fator ponderável, mas não deve ser o principal. Alberto Setzer, o cientista respon-

sável pela questão no Inpe, cita outros dois fatores: a expansão agropecuária e ascalização deciente do governo. Pode-se considerar uma quarta causa, emborarelacionada à ocupação de áreas pioneiras pela pecuária, o cultivo de soja e o extra -

tivismo madeireiro: o novo Código Florestal.

Enquanto o pêndulo político se alternava entre a facção ambientalista e a do

agronegócio, ora favorecendo a primeira, ora a segunda, os atores na linha de frentefaziam o que julgavam favorável aos seus interesses: colocavam oresta abaixo ouqueimavam vegetação secundária e áreas de cultivo antigas para criar uma situação

de fato. Consumar fatos tem sido a técnica mais comum de se sobrepor a polêmicas

e indecisões em relação a qualquer forma de atividade humana na Amazônia.

Mais surpreendente é o pouco caso da opinião pública com a previsão de novo – e muito maior – recorde de queimadas no Brasil neste ano. Ideologias e paixões à parte, trata-se de caso de lesa pátria, um danoso avanço também sobre o patrimônio público.

Muitos incêndios resultam de acidentes naturais, mas a maioria é de origem

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criminosa. Uma transgressão que clama aos céus pela circunstância de que o uso

de fogo para a atividade humana é crime ambiental, tipicado em lei como grave.

As elites, os governantes e os formadores de opinião deviam ter consciência

das suas responsabilidades quando tratam de temas explosivos, como o manejo derecursos naturais num país continental e rico em patrimônio natural como o Brasil.Os debates costumam se prolongar, se radicalizar e não chegam a denições ope-

racionais.

O cenário de extremismos, tensão e ameaças incrementa in situ a engrenagemque busca o enriquecimento pela abertura de frentes pioneiras, chegando a lugaresque ainda estão preservados, como na imensa e devastada fronteira amazônica.

Há situações de impressionar e chocar. Poucos anos atrás o sul do Estado do

Amazonas, o maior do Brasil, era dominado pela típica paisagem da hileia, comsuas densas e altas árvores. Em menos de cinco anos, pioneiros vindos através deRondônia e Mato Grosso começaram a derrubar a mata e fazer queimadas, dirigin-

do-se também no rumo do Pará. Nesta temporada, aceleraram tanto essas frentesque a fumaça das queimadas chegou a cobrir Manaus, centenas de quilômetros aonorte.

Um exame detalhado das imagens de satélite, complementado pela leitura dostrabalhos dos cientistas que interpretam esses “mosaicos” e uma vericação emcampo levam qualquer cidadão dotado de discernimento, sensibilidade para a rela-

ção entre o homem e a natureza, um conhecimento mesmo que elementar do que éa Amazônia e alguma dose de cidadania à revolta ou ao desalento.

O impasse em torno do novo Código Florestal, concebido para substituir o queestá em vigor há quase meio século, parece tão ocioso, bizantino e inútil quanto oviolento debate em torno do capítulo sobre a terra e seus recursos na constituintede 1988.

O texto, como cou agora, depois de ter incorporado sugestões de vanguar -da, acabou moldado pelos interesses mais conservadores dos que têm maior poder

 político à sua disposição. Mesmo que a ala vanguardista tivesse sido vitoriosa, éde duvidar que suas melhores contribuições pudessem mudar signicativamente arealidade no selvagem front rural.

O Código Florestal se casava com o Estatuto da Terra, do ano anterior, comoa expressão do impulso reformista do primeiro governo militar depois do golpede estado de 1964, do marechal udenista Humberto Castelo Branco. O código de1965 proclamou como intocável a castanheira, uma das mais valiosas árvores daAmazônia. Não impediu que dezenas de milhares delas fossem postas abaixo ou

queimadas, por deliberado propósito humano ou por sua sagaz estratégia: isolada,

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sem a proteção das outras arvores, cujo abate não tinha impedimentos, a gigantescacastanheira vinha abaixo com facilidade, até pela ação do vento.

O Estatuto da Terra, idealizado como instrumento para criar uma classe média

rural e eliminar o latifúndio, permanece como uma lei ainda avançada para o seutempo, mas sem grandes efeitos práticos. Por suas normas, nenhuma propriedaderural podia ter mais do que 72 mil hectares (para reorestamento) ou 60 mil hecta-

res (agropecuária).

Mas o próprio governo militar estimulou a constituição de imóveis com cente-

nas de milhares de hectares cada e a grilagem de outros milhões de hectares, comoforma de apropriação ilícita da terra por particulares.

Esse Brasil bacharelesco, acadêmico e verborrágico não tem sido capaz de me-

lhorar o Brasil real, um paquiderme de movimentos lentos, refratário à verdadeirareforma, sem a qual o país muda para continuar o mesmo.

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O GRANDE DESMATAMENTO:

APAGADO PELA HISTÓRIA OFICIAL

O espanto tomou conta dos cientistas da Nasa, a agência espacial dos Estados

Unidos, quando, no dia 1º de setembro de 1987. Foi ao verem uma imagem transmi-tida de 833 quilômetros de distância da Terra pelo satélite NOAA-9. Ao longo das principais estradas de três dos nove Estados da Amazônia legal (o sul do Pará, donorte e oeste de Mato Grosso e em quase todo o Estado de Rondônia) havia 6.800focos de fogo, que consumiam naquele momento 306 mil hectares de oresta (oequivalente a um Distrito Federal a cada dois dias).

Desde 1976, quando outro satélite americano, o Skylab, “fotografou” um in-

cêndio de 11 mil hectares, ateado pela Volkswagen na sua fazenda de 139 mil hec-

tares no sul do Pará, os monitoradores dos satélites de recursos naturais da Nasahaviam se acostumado com as queimadas amazônicas. Mas nada comparável aoque ocorreria em 1987.

A atividade humana acabaria destruindo, naquele ano, 20,5 milhões de hectares(ou 205 mil quilômetros quadrados) de cobertura vegetal, área quase igual à davizinha Guiana. Só em Rondônia teriam sido destruídos quase 20% das matas sónaquele ano.

Foi algo desproporcional mesmo para o Brasil, o país que, a partir da década de70, mais destruiu – e o que mais tem – orestas no planeta. Só os três Estados ama-

zônicos “fotografados” pelo NOAA-9, entre maio e outubro de 1987, desmataram20,5 milhões de hectares, recorde na história humana.

O espantoso alcance das queimadas em 1987 foi, por isso, recebido inicialmen-

te com ceticismo, atenuado quando o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espa-

ciais) assumiu a paternidade dos dados. Mesmo conrmando-os, porém, o instituto,vinculado ao Ministério da Ciência e da Tecnologia, procurou atenuá-los: dos 20milhões de hectares desmatados, 12 milhão seriam áreas de mata na, cerrados,capoeiras ou mesmo pastos degradados.

“Somente” oito milhões de hectares constituiriam orestas densas nativas.

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Mesmo assim, era impossível minimizar o signicado da destruição: ela deveria teralcançado algo como 800 milhões de metros cúbicos de diferentes tipos de madeira,comerciais ou não.

O cientista Phillip Fearnside, de outra instituição ocial, o Inpa (Instituto Na-

cional de Pesquisas da Amazônia, de Manaus), discordou da avaliação do Inpe.Fearnside chegou à conclusão de que os desmatamentos se estenderam por 3,5 mi-lhões e não 20 milhões de hectares.

Segundo ele, os pesquisadores do Inpe foram induzidos a um cálculo exagerado por causa das características técnicas do satélite NOAA-9. Basta ocorrer um fogointenso, de 10 metros quadrados, para esgotar que todo o campo de abrangência daimagem (conhecido por píxel), que é 100 vezes maior. A queimada seria registrada

como sendo de 10 mil metros quadrados.Fearnside mostrou que enquanto o levantamento do Inpe concluiu que quase

18% do Estado de Rondônia foi queimado, somente em 1987, seu próprio estudoconstatou que os desmatamentos acumulados até então somavam 17%, “o que já éuma área enorme”. A situação mais dramática era a de Mato Grosso, que perderamais de 17% das suas orestas, ou mais de 150 mil quilômetros quadrados.

Menos de um ano depois, ao lançar, em abril de 1989, o programa “Nossa Na-

tureza”, que pretendia reverter a tendência de uso predatório da Amazônia, o presi-dente José Sarney ocializou números discrepantes em relação ao relatório do Inpe.

Todo o desmatamento efetivado até então na região somaria 250 mil quilô-

metros quadrados, apenas um pouco mais do que os 200 mil km2 que o institutoatribuiu exclusivamente a 1987. Mesmo considerando-se somente os 80 mil km2de oresta original postos abaixo, signicaria que o desmatamento desse único anoequivaleu a tudo que foi posto abaixo na Amazônia até 1986.

Muitos criticaram a utilização das imagens do NOAA-9 em lugar das do Land-

sat, apenas por serem mais baratas. Os pesquisadores do Inpe que zeram a pesqui-sa, entretanto, não ignoravam essa deciência. Foi por esse motivo que eles recor -

reram a uma gigantesca margem de erro nos estudos, de 30%. Com ela esperavam poder compensar as características desfavoráveis do NOAA-9.

Esse desconto cou bem acima dos padrões usuais. Ainda que o desconto che-

gasse a 50%, entretanto, não haveria como compatibilizar seu resultado com a novaestatística que o mesmo Inpe forneceu no ano seguinte à Presidência da República.

A contradição gerou desconforto. Dois meses depois do lançamento do progra-

ma, o governo criou o Simar (Sistema de Monitoramento Ambiental e dos Recursos Naturais por Satélite), destinado a integrar todos os laboratórios de monitoramento

do país. Simultaneamente, o Inpe divulgou novo levantamento das queimadas do

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ano anterior. A soma passou a ser de 12,1 milhões de hectares, pouco mais da me-

tade da previsão do relatório original.

Apesar de tantas e tão graves discrepâncias, a questão sumiu das referências

ociais. O relatório de 1987 praticamente deixou de existir.O tema não foi reaquecido nem mesmo quando as taxas de desmatamento re-

gistradas nos governos tucano e petistas caram quase tão elevadas quanto as dociclo militar. No período FHC-Lula o Brasil continuou a ser o maior desmatador do planeta em números absolutos.

Em 2004, incomodado pelo silêncio sobre o tema, que permanece até hoje,sepulcral, decidi reabrir o debate. Ouvi o principal autor do polêmico relatório de1987, o cientista Alberto Setzer, ainda hoje trabalhando no Inpe, em São José dos

Campos e a principal autoridade em queimadas de oresta no país. No momentoem que o Brasil parte para nova etapa da ocupação da Amazônia, com o CódigoFlorestal que substitui, provavelmente para pior, o regulamento de 1965, reproduzoa entrevista.

Espero que ela rompa a inércia e a indiferença da opinião pública a respeito.

É espantoso que as armativas preocupantes de Setzer tenham sido recebidas pelosilêncio geral. Espero que agora ela tenha destino melhor, suscitando atualizaçõese ponderações. O JP tem tido a indesejada exclusividade do tema. Falta os espe-

cialistas e interessados se manifestarem para impedir que este capítulo importanteda história da Amazônia desapareça, como parece ser a intenção ocial, endossada pela maioria estabelecida.

1) Por que foram usadas as imagens do NOAA-9 e não do Landsat?

As imagens do Landsat são de resolução muito melhor, da ordem de dezenasde metros. Porém:

a) São necessárias centenas para cobrir áreas grandes como a Amazônia.

 b) Elas demoravam algumas semanas para estarem disponíveis, mesmo para

usuários do próprio Inpe.

c) Como, nelas, um mesmo local só é imageado a cada 16 dias, e muitas vezesexiste cobertura de nuvens, podem ser necessários meses de espera até que se en-

contre uma imagem adequada para análise.

d) O custo e o tempo de processamento são exagerados. Como nos levantamen-

tos feitos hoje em dia pelo INPE com estas imagens, o montante é de milhões dereais e de meses de trabalho por equipe de umas 20 pessoas. Assim, elas são ade-

quadas para eventos que envolvem medição de área mais precisa, e com relevância

temporal de vários meses.

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As imagens NOAA-9 (e dos NOAAs subsequentes, até o 17 hoje em dia) sãode resolução espacial mais limitada, com 1,1 km na melhor dos casos (no centro daimagem), chegando até uns 5 km (nas bordas). Porém:

a) Eram e são processadas imediatamente após a recepção. b) Elas não têm custo, e o processamento para detecção de focos de queimadas

é imediato e automático, feito dentro do próprio Inpe, com pequeno custo.

c) Cobrem diariamente áreas de dimensão continental e o Brasil todo, se usadasduas imagens consecutivas (na época usávamos só uma).

2) Quais as consequências metodológicas dessa opção? Em que medida ela

prejudicou ou comprometeu o caráter científco da pesquisa?

As imagens NOAA são mais adequadas para detectar focos de queimadas comfogo ativo e muitíssimo limitadas para estimar áreas queimadas ou desmatadas. Asimagens Landsat são mais adequadas para estimar áreas desmatadas e/ou queima-

das, e muitíssimo limitadas para identicar as queimadas que estão ocorrendo.

 Na época, não se faziam estimativas de desmatamento na Amazônia. A última,feita pelo Inpe e o antigo IBDF [Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal,substituído pelo Ibama], era de 1978. Ninguém falava em queimadas ou desmata-

mentos descontrolados, como estavam efetivamente ocorrendo. Sem recursos paraum levantamento com o Landsat, como reexo da falta de interesse do Inpe, do

IBDF, do governo de maneira geral, e dos setores públicos e privados, que se bene-

ciavam ilicitamente dos vultosos incentivos scais, não havia como estimar o queestava ocorrendo.

O cálculo feito a partir das imagens NOAA teve a nalidade de ser um alarme para o descalabro. Não havia na época outra forma de estimar o desmatamento.

Fazendo uma comparação, era como abrir a janela e ver um edifício em frente emchamas – o importante estava em divulgar o fato e controlar o fogo; se na hora deavisar os bombeiros não foi possível precisar o número de andares em chamas, no

meio da confusão e correria, isso não me parece fundamental.Aliás, nunca foi feito o levantamento Landsat de quanto foi desmatado nos

anos de 1985, 1986, 1987 e 1988, os que devem ter tido os maiores índices naqueladécada. Até hoje, fala-se na média de 21 mil quilômetros quadrados para o período1978-1988.

Outra coisa: sempre me referi a desmatamento, ao contrário do INPE e do go-

verno, que criaram o termo desorestamento. O desorestamento é sempre menor, pois deixa de fora o cerrado da Amazônia. Eu me referia à destruição da vegetaçãoamazônica de maneira geral.

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Em 1995 tivemos situação semelhante. Pararam os levantamentos Landsat dealta resolução do desmatamento. A postura do governo era de que o desmatamento

havia sido controlado. Meus dados de focos indicavam o contrário, e a imprensa

divulgou com alarde os novos dados. O governo encomendou ao Inpe novo estudo para mostrar que os dados queimadas estavam errados e que por trás deles havia um

 pesquisador maluco buscando autopromoção.

Bem, o valor de desmatamento anual obtido nas imagens Landsat foi o recordehistórico, de cerca de 30 mil quilômetros quadrados. Mais uma vez os dados dequeimadas se mostraram válidos, importantes e úteis.

A pesquisa e o trabalho correlato, que no caso identico como o desenvolvi-mento de técnicas com satélites para identicação operacional de focos de queima-

das, não foram prejudicados. A pesquisa continuou e continua evoluindo.A partir de 1998, ela recebe cerca de um milhão de reais anualmente por meio

de um PPA do Governo. Os resultados, estão em http://www.cptec.inpe.br/queima-

das. O trabalho, assim como a cooperação com o Ibama, o Proarco e com inúmerosusuários, que persiste por anos, é citado como exemplar.

O trabalho que publiquei com Marcos Pereira na revista Ambio, em 1991, comos dados, foi um dos 10 trabalhos brasileiros mais citados na literatura internacio-

nal na década 1990-2000, recebendo prêmio da FAPESP [Fundação de Amparo àPesquisa do Estado de São Paulo] por esta razão.

3) A margem de erro, de 30%, não inutilizava o levantamento?

Como expliquei, não havia mais nada que pudesse ser feito. Entre divulgar umacatástrofe nacional com margem de erro grande ou então car calado, optei porfazer o que era possível. O mesmo ocorreu em 1995.

Ainda acredito que se um dia zerem a estimativa Landsat do desmatamentonos anos críticos de 1985-1988, o valor anual subirá muito acima da média 1978-1988, e se aproximará mais da minha estimativa imprecisa que do valor médio.

4) Quais os desdobramentos do anúncio do relatório, em 1988?

Pelo que acompanhei e documentei com recortes da imprensa e em algumas

outras referências, considero os seguintes desdobramentos como mais importantes:

a) Estabelecimento da noção de uma destruição ambiental, predatória e corrup-

ta sem precedentes na história nacional e do planeta.

 b) Institucionalização de mecanismos com intuito de controlar o desmatamentoe as queimadas, como a criação do Ibama, do Pacote Nossa Natureza, do Prevfogo,

do Proarco, etc...

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c) Descobrimento e compreensão pelas comunidades cientícas – nacional einternacional – de que os nossos desmatamentos e emissões das queimadas estão

relacionados a questões de mudanças ambientais regionais, e mesmo climáticas

globais.

d) Realização de incontáveis trabalhos e experimentos cientícos (por tercei-ros) nos temas queimadas e desmatamento.

e) Desenvolvimento e operação no país de um sistema de monitoramento dequeimadas por satélites em tempo quase real, ainda não igualado por outros países.

5) Como o sr. vê o episódio da perspectiva de hoje? Pode-se continuar ausar aquele levantamento? Por que o Inpe não se refere mais a ele, como seinexistisse?

O desorestamento persiste com razoável descontrole. Eu diria, inclusive, ain-

da com a conivência das autoridades. Os dados de 2001-02, e os novos divulgados para 2002-03 (mais de 23 mil quilômetros quadrados) conrmam esta situação. Eisso, considerando apenas o desorestamento identicável nas imagens Landsat. Seconsiderarmos o desmatamento, que inclui a remoção do cerrado na Amazônia e odesorestamento seletivo (que é o mais comum), os números da devastação serãomuito mais elevados.

Dados do desorestamento anual (ainda que subestimando a realidade devido à

falta do desmatamento do cerrado e do seletivo) existem desde 1988-89, conformeo trabalho PRODES do Inpe, e, ao que tudo indica, continuarão a ser gerados anu-

almente, com atraso de um ano ou mais. Ou seja, mesmo não sendo ideais, os dadosexistem e com eles podemos acompanhar as ações do governo para o controle (ounão) da devastação.

 Neste contexto, os dados de queimadas, que são muito imprecisos para estimaráreas, não precisam ser usados para uma nalidade que não é a sua. Os dados dequeimadas destinam-se ao monitoramento em tempo quase real do uso do fogo no

 país, e continuam a ser gerados operacionalmente.Em 1995, e, mais recentemente, em 2002 e em 2003, o aumento de queimadas

resultou, obviamente, do aumento do desmatamento. Se por alguma razão os levan-

tamentos Landsat não puderem ser gerados, como último (e impreciso) recurso osdados NOAA poderão outra vez servir de alarme.

O Inpe, assim como o governo, nunca gostou ou apoiou meus trabalhos iniciaismostrando as queimadas e desmatamentos. Eles criavam uma imagem negativa do

 país no exterior, e prejudicavam interesses econômicos gigantescos. Fui muito hos-

tilizado por anos seguidos em vários contextos.

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Apenas nos últimos anos, com o sucesso do monitoramento de queimadas ede outros trabalhos que realizei, as coisas começaram a mudar. Mas, com certeza,resquícios do confronto do nal dos anos 80 e dos anos 90 ainda persistem. Imagino

que colegas que mentiram sob juramento em audição no Congresso quando garan-tiam que o desorestamento era só 5%, nunca me perdoarão por contradizê-los.Enm, cada um age segundo seus princípios.(2012)

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ADEUS À FLORESTA

Enquanto, na “corrida para oeste”, avançava a frente de construção da novacapital da República e da primeira estrada ligando por terra o Brasil à Amazônia, dacapital da Amazônia partia uma frente cientíca na direção da área que seria atra-

vessada pela rodovia Belém-Brasília, na metade da década de 50 do século passado.

Enquanto o engenheiro Bernardo Sayão comandava um exército de máquinas pesadas e milhares de trabalhadores braçais, que abririam uma linha com dois milquilômetros de extensão e 30 metros de largura entre o Planalto Central e a foz dorio Amazonas, técnicos do programa de pesquisa da FAO (a agência da ONU paraagricultura e alimentação) e da SPVEA (Superintendência do Plano de ValorizaçãoEconômica da Amazônia, primeira agência de planejamento regional do país), ten-

tavam inventariar a riqueza orestal que havia ao longo do traçado da primeira viade incorporação da Amazônia à economia nacional.

Era uma oresta com elevada densidade de árvores, com mais de 300 espéciesidenticadas por hectare, algumas de alto valor comercial, como o mogno e o cedro.Em um quarto da sua extensão, ao longo de 500 quilômetros no Pará, a Belém -

-Brasília atravessava uma compacta massa vegetal, que ocupava os dois lados da pista, sem qualquer clareira.

Parecia que estariam disponíveis ali os elementos para uma ocupação racionalda nova fronteira que o Brasil estava incorporando ao se mover dentro do seu pró-

 prio território: uma evidente riqueza natural, a oresta, razoavelmente identicada

 por cientistas, que haviam se antecipado aos agentes produtivos na avaliação do re-curso, produto que se tornaria acessível ao mercado através de uma estrada-tronco.

Quando o primeiro grande núcleo urbano se formou, porém, o que o coloniza-

dor queria era colocar abaixo a oresta e limpar o terreno para a formação de cam-

 pos de pastagem e, secundariamente, de agricultura. A cada novo verão, dezenas demilhares de árvores eram atiradas ao fogo. Com tanta oferta, logo começaram a seinstalar serrarias.

 Nos primeiros negócios, o madeireiro tinha apenas o trabalho de arrastar asenormes toras até o pátio da serraria, bem perto da mata, no curto espaço de tempo

que o fazendeiro lhe concedia para livrar a futura pastagem do estorvo das árvores,

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sem pagar um tostão. Findo o prazo e havendo ainda madeira no terreno, o fogocompletava o serviço.

O que interessava ao pioneiro era o gado, que amansaria a terra e incrementaria

o desenvolvimento. A terra era muito barata e, além disso, havia o dinheiro do go-

verno para nanciar, praticamente a custo zero, os chamados “projetos agropecuá-

rios”. Todo era, então, lucro – rápido, volumoso, certo. O futuro seria entregue aoscuidados de Deus, brasileiro por delegação dos seus conterrâneos compulsórios.

Logo os pastos começaram a ser invadidos por ervas daninhos e o solo foi-secompactando. Para manter a alimentação do rebanho, o fazendeiro já precisava denovos tratos culturais. O dinheiro dos incentivos scais ociais havia sido queima-

do no avanço pela oresta através da pata do boi. A madeira começou a ser vendi-

da às serrarias para nanciar a melhoria dos pastos ou sua expansão. Ainda haviamuita madeira, tanta que o município de Paragominas, o mais dinâmico da região,chegou a ter mais de 400 serrarias em sua jurisdição, recorde mundial.

Quem chegava à sede municipal nessa época cava abalado pela quantidade defumaça no ar, lançada à atmosfera (e sobre as pessoas) por rústicos fornos (de “raboquente”), que queimavam pó e sobras de madeira. Parecia a Inglaterra do início daindustrialização, vista por Charles Dickens. No auge do verão, o céu sumia atrásde uma massa de ar saturado pela fumaça escura e densa, partículas resistentes dolenho fazendo volutas de piromania.

Quarenta anos depois de ser inaugurada por Juscelino Kubitscheck, em 31 de janeiro de 1961, num dos seus últimos atos de JK antes de passar a faixa pre-

sidencial a Jânio Quadros (que batizaria a grandiosa obra do Plano de Metas doantecessor de “caminho das onças”), a Belém-Brasília oferece a quem a percorreatualmente uma paisagem diametralmente oposta.

 Não há mais oresta virgem ao longo de todo o percurso. Não é visível a olhonu o mais tênue remanescente daquela mata de alta densidade que a Missão FAO/SPVEA inventariou. Ainda há mais de 250 serrarias em atividade em Paragominas

(um número que continua a ser impressionante), mas elas têm que ir buscar madei-ra para suas necessidades a uma distância mínima de 200 quilômetros, frequente-

mente no vizinho Maranhão. Milhares de hectares de pastos foram abandonados,imprestáveis. A compactação do solo em determinadas áreas inviabilizou a agricul-

tura. Poucos dos verdadeiros pioneiros subsistiram.

Alguns têm esperança em tempos melhores. Uma das três únicas empresas o-

restais que possuem selo verde no Pará está instalada às proximidades da Belém-

-Brasília. Os fazendeiros aprenderam a consorciar culturas e a dar um uso mais

inteligente às suas terras. Bosques formados a partir dessa nova visão começam a

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se multiplicar.

Mas é enorme o desao que se impõe aos produtores empenhados na recupe-

ração de uma vasta área degradada pela imperícia e o descaso para com a natureza.

O balanço do custo/benefício ainda é altamente decitário. Há os que preveem orestabelecimento da atividade orestal da área, mas muitos são céticos a esse res-

 peito. Torcem o nariz quando lhes é apresentada uma dessas alternativas, o cultivode soja.

O exemplo da colonização da Belém-Brasília é um testemunho perturbadorcontra a vocação orestal da Amazônia. A vocação é evidente numa região queconcentra um terço das orestas tropicais do planeta e que pode exibir números de peso. A renda da atividade madeireira no Pará, o principal produtor da Amazônia,

foi de mais de cinco bilhões de reais no ano passado, equivalente a 20% do PIBestadual, gerada por 2.300 empresas, 93% delas de micro a médio porte, das quaisdependem meio milhão de pessoas.

Mas essas grandezas desaparecem no cenário da economia internacional. OPará, que é responsável pela maior parte de toda a madeira tropical consumida noBrasil, produz menos de 30 milhões de metros cúbicos anuais. O consumo mun-

dial de madeira é de quase 3,5 bilhões de metros cúbicos. Ou seja: a participação paraense é inferior a 1%. Como 80% da madeira produzida no Pará é ilegal, issosignica que a oresta é desfalcada das suas melhores espécies ou inteiramente

 posta abaixo sem renovação do estoque. A produção com certicação de qualidadeambiental não vai além de 1% do total. Assim, no dia em que a curva do manejosustentado dos recursos orestais coincidir com a curva da produção talvez não hajamais mata nativa, só reorestada ou manejada. Se as duas curvas não estiverem sercondenadas a ser criaturas paralelas, com ponto de encontro no innito.

A inserção orestal amazônica é mais veloz no quadro dos problemas e dosdanos do que no âmbito das soluções e dos ganhos. Se o que a região produz é um

traço no gráco da produção, o que destrói tem expressão planetária: o desmata-

mento na Amazônia tem correspondido, nas últimas três décadas, em média, a umquinto de todo o desmatamento no mundo tropical.

O panorama é grave pela restrita ótica dominante, a da atividade orestal queresulta em madeira sólida. Mas adquire a conformação de verdadeira tragédia quan-

do se amplia a visão para o uso múltiplo da oresta. Mesmo ocupando apenas 9%da superfície da Terra, as orestas tropicais concentram metade da biodiversidadedo planeta.

Ao ritmo de destruição das décadas de fogo da história recente da Amazônia, oque já se perdeu se informação é assustador, mesmo tendo se tornado praticamente

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impossível saber o quanto (ou justamente por isso). A bioprospecção, descamban-

do para a biopirataria, é o esforço, freqüentemente ilegal e nocivo ao interesse doBrasil, se montar um cadastro da realidade física da Amazônia e preservar seus

testemunhos antes que o operador da motosserra apareça. O estudo das línguas eda cultura dos índios é a recuperação, por via indireta, do conhecimento preste adesaparecer.

Por que essa selvageria predatória ainda prevalece sobre a engatinhante – mas

 já rme – racionalidade, impedindo que a vocação orestal da Amazônia, livre dacamisa-de-força da monocultura madeireira, se arme no plano das realidades fá-

ticas da sociedade humana na região? As explicações são tão convincentes quantoa força do potencial de biodiversidade da oresta amazônica. Muitas foram apre-

sentadas durante o 32º Congresso Brasileiro de Estudantes de Engenharia Flores-

tal, que reuniu na semana passada em Belém quase 500 participantes. Explica-se, porém não se muda a realidade. Ou muda-se, mas a mudança é muito mais lenta doque a permanência das práticas irracionais, e até sua expansão.

O triste balanço entre o que Paragominas podia ser e o que se tornou há de ser

creditado ao custo de aprender a lidar com uma situação tão original quanto a Ama-

zônia através de uma metodologia tão onerosa quanto o ensaio e erro. Depois desse

desvio, porém, a região já vivenciou outros capítulos semelhantes, que zeram osertão ocupar quase todo o vale do Araguaia-Tocantins, onde também a hileia pa-

tenteara seus domínios, e Rondônia chegar a um grau tal de devastação que hoje oslíderes das frentes pioneiras querem uma inversão radical da regra em vigor nas áre-

as de oresta da Amazônia: a reserva legal deixaria de ser de 80% e passaria a carconnada em 20% da área dos imóveis rurais. Rondônia se despojaria de vez de suacondição de área amazônica e se incorporaria ao Planalto Central, abandonando asveleidades ecológicas. Resultado malfadado de uma algaravia de apenas quatro dé-

cadas do mais intenso desmatamento em possessão amazônica. Ou ex-amazônica.

Em encontros como a ruidosa confraternização de futuros engenheiros ores-

tais brasileiros, ca cada vez mais tristemente tentador repetir o título de um doslivros recentes sobre a região: Amazônia, adeus.(2002)

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A AMAZÔNIA ESTÁ MORRENDO

Dos 900 milhões de hectares de orestas que ainda existem na superfície do planeta, 350 milhões cam na Amazônia brasileira. Sua bacia hidrográca abriga8% da água supercial doce que chega aos oceanos. Mata e água constituem, assim,

as duas grandezas que denem essa que se convencionou denir como a últimafronteira de recursos naturais do homem, a maior fábrica de vida em pleno funcio-

namento na Terra. Constitui amarga e dramática contradição que a ocupação dessa

vasta, rica, complexa e pouco conhecida região se fala não apenas a agredindo, masdestruindo seus bens mais nobres.

Uma sensação de desânimo e revolta quase sempre domina ao nal de um ba-

lanço sobre o estado real da “ocupação amazônica”, em confronto com o que seria possível fazer se esse avanço fosse mais coerente com a natureza e os conhecimen-

tos cientícos. O 39º Congresso Nacional de Botânica, encerrado na semana passa-da [de fevereiro de 1988] em Belém, foi mais um desses momentos para lamentaro descompasso entre a produção intelectual sobre a oresta, que evolui positiva-

mente, embora com certa lentidão, e as ações práticas para penetrar nos “espaçosvazios” da Amazônia, à custa de muita ignorância, desperdício, irracionalidade eviolência.

Entre 1.500 e duas mil pessoas participaram de uma semana de intensa pro-

gramação de eventos, que reuniu algumas centenas de comunicações, palestras,conferências, mesas-redondas e seminários, com especialistas de todo o mundo,a maioria deles convergindo seus interesses para a Amazônia. Apesar desse rico e

diversicado patrimônio de idéias, parece perfeitamente atual a observação feita 80anos atrás por Jacques Huber, pioneiro dos estudos botânicos na região.

 Num número do boletim do Museu Goeldi, uma das entidades que patrocinouo congresso, Huber observou: “A nossa mata equatorial é um mundo por si, cujaorganização e vida íntima só por diversas gerações de investigadores poderá serdesvendada. A vida dum homem mal chegaria para ter uma ideia exata da composi-ção de um quilômetro quadrado de mata virgem, quanto menos duma área mais de

três milhões de vezes maior”.

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Quando esse boletim foi publicado, em 1909, o Museu Paraense Emílio Goeldiera uma instituição de pesquisas de reputação internacional, capaz de gerar conhe-

cimentos cientícos novos e desempenhar papel de vanguarda. Depois, entrou em

decadência, da qual só recentemente vem procurando sair. Mesmo assim, a forma-ção de quadros e a alocação de recursos permanecem aquém das necessidades reais

da região e mais distantes ainda das frentes de destruição. Não por mero acaso, os pesquisadores de instituições regionais foram franca minoria durante o congresso,diante de legiões de cientistas do resto do país e, sobretudo, do exterior. Proporcio-

nalmente a outras categorias, os botânicos formam parcela cada vez menor, o que pode expressar – no plano acadêmico – a própria devastação da oresta.

Bitolados por uma visão asséptica, especicista e setorial da ciência, muitos

cientistas aprofundaram bastante o conhecimento parcial da oresta, mas poucotêm contribuído para uma visão global, para melhorar a interação do homem coma mata ou para desviar o processo econômico da sua trilha irracional e anti-social.

Como a oresta vem abaixo com uma velocidade incrível, esses estudos – que, paraterem o rigor exigido por Huber, demandariam muito tempo de observação – aca-

 bam se transformando em mero registro museológico. Outros, mais ainda do queisso, tornam-se habeas corpus para a continuidade do saque.

As imagens obtidas por satélites de informação permitem registrar que no ano

 passado [1987] houve a maior safra de desmatamento da Amazônia. Quase sete mil

focos de fogo foram identicados. A estiagem prolongada permitiu aos desmatado-res continuar a por fogo na mata mesmo em dezembro, dois meses depois do nalda temporada de derrubadas e queimas em estações normais. A névoa provocada

 pelos incêndios na oresta fechou aeroportos, prejudicou o tráfego aéreo, provocouo rebaixamento do lençol freático em locais mais castigados e espalhou uma ondade espanto e repúdio por muitos países. Ainda assim, nenhuma entidade ocial ad-

mitiu que o desmatamento possa ter atingido 3% da superfície da região amazônica.

 Não é improvável que esta estatística esteja correta, mas certamente ela faz uma

camuagem da verdade. Essa taxa abaixo de 3% não reete a realidade, porque elase origina de combinações desiguais. Quase todo o oeste da Amazônia permanece

intocado, mas simplesmente porque essa área não é atravessada por estradas de penetração, como a Transamazônica. Sem essa infraestrutura, os produtos naturaisnão podem chegar aos mercados, adquirindo valor comercial. Se o bem natural nãose transforma em mercadoria, o capital, sem interesse, não aparece nessas áreasremotas. Espera pelo subsídio do poder público.

A situação se altera substancialmente onde há interesse econômico. Em 1979, por exemplo, de 1,4 milhão de hectares na Zona Bragantina, sob inuência de Be-

lém, só restavam 5% (70 mil hectares). O desmatamento engolira então 70% das

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orestas do município de Irituia e 20% das superfícies orestadas de São Franciscoe Santa Maria do Pará. Numa área de 51 milhões de hectares (uma sétima parte detoda a oresta amazônica), englobando também áreas parciais de Goiás [atual To-

cantins] e Maranhão, o desmatamento já ultrapassara 7%. Crescera 43% em relaçãoao que fora desmatado até o ano anterior, de 1978. Mas apenas três anos depois,em 1981, a área desmatada duplicara, passando a representar 15% dos mesmos 51milhões de hectares. Acredita-se que somente em 1987 foram postos abaixo 1,5milhão de hectares de oresta na região, desmatamento que se concentra no cintu-

rão agropecuário costurado pela Sudam no vale do Araguaia e na insaciável frente

agropecuária de Rondônia.

Desmata-se por muitos motivos, mas nem sempre há razão para desmatar. Nas

áreas novas, como no vale do Xingu, no Pará, em quase todo o Estado do Acre ouno sul de Roraima, ainda há muitas derrubadas meramente especulativas, feitas para criar “benfeitorias” como contrapartida ao dinheiro drenado de cofres públicos

 para empreendimentos privados sob incentivo ocial. A reforma, menos pelo que pretendia de fato realizar e mais pela histeria desencadeada pela UDR (União De-

mocrática Ruralista), com a sua reação à espanhola (“hay gobierno, soy contra”),levou muito fazendeiro a tocar fogo na mata, à falta de outra maneira para caracte -

rizar seu imóvel como empresa rural e, dessa maneira, protegê-lo da desapropriação por interesse social.

Mesmo quando não há esse tipo de reação anárquica, o conceito de reformaagrária se revela estranho à Amazônia, incompatível com a região. O tamanho dasunidades de produção é menor, assim como sua capacidade tecnológica de destruir,mas os métodos operativos dos assentados são quase os mesmos das empresas. A

favor dos pequenos contam vários fatores, inclusive a surpreendente – mas já su-

cientemente demonstrada – constatação de que produzem mais e comercializammais do que as grandes propriedades daquele produto de maior signicado: o ali-mento. Contra eles há toda indiferença ou mesmo desprezo da política ocial e dasua extensão nos centros cientícos, comprometidos exclusivamente com a grande propriedade voltada para a exportação.

O Congresso de Botânica – e especialmente o simpósio “alternativas para o

desmatamento”, organizado com perspicácia e conhecimento de causa – revelou aexistência de um considerável número de cientistas que trabalham com propostasdistintas do “modelo” ocial e mais identicados com o que se poderia chamarde “natureza amazônica”. Afastaram-se denitivamente da sedução da pecuária decorte, cuja losoa tem marcado, com o seu comodismo mental, a incorporação deáreas novas aos mercados tradicionais. E se aproximam de uma exploração silvi-

cultural, de um extrativismo dito de novo tipo e de uma agricultura com maior grau

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de harmonia com o ambiente.

Faltam a essas correntes maior intercâmbio e um apoio que seja capaz de lhes permitir demonstrar que os novos “modelos” são não apenas exeqüíveis, mas viá-

veis economicamente. Essa tarefa está sendo iniciada, mas uma combinação de fa-

tores poderá até permitir que o Estado do Acre se transforme no grande laboratório

 para essas práticas. Com um governador que ao menos nominalmente vem mani-

festando preocupações ecológicas e interesse em salvar a oresta, dando-lhe função produtiva, o Acre tem características geográcas e históricas que podem preservá-

-lo da pilhagem feita no Estado vizinho de Rondônia, se os cientistas conseguiremchegar antes do asfaltamento da ligação rodoviária entre Porto Velho e Rio Branco.Por isso mesmo, encerrado o congresso de Belém, vários cientistas continuaramem marcha batida para o Acre, onde, na semana seguinte, começou outro encontro.

Para pesquisadores que costumam se isolar em seus laboratórios e gabinetes,e a oportunidade de dar a suas competências prossionais a dimensão de fato po-

lítico. Desde já, porém, eles não podem ter ilusões quanto às enormes diculdadesdessa guerra contra a destruição do que há de amazônico na região. Embora 25 ins-

tituições tenham patrocinado o 39º Congresso Nacional de Botânica, nenhum dosdirigentes dos órgãos governamentais diretamente envolvidos com a “integração”

da Amazônia ao país (e ao mundo) compareceu aos eventos para os quais foramconvidados. Todos deviam estar sabendo que ouviriam muitas críticas e acusações

 – e das pessoas normalmente mais habilitadas a fazê-las. No fundo de sua consci-ência crítica (agora transferida de Brasília para as dependências do Banco Mundial,em Washington), o governo sabe que está errado, mas não pretende mudar o quevem fazendo na Amazônia. A não ser que seja forçado. A hora de forçá-lo já chegou,se é que não está começando a passar. (1988)

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DESMATAMENTO RECORDE:

TRISTE MARCA BRASILEIRA

A edição de 2005 do Guiness, o livro dos recordes atribuiu ao Brasil o maioríndice de desmatamento do planeta. A polêmica publicação reproduziu o que os brasileiros mais bem informados já sabiam: nos últimos 50 anos a Amazônia perdeu17% da sua cobertura orestal, numa média de pouco mais de 22 mil quilômetrosquadrados a cada ano. Esse massacre resultou no eufemístico “desorestamento”de 615 mil quilômetros quadrados na Amazônia Legal, no curto período de meioséculo. É devastação sem paralelo na história da humanidade. Em conjunto, os biomas Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado e a formação orestal Araucária foram privados, nesse período, de 3,6 milhões de quilômetros quadrados de coberturavegetal.

Prevenindo os efeitos de uma divulgação mais ampla pelo mundo desse triste

quadro, a partir da publicação do Guiness, algumas fontes insistiam em lembrar quefoi assim em outros países e continuaria a ser assim atualmente. Os Estados Unidose a Europa se desenvolveram às custas da destruição de suas orestas. O que restada cobertura vegetal original americana, no noroeste do país, continua a ser postaabaixo pela indústria madeireira para a exportação. Já a Europa começou a perdersuas orestas já na Idade Média, por conta do crescimento populacional.

Essas mesmas fontes costumam lembrar que embora o ritmo do desmatamentoseja preocupante, o Brasil tornou-se praticamente o único país do mundo a monito-

rar permanentemente áreas desmatadas através de imagem de satélite. Graças a esse

controle, pode acompanhar a destruição ecológica em tempo real, identicando osfocos de queimadas tão logo irrompam os incêndios. Mas o resultado concreto dadisponibilidade dessa importante ferramenta não tem sido proporcional às suas pos-

sibilidades. Mato Grosso é o Estado mais avançado da Amazônia em controle dedesmatamento via satélite, mas é também o mais desmatado.

Esse descompasso mostra que não basta ter os meios técnicos e cientícos para

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agir se falta a vontade de aplicá-los. O que distingue a Amazônia, detentora damaior reserva de oresta tropical do planeta, da história passada de devastação emoutros países, é que só agora a humanidade tem consciência do valor aproximado da

riqueza contida na enorme biodiversidade da mata amazônica, a mais rica de todos.Por consequência, sabe o tamanho da perda que seguir a tradição de desmata-

mento representa. O Brasil, nesse contexto, dispondo de um bioma como a Amazô-

nia, podia inovar na história humana. Mas, como atesta o Guiness, precisou descar -tar o saber recentemente criado para adotar a insensatez anterior.

“Se houvesse um tribunal para julgar crimes contra a natureza, como há tribu-

nais contra crimes de guerra, sem dúvida, seríamos condenados”, observou EnnioCandotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),

ao repórter José Hamilton Ribeiro, num dos programas Globo Repórter da TV Glo- bo dessa época. Triste papel, o do Brasil. (2005)

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DESAFIO EM CARAJÁS:

MUDAR O RUMO DO ARCO

Dono de um terço das orestas tropicais do planeta, as mais ricas existentes naTerra, o Brasil ingressou no ano passado no vexatório clube dos importadores demadeira. Está indo buscar até em Portugal o que, teoricamente, podia ter à vontadeem seu próprio território. O esforço recente de plantar árvores para resolver – ou

 pelo menos atenuar – esse décit crescente alcançou 5 milhões de hectares, algo emtorno de meio por centro da extensão territorial brasileira. É uma área 40% menordo que as terras que foram abandonadas, depois de mal usadas, apenas num trecho

da ferrovia de Carajás, a segunda mais importante via de escoamento de minériosdo país e uma das mais importantes do mundo.

Essa área faz parte do que já se convencionou chamar de “arco do desmatamen-

to” (ou, na sua mais envernizada versão atual, “arco de desorestamento”). São 500mil quilômetros quadrados de terras na faixa de transição entre o Brasil desmatador,que avança sem parar, e a Amazônia orestada, que se encolhe – e começa a desa-

 parecer. A Companhia Vale do Rio Doce se interessou pela extremidade norte dessearco, sob a inuência do seu Sistema Norte de mineração.

O objetivo declarado do programa de pesquisa, que a empresa iniciou em 1980,

é fazer o ordenamento desse território. Através de uma ferramenta-síntese, o zo-

neamento ecológico-econômico, produto do cruzamento de milhares de variáveiscriadas pela pesquisa, a empresa pretende transformar esse arco de destruição nummodelo de desenvolvimento sustentável. Essa nova matriz da ação humana permiti-

ria corrigir os erros cometidos e agir com inteligência a partir de sua implementação

 para que a região deixasse de ser estigmatizada (e exaurida) pela atividade preda-

tória, cujo sinete é o desmatamento de 38% de sua extensão.

O modelo já está quase pronto. Agindo como se fosse uma agência estatal,

a CVRD o tem submetido a debates, como o que aconteceu na semana passada,

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no auditório do Museu Goeldi, em Belém. Quer testá-lo e oferecê-lo como instru-

mento da ação pública, suprindo uma terrível lacuna do governo. Evidentemente,a iniciativa da ex-estatal não é altruística. Embora inegavelmente contenha uma

dimensão de política pública, ela é parte dos negócios da mineradora, responsável,entre outros empreendimentos, por um quarto do minério de ferro que circula nomercado mundial.

Um dos vários novos negócios que a Vale está iniciando no setor siderúrgico é

a produção de ferro gusa. No ano passado a empresa fechou com a norte-americana

 Nucor Corporation uma associação para a construção e operação de um dos maiores

 projetos de ferro-gusa do mundo, em Marabá. O empreendimento será em módu-

los. O primeiro módulo, previsto para começar no próximo ano, no valor de 80milhões de dólares, é para a produção de 380 mil toneladas. Com essa associação,a Vale pretende ampliar sua presença no setor siderúrgico nos Estados Unidos. Lá,a Nucor, como a e maior produtora de aço, lidera o processo de modicação e con-

solidação da siderurgia.

Todos os velhos, caros e inecientes altos-fornos estão sendo fechados e subs-

tituídos por miniusinas elétricas. Elas transformam sucata, mas também precisamadicionar metal no forno. Por causa desse processo de substituição, acredita-se quea demanda americana por gusa possa chegar a 25 milhões de toneladas nos próxi-mos cinco anos. É um mercado ao feitio do Brasil, que tem condições de produzir a

gusa com maior carbono xo e mais barata, sem competidor à vista.Aparentemente é para esse mercado que o atual polo guseiro de Carajás des-

tinará sua produção. Mas Marcelo Reis, diretor de meio ambiente da CVRD, estáconvicto de que não será por muito tempo, se o atual modelo for mantido. Os trêsmilhões de toneladas de gusa que sairão este ano do Pará e do Maranhão pela ferro-

via de Carajás obtêm carvão pela queima de madeira nativa. “Em poucos anos nin-

guém mais comprará essa gusa”, garantiu Marcelo no debate da semana passada. Ometal terá que utilizar carvão de oresta plantada.

Para imprimir essa marca qualitativa à gusa que pretende produzir com a Nucorem Marabá, a Vale já tem quase 34 mil hectares de oresta plantada em Açailândia,no Maranhão. É um ponto de partida melhor do que o das 12 competidoras poten-

ciais estabelecidas ao longo da ferrovia, mas não é tudo, nem mesmo o suciente.

O certo seria contar com oresta plantada em Marabá mesmo. Mas Marabá jádeveria ter 100 mil hectares, na hipótese mais apertada, ou 200 mil hectares, comcerta folga, para atender o parque guseiro que já existe em seu distrito industrial.

A corrida, portanto, é para diminuir o prejuízo, sem o que a oportunidade de en-

trar maciçamente no mercado americano passará batido pela porta da região e não

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 penetrará nela. Reis manifestou seu sensato espanto de que os investidores preramcontinuar a desmatar na região quando o melhor negócio é tirar proveito da alta

rentabilidade que o plantio de árvores consegue na Amazônia, comparativamente

a qualquer outro lugar do planeta. Não só para produzir carvão para a redução dagusa, mas em produtos de muito valor, como o MDC, um aglomerado especial comcobertura de lâminas extremamente nas (autênticos lmes) de madeira nobre. “Oque se produzir de MDC vende imediatamente em qualquer lugar, a preço alto”,garantiu Marcelo Reis. O Brasil não consegue atender 60% do seu próprio consumodessa mercadoria.

Depois de citar exemplos e números dos ganhos que o Brasil teria se substitu-

ísse o modelo do arco do desorestamento pelo do arco de desenvolvimento susten-

tável, advertiu que o mundo já está consciente da importância estratégica da Ama-

zônia com essa mudança. Os brasileiros não podem continuar a deixar para depoisesse desao. “Vai parecer que não temos capacidade de ordenar a gestão do nossoterritório, tão valioso”, enfatizou Marcelo Reis. A ênfase está em busca de respostamais satisfatória do que o discurso nacionalista jacobino, forte e oco. (2004)

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CARVÃO: O MONSTRO ACORDOU

Perto de mil caminhões trafegam de sol a sol pelo sul e sudeste do Pará, a partir

de um eixo em Marabá, a mais de 500 quilômetros de Belém. Eles escoam a produ-ção de milhares de fornos primitivos, mais conhecidos como “rabos quentes”, ope-

rados por algo como 20 mil pessoas, que produzem diariamente milhares de metroscúbicos de carvão vegetal, um quarto do total do Brasil. Pelo menos metade dessa produção cruza a divisa do Maranhão. O monstro vem crescendo há anos, mas pa-

recia envolto numa bolha opaca, que o tornava invisível. Só agora foi descoberto,com presumido susto e estupor, pelas autoridades.

Era o lixo, colocado para debaixo do tapete, de um expressivo pólo de ferro-

-gusa, já se aproximando da 20ª usina em operação, que foi implantado ao longoda ferrovia de Carajás, com 870 quilômetros de extensão, entre a maior provínciamineral do mundo, em Carajás, no centro paraense, até um dos melhores portos do planeta, na Ponta da Madeira, em São Luís do Maranhão. Sete delas estão instaladasno Pará, que deverá receber mais cinco nos próximos meses. Outras 12 estão dolado do Maranhão, cinco das quais em Açailândia, alcançada por mais uma ferro-

via, a Norte-Sul, e pela rodovia Belém-Brasília.

As guseiras foram se multiplicando, mas deixava-se para depois uma inqui-rição óbvia: de onde provém o carvão que utilizam? Enquanto havia meia dúzia

de usinas, a opinião pública podia ser embalada pela toada monocórdia de que ocarvão era produzido apenas a partir de sobras de madeira das centenas de serrarias

em atividade na região, sem provocar desmatamentos novos, e que logo essa fonteseria substituída pelas orestas energéticas, a partir de projetos de reorestamentocom eucalipto. Só para as necessidades atuais seria preciso que 200 mil hectaresestivessem em produção. O total, atualmente, porém, é zero.

As sobras de madeira existem, as intenções de reorestar, também. Mas nadaequiparável ao consumo de carvão vegetal agora que o pólo começa a ter tamanho

mundial, de 1,5 milhão de toneladas, necessitando de 4,2 milhões de metros cúbicos

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de carvão a cada ano. A competição se acirra, embora todas as usinas tenham umúnico fornecedor de minério de ferro, que é também o proprietário, por concessão pública, pelo prazo inicial de meio século (até 2032), da ferrovia de Carajás: a Com-

 panhia Vale do Rio Doce.Enquanto começam os ensaios para atrair a atenção do Cade, a agência do go-

verno que combate a formação de cartel e a prática de dumping, para o virtualmonopólio exercido pela CVRD na área, a Cosipar, a mais antiga guseira do Pará,montou, a partir de Marabá, uma insólita operação para transportar gusa em cami-nhão, por uma distância de mais de 500 quilômetros de ida (e outros 500 de volta,sem carga de retorno), em mil viagens para cada um dos três embarques que efetuouno porto de Vila do Conde, a 50 quilômetros da capital paraense.

Com essa façanha, autêntica cção cientíca em matéria de economia mineral, ase sustentar no preço recorde (e provavelmente efêmero) do produto, graças à aque-

cida demanda chinesa, Luiz Carlos Monteiro, o dono da Cosipar, espera demonstrara viabilidade do sistema de transposição da barragem de Tucuruí, livrando-se assimdo monopólio ferroviário da CVRD. As eclusas, que permitiriam superar a muralhade concreto de 70 metros de altura, no leito do rio Tocantins, a 350 quilômetros desua foz, ainda estão a claudicar no cronograma nanceiro, apesar de mais uma ro-

dada de promessa federal, renovada pelo presidente Lula. Num discurso recente, eledisse estar empenhada em inaugurar a obra antes do nal do seu mandato, no já tão

 próximo ano de 2006. Ela começou em 1979 e até hoje não chegou a metade do quedeverá ser construído. Mas Monteiro, com sua operação de levar gusa em caminhão para não colocá-la nos trens da CVRD, acabou por conquistar o título de empresáriodo ano no Pará, outorgado pela Federação das Indústrias do Estado.

Visão de futuro? Nem tanto. Se a sala de visitas é bonita, a saída de emergên-

cia é terrível. Agora que ela se exibe, é difícil evitar o choque causado na opinião pública por uma atividade já expurgada de quase todos os países do mundo, num processo que reservou ao Brasil a triste condição de único grande produtor de gusa

à base de carvão vegetal.Quando o horizonte começou a ser desenhado, em 1982, com a criação do

Programa Grande Carajás, nenhum dos personagens bem informados sobre essenovo capítulo desconhecia que se estava a inventar a pólvora. Um ponto de comprade carvão num lugar qualquer de uma oresta como a amazônica é como um vírusinvasivo num organismo indefeso.

A pólvora pode ser boa, como o empresário-engenheiro Luiz Carlos Monteironão se cansa de proclamar. Seria o ferro gusa tropical, de qualidade melhor, graçasao carvão vegetal, e que poderia imunizar-se contra os seus efeitos desastrosos com

enormes áreas de reorestamento e produção organizada. Isso, nas pranchetas e nos

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shows de informática. Na realidade, o que se tem visto é produção esmagadora-

mente clandestina, condição de trabalho desumana, seguidos acidentes nas estradascom caminhões de transporte de carvão, que trafegam velozes e sem os cuidados

devidos, crimes se multiplicando, competição selvagem de preços e medidas dema-gógicas ou inecientes para atacar o problema.

Certamente ele não será resolvido com medidas punitivas irreais, como a anun-

ciada na semana passada, em Marabá, pelo governador Simão Jatene, do PSDB:reajuste de 1.000% na pauta de valores do carvão nas operações interestaduais. Oobjetivo é impedir a exportação de carvão para o Maranhão, reservando-o para asguseiras do Pará e gerando mais renda e mais imposto. Mesmo que haja boa inten-

ção nessas iniciativas, entretanto, elas espicaçaram o monstro sem poder contê-loecientemente em sua reação caótica e selvagem.

As siderúrgicas locais foram atendidas, é verdade. Mas não os carvoeiros doPará, especialmente os de Paragominas. Estimulados a produzir cada vez mais, elesquerem continuar a vender para as usinas do Maranhão porque as paraenses nãoconseguem comprar-lhes toda a oferta que colocam no mercado. Juntando-se aos

guseiros do Maranhão, estão dispostos a ir à justiça contra a medida do governo doPará, questionando sua constitucionalidade. Dizem que ela rompe o pacto federa-

tivo.

O monstro já foi criado e engordado por anos de omissão e conivência. Agora

é encará-lo de frente e encontrar um meio de domá-lo, o mais rápido possível e aomenor custo. Como essa abordagem exige coragem, competência, honestidade eindependência, resolver o problema requer mudança equiparável a uma revoluçãonum setor onde essas qualidades não estão nas prateleiras. Estabelecido o primeiro

confronto, as partes prometem começar a conversar. O m dessas conversas, aindaninguém sabe. O m da oresta, contudo, é visível no horizonte. (2005)

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A AMAZÔNIA VAI ACABAR?

 No primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, o des-

matamento na Amazônia foi recorde, impulsionado pelo sucesso (de custeio altís-simo, como se veria depois) do Plano Real. O primeiro ano do governo Lula, em2003, manteve num patamar alto a média de desmatamento do consulado tucano,como se não houvesse mudança de direção no comando da administração federal,ideologias e retóricas à parte. Ainda era a inércia da gestão anterior – justicavamos petistas.

 No primeiro ano com a indescartável marca do governo do PT, em 2004, porém,o desmatamento na Amazônia manteve a tendência de crescimento contínuo desde2002 e inetiu ainda mais na direção da marca de 1995, que devolveu a Amazôniaaos anos 80, do nal do regime militar e do começo do populismo oligárquico, comJosé Sarney, em 1985.

Essa tendência manda um recado claro ao distinto público: sempre que a ativi-

dade econômica aquecer, por mais articial que seja o aquecimento, tudo que cantaa musa da ciência, da informação, do conhecimento e do saber sobre o melhor tratoda Amazônia será mandado às calendas gregas, metaforicamente falando em lin-

guagem neoliberal, ou às favas, em dialeto neoproletário.

A ordem de avançar será dada à ampla frente econômica sobre a maior fronteira

de recursos naturais do planeta, com seus bulldozers e seu modo de fazer conven-cional, indiferentemente às sutilezas escondidas na maior oresta tropical da Terrae às recomendações do saber humano organizado sobre a maneira adequada de

lidar com ela, no ainda onírico “desenvolvimento sustentável”. A mata continuaráa ir abaixo para que seu lugar seja ocupado pela forma de gerar produtos com lugarcerto no mercado mundial (soja, gado, dendê, minério, etc). O resto é vã losoanesta carnavalesca Dinamarca tropical, com seu Hamlet otimista.

Entre 1960 e 1996 a Amazônia cresceu muito mais do que o Brasil. A evolução

do PIB (Produto Interno Bruto) da região nesse período foi de 8,6% ao ano; o do

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 país, 5,2%. A década do “milagre econômico” do regime militar, a dos anos 70, foirecorde: 11,7% de aumento médio anual do PIB no Norte e 8,5% no Brasil.

 Nos anos 80, o dinamismo amazônico foi ainda mais destacado: seu PIB se

expandiu a 7,8% a cada ano, enquanto a média nacional foi de bem menos do quea metade, 3,1%. Os seis anos tabulados por Aristides Monteiro Neto na década de90 foram de baixa, mas ainda assim a taxa na Amazônia alcançou 4,8% ao ano,enquanto a brasileira cou em 3,1%.

Antes da década de 60 do século passado, a perda da oresta nativa da Amazô-

nia não havia chegado a 1% da superfície da região, que estava completamente porfazer. Agora a proporção é de 17%, ou 680 mil quilômetros quadrados, correspon-

dendo a 8% do Brasil inteiro. Se a Amazônia Legal fosse só oresta, faltariam três

 pontos percentuais para chegar ao limite legal de desmatamento. Com justo título,teria que passar a chamar-se Amazônia Ilegal.

Os anos 70 e 80 certamente foram os mais devastadores (com o recorde total,muito superior ao de 1995, em 1987, durante o funcionamento da Assembléia Na-

cional Constituinte, que se dispunha a desapropriar imóveis rurais produtivos paraa reforma agrária, provocando a ira devastadora dos proprietários rurais, na buscada benfeitoria, que os livraria da ameaça expropriante, anal não consumada). Masentre 1994 e 2004, período demarcado pelo Plano Real, o desmatamento alcançouum terço do total, ou 220 mil quilômetros quadrados. Uma área de tamanho equiva-

lente a quase o São Paulo perdeu sua cobertura orestal em apenas 11 anos. Nessas quatro décadas, o que se desmatou na Amazônia equivaleu a quase 20%

da área desorestada em todo mundo, 90% dessa destruição concentrada na Améri-ca do Sul, África e Ásia. Nada indica que essa situação mude signicativamente acurto ou médio prazo, ainda que os próximos números venham a ser menos gravese ainda que sejam procedentes as explicações dadas pelo governo. O Palácio doPlanalto enfatizou o detalhe de que o Plano de Ação para a Prevenção e Controle

do Desmatamento na Amazônia Legal (2004), conforme foi estrepitosamente bati-

zado, em maio do ano passado, após sete meses de gestação, só alcançou um quartodo período analisado pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de SãoPaulo), entre agosto de 2003 e agosto de 2004.

O instituto considerou na sua análise 93% da área da Amazônia, projetandoos números sobre o total, procedimento que levou alguns intérpretes a prever queo resultado real ainda ultrapassará os 26.130 km2 de desmatamentos calculados,embora o Inpe tenha dito que adotou uma margem de erro (de 5%) que leva a es-

timativa ao patamar mais alto. Desvio, se houver, sustentam os técnicos, será mais por excesso do que por escassez.

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O valor nal, porém, só será divulgado no nal do ano porque o trabalho aindaexige mais tempo para chegar à conclusão. Quando o anúncio ocorre, a atenção aonúmero real não é a mesma que se dá à estimativa, feita em pleno início do verão,

o período de mais intenso desmatamento (ciclo que os “sojeiros” parecem estarcomeçando a antecipar para o “inverno”). Por isso, não houve muito comentáriosobre o resultado revisado da estimativa do Inpe para a safra 2002-2003. Na pro-

 jeção, o desmatamento desse período era de 23.750 km2. O número nal acabousendo de 24.597 km2. Essa pequena margem de erro corresponde a quase 15% daárea do Distrito Federal, base de alguns dos mais destacados defensores da distanteAmazônia. E a mais da metade da área reorestada do Projeto Jari. Área visível, portanto, mesmo a olho nu.

Em acréscimo a esse elemento de sua defesa, o governo federal argumentouque no segundo semestre do ano passado foram criadas mais reservas ambientais,que deram um passo a mais na meta paralela do Arpa (Programa de Áreas Protegi-das da Amazônia), herdado da gestão anterior, de colocar sob o manto da legislaçãoambientalista, até 2012, uma área de 500 mil km2 na Amazônia. Para isso, serão in-

vestidos até lá 400 milhões de dólares, sobretudo através de doações internacionais(oito vezes o orçamento qüinqüenal do badalado zoneamento ecológico-econômicodo Pará).

Se essa é uma boa estratégia, não lhe falta munição, ao menos de festim. No

mesmo dia aziago da divulgação das previsões negativas sobre o desmatamento, ogoverno anunciou mais cinco reservas no Pará, quatro delas para apoiar pescadoresno litoral nordeste do Estado, numa rica zona de mangue depredada pela pesca (ecaptura) predatória, e uma protegendo um manancial nas cabeceiras do vale doTapajós.

O próprio presidente, com discurso que parecia preocupado em animar a mal--acomodada ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, comemorou o recorde al-cançado: 7,7 milhões de hectares de áreas protegidas, desde 2003. Desse total, 5,5

milhões de hectares no Pará. Sem contar 8,2 milhões de hectares sob “limitaçãoadministrativa” no Pará, ao longo da BR-163, que podem ou não virar reserva. Eoutros tantos milhões já pensados – ou delirados. Desse jeito, não sobrará área parao governo do Pará proteger em seu magníco zoneamento (que partirá do pontozero, diante da total ausência de reservas ecológicas estaduais).

Os adversários da criação dessas sucessivas reservas, algumas em pontos críti-cos, sobretudo as da “Terra do Meio”, no Xingu, cobiçada por sua madeira valiosa,especialmente o mogno, dizem que a área é grande, embora seja 30% menor do queo que já foi derrubado de oresta nativa na Amazônia e signique apenas 10% do

tamanho da região, quando o padrão mundial recomenda o dobro.

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O tamanho da área que perdeu sua oresta é que é impressionante. Os técni -

cos concordam que desses 680 mil km2, 200 mil km2 sejam campos de pastagensdegradados. Parte deles provavelmente perdidos para sempre, condenados a virar

cerrado ou savana. Quanto custou fazer essa destruição? Qual o valor do desperdí-cio de oresta, substituída por pastos infestados de praga, solo compactado e poucaou nenhuma atividade produtiva?

Isso não importa, segundo os desenvolvimentistas. A segunda região que maiscresceu economicamente foi o Centro-Oeste, a mais próxima da Amazônia e maisconectada a ela, foco de expansão de sertão na hiléia.. Mato Grosso, a já combalidaintrusão amazônica no Centro-Oeste, é o Estado mais desmatado de toda região,tanto em termos absolutos como relativos. Praticamente metade dos 26 mil km2 de

orestas desbastados no ano passado cava em Mato Grosso. A conseqüência já pa-rece inevitável, em dois sentidos. Um deles é a exaustão dos recursos orestais doEstado. O outro é ele reforçar sua função de centro de dinamização das derrubadas

na Amazônia, que será sua imagem.

O mapa atualizado das derrubadas dentro da região começa a mudar de gura.Ao invés do simples “arco”, como estava caracterizado, o desmatamento já formaum semicírculo, com espirais que avançam pelo eixo da Santarém-Cuiabá (que jáultrapassou o nível da sustentabilidade) e pelo rio Madeira, não por acaso eixos deexportação, seja para a passagem de produtos oriundos do Centro-Oeste como para

nucleação das novas atividades no próprio território amazônico.

De fato, há alterações nessa frente. Ela não produz apenas o ciclo da rotação dadestruição, com migração intensiva de gente e de terra, deixando na sua passagemum rastro do saque. Há fatores de germinação de alguma riqueza. O agronegócio

sosticou a atividade produtiva em Mato Grosso graças à maior retenção de capitalno próprio Estado. Com isso, o governo matogrossense tem a melhor estrutura paraacompanhar, prevenir e reprimir desmatamentos, mas é, ao mesmo tempo, o quemais desmata. Esquizofrenia de nouveau riche sertanejo.

 Na delicada condição de dono do principal cargo público e do título de maior plantador mundial de soja, o governador Blairo Maggi procura afastar de si umoutro título, nada desejável: o de rei do desmatamento. Ele disse que quase metadedas derrubadas (dois terços delas ilegais) localiza-se em imóveis de até 300 hecta-

res. No pacto assinado com o governo federal, essas áreas menores caram sob aresponsabilidade do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Elas alcançaram 7,5 mil km2 dos 16,3 mil estimados.

É verdade. Mas os grandes plantadores de soja produzem em áreas próprias e deterceiros, que utilizam lotes menores. Essa circunstância mascara a presença da soja

em áreas de oresta. Por isso, o governo de Mato Grosso autorizou a derrubada de

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4 mil km2 (três vezes mais do que os 1,4 mil km2 autorizados pelo Ibama em todaa Amazônia Legal, excluindo Mato Grosso e Rondônia, aos quais essa tarefa foi de-

legada), quando o desmatamento real foi quatro vezes maior. A tecnologia a serviço

da proteção da oresta (e da ecologia em geral) se mostra, nesses momentos, e narealidade (não a virtual), um dado secundário.

O acompanhante atento das frentes pioneiras já observou em campo, nos últi-mos anos, como é a antecipação do “sojeiro”. Quando ele manifesta interesse poruma área, antes de se estabelecer já provoca efeitos, por iniciativa própria ou deterceiros, numa onda que ultrapassa qualquer controle a partir daí: desmatamento,especulação, grilagem, ilegalidade e violência.

Essa não é uma característica especíca da soja, nem ela pode ser acusada de

 particularmente destruidora: é a regra no avanço desordenado das frentes nacionais,movidas a subsídio estatal e pressa, sofreguidão de ganho, tudo traduzindo-se comoirracionalidade. Todos, porém, negam contribuir para esse desorestamento, embo-

ra seja evidente a conexão.

Os madeireiros juram que aproveitam apenas as sobras dos desmatamentos pra-

ticados pelos fazendeiros, que juram evitar a derrubada de mata nativa, manejando pastagens. Já os carvoeiros juram que apenas aproveitam as sobras das serrarias,enquanto os guseiros, na ponta dessa linha, juram que cobram dos carvoeiros a ori-gem da madeira queimada em seus fornos. Já o governo jura que acompanha tudo

isso, mas é enorme (não só espacialmente falando) a distância entre a retaguardatecnológica, suprida por informações de satélite e todas as técnicas de interpreta-

ção, manejadas por pessoal qualicado e razoavelmente pago, e a frente de ação,com meios desiguais.

A grande diferença, porém, é que a Amazônia cou muito mais complexa doque nas décadas de 70 e 80, com muito mais população, atividades e teias de negó-

cios, e tem menos espaço para a pura e simples clandestinidade, ou a transgressãolegal, com a legislação de proteção e repressão que foi criada, além da cobrança

internacional pró-ecologia.O interesse do mundo pelo que acontece na Amazônia certamente não é al-

truísta. No entanto, o dos nossos irmãos do Sul seguramente também não o é. Nomeio desse tiroteio, que constantemente é mais do que uma gura de linguagem, aAmazônia tem que encontrar seu próprio caminho. Enquanto ainda é Amazônia. E

se ainda quiser sê-la.

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FLORESTA: SÓ PARA INGLÊS VER?

Acreditam alguns técnicos que ainda há 45 bilhões de metros cúbicos de ma-

deira na oresta nativa amazônica, com seus 285 milhões de hectares, dos quais246 milhões de hectares são considerados produtivos. Esse notável estoque, querepresenta um terço da madeira tropical do planeta, daria ao Brasil condições dedominar o comércio internacional de madeira tropical neste século, desbancando odomínio asiático.

 Nas últimas duas décadas, a produção madeireira na Amazônia deu um saltoespetacular: de 24% da produção nacional nos anos 80, pulou para 90% de toda amadeira extraída no Brasil atualmente. Todos os anos saem da região 100 mil me-

tros cúbicos de madeira, tendo São Paulo como seu principal mercado. A atividadeemprega quase 600 mil pessoas. Mas é uma atividade precária, ou, como diz o jar -gão do dia, “insustentável”. A grande maioria dessa extração é feita de forma ilegale sem obedecer a normas técnicas. Contribuiu para que, nas quatro últimas décadas,15% das orestas amazônicas desaparecessem. Ou mais de 500 mil quilômetrosquadrados.

A continuar assim, um dia vai faltar madeira na Amazônia. Mais grave ainda:vai faltar oresta, que, como hoje se sabe, está muito longe de ser apenas umaconcentração de madeira sólida. A oresta é o núcleo da biodiversidade amazônica.

Sem ela, desaparece a incrível diversidade de vida na região, que, segundo alguns,representa um ativo de sete trilhões de dólares. Acaba, portanto, a própria Amazô-

nia, ou o elemento que a dene como tal. E o seu futuro.

O governo Lula promete, no Programa Amazônia Sustentável, substituir a cul-tura do desmatamento, que está ameaçando destruir a região, pela cultura da o-

resta, estimulando e impondo a utilização racional da riqueza orestal, para queseja uma atividade sustentável. Ou seja: que produza madeira – e muitos outros produtos de origem orestal – sem com isso destruir a riqueza que utiliza. O nomedessa forma de uso é “manejo orestal”. Todos sabem que o único caminho válido

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é esse, embora pouco percorrido e insatisfatoriamente estudado. Das 2,5 mil em-

 presas madeireiras instaladas na Amazônia, apenas 1,5% fazem manejo e possuemcerticação pelo Conselho de Manejo Florestal, o FSC (Forest Stewardship Coun-

cil, em inglês).O manejo orestal costuma ser denido como um conjunto de técnicas adequa-

das, que são utilizadas para garantir a extração dos recursos orestais, incluindo amadeira, causando o menor impacto possível. O manejo orestal requer um inves-

timento inicial maior (para poder ser explorada, a propriedade tem que ser zoneada,com a denição das áreas de oresta que podem ser exploradas e as áreas de preser -vação permanente, que precisam continuar intocadas), mas a médio e longo prazoo retorno tem sido compensador.

A Cikel, uma das raras empresas que faz manejo no Pará, administra 318 milhectares de orestas com baixo impacto ambiental e mantém um índice de reores-

tamento anual de 300 mil árvores nativas. A Mil Madeireiras, a primeira indústriacerticada do país a trabalhar e lucrar com manejo empresarial, garante que a árvo-

re manejada cresce 5,5 vezes mais do que a derrubada com corte raso e predatório.

Esses exemplos mostram, juntamente com outras experiências e pesquisas, quea madeira certicada não é mais cara do que a explorada predatoriamente; e que hámercado para ela. Um dos mais interessados é o das indústrias de móveis de luxo,cada vez mais propensas a adquirir madeira certicada da Amazônia para moralizar

e legitimar a compra da matéria-prima orestal da Amazônia.Apesar da demonstração da rentabilidade econômica do manejo e das perspec-

tivas crescentes de mercado para a madeira certicada, o compromisso retórico doatual governo ainda parece muito distante dos fatos. Em primeiro lugar, porque amaioria dos madeireiros prefere continuar a recorrer ao comércio clandestino. Em

segundo lugar, porque há ainda muita margem de manobra (e, por conseguinte,de manipulação) para o manejo fraudulento. E também porque o próprio governonão assume uma postura decidida e sólida para colocar em prática a promessa de

substituir a cultura do desmatamento pela cultura da oresta. O Pará é, atualmente,o exemplo vivo e dolorido desses impasses.

Tanto em área quanto em proporção, o Estado é um dos mais prejudicados pelodesmatamento. É também um dos alvos preferenciais da grilagem de terras, da es-

 peculação econômica e dos conitos sociais, em grande parte causa e conseqüênciada concentração da propriedade rural. O acúmulo de problemas acabou explodindoquando o prosseguimento da atividade madeireira entalou no gargalo da legalidade.

O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renová-

veis) não quis mais ser o avalista da destruição e da clandestinidade, exigindo um brusco enquadramento do setor em todas as normas legais. Suspendeu a aprovação

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de 60% dos projetos de manejo orestal que lhe foram apresentados e condicionouo reinício da tramitação dos processos ao cumprimento das exigências.

Seguiu-se o caos. Na verdade, o funcionamento da indústria madeireira se ba-

seava na premissa de que a lei foi feita para inglês ver. Poucas empresas estão em

condições de se ajustar às exigências do Ibama a tempo de aproveitar o verão,cumprir seus contratos, manter sua estrutura e escapar à falência. A permanecer asituação atual, a safra deste ano estará quase toda perdida e muitas empresas irãoquebrar. Haverá desemprego, mais tensão social e, inevitavelmente, a multiplicaçãoe o agravamento dos conitos que já ocorreram.

A saída é deixar tudo como estava para ver como é que ca? Naturalmente,não. Mas se os dirigentes dos órgãos públicos do setor continuarem atrás de suas

escrivaninhas à espera de que os empresários se ajustem às novas disposições ad-ministrativas, com certeza receberão o impacto da explosão social inevitável. Asnormas põem em prática os dispositivos legais, a começar pelos que emanam daConstituição. Mas se a preocupação é meramente formal e retórica, de exigir ocumprimento da lei, e de imagem (fazendo de conta para o mundo que as coisasmudaram no tratamento do meio ambiente), então os efeitos poderão ser funestos.

Se não era mais tolerável o faz-de-conta do manejo para inglês ver, a impossibi-lidade de tornar factível um procedimento sério e conseqüente desestimulará os quequerem entrar nessa nova e necessária etapa da exploração econômica dos recursos

orestais da Amazônia e levará quem car no mercado a voltar a uma fase aindamais primitiva: a da total clandestinidade.

Ela está prestes a se estabelecer, como mostram alguns acontecimentos recen-

tes, absolutamente inéditos, como assaltos a sedes do Ibama (inclusive em Belém) para o roubo de processos e de ATPFs, as autorizações para o transporte de produtosorestais, que se transformaram em autênticas moedas no interior da região. Essa éa clandestinidade que se assumiu denitivamente criminosa, à sombra da limitação,da incompetência, da incapacidade ou da inapetência das autoridades.

Há formas mais sosticadas, que consistem em burlas bem feitas. Os planos demanejo orestal são os mais correntes. Dados do Núcleo de Sensoriamento Remotodo Ibama revelam a concentração dos novos planos em dois municípios paraenses: Novo Progresso, na região sudoeste do Estado, e Porto de Moz, no vale do Xingu,onde estão agindo algumas das mais agressivas frentes de expansão da fronteiraagrícola e da exploração orestal na Amazônia. Números do Inpe (Instituto Na-

cional de Pesquisas Espaciais) conrmam que os municípios de Novo Progressoe Porto de Moz, em conjunto, perderam quase 240 mil hectares de orestas nosúltimos cinco anos.

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Os planos de manejo, nesses casos, servem apenas para esquentar a pura esimples extração de madeira. Essa pirataria é consumada através de vários outrosardis. Um dos mais importantes é o uso de laranjas, que cedem seus nomes para

que uma única pessoa requeira vários lotes contíguos, formando uma propriedademuito maior do que o limite constitucional para a alienação de terras sem consulta

ao Senado, que precisa dar sua aprovação sempre que a transação envolver mais de2.500 hectares.

Uma das decisões anunciadas pelo Ibama foi não aceitar mais as manobras que

 permitiam a alienação de lotes sucessivos através de prepostos. Formalmente, oinstituto está coberto de razões. Mas sua atitude pode ter como consequências in-

crementar a mera grilagem, induzindo a indústria de falsicação de títulos. Mesmoque não mais houvesse o uso de laranjas e todos se enquadrassem na bitola legal, pergunta-se: qual manejo empresarial, feito com seriedade, se tornaria viável numaárea de 2.500 hectares?

Certamente se pode alegar, que a saída seria, então, apoiar o manejo comunitá-

rio. Como hipótese de trabalho, sem dúvida. O Ibama até aprovou, recentemente,mais quatro manejos desse tipo, dois deles no Pará, um no Amazonas e outro noAcre, comprometendo-se a repassar-lhes 1,7 milhão de reais num período de trêsanos. Eles integram o Projeto de Apoio ao Manejo Florestal Sustentável (ProMane-

 jo), iniciativa conjunta do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente, como parte do

PPG7 (o programa de proteção de orestas tropicais, nanciado pelos sete paísesmais ricos do mundo).

O ProManejo pretende promover o manejo da oresta a partir de ações de ex-

tensão, fomento, assistência técnica e fortalecimento das organizações comunitá-

rias, para que elas funcionem como catalisadores de mudanças nas suas regiões ouem sistema de produções ans. Seu principal mérito seria manter em pé as orestasnativas, a despeito da extração de madeira, feita de tal maneira a não colidir comos demais usufrutos ambientais proporcionados pela oresta. Tais comunidades ru-

rais, na maioria das vezes marginalizadas economicamente, ocupariam um terçodas orestas da região e somariam seis milhões de pessoas, segundo avaliação dealguns técnicos.

Essa é uma das boas alternativas da Política Nacional de Floresta, mas não é aúnica, não é a que vai dar retorno mais imediato, nem a mais importante a curto emédio prazo. O manejo orestal comunitário deve ser apoiado com ênfase crescen-

te, mas também a atividade empresarial não pode ser ignorada, embora certamentesem receber o que o governo anterior lhe prometera: o direito de explorar metadedos 50 milhões de hectares que seriam transformados em orestas públicas, à se-

melhança do modelo asiático, possibilitando-lhes diminuir os custos de aquisição

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e manutenção de terras, evitar os complicados e explosivos problemas fundiáriosda Amazônia e livres da contingência de recorrer a terceiros para abastecer-se de

matéria prima.

Se o limite constitucional de 2.500 hectares é benéco e se o Senado mostra-

-se incapaz de apreciar e decidir sobre alienações de áreas maiores (não tomou

qualquer decisão a respeito até hoje), a conclusão correta não deve ser cruzar os braços e assistir à selvageria que se estabelecerá no sertão amazônico, com orestasderrubadas e sangue.

A atitude correta devia ser o governo suspender denitivamente a venda deterras públicas. Esse instituto deve ser abolido para, em seu lugar, surgirem for -mas de concessão, a título precário, condicionadas a contratos, através dos quais o

Estado exigirá o ajustamento do empreendimento produtivo às normas ambientaise condicionará a concessão ao cumprimento do que for estabelecido, sob pena decancelamento do contrato.

O Iterpa (Instituto de Terras do Pará) propôs ao Ibama algo que contempla essanova situação, mas não esgota as providências que o poder público deve adotar. Não basta estabelecer a relação fundiária com o particular através de autorizações

de uso, sem transferência de domínio. O governo precisa atuar também no plano sil-vicultural. Ao invés de elaborar o plano de manejo, o particular apenas o nanciariae o acompanharia. O agente do processo seria o próprio poder público, diretamente,

através do seu serviço orestal, e indiretamente, através da contratação de terceiros.O custo dessa empreitada seria coberto pelo pagamento de uma taxa, cobrada emrelação ao tamanho da área concedida para uso pelo Estado. O controle privado só

se estabeleceria no momento da exploração.

Além de inserir a área especíca de manejo no território estadual, vericandoa compatibilidade do uso desejado com a aptidão real da área (o que exigirá macroe microzoneamento ecológico-econômico), o Estado estabelecerá cláusulas contra-

tuais que obrigarão a empresa a utilizar mão-de-obra local qualicada (ou quali-

cável) em seu próprio projeto e associá-lo a projetos comunitários em torno, de talmaneira que seu suprimento seja em parte obtido pela própria empresa e em parte por produtores e fornecedores da vizinhança. Assim, talvez se evitem os erros e ví-cios do modelo asiático, que criou enormes plantios homogêneos e empreendimen-

tos tipicamente de enclave, favorecendo a devastação ambiental e o êxodo rural.

É claro que o aparato institucional que hoje existe não é capaz de realizar essaautêntica revolução na forma de utilização dos recursos orestais da Amazônia. OIterpa, que precisa urgentemente se modernizar, se qualicar e remunerar melhorseu quadro técnico, atuaria apenas no âmbito fundiário. O governo do Estado pre-

cisa urgentemente criar seu Instituto de Floresta, com maleabilidade burocrática e

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disponibilidade de recursos à altura das tarefas que o aguardam impacientemente há

muitos anos. Dentre as quais está a de consolidar e regulamentar o Código Florestal

do Pará.

Assim, o Estado assumirá plenamente a gestão do seu território, capaz de orde-nar a ocupação do solo e controlar o uso dos recursos naturais, com o concurso dainstituição federal, o Ibama. As duas instâncias deveriam partilhar competências eagir em sintonia, acabando-se com a competição e o conito que hoje predominamem suas relações. Um duplo grau de jurisdição, quando pactuado, também evitaráas distorções que o monopólio de mando invariavelmente produz, criando vícios,dependência e corrupção.

Um entendimento de alto nível desfaria o clima de frustração e desorientação,

que funcionou como contrapeso à reunião que, no dia 5, em Belém, na qual o gover -nador Simão Jatene e o presidente do Ibama, Marcus Barros, rmaram um pacto decooperação técnica entre os governos federal e estadual para atender os interesses

do Pará. A cooperação deveria ser efetivada por intermédio da Câmara Técnica

Intersetorial, formada por 17 instituições estaduais, ONGs e órgãos federais). ACâmara Intersetorial deveria mediar e deliberar sobre conitos orestais, fundiáriose ambientais.

Houve na ocasião discursos emocionados de ambos os lados e promessas de

se ingressar numa nova era de entendimento, mas logo depois normas e circulares

 baixadas pelo Ibama de Brasília restabeleceram o status quo anterior, um órgão cri-ticando o outro e fazendo exigências impossíveis de serem atendidas ou, se cumpri-das, insucientes para mudar de fato a forma de exploração dos recursos orestais.Isto, sem considerar duas outras frentes econômicas que já são de há muito ou estãose tornando mais agressivas do que a indústria madeireira: a pecuária e a cultura

da soja.

A continuar assim, o verão promete voltar a ser quente outra vez, não só noclima. (2003)

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OS DESERDADOS DA TERRA:

A FRONTEIRA COMO TRAGÉDIA

Durante quatro meses, em 1976, z, sucessivamente, as duas mais longas via-

gens como repórter pela Amazônia. Um mês e meio descendo o rio Amazonas a

 partir de Vitória, o porto de Altamira no rio Xingu, no Pará, até Manacapuru, noEstado do Amazonas, depois de Manaus.

Fui ver a segunda maior cheia no século XX do maior rio do mundo. Circulei pelos mais antigos nucleamentos da colonização europeia na região, que ainda exi- bem a mais típica face do que seria a civilização uvial amazônica.

Durante os dois meses seguintes percorri as novas áreas de ocupação humana,

induzida pelo bordão geopolítico do governo militar, de que era preciso integrar aAmazônia para não entregá-la à ameaçadora cobiça internacional.

O “vazio demográco” dessas paragens longínquas precisava ser preenchido por cidadãos brasileiros. A “terra sem homens” da denição ocial colonialista,que datou da construção da Transamazônica, a partir de 1970, o ano zero da “novaAmazônia”, devia ter novo destino: abrigar os “homens sem terra” de outras para-

gens nacionais; em especial, do agelado Nordeste (assolado nesse ano por maisuma seca centenária). Só assim o sinete da soberania do Brasil seria gravado – comtintas fortes – nas brenhas da fronteira selvagem.

Trilhei as frentes pioneiras em Roraima, Acre e Rondônia. Pude testemunhar aeliminação das últimas sobrevivências do mundo anterior, subordinado à cultura doextrativismo vegetal, com ênfase na borracha. Derrubada a mata, surgiam as gran-

des fazendas e os projetos de colonização do Incra. Na época o Instituto Nacionalde Colonização e Reforma Agrária era o maior proprietário rural do mundo, comquase dois terços de todas as terras devolutas da Amazônia sob a sua jurisdição.

Um dos momentos mais inesquecíveis dessa jornada eu o vivi num m de tardeem Xapuri, a terra do futuro líder Chico Mendes. Depois de um dia de trabalheira,

sentei no cercado do curral de uma fazenda e ali quei a conversar, por horas, com

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um maranhense que chegara a esse lugar remoto depois de sucessivas migrações,desde a sua terra até o extremo oeste, por milhares de quilômetros.

Ele estava no último PIC (Projeto Integrado de Colonização) do roteiro. Se

avançasse mais, passaria para o lado da Bolívia, como muitos brasileiros já haviamfeito e fariam ainda mais nos anos seguintes. Saíra da baixada maranhense apenascom a esperança de que, na vastidão sem porteiras da Amazônia, nalmente encon-

traria um pedaço de terra para chamar de seu.

Mal se instalava, porém, e alguma causa de expulsão também se estabelecia. Namaioria das vezes, na forma de um jagunço que chegava para lhe dizer que aquelasterras já tinham dono. Legalista e submisso, deixava o lote e seguia em frente. As-

sim aconteceu uma, duas, três vezes.

Depois se cansou de ser enxotado só com cara feita. Passou a exigir a apre-sentação do papel que comprovasse a propriedade. O jagunço lhe mostrava comoresposta um “três oitão” engatilhado. E ele, mais uma vez, se ia com mulher, lhose o que podia carregar. Até que, passando de Rondônia para o Acre, conseguiu seraceito no PIC do Incra.

A “colonização ocial dirigida”, que zera ferver a chegada de milhares de co-

lonos às margens da Transamazônica e da BR-364 (Cuiabá-Porto Velho-Rio Bran-

co), já estava no seu declínio. Até 1973 o governo federal, mesmo que de forma in-

competente, esteve comprometido em transformar os hoje designados “sem-terra”em uma classe média rural na distante fronteira.

Os colonos eram recrutados em seus pontos de origem e transportados (às vezes

de Boeing) até os locais de assentamento, onde recebiam um lote demarcado de 100hectares, com um hectare já desmatado, uma estrada para escoar a produção, pontosde apoio às proximidades, um salário mínimo de subsídio por certo tempo e créditode fomento.

Esse modelo de desenvolvimento podia chegar aos seus objetivos, com tempomais demorado e alto custo inicial. Mas o que o governo mais queria da Amazô-

nia era que gerasse dólar. Agricultura familiar coloca comida na mesa do mercado

interno, mas não é exportadora. Com uma dívida externa fora de controle e sem poupança própria, o Brasil Grande da geopolítica dependia da nova fronteira.

Ao invés de colonos em pequenos lotes, a prioridade passou a ser a grande propriedade comercial, hoje mais conhecida por agronegócio. A fronteira “fechou por dentro”, diagnosticaram os pesquisadores. O Éden fundiário passaria a exibiríndices de concentração da propriedade da terra maiores do que a média nacional.O que devia ser solução se tornou um novo problema – e enorme, como se vê pelos

tantos conitos com morte na disputa por terra.

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Só quando o céu já estava escuro, José de Ribamar de Souza concluiu o rela-

to dos seus sofrimentos, em anos de migração compulsória Amazônia adentro. OIncra não cumprira o prometido. Sua roça começava a dar prejuízo. Ele pressentia

que o fazendeiro vizinho iria logo abordá-lo. Não da forma violenta das expulsõesanteriores. Desta vez provavelmente seria com um argumento mais suave e ecaz:uma oferta em dinheiro. Depois de aceitá-la, para onde o colono maranhense iria?

A pretexto de fazer reforma agrária, o Incra fez colonização. Ou seja: transferiuos problemas agrários e fundiários do Brasil antigo para o Brasil que se incorporava

à federação nacional, a Amazônia. Prometendo o Éden para meeiros, arrendatários, parceiros e outros “sem-terra”, levou-os a diversos dramas, que sempre resultaram, para a oresta, em derrubadas.

As do João da Silva sempre foram menos do que as das S/A, mas não deixaramde ser derrubadas desastradas. Elas sangravam tanto a vítima, a mata, quanto o su-

 posto beneciário, o colono.

Finalmente, depois de quatro décadas de equívocos, alguém mandou o Incra parar. Foi esse o pedido do Ministério Público Federal, em ação civil pública aco-

lhida provisoriamente pelo juiz Arthur Pinheiro Chaves, da 9ª vara federal de Be-

lém no dia 5 de Outubro de 2012.

 Na ação civil pública o Ministério Público Federal diz que os projetos de as-

sentamento instalados pelo Incra no território paraense têm promovido desmates de

grande vulto, muitos dos quais no interior de unidades de conservação, provocando“agressões de grande monta ao bioma da Amazônia paraense”.

Alega que os danos que vêm sendo perpetrados no interior dos assentamentos

nas áreas destinadas à desapropriação para reforma agrária “têm experimentado, proporcionalmente, um crescimento contínuo nos últimos anos, havendo, portanto,fundado receio de que o Incra, antes do julgamento da lide, cause, por intermédioda criação, instalação e funcionamento dos projetos de assentamento, novas lesõesgraves e de difícil reparação ao meio ambiente, ou, ainda, agravamento daquelas já

iniciadas, decorrendo daí o periculum in mora [perigo iminente], aliado à irreversi- bilidade de que os danos ambientais ordinariamente se revestem, bem como do fatode que a reparação a posteriori não tem o condão de restabelecer o estado de origem

do meio ambiente agredido”.

O Incra se defendeu. Apontou a crescente redução, percentual e quantitativa,dos desmatamentos nos seus projetos de assentamento. Garantiu que a implementa-

ção de planos de recuperação ambiental é feita desde 2008 e que sua gestão ambien-

tal segue um novo plano. Todos os assentamentos são agora criados com a licença

ambiental prévia e que a apresentação do Cadastro Ambiental Rural é exigida, em-

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 bora não obrigatória por lei. E que outras normas serão modicadas e “exibilida-

des” com o novo Código Florestal.

Mas o juiz Arthur Pinheiro Chaves se mostrou mais impressionado com outrosdados. Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, com sede emSão Paulo), 29,4% do desmatamento anual na Amazônia Legal ocorrem no interiordos assentamentos. O que signica que dos 742.779 quilômetros quadrados de áreadesmatada na região, 133.644 quilômetros quadrados se situam dentro dos 2.163assentamentos.

Somente 14 dos assentamentos criados no Pará possuem área desmatada infe-

rior a 80%. É considerável o número de assentamentos em que o grau de devastaçãosupera os 50%, “em afronta” ao novo Código Florestal, “o qual prevê que todo imó-

vel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de ReservaLegal, com um percentual mínimo de 80%, em se tratando de imóvel de orestana Amazônia Legal”. Dados fornecidos pelo Ibama revelam que, em alguns casosa área degradada nos Projeto de Assentamento do Incra, o desmatamento chega aatingir 98% da área.

O Imazon (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia) concluiuque de 1997 a 2010, de 1.440 assentamentos analisados, abrangendo uma área de174.307 quilômetros quadrados, cerca de 30% da área de assentamentos, corres-

 pondentes a 53.150 quilômetros quadrados, foram desmatados. Destes 30%, 17%da área desmatada, correspondente a 30.472 quilômetros quadrados, teriam ocor -rido em momento anterior ao assentamento, já os 13% restantes aconteceram apóssua criação.

Em outro estudo, de 2006, o Imazon mostrou que aproximadamente 106 milquilômetros quadrados, correspondentes a 49% da área dos assentamentos mapea-

dos, foram desmatados até 2004, o que, em relação à área total do desmatamento naAmazônia, aproximava-se dos 15%.

Um exemplo da indução ao desmatamento foi constatado num projeto em Novo

Repartimento, na Vila Cacimbão, no âmbito do Programa Municípios Verdes. Um produtor declarou que “se não derrubar o Incra faz a retomada da posse” e que ele

mesmo foi “intimado” para “fazer algo na terra senão seria feita a retomada da terra

 por não produzir”.

O juiz considerou também que mais de 10 ações, tramitam pela 9ª vara fede-

ral propostas pela própria autarquia fundiária, visando a reintegração de posse emlotes de assentamento denominado “Abril Vermelho”, localizado no município deSanta Bárbara, próxima de Belém, “em que o Incra denota sério descontrole em

relação aos assentados e aponta como um dos motivos ensejadores dos pedidos de

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reintegração, expressamente, a perpetração de infrações ambientais pelos invasoresnão cadastrados nos assentamentos”. O que não acontece em locais mais distantes?

Por todos os motivos que analisou, o juiz Arthur Chaves decidiu determinar aoIncra que adotasse seis providências:

 – promover a cessação do desmatamento em todos os assentamentos, sob penade multa, apresentando mensalmente as imagens de satélite ao juízo, que compro-

vem a obrigação de fazer;

 – apresentar, no prazo de 90 dias, Plano de Recuperação de todas as áreas de-

gradadas, apontadas na ação do MPF;

 – proibir a criação de novos assentamentos no Pará, sem o prévio Licenciamen-

to Ambiental e Cadastro Ambiental Rural;

 – fazer a averbação da reserva legal em todos os assentamentos;

 – apresentar em juízo, no prazo de 90 dias, informação da exata localização detodos os assentamentos no Estado;

 – apresentar, no prazo de 30 dias, plano de trabalho para a conclusão dos ca-

dastros ambientais rurais e licenciamentos ambientais de todos os assentamentos

no Pará.

O Incra anunciou que recorrerá da decisão. Para o bem de todos, seria melhorque a cumprisse. Passaria a parecer que a reforma agrária é coisa séria, beneciandoo homem e respeitando a natureza. (2012)

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O PARAÍSO PERDIDO

(O FIM DO XINGU)

 Na Amazônia, quem

vai à chuva se queima 

O vale do Araguaia-Tocantins serviu de porta de entrada do Brasil na Amazô-

nia, a última fronteira do país. Foi a partir do nal dos anos 1950, mas, sobretudo,na metade dos anos 60 que a frente nacional, vindo de sul e de leste, penetrou nasterras rmes da região, deixando para trás as terras secas do Nordeste e avançandosobre a oresta úmida da Pré-Amazônia Maranhense. Até então as várzeas, terrasmarginais ao rio Amazonas e alguns dos seus auentes, eram o domínio dos índiose de alguns grupos de caboclos, que se amoldaram ao ambiente em séculos deconvivência com o ciclo das águas e em aculturação com os europeus a partir do

século XVII.

Só os altos rios davam acesso às terras rmes, onde estava a kaapor, a selvaverdadeira, desconhecida e frágil, complexa, mesmo para os índios milenares. Ain-

da assim, não era possível penetrar mata adentro. A tecnologia não permitia. Hoje,sabemos que grupos isolados penetraram até locais distantes, mas por lá caram,

fazendo parte da paisagem (são os “índios isolados” dos nossos dias). O coloniza-dor só chegaria à jungle através dos eixos rodoviários de “integração nacional”, oevento mais traumático de toda história amazônica.

Os governos militares proclamaram que a Amazônia devia ser ocupada pela

“pata do boi”. Teorias, teses e palpites saíram-lhes em socorro, avalizando a des-

truição da mata nativa e sua substituição por campos de pastagem e de cultivos agrí-colas. A Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, extinta em2002 e substituída pela Agência de Desenvolvimento da Amazônia – ADA, para serressuscitada em seguida, nessa dança de siglas que fascina a burocracia nacional)

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forneceu o combustível – altamente inamável, aliás – da colaboração nanceiraestatal ao capital privado através dos incentivos scais.

Tem sido uma destruição selvagem. Maciços orestais vieram abaixo para ser

comercializados em toras e pranchas, ou foram simplesmente queimados. O quese lhes sucedeu, porém, não tinha o que hoje se chama de “sustentabilidade”. Os pastos foram invadidos por pragas. O boi, quando chegou, era de má qualidade. Asroças, por sua vez, continuaram a seguir a rotação, num rastro de desmatamento. Sómeio século depois se tenta fazer diferente, mas 20% da Amazônia já não são maisAmazônia. Em geral, viraram savanas, vegetação secundária ou lixo da natureza.

O Araguaia tinha a maior densidade de mogno conhecida: 10 árvores por hecta-

re. Hoje não tem praticamente mais nada. O mogno, o bem de maior valor da Ama -

zônia atualmente (o metro cúbico pode chegar a 1.800 dólares na Europa), ocorreagora numa densidade 50% vezes menor, mais a oeste, no vale do Xingu.

O que impressiona quem testemunhou a pilhagem do Araguaia é constatar que

o ritmo da destruição no Xingu é igual ou ainda maior do que a do Araguaia-Tocan-

tins. Isso tudo, mesmo se sabendo que a oresta vale mais do que seus sucedâneosou substitutos – naturais ou articiais. Apesar do conhecimento cientíco largamen-

te disseminado, dos instrumentos de controle e repressão ao desmatamento e dointeresse da opinião pública pela questão, dentro e fora do país.

Se a ditadura foi a arma usada, das décadas de 60 a 80, pelos que devastaramo Araguaia, a democracia não tem sido fator de inibição para os que estão agindocomo autênticos piratas no Xingu desde a década de 90. Atuam se apropriando ili-citamente de terras públicas, através dos processos de grilagem, ou extraindo clan-

destinamente as preciosas árvores de mogno. As grilagens são medidas em centenas

de milhares de hectares, ou até de alguns milhões. A extração de madeira se exibeno tétrico espetáculo de milhares e milhares de toras formando jangadas ao longodo Xingu e de alguns dos seus auentes.

A pergunta perturbadora diante dessa situação é: por que a sociedade não re-

age? E por que, quando eventualmente esboça uma reação, ela não é ecaz? Ouainda: por que os ladrões de terras e de madeiras são bem-sucedidos?

Tenho-me feito essas perguntas com crescente angústia. Ao mesmo tempo, procuro alertar a sociedade para esses problemas, colocando-a diante dos fatos edos seus verdadeiros contextos, escamoteando as falsas explicações, os argumentosmaliciosos, as versões utilitárias. Viajo, consulto documentos, estudo, ouço fontes,confronto personagens, aplico minha inteligência na elucidação dos acontecimen-

tos, escrevo – e como escrevo! Não é uma atividade unilateral, porém: exponho-meem debates, provoco diálogos, abro espaço para a manifestação de terceiros.

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Assim, pude perceber os novos mecanismos que, usados pelo mesmo tipo deator, visando os mesmos objetivos dos piratas que o antecederam, estão lhes ren-

dendo rios de dinheiro, enquanto o Pará e sua gente empobrecem. Os grileiros, por

exemplo, contrataram bons e espertos advogados para se escorar na lei em benefí -cio próprio – e ilícito.

A justiça tem sido impotente para bloquear-lhes o caminho: ou porque a lei éomissa, ou porque sua aplicação é claudicante; ou ainda por indiferença e conivên-

cia mesmo dos magistrados. De qualquer forma, ao invés de fugir da justiça, comoantes faziam, os grileiros a têm transformado em sua aliada, involuntária ou não,risonha e franca ou onerosa.

O cúmulo dessa audácia está expresso na gura de Carlos Medeiros, que todos,

ao menos no meio, sabem ser um fantasma, pessoa absolutamente ctícia, criada por uma quadrilha, mas que movimenta seus interesses escusos através de advoga-

dos de carne e osso, com registros na OAB e tudo. Registros, por sinal, que perma-

necem válidos até hoje, apesar das sucessivas promessas de dirigentes do judiciário paraense de cancelá-los.

Já os contrabandistas de madeira se valem, além da justiça, de ONGs impetu-

osas, descuidadas ou ingênuas, manobrando-as como fachada para consumar seus propósitos especulativos. Uma operação hollywoodiana de apreensão de madeirafoi montada no Xingu com essa nalidade, dispondo de helicópteros e envolvendo

 policiais armados, tendo à frente uma ONG internacional, o Greenpeace.Seguiu-se um interdito proibitório judicial e a designação de um el depositário

amigo da madeira apreendida dentro da área interditada. E assim se abriu o acesso

a milhares e milhares de toras de mogno de origem obscura ou agrantemente cri-minosa, mas devidamente “esquentadas” por esse tipo de manobra.

Tenho denunciado essas fraudes no meu pequeno Jornal Pessoal, Talvez sejaessa circunstância que explique o fato de que, nos últimos 20 anos, respondi (e con-

tinuo a responder) a 33 processos judiciais, sete dos quais permanecem ativos, dois

deles porque os magistrados se declaram suspeitos imotivadamente ou postergam odesfecho de casos já prescritos (um outro é natimorto, mas se mantém por emulaçãodo poder da sua autora).

São nove os autores dessas 33 ações, a maioria já prescrita: Rosângela MaioranaKzan (5 processos), herdeira do maior império de comunicações do norte do país,do qual é diretora administrativa; seus irmãos, Ronaldo e Romulo Maiorana Júnior,mais a sua empresa, a Delta Publicidade (14 ações); Cecílio do Rego Almeida (3 processos), que era um dos homens mais ricos do país, dono da Construtora C. R.Almeida; o desembargador (já aposentado) João Alberto Paiva (2); a desembarga-

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dora (também aposentada) Maria do Céu Cabral Duarte (2); o madeireiro Wandeirdos Reis Costa (2), o publicitário Francisco Cavalcante, do PT (2), e o ex-prefeito petista e atual deputado estadual pelo PSOL, Edmilson Rodrigues, com dois pro-

cessos, além do próprio PT, na justiça eleitoral.Sugestivo é quando se agrupam as ações por autores e motivações. Os donos do

grupo Liberal, aliado à Rede Globo de Televisão, foram responsáveis por 19 pro-

cessos. Querem ser os donos da opinião pública, mas não querem ser scalizadose criticados. Outros nove foram propostos por pessoas diretamente relacionadas à

grilagem das terras e à devastação das orestas do Xingu.

Em nenhuma dessas matérias jornalísticas as personagens foram acusadas deserem criminosas ou ofendidas com adjetivos. Os textos são substantivos: a partir

do estudo de caso e da interpretação dos fatos, as personagens foram criticadas porque seus atos violavam a lei e/ou ameaçavam o patrimônio da coletividade. Ne-

nhum dos artigos constituía libelo ou possui tom editorializado. Mesmo as opiniõesse sustentavam em argumentos demonstrativos. Logo, para serem contraditadas,requeriam igual demonstração.

A isso, em qualquer lugar civilizado do planeta, dá-se o nome de diálogo. A pé -

rola da democracia é a controvérsia, que elucida as questões e ilumina os caminhosda sociedade. No Pará, esse procedimento tem sido carimbado de criminoso nasinstâncias judiciais do Estado, sem maior perquirição ou mesmo a mera indagação

curiosa. A injustiça perpetrada e avalizada por uns se benecia da alienação demuitos, cada vez mais.

Por suas decisões majoritárias, ao menos no que a mim concerne, a justiça doPará impôs uma lei – não escrita, é claro – da mordaça à imprensa. Ou, ao menos,à imprensa que tem a coragem de proclamar a verdade incômoda aos poderosos.

 Numa dessas ações a juíza da 16ª vara penal de Belém, que era privativa doscrimes de imprensa, me condenou a um ano de prisão, pena convertida em duascestas básicas, de um salário mínimo cada, durante seis meses, em função da minha

 primariedade.

Meu crime: simplesmente ter criticado decisão do desembargador João AlbertoPaiva, na liminar de uma ação cautelar, que restabeleceu a plenitude dos efeitos deum registro imobiliário – com todas as evidências de ser fraudulento – efetuado no

cartório de Altamira, a capital do Xingu, por aquele que foi considerado o maiorgrileiro do mundo, o empresário Cecílio do Rego Almeida, paraense de origem,mas paranaense por formação. Foi no Paraná que ele constituiu o seu império em-

 presarial, centrado na Construtora C. R. Almeida, a sexta maior do Brasil.

Por ato do juiz de primeiro grau, à margem desse registro seria averbada a

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existência de uma ação de anulação e cancelamento dessa matrícula, A providênciaera simplesmente para que terceiros de boa fé soubessem que a dominialidade da

área estava sendo questionada pelo órgão fundiário ocial do Estado, o Iterpa. Se a

adquirissem, deixariam de ter direito à boa fé e, em consequência, a eventuais inde-nizações, caso a justiça acabasse decidindo em favor do Instituto de Terras do Pará.

Qual o prejuízo para o detentor do registro? Nenhum, exceto se ele tivesse propósitos especulativos sobre a área. Como a C. R. Almeida alardeava que a utili-zaria para um projeto ecológico, nada a impedia de realizar seus intentos. A medidaacautelatória se justicava pelo fato de que a área podia se estender por algum valorentre cinco milhões e sete milhões de hectares. Essa vastíssima extensão de terras,que daria para formar o 21º maior Estado da federação brasileira, composta por 27unidades, tinha todos os indícios, fortíssimos, de jamais haver sido desmembradado patrimônio público.

Evidências nesse sentido foram reunidas e apresentadas por todas as instâncias

do poder público, federal e estadual, da Polícia Federal ao Ibama, do MinistérioPúblico Federal à Funai. Elas já eram de largo conhecimento quando o desembar -gador João Alberto Paiva, liminarmente, revogou a tutela antecipada pelo juiz deAltamira. E o fez com fundamento num pressuposto: de que aquela área era inques-

tionavelmente de propriedade privada. Só depois de decidir, submeteu seu ato aoMinistério Público, que divergiu de sua posição, sem conseguir mudá-la.

 Não escrevi que o magistrado agiu com intenções ocultas ou que favoreceu

deliberadamente a Incenxil (atrás da qual estava o empresário Cecílio do Rego Al-meida). Escrevi que errou. Fiz a armativa preparado para sustentá-la diante daopinião pública.

Mas não estava preparado para ser advertido que criticar juiz é crime (e delesa-majestade) na órbita da justiça paraense. Pensei que a verdadeira democraciativesse chegado à fronteira amazônica – e não apenas grileiros, desmatadores, salte-

adores e cavalos de Tróia revestidos da denominação de Grandes Projetos.

Lamentei que o juiz deixasse de olhar em torno, ouvindo o clamor das ruas,conforme o chavão de uns anos atrás, renovado pelas manifestações de rua de ju-

nho de 2013. Se abrisse os olhos, captaria o conteúdo de relatórios e pareceres dasinstituições técnicas do governo, unânimes e uníssonas em denunciar a grilagemmontada por trás dos registros imobiliários fraudulentos (com toda a cornucópia de

 papéis, carimbados ou não, que lhe dão na aparência o que não têm na substância).Se ouvisse esse clamor o magistrado não poderia proclamar que aquelas terras de

vastidão continental seriam inquestionavelmente de propriedade particular.

Tudo o que disse sobre a grilagem da C. R. Almeida foi repetido na denúncia

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que o Ministério Público Federal fez, logo depois, contra familiares e dependentesde Cecílio Almeida envolvidos nesse golpe contra o patrimônio público. Denúnciaessa que se baseou em um inquérito da Polícia Federal e em muitos outros docu-

mentos ociais probatórios da grilagem.Apesar disso, estava eu condenado como um reles difamador, por dizer a ver -

dade, e impedido de poder prová-la diante da instância que devia ser o árbitro das pessoas públicas envolvidas em temas de interesse coletivo: a sociedade – ou, tec-

nicamente falando, a opinião pública.

Exerci prossionalmente o jornalismo durante 19 dos 21 anos do regime militar(1964-1985). Nesse período, todas as garantias individuais e os direitos elementaresda pessoa estavam sujeitos a violação, inclusive a liberdade de imprensa, principal-

mente por parte do Estado, que se comportava ora como um Leviatã ora como umBehemoth.

Mas fui levado às barras dos tribunais apenas uma vez, em 1976. Como editorde um suplemento de um jornal de Belém, O Liberal, publiquei duas páginas sobrea violência da polícia na busca e recaptura de presos fugidos. As fotos, de espanca-

mento e baleamento, eram chocantes. O texto, de Paulo Ronaldo Albuquerque (jáfalecido), era duro.

Impressionado, como todos os leitores, o governador Aloysio Chaves mandouinstaurar inquérito para apurar os fatos. Aplaudimos a iniciativa, própria de um cul-tor do direito. Chamado a depor no IPM (Inquérito Policial Militar), fui ao batalhãoda Polícia Militar como testemunha. Saí de lá como réu. Outros jornalistas haviamdito em seus depoimentos que aqueles agrantes de agressão eram falsos. As fotosteriam sido montadas.

O presidente do IPM me ofereceu uma possibilidade de fuga: bastava incri-minar Paulo Ronaldo, gura sempre visada pela polícia (não exatamente por seuserros, mas por seus acertos). “Queremos acertar as contas”, me condenciou o ca-

 pitão Antônio Carlos Gomes, depois coronel e secretário de Segurança Pública.

Mas eu publicara aquelas fotos e editara o texto porque era a pura verdade:os presos iam ser torturados mesmo na ilha de Cotijuba; como fugiram durante atravessia da baía, na lancha Marta da Conceição, apanharam quando recapturados.O militar me olhou desapontado, esperou alguns segundos e depois, com um ar desem-jeito, ouviu-me.

Em seguida fui intimado a comparecer à antiga sede da Polícia Federal. Fui palmilhado e fotografado, sozinho, sem qualquer acompanhante. Estava enquadra-

do na terrível Lei de Segurança Nacional. A acusação: insuara a população contra

uma instituição pública, a polícia. Era um subversivo. Apenas Paulo Ronaldo e eu

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fomos despejados do polo da inocência para o da culpa. Todos os demais, por con-

fessar o delito de manipulação, foram poupados do constrangimento.

O processo não chegou a esquentar na Auditoria Militar, em Belém. Foi logo

desqualicado e remetido para a justiça comum. Por um motivo óbvio: não haví-amos ameaçado a segurança nacional. No fórum criminal de Belém, o processoacabou arquivado. O promotor Américo Leal (depois desembargador) disse em seu parecer que eu merecia uma medalha por minha coragem, não uma punição.

E foi só, ao menos na via judicial. Houve outras ameaças físicas e intimidações,além de numerosos constrangimentos a que os jornalistas eram levados quandocobriam certos acontecimentos. Mas nem mesmo no auge de polêmicas acesas meucontendor, inclusive os dotados de muito poder (como o multiministro Jarbas Pas-

sarinho), sequer cogitaram de me acionar na justiça.Sou grato até hoje a esses oponentes por tomarem nossas divergências a partir

de uma premissa: de que sou um prossional sucientemente sério para não escre-

ver sobre o que desconheço e para não colocar o boi da privacidade diante do carro

do interesse público.

Continuo a ser jornalista nestes 28 anos de democracia plena que estamos vi -

vendo, imaculada do ponto de vista formal (ou potencial), com outra coloração da perspectiva essencial (o que diz muito sobre a imaturidade da democracia à brasi-

leira ou sobre essa forma de organização política da sociedade humana, enquantotese em si).

Como explicar a enxurrada de processos que desabou sobre mim e as qua-

tro primeiras condenações, parecendo iniciar um ciclo? Neste aspecto, posso serum exemplo ilustrativo da perseguição que se move, em plena democracia, contraaqueles que buscam a verdade e se comprometeram a divulgá-la para o povo. Os

 perseguidores sabem que reprimem e sufocam o que é, de fato, verdade. Os papeisforam invertidos graças ao suporte institucional que esses personagens recebem

dos três poderes, sobretudo do poder judiciário, o menos exposto aos reetores da

opinião pública e os mais discretamente efetivos na cobertura dada aos recursosnaturais da Amazônia.

 Neste relato, procuro mostrar como a apropriação fundiária ilícita de terras pú-

 blicas tem sido o caminho mais trilhado para o saque do mais exposto – e por ve-

zes o mais rico e nobre – dos recursos naturais: a oresta. Reconstituir a trilha dagrilagem é a forma de, conhecendo-a bem, impedir que por ela passem os piratas esaqueadores, que tanta infelicidade causam à Amazônia. Se conseguir conquistar acompanhia do meu leitor nessa viagem, estarei satisfeito.

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COMO SE APOSSAR DE TERRAS PÚBLICAS

A Amazônia tem sido apontada como um verdadeiro paraíso para os que seapropriam de terras públicas por métodos fraudulentos ou ilegais, conhecidos comogrileiros ou piratas fundiários. A situação se tornou tão grave que o poder judiciáriono Pará chegou a formar uma força-tarefa para combater a grilagem, que se vale,sobretudo, dos cartórios do interior do Estado.

Hoje, o principal campo de provas da grilagem é a justiça. Os grileiros sostica-

ram seus golpes. Mais eciente do que contratar pistoleiros para impor a ocupaçãode determinada área ou se valer de fraudadores para inventar títulos de domínio,duas das formas mais antigas de usurpação de terras do patrimônio público, tornou-

-se colocar a área cobiçada sub-judice.

A C. R. Almeida é apontada, no “Livro Branco da Grilagem de terras no Bra-sil”, editado em 2002 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, como a res-

 ponsável pela mais grave tentativa de apropriação indébita de terras públicas no

 país. A empresa, uma das maiores empreiteiras brasileiras, com sede no Paraná, sedizia proprietária de uma área de terras que poderia ter de cinco a sete milhões de

hectares, no vale do Xingu, no Pará. Essa área, que integra a chamada “Terra doMeio”, é cobiçada por ter a maior concentração de mogno, a árvore mais valiosa daAmazônia e seu produto de maior cotação.

Ação em São Paulo

Em 1999 o empresário Cecílio do Rego Almeida ajuizou, em São Paulo, umaação de indenização por danos morais contra a Editora Abril, o vereador FranciscoEduardo Modesto da Silva e o procurador do Estado Carlos Alberto Lamarão Cor -rêa.

O dono da Construtora C. R. Almeida pediu a condenação dos réus ao paga-

mento de um valor, que caberia à justiça arbitrar, por supostamente terem ofendido

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sua honra. Os três acusaram o empreiteiro, em reportagem publicada nesse mesmoano na revista Veja, pela prática dos crimes de roubo, esbulho possessório, estelio-

nato, homicídio, ocultação de cadáver e trabalho escravo.

A revista semanal dedicou matéria de capa a Cecílio Almeida, acusando-o dese apossar de uma área de terras do tamanho da Holanda e da Bélgica somadas,tornando-se “o maior latifundiário do país ocupando terra alheia no Pará”. O em-

 presário se considerou ofendido moralmente por uma frase dita pelo procurador

estadual em entrevista ao repórter Policarpo Júnior. Segundo o procurador, “se asinstituições funcionassem como deveriam, esse sujeito já estaria na cadeia”. O em-

 presário entendeu que essas declarações congurariam o ato ilícito de calúnia, jáque o procurador ter-lhe-ia imputado, falsamente, ato denido como crime, o este-

lionato, previsto no artigo 171 do Código Penal.Em sua defesa o procurador Carlos Lamarão sustentou que a ação interposta pelo empresário visava, na verdade, impedir sua atuação como representante doEstado do Pará, responsável por demandas judiciais que buscavam impedir a con-

sumação da grilagem praticada por Cecílio Almeida. Mostrou que o pedido era ju-

ridicamente impossível porque os títulos apresentados não o autorizavam a se dizer proprietário das terras, que eram – e continuam a ser – públicas.

A Editora Abril, por sua vez, suscitou, em abono do seu procedimento, o direitoconstitucional de informar, exercido dentro dos critérios que norteiam a atividade

da imprensa. Defendeu que os textos jornalísticos criticados não implicaram práticade ato ilícito, não permitindo cogitar de responsabilidade civil. Disse ainda que oautor adquiriu terras sabendo que se tratava de fraude.

O juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª vara cível de São Paulo, decidiu que oempresário não tinha razão. Lembrou que Carlos Lamarão era procurador do Esta-

do do Pará e assinou, juntamente com procuradores do Iterpa, a petição inicial daação de nulidade e cancelamento da matrícula, transcrições e averbações no registrode imóveis da comarca de Altamira. Desses documentos que se valeu o empreiteiro

 para se declarar dono de uma área de terras que poderia ir de 4,7 milhões a 7 mi-lhões de hectares, no vale do Xingu.

O empresário atribuiu intenção ofensiva a um trecho da reportagem de Veja,que dizia: “A ocupação irregular de terras públicas é a ponta de uma selva de irre-

gularidades. Há dois meses, o vereador Eduardo Modesto, do PPS, vice-presidenteda Câmara de Altamira, enviou carta de três páginas ao presidente Fernando Henri-que listando as ações ilegais de Cecílio do Rego Almeida na região. No documentoexistem acusações cabeludíssimas, como assassinato, ocultação de cadáver, traba-

lho escravo e formação de quadrilha, mas nenhuma é comprovada. (...) ‘Um índio

da tribo xipaia foi morto a facadas porque não concordava em seguir as orientações

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da empresa de Cecílio’, acusa o vereador. ‘Para expulsar os ribeirinhos de suas ter -ras, ele mandou fotografar todos eles, dizendo que era para tirar documento. Poucodepois, apareceram um cabo e um sargento informando aos moradores que as fotos

foram usadas para chá-los na polícia e que, se criassem problemas, seriam expul-sos e presos’, conta o vereador”.

Segundo Cecílio Almeida, esse trecho evidenciaria que Modesto “praticou oato ilícito de calúnia, pois imputou falsamente ao autor vários atos denidos comocrimes, quais sejam homicídio, ocultação de cadáver, trabalho escravo e formaçãode quadrilha ou bando”. Mas o juiz negou-lhe razão.

Historiou que o vereador havia recebido, “de cidadãos comuns do povo”, umacarta com as acusações que reproduziu: “Suas declarações à revista, em essência,

nada mais são do que reprodução delas. A Comissão Parlamentar de Inquérito for-mada na Assembleia Legislativa do Estado do Pará dedicou-se ao tema, o que nãoteria ocorrido se fosse completamente descabido. É certo que a aludida CPI con-

cluiu pela inexistência de provas dos crimes antes mencionados. Mas isso não sig-

nica que o réu deva ser condenado por ofensa à honra do autor, porque, como ve-

reador, não poderia simplesmente car calado. Novamente, também desse réu, nãose evidenciou nestes autos dolo, má-fé, imprudência, culpa, temeridade, leviandadeou malícia nas suas declarações à revista”.

Os outros trechos da reportagem que pretextaram a ação do empresário foram:

“A diferença dessas iniciativas antigas, e malogradas, em relação à de Cecílio doRego Almeida é que, no seu caso, o fazendão selvagem consiste num dos maioresassaltos à terra de que se tem notícia na história do país das sesmarias e capita -

nias hereditárias. (...). Além disso, o empreiteiro levou 199.000 hectares (uma áreamaior que a cidade de São Paulo) que pertencem à Fundação Nacional do Índio,Funai, e outros 268.000 hectares (o que corresponde a mais de duas vezes a cida -

de do Rio de Janeiro) cujo dono, na época, era o Estado-Maior das Forças Arma -

das, EMFA. Nessa área militar, conhecida como Serra do Cachimbo, os militaresconstruíram um campo secreto para testes nucleares nos anos 80, onde pretendiamexplodir a bomba atômica, caso o Brasil viesse a construí-la. Ou seja: de um golpesó, Cecílio tomou terras do Estado do Pará, uma reserva indígena e ainda um pe-

daço de uma área de segurança nacional. (...) Chumbo Grosso. O ex-capataz HélioFerreira da Silva, 34 anos, cheou durante sete meses uma das bases nas terras doempreiteiro, em Entre Rios: ‘Lá tem espingarda, revólver e pistolas 7.65, além demunição. A ordem é passar pólvora em quem entrar sem autorização. (...) O rigorcom a segurança talvez não seja tão bélico quanto diz o ex-capataz, já que não setem notícia de alguém que tenha recebido ‘pólvora’ por lá. (...) O General Indíge-

na. O cacique Manuel Xipaia, 46 anos, é uma das guras emblemáticas no país de

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Cecílio. Ex-garimpeiro, deixou Altamira para chear o exército de índios formado pela Rondon Projetos Ecológicos: ‘Nós ajudamos a defender as terras e a empresanos dá a munição’. (...) Em 1971, gravou uma conversa sua com o então governa -

dor do Paraná, Haroldo Leon Peres, que lhe pedia 1 milhão de dólares para liberar pagamentos. Peres acabou afastado do cargo. Anos depois, grampeou também o en-

tão governador Álvaro Dias em represália à desclassicação da CR Almeida numaconcorrência pública. Dessa vez, nada provou. Sua intimidade com grampos levou-

-o a ser apontado como um dos suspeitos no caso das tas clandestinas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, mas não apareceunenhum indício que o comprometa”.

Por meio de,extensos argumentos, o juiz de São Paulo considerou improce-

dente a ação, condenando o empresário a pagar as custas, despesas processuaise honorários advocatícios que xou, em relação a cada um dos réus, em 10% dovalor atualizado da causa. Uma decisão de contraste acusador em relação aos julga-

dos que a justiça paraense adotaria, especialmente contra mim, conforme mostrareimais adiante.

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A JUSTIÇA COMO CÚMPLICE

A grilagem de Cecílio Almeida podia ter sido desfeita com facilidade e rapideza partir da decisão que o juiz Torquato Alencar tomou, em 1996, a pedido do Iterpa.

Ele mandou a escrivã do cartório de Altamira averbar uma advertência à margemdo registro imobiliário da Fazenda Curuá. A legalidade daquele registro fora con-

testada pelo órgão ocial de terras do Estado. Logo, nenhuma transação podia serfeita com base em tal assentamento, até que a pendência fosse elucidada pela via ju-

dicial, com o jogo processual das provas e contraprovas, alegações e contestações,num procedimento que costuma ser demorado e acidentado.

Essa trajetória foi interrompida pelo desembargador João Alberto Castelo Bran-

co de Paiva, que lhe deu novo curso, sempre favorável ao grileiro, enquanto a jus-

tiça do Pará comandou as ações. No nal de 1999, Paiva suspendeu a decisão deTorquato Alencar. Como relator de um recurso apresentado pela Incenxil, empresalocal de comerciantes de Altamira, comprada em 1995 pela C. R. Almeida, a umadas câmaras cíveis isoladas do Tribunal de Justiça do Estado, o desembargadorrestabeleceu, liminarmente o registro imobiliário da empresa “até o julgamento de-

nitivo do recurso” pela turma julgadora da qual participava.

Paiva tomou essa decisão sem sequer ouvir o representante do Ministério Pú-

 blico. Manifestando-se a respeito, quatro meses depois, a procuradora de justiçaIolanda Parente apoiou a tutela antecipada do juiz de Altamira e endossou seus

argumentos, contra os do desembargador-relator.Mas não conseguiu reverter a situação: o despacho de João Alberto Castelo

Branco Paiva, conrmado pelos seus colegas desembargadores da câmara, conti-nuou de pé até o deslocamento do feito para a justiça federal, quando a União mani-festou o seu interesse na causa. Até esse momento, depois de dezenas de incidentes processuais, a decisão do desembargador serviu de arrimo da Incenxil para mantero controle da área, mesmo tendo seus alegados direitos questionados em todas asinstâncias da administração pública, tanto na estadual quanto na federal.

O que estava em causa eram centenas de milhões de reais em potencial e uma

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área de nada menos do que 4,7 milhões de hectares, mas que, ao nal, podia somarsete milhões de hectares, quase duas vezes e meia o tamanho da Bélgica. Dentro dosseus limites havia rios, orestas, depósitos minerais e um potencial genético (e eco-

nômico) ainda não adequadamente avaliado. Praticamente prejulgando a questãode mérito numa decisão apenas preliminar, o desembargador Paiva se consideroucompletamente seguro sobre uma questão tão polêmica.

Por isso, não hesitou em fazer uma declaração categórica (e singular):

“Não há dúvida que, efetivamente, são terras pertencentes ao domínio privado,legalmente adquiridas, com ocupação mansa e pacíca e com cadeia dominial, aolongo de mais de oitenta anos. Tanto que foram dadas em hipoteca ao Banco do

Estado do Pará sem quaisquer contestações”.

A adesão do desembargador à posição da empresa, avançando sobre o mérito daquestão, era totalmente ociosa (e até inconveniente) porque a pretensão da Incenxilainda era a uma tutela cautelar. O que interessava realmente naquele momento era

a alegação da empresa de que a manutenção da restrição ao registro imobiliário im-

 pediria “a recuperação dos prejuízos que, inevitavelmente, atingirão o patrimônioda agravante [a empresa]”, que, nesse caso, “se agura problemática; irreparável”.

  Seria mesmo? Ao conceder a tutela antecipada ao Iterpa, o juiz Torquato Alen-

car visou apenas impedir que a Incenxil viesse a transferir ou alienar a área em

litígio antes da justiça decidir se ela pertence ao particular ou ao Estado. Era essa asua determinação expressa e o m especíco do seu ato.

 No entanto, para o resguardo de sua fé pública, o escrivão do cartório imobili-ário de Altamira já estava obrigado a considerar o recebimento da ação de cancela-

mento do registro daquela área, promovida pelo Iterpa. Qualquer pessoa de boa-féinteressada nas terras em litígio, procurando informação sobre a gleba, saberia queseu domínio deixara de ser “manso e pacíco”, estando pendente de apreciação judicial.

Dessa maneira, a empresa poderia continuar sem problemas a elaborar o taldo projeto ecológico, que estaria pretendendo implantar no Xingu, e os contatosnanceiros, que exigem tempo para maturar. Seu prejuízo, imediato e objetivo, sóexistiria se ela estivesse interessada em transferir ou alienar a área, ou qualqueroutro negócio que requer a disponibilidade livre e desembaraçada do imóvel.

Antes, não dispunha dessa condição porque o registro no cartório ameaçavatanto o patrimônio público quanto o de terceiros, como argumentou o juiz Alencar ereconheceu a procuradora Parente. O despacho favorável do desembargador Paiva

lhe concedeu esse privilégio, em desfavor dos demais interesses, inclusive o do po-

der público. O desembargador ignorou inclusive o pedido de deslocamento do feito

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 para a justiça federal e a informação de que o INSS do Paraná estava procurandoarrestar as terras para que elas servissem de garantia a uma dívida de mais de 150milhões de reais da C. R. Almeida junto à previdência.

Mesmo se, ao nal da intrincada demanda, fosse conrmado, como acabousendo, mas pela justiça federal, que a área é mesmo do Estado e não particular, atéesse momento, graças ao aval do desembargador Paiva, a Incenxil pôde fazer o quequis com esse autêntico país dentro do Pará. Bem que várias tentativas de desfazero nó judicial foram feitas. Mas não deram certo. O inusitado foi usado para impediressas iniciativas. Como a do dia 16 de julho de 2000.

 Nesse dia, os desembargadores da 3ª Câmara Civil isolada do Tribunal de Jus-tiça do Estado realizaram a mais madrugadora das suas sessões em todos os tempos.

Iniciada às sete da manhã, às oito já estava concluída e os magistrados puderamembarcar num ônibus que os esperava para uma “excursão de serviço”. Indiferentesao “detalhe” de que o expediente ocial no tribunal só começaria às oito horas.

Julgando que a rotina seria seguida naquele dia, quando o procurador estadualIbraim Rocha chegou ao fórum de Belém para fazer uma sustentação oral em nomedo Iterpa, de cujo departamento jurídico era diretor, não encontrou ninguém. Nemcomo se desincumbir da sua tarefa.

  Ele iria pedir aos desembargadores para restabelecerem a tutela antecipada

do juiz Rocha de Altamira no processo de anulação e cancelamento dos registrosimobiliários feitos naquela comarca em favor da Incenxil. Com isso, a RondonAgropecuária, sucessora da Incenxil e atrás da qual estava a C. R. Almeida, cariasem poder exercer suas pretensões sobre a área.

Ibraim Rocha (que viria a ser procurador geral do Estado no governo do PT)encontrou vazio o plenário onde deveriam reunir-se os membros da câmara. Um

funcionário lhe explicou que a sessão realmente fora realizada, mas acabara quasemeia hora antes. Os magistrados a haviam antecipado porque às oito horas sairiam

em excursão rodoviária para visitar uma comarca do interior.

 Na taquigraa, o diretor do Iterpa cou sabendo que, à unanimidade, a câmaradecidira cancelar a tutela antecipada estabelecida pelo juiz Torquato Alencar, dandoganho de causa ao agravo interposto pela Incenxil contra o Iterpa. Assim, para todosos efeitos, a empresa voltou a ser a detentora legítima da área, até que a matéria dedireito venha a ser decidida pela justiça.

O que as autoridades temiam era que, com o restabelecimento da plenitude doregistro cartorial impugnado, a empresa nomeasse esse bem em garantia de sua dí-vida junto à previdência social no Paraná ou continuasse suas transações no merca-

do de terras, com derivações para os negócios ecológicos. Pelo ritmo da tramitação

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da ação do Iterpa, proposta em 1996 e decidida na Câmara quatro anos depois, a justiça estadual levaria ainda muito tempo para a decisão nal sobre quem seria overdadeiro dono da área. Deixaria que o particular continuasse a dispor das terras

até a sentença em instância nal.O que chocou o procurador Ibraim Rocha foi o inusitado procedimento da câ-

mara do tribunal. Normalmente, suas sessões só começavam às 10 horas da manhã.Excepcionalmente, eram antecipadas de meia hora. Talvez nunca antes, nos anaisdo TJE, uma reunião foi iniciada e concluída meia hora antes de começar o expe-

diente regular do fórum de Belém, que abre às oito horas da manhã e fecha às 14horas (o protocolo permanece ativo até as 20 horas).

Uma viagem ao interior seria tão importante que justicasse procedimento de

tal excepcionalidade? Ainda mais porque sujeitava o tribunal a um questionamento,o do cerceamento de defesa. Por não ter sido previamente avisado sobre a exóticatroca de horário, o representante do Iterpa deixou de fazer a sustentação oral que planejara. Voltou para casa revoltado.

Mas acabou prevalecendo a tese de que era melhor deixar de lado o recurso paraa realização de nova sessão. Com isso, seria apressado o deslocamento do processo para a justiça federal. Ninguém acreditava mais na isenção do judiciário paraensenessa questão (e em muitas noutras, aliàs) Nessa ocasião se intensicavam as inves-

tidas sobre o patrimônio fundiário público. Por causa do aquecimento do mercado

de terras, dois meses antes a Câmara Federal instalou uma Comissão Parlamentarde Inquérito. Um dos seus principais alvos era justamente essa área do Xingu rei-vindicada pelo grupo C. R. Almeida.

A CPI se deslocou de Brasília a Belém, em junho de 2000, preocupada emescapar ao inglório destino da maioria dessas iniciativas: acabar em pizza. Depois

de dois dias de intensa atividade na capital paraense, ouvindo depoimentos e cole-

tando documentos, os deputados perceberam que a frente que investia ilicitamentesobre o patrimônio fundiário brasileiro se tornara ativa de novo. Além de continuar

a lançar mão de velhos métodos de apropriação, os grileiros tinham um novo alvo:o crescente mercado de uso da terra para ns ecológicos.

O ponto de partida continuava sendo o mesmo: os cartórios do interior da Ama-

zônia, que se notabilizaram, por omissão ou conivência, em matricular irregular -mente imóveis rurais em nome de particulares. Alguns têm sido o foco da maioria

das ilicitudes, como os de Altamira, São Félix do Xingu, Igarapé-Miri e Acará.Apesar da intensa reincidência, entretanto, não estavam sendo reprimidos – ou a punição costumava ser leve.

A culpa pela impunidade foi atribuída, nas audiências realizadas pela CPI na

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capital paraense, ao órgão encarregado de scalizá-los, a Corregedoria Geral deJustiça. Mas ainda que à frente desse órgão estivesse alguém capaz, trabalhadore honesto, talvez não conseguisse reverter a situação diante da complexidade do

 problema e da sua amplitude. Uma ideia apresentada durante as audiências da CPI,a de desmembrar a corregedoria em duas (para a capital e o interior do Estado) ecriar uma primeira subcorregedoria, encarregada de atuar exclusivamente sobre oscartórios, acabaria sendo adotada depois (sem o avanço esperado).

Correições permanentes nos cartórios não seriam bastante para dar consistência

à fé pública formal desses serventuários, na prática agentes privados autônomos.Também foi proposta a completa estatização dos cartórios particulares de registro

imobiliário, eliminando-se o hibridismo atual, que ainda subsiste, raiz das indeni-ções, que facilitam as fraudes. Outra sugestão foi a unicação dos cadastros de ter -ras. Os governos – federal e estaduais – dariam assistência técnica para a montagem

dos cadastros nos próprios cartórios.

Além da matrícula, os livros de registros (ou as memórias dos computadores,numa atualização tecnológica) conteriam os croquis das áreas dos imóveis rurais.Com um programa de demarcação de terras, por via administrativa ou judicial,dentro de algum tempo (e a um custo que as autoridades vêm se negando a encarar,mas que é necessário) já seria possível ir a um cartório e saber exatamente onde selocaliza a área, sem estar exposto às desagradáveis surpresas que o caos fundiário

engendra. Ou prepará-las para terceiros.

Essas medidas possibilitariam criar uma estrutura moderna, rápida e conávelde informações cadastrais e de situação legal dos imóveis rurais, raios-x impossívelde obter na Amazônia dos nossos dias. Naturalmente, um resultado de tais propor -ções vai depender de uma atitude mais corajosa e consequente por parte de cada umdos poderes da República e da combinação produtiva de todos eles.

Superando a antiga determinação do poder judiciário estadual (corporativistacomo sempre), de que nenhum de seus membros compareceria a CPIs, a desembar -

gadora Maria de Nazaré Brabo de Souza, então presidente do Tribunal de Justiça doPará, foi depor na comissão federal, na sede da mesma Assembleia Legislativa, elaque havia se ausentado quando ali funcionou CPI estadual.

O fantasma que circula pelo Fórum

Essa disposição ao diálogo não foi partilhada pelo desembargador João Alberto

Paiva, justamente ele, o autor da liberação do registro imobiliário da C. R. Almeida.A alegação foi de que estava viajando. A decisão tomada pelo desembargador erasucientemente grave para estimulá-lo a antecipar a volta em 24 horas e ir à CPI. O

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de compromisso de compra e venda” (mais conhecido como “contrato de gaveta”),que seus prepostos assinaram, em junho de 1995, em Belém, com os antigos – eautodeclarados – proprietários das 10 glebas da Fazenda Curuá.

De fato, nenhuma das assinaturas era de Cecílio Almeida e só indiretamente ele podia ser associado à Rondon Agropecuária, que passou a ser a nova controladorada Incenxil, a empresa montada por uma família de Altamira, os Oliveira. Mas,conforme a cláusula 5ª do contrato, a C. R. Almeida era quem se obrigava a cederos 5,4 milhões de reais de precatórios (títulos de cobrança contra a fazenda públicado Paraná), que completariam o pagamento das terras, no valor de R$ 6 milhões. Aliestava estabelecido o nexo com a empreiteira.

A C. R. Almeida teve que aparecer porque só ela dispunha de precatórios, os

chamados “títulos podres”, porque só eram comercializados com enormes deságios,devido à sua precária liquidez (o pagamento costuma depender da força política dequem cobra a quitação da dívida). Os R$ 600 mil iniciais seriam pagos em dinheiro.Mas das cinco parcelas, só uma, a única de R$ 100 mil, foi quitada. As demais (deR$ 125 mil cada) deixaram de ser pagas porque os vendedores não preencheram orequisito preliminar inoculado venenosamente no contrato: obter a regularização

 prévia das terras junto ao Iterpa.

As cláusulas que estabeleceram essa exigência revelavam que o comprador ti-nha plena consciência de estar adquirindo pretensões e não um direito materiali-

zado, objetivo, nal. Tanto que deixou de pagar as demais parcelas, transferindo aresponsabilidade aos Oliveira, que não regularizaram o imóvel. Ardil para nenhumMaquiavel encontrar defeito.

Com isso, a C. R. Almeida não apenas se credenciou a receber de volta os R$100 mil adiantados, com os acréscimos legais e aqueles que foram pactuados, mas – o que constitui o aspecto mais letal do documento – a transformar o contrato em

“título hábil para execução forçada contra o imóvel dado em garantia”.

Ou seja: a C. R. Almeida poderia se considerar dona de quase cinco milhões

de hectares (ou sete milhões, conforme as notícias, que o próprio empresário dariadepois, ampliando suas pretensões) sem pagar um só tostão aos que se intitulavamantigos proprietários.

Componente contratual terrível, incluído no contrato da mesma maneira comoo seu foro foi xado em Curitiba, sede do comprador, a mais poderosa das partes,e não em Altamira, domicílio do vendedor, a parte mais fraca do enredo. Para sedefender do que viesse a contrariar seus interesses, os Oliveiras teriam que litigar nacapital paranaense, a mais de três mil quilômetros de sua residência.

Desvendar histórias como essa asseguraria à CPI um destino muito mais glo-

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rioso do que o melancólico m de uma CPI antecessora, de 1979, que se encerroucom muita coisa boa no seu bojo, mas sem qualquer consequência prática diantedo mundo dos homens de carne e osso. Mas o relatório ocial dos trabalhos da

Comissão Parlamentar acabou não sendo aceito por parte dos seus integrantes, quedecidiram apresentar outro relatório, à parte. E a CPI chegou ao m igual às ante-

riores: acabando em pizza.

Um mês antes do desfecho infeliz, o então presidente Fernando Henrique Car -doso anunciou que o Ministério do Desenvolvimento Agrário estava cancelandoo cadastro de 451 imóveis rurais irregularmente constituídos e anunciando novasmedidas de repressão à grilagem. A fazenda da Incenxil só não foi incluída nessainiciativa por um detalhe elementar: o imóvel jamais foi cadastrado junto ao Incra(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

O ministério não tinha dúvida de que a área só estava registrada em nome de

 particular porque foi grilada. No Livro Branco da Grilagem, que editou, o ministé-

rio dizia que acompanhava a iniciativa do Estado para anular o registro e cancelar

a matrícula da área, reforçando a posição do Iterpa. Mas a justiça parecia agir dooutro lado da balança.

Com a justiça estadual omissa ou conivente, em 2002, o Ministério PúblicoFederal no Pará ofereceu denúncia, perante o juiz federal de Santarém, contra oempresário Roberto Beltrão de Almeida, diretor da Construtora C. R. Almeida, em-

 presa do seu pai, Cecílio do Rego Almeida. Também foram denunciadas outras seis pessoas, entre elas a cartorária Eugênia Silva de Freitas, de Altamira, todas com base em inquérito da Polícia Federal. A denúncia foi assinada pelos procuradoresJosé Augusto Potiguar, Felício Pontes Jr, André Luiz de Menezes e Ubiratan Ca-

zetta.

Os representantes do MP encontraram “indícios e provas de operação fraudu-

lenta que resultou na formação de imensa propriedade rural nas mãos de Cecílio doRego Almeida e de seu lho, Roberto Beltrão de Almeida, ainda que por intermédio

de empresas suas ou por estas controladas e, ainda, de pessoas de sua conança”.Para possibilitar “melhor compreensão dos fatos”, os procuradores dividiram

a operação fraudulenta, “que se concatenou por longo período de tempo”, em trêsgrandes etapas. A primeira foi a da “falsidade ideológica”, praticada em 1984, noCartório Moreira, do registro de imóveis de Altamira, que deagrou a grilagem daterra. A segunda etapa foi “outra falsidade da mesma natureza e no mesmo cartó-

rio”, cometida em 1993, que ultimou a grilagem. A terceira foi a alienação da terragrilada, “em negócio que encerrou falsidade ideológica”, ocorrida em 1995.

Os procuradores da República lembraram na denúncia a ação ajuizada em Al-

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tamira para anular a matrícula das terras da Fazenda Curuá. O Iterpa tomou essadecisão depois de ter apurado, através de estudos e levantamentos, inclusive no próprio cartório no qual foi efetuado o registro, “que jamais ocorreu o ato-causal

que originasse a propriedade privada”.

Ao realizar investigações para sua ação judicial, em 1996, o Iterpa vericou que12 anos antes (em 1984) havia sido feito, no Cartório Moreira, a transcrição, emnome da Incenxil, de uma gleba de terras, na margem esquerda do rio Iriri, auentedo Xingu, com dimensão total de quatro milhões de hectares, denominada FazendaCuruá.

Esse imóvel teria sido formado a partir da junção de 10 glebas, supostamenteadquiridas do Estado do Pará, por intermédio da Diretoria de Obra, Terras e Viação,

através de título hábil, e posteriormente alienadas aos herdeiros do coronel ErnestoAcioly da Silva.

Das 10 áreas tidas como cobertas por títulos hábeis, apenas quatro foram re-

almente objeto de contratos de arrendamento. O Estado do Pará autorizou os ar -rendatários João Gomes da Silva, Francisco Acioly Meirelles, Bento Mendes Lei-te e Anfrísio da Costa Nunes a explorar castanhais e/ou seringais pertencentes ao patrimônio público estadual. Essas concessões eram renovadas anualmente e não

 podiam ser transferidas a terceiros, sob pena de rescisão imediata. A soma das áreasarrendadas, porém, não chegava a 30 mil hectares.

Findo o seu prazo de vigência, os contratos de arrendamento cavam auto-

maticamente extintos. Os arrendatários se obrigavam, então, a entregar as terrasindependentemente de noticação judicial, sem direito a qualquer indenização por benfeitorias que porventura nelas houvessem implantado. Conforme a legislação

vigente na época, esses documentos não eram capazes de transmitir a propriedadedas áreas, que eram – e continuam a ser – do domínio público.

Apesar dessa clara situação, a ocial Eugênia de Freitas, que respondia pelocartório de imóveis de Altamira, em nome do escrevente juramentado Sebastião

Lima da Silva, a pedido de Umbelino José de Oliveira Filho, um dos donos daIncenxil, efetuou a averbação, junto ao registro imóvel, de um memorial descritivocartográco que lhe foi apresentado. O memorial simplesmente ampliava o tama-

nho da gleba em 772 mil hectares. Assim, por esse passe de mágica, a FazendaCuruá passou a ter 4.772.000 hectares, sem que houvesse qualquer justicativalegal quanto à procedência do trabalho.

O agrimensor Nilson Lameira de Souza, em depoimento à Polícia Federal, dis-

se ter recebido a encomenda do memorial de Umbelino. O comerciante pretendia

usar o documento para legalizar as terras e vendê-las. Nilson ainda argumentou que

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os documentos produzidos só teriam validade jurídica para o efeito pretendido sefossem embasados em trabalho de campo, através de levantamento topográco pla-

nimétrico na área. Mas para cobrir os 4,7 milhões de hectares, seriam necessários

de cinco a seis anos de trabalho de campo e gabinete.

Umbelino, porém, não concordou. Obrigou o agrimensor a traçar um mapageral da área. Na primeira versão, a BR-163 (Cuiabá-Santarém) atravessava a pro-

 priedade. Mas esse primeiro mapa teve que ser refeito. Umbelino lhe informou quea suposta propriedade não era cortada pela rodovia. Assim, com base em informa-

ções do próprio cliente e no texto da alteração de contrato social da Incenxil, quecontém descrição das terras, Nilson produziu novo mapa e memorial descritivocartográco. Nele, a Cuiabá-Santarém aparece paralelamente a um dos limites daárea mapeada e descrita.

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CARTÓRIOS COMO CENTRAIS

DE GRILAGEM

A fragilidade fundiária era uma das características marcantes da estrutura eco-

nômica vigente no Pará até a década de 1950, quando o início da construção dotronco rodoviário de integração nacional pôs m ao extrativismo, o sistema de pro-

dução realizado através da concessão de terras públicas a particulares para a coleta

de sementes ou a extração de essências e óleos.

Pessoas inescrupulosas e oportunistas, porém, valendo-se de esperteza própriae de imperícia ou conivência de terceiros, inclusive – e, sobretudo – de agentes do poder público, particularmente de cartorários do interior, procuraram dar a esses papéis de posse e a autorização de uso a dimensão indevida – e ilegal – de títulosde domínio.

Foi o que aconteceu em Altamira. A ocial do cartório imobiliário da comarca

efetuou, em janeiro de 1984, o registro, em nome da rma Incenxil, de uma gleba dequatro milhões de hectares, com a denominação de Fazenda Curuá, supostamenteformada a partir da junção de 10 imóveis. Esses imóveis teriam sido adquiridosdo governo do Estado, através do sempre citado (e nunca visto) “título hábil”, e posteriormente foram alienados aos herdeiros do coronel (da Guarda Nacional, queconcedia esses títulos honorícos aos chamados “coronéis de barranco”) ErnestoAcioly da Silva. Nenhuma descrição do título. Nada. Ainda assim, o registro foiefetuado.

 Nove anos depois, em 1993, uma averbação à margem da matrícula desse imó-

vel introduziu nos assentamentos cartoriais um memorial descritivo cartográco.Através dele a gleba passou a medir 4.772.000 hectares. Assim, além do registrode uma posse ter sido indevidamente efetuado no livro destinado exclusivamenteàs propriedades, além de essa gleba ter sido matriculada com monumentais quatromilhões de hectares, sem qualquer amparo técnico ou comprovação fática, mais772 mil hectares foram aduzidos a esse autêntico país. Assim, de súbito. A partirdo nada.

 Mais uma novidade surgiria em 1995. Nova averbação à margem da mesma

matrícula transcrevia mudança societária na Incenxil. Seus três proprietários de en-

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tão (Umbelino José de Oliveira Filho, Carlos Alberto Melo de Oliveira e HumbertoEsteves Melo de Oliveira) transferiam todas as cotas da sociedade para a empresaRondon Agropecuária Ltda e para Roberto Beltrão de Almeida, pela importância

irrisória de 500 mil reais. Ou seja, sem incluir no cálculo os outros bens do ativoda empresa, cada hectare das terras do seu patrimônio teria custado 10 centavosaos novos donos. O escárnio cou agravado pela circunstância, revelada quando deum contencioso entre os vendedores e os compradores, de que apenas 100 mil reaisteriam sido efetivamente pagos. O hectare cou, de fato, a dois centavos.

Chamados a dirimir tecnicamente a questão, quando ela chegou à esfera judi-cial, representantes do governo federal e da administração federal, vericaram quea chamada gleba Curuá, considerada a descrição que dela faziam seus autodecla-

rados proprietários, seria ainda maior do que os 4,7 milhões de hectares do últimoregistro.

Além de se superpor a 2,7 milhões de hectares do Estado do Pará, onde fo-

ram executados os loteamentos Altamira I, II e III, essa autêntica ameba fundiáriaabocanhou ainda terras sob jurisdição federal, sendo 2,5 milhões de hectares doInstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 2,7 milhões de hecta-

res do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) e 200 mil hectares da Fundação Nacional do Índio (Funai).

Apesar de continental, esse imóvel tinha por base meros direitos de posse, con-

substanciados em prosaicos contratos de arrendamento. Ainda assim, foram levianae indevidamente levados à inscrição no registro de imóveis da comarca de Altamira

como se fossem propriedades plenas.

Mas não se restringiram à área de domínio público, os 30 mil hectares nosquais havia concentração de castanheiras e seringueiras, no vale do Xingu, conce-

didos para exploração através de contratos de arrendamento válidos por apenas umano.

Passaram a incidir sobre 4,7 milhões de hectares, conforme o registro cartorial

averbado. Ou 5,7 milhões de hectares, de acordo com a medição de um técnico doIterpa. Ou 7 milhões de hectares, como tentaram fazer crer anúncios feitos por pes-

soas que eram a extensão ou a satelitização de C. R. Almeida, já assumido como omais recente dos coronéis de barranco do Xingu.

Ao incorporar o memorial ao registro das terras, a ocial do Cartório Moreiradatou o documento como sendo de 28 de março de 1983. Mas a Polícia Federalconstatou que o trabalho foi executado, na verdade, 10 anos depois. A investigaçãofoi realizada a partir da observação da adulteração visível no número 8 da data de1983. A intenção de Eugênia, conforme a denúncia do Ministério Público, foi “dar

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ao ato uma aparência de maior antiguidade e, com isso, escamotear outras opera-

ções irregulares a partir da matrícula”.

Relatavam os procuradores federais que no curso das investigações policiais

que embasaram sua denúncia, a cartorária “foi várias vezes instada a apresentarcópias dos documentos que justicaram os registros e averbações” por ela feitos.Prometeu, mas jamais encaminhou esses documentos, “o que, aliado ao fato de tersido indiciada outras dezenove vezes por estelionato mediante falso ideológico,revela de forma tenaz o dolo direto com que atuou no presente caso”. Destacavam

ainda que Eugênia “está sendo investigada em processo administrativo disciplinar

 pela Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Pará, tendo sido afastada de suasfunções”.

Laudos periciais encomendados pela PF atestaram que a descrição do imóvelexistente antes da averbação do memorial descritivo do agrimensor corresponde auma área de aproximadamente 3.260.000 hectares. Depois de feito o “trabalho”, passou a ter aproximadamente 4.880.000 ha.

Essa área, que poderia constituir um país, salientava a denúncia do MP, era “umverdadeiro santuário da natureza, dotado de inúmeros recursos de elevado potencialeconômico, forjado no seio de oresta nativa da mais pródiga biodiversidade, en-

tremeada de rios navegáveis, e que abriga reservas ainda imensuráveis de minérios preciosos, tais como o ouro, e de madeiras nobres, tais como o mogno”.

Três anos depois o cartório promoveu nova averbação no registro, desta vez para abrigar a inscrição do imóvel no Incra. Em setembro de 2000, entretanto, oinstituto informou que não possuía em seus arquivos nenhum cadastro em nome deIncenxil e que o código constante da averbação como sendo referente ao registro doimóvel na autarquia não constava de seu sistema.

Eugênia de Freitas explicaria, quando intimada a se manifestar, que tomaracomo base para a averbação uma simples guia DARF expedida pela Receita Federal para pagamento do imposto territorial rural, documento imprestável para o ato que

 praticou.Roberto Beltrão de Almeida, responsável pela operação de aquisição das terras,

em seu depoimento à Polícia Federal disse que o antigo proprietário da Incenxil,ao lhe vender a área, entregou, como documentos de domínio, apenas a quitaçãodos tributos incidentes sobre a propriedade das terras transferidas e “a matrícula doCartório do Registro de Imóveis de Altamira, devidamente cadastrada no Incra e naReceita Federal desde o ano de 1992, para ns de pagamento de ITR”.

Os procuradores consideraram a armativa “bastante inusitada para um gran-

de empresário e para negócio dessa monta (seis milhões de reais)”. Manifestaram

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também ceticismo diante da singela alegação do empresário de que supunha “que

os tributos estivessem quitados, todavia não lhe foram apresentados comprovantesdesses pagamentos”.

Estranharam os representantes do MP que um empresário, “com toda a asses-

soria que se presume ter, não vislumbrar necessidade de proceder a uma simplesvericação da situação scal do bem que adquiria, como se fosse uma aquisiçãoabsolutamente corriqueira”.

 Na apuração da legalidade das terras, o executivo da C. R. Almeida conou“apenas e tão somente na inscrição de um cartório de registro de imóveis de uma

comarca do interior da Amazônia”, não vendo a necessidade de consultar os órgãostécnicos ociais, mesmo possuindo a área em negociação “área maior que duas

vezes a superfície do Estado de Sergipe”. Observaram ainda os procuradores con-tradição com a armativa de Umbelino, segundo o qual “as terras em questão – naépoca de sua propriedade – nunca foram cadastradas no Incra”.

A má-fé da empresa – dizia a denúncia do MP – estaria evidenciada no própriocompromisso particular de compra e venda das terras. Uma de suas cláusulas es-

tabelece que o preço estipulado só será pago “mediante regularização da gleba de

terras compromissada” junto ao Iterpa.

Outra cláusula proclamava que se, por qualquer razão, a compradora não con-

seguir cumprir essa exigência, ou seja, “a regularização perfeita e acabada do imó-

vel” junto às repartições públicas federais, estaduais e municipais, especialmenteo Iterpa, “os valores recebidos a título de entrada e princípio de pagamento nãodeverão ser restituídos”.

Em instrumento, subscrito três dias depois, que consumou a transação, não foimais mencionada a condicionante da regularização das terras junto aos órgãos pú-

 blicos competentes. “A razão dessa supressão é óbvia”, dizia a denúncia.

E concluía: “Na verdade, a fraude cometida perante o Cartório de Altamira, re-

ferente à Fazenda Curuá registrada em nome de Incenxil, é igual a inúmeras outras

 praticadas por outros cartórios no Estado do Pará, onde é usado um título precário,que não representa domínio, registrado como propriedade, e daí começa a amplia-

ção da área que chega a dimensões absurdas”.

 Não satisfeito em, de um só golpe, audacioso, mas grosseiro, haver transfor -mado a chamada gleba Curuá num autêntico novo Estado brasileiro, a corporaçãoque gravitava em torno do sr. Cecílio do Rego Almeida arquitetou outra anexaçãoterritorial, voltando a usurpar o patrimônio fundiário do Estado.

Conseguiram, com muita competência, efetuar um dos maiores roubos de ma-

deira no Pará, sem que a opinião pública se apercebesse do golpe. Pelo contrário:

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até o apoiou, julgando-o como uma ação de proteção da natureza.

Tudo começou em setembro de 2001. As madeireiras estavam cortando mog-

no em todas as áreas em volta da Terra do Meio – inclusive entrando nas reservas

indígenas. Por trás delas estava Osmar Ferreira, conhecido como “o rei do mogno”,usando uns projetos de manejo completamente ilegais.

Um genro de Cecílio Almeida, Marcos Cassou, seu sucessor no comando daConstrutora C. R. Almeida, conseguiu se tornar inventariante do espólio de Rai-mundo Ciro de Moura, suposto dono de uma área contígua à da gleba Curuá, oSeringal Monte Alegre, com alegados 329 mil hectares. Cassou foi nomeado in-

ventariante com base num simples contrato de arrendamento rmado com um dosherdeiros, deslocando dessa posição o inventariante anterior, da própria família.

Alegando que as terras do espólio estavam sendo invadidas e saqueadas, o novoinventariante obteve um interdito proibitório e passou a apreender as valiosas árvo-

res de mogno que estariam sendo extraídas da “propriedade”, reunindo-as e colo-

cando-as sob a guarda de um el depositário, o madeireiro Wandeir dos Reis Costa.

Imediatamente a Incenxil requereu e foi aceita como litisconsorte ativa no pro-

cesso do interdito proibitório. Embora alegasse haver conexão entre os dois casos,através de um mesmo invasor e extrator de madeira, que estaria ameaçando ambosos autores, o imóvel supostamente esbulhado da empresa era a Fazenda Curuá,situada a razoável distância do Seringal Monte Alegre.

A partir daí, Cassou incremento a busca e apreensão de mogno e sua estocagemem Altamira, sob os cuidados de Costa. O total abrangeu 7.200 toras, com 18 milmetros cúbicos de madeira, avaliada em 120 milhões de reais.

Com o mandado judicial, Cassou obteve a cobertura da Polícia Militar paraexecutar a ordem. O comando da PM estabeleceu “as condições necessárias” paraque a polícia agisse: pagamento semanal de 500 reais, em dinheiro, para cada umdos militares (com variação para cima, conforme a patente). enquanto durasse aoperação, transporte aereo e uvial, mais rancho para todo pessoal. Quando essas

condições foram atendidas, a la de PMs dispostos a ir para o Xingu nunca di-minuiu. Mesmo dizendo-se dona de 4,7 milhões de hectares na região que estavasendo invadida, a C. R. Almeida quase não fez apreensão em sua própria área. Foi buscar nas terras vizinhas. Dois meses depois, em novembro, quando a apreensãode madeira já estava quase concluída, emissários da empresa acertaram com o Gre-

enpeace e o Ibama realizar uma operação hollywoodiana: agentes desceriam dehelicóptero com roupas de camuagem, portando metralhadoras, diretamente nos pátios onde as toras estavam estocadas. Jornalistas e câmeras de televisão lmariamas ações, que seriam divulgadas pelo mundo inteiro, como exemplo de manobra

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radical e eciente de proteção à natureza.

A madeira que estivesse perto da água e atada começaria imediatamente a des-

cer o rio. As outras, mais distantes, seriam transportadas por terra para o município

vizinho de Uruará. As toras de mogno que seguiram jangadas pelo rio foram depo-

sitadas na serraria do médico Cláudio Valle Alves, que era vereador em Altamira,e começaram a ser serradas em junho. A madeira que foi o lugar chamado Maridel para Uruará cou na serraria do irmão de Wandeir Reis Costa, o el depositárionomeado pelo juiz.

Argumentando que os bens colocados sob sua guarda estavam ameaçados de

deterioração nas águas do rio Xingu, de roubo ou perda por acidentes naturais, oel depositário, por meio de mandado de segurança, conseguiu que a desembar -

gadora Maria do Céu Cabral Duarte, através de liminar, o autorizasse a mandarserrar, empacotar, armazenar, classicar e colocar sob sua proteção essa madeira,colocando-a à disposição da justiça, que poderia dar-lhe “o destino que entendessecabível”. Isso tudo, apesar de se declarar um homem pobre, que já não tinha suaserraria para trabalhar.

Como a madeira não poderia ser comercializada e a batalha judicial em tornoda madeira apreendida não tinha horizonte visualizável de denição, a questão ime-

diatamente posta por tal decisão era elementar: confessando-se carente de recursos

 próprios para manter o custeio das despesas do seu mandado, que implicavam gas-

tos com segurança privada das madeiras nas águas do rio Xingu, expostas ao tempoe aos mal-intencionados, como o el depositário iria fazer o pesado investimentoque a serragem, empacotamento, armazenamento, classicação e proteção dos bensacarretavam? Com o risco adicional de esse custeio se manter por tempo indenido,às custas do el depositário, sujeito às incertezas inerentes a contenciosos judiciais.

O insólito pedido foi apresentado 13 meses depois de Wandeir Costa ter assu-

mido o encargo de manter vigilância privada às madeiras (além do papel desem-

 penhado pela Polícia Militar) e custear honorários advocatícios e outras despesas

“inerentes à proteção dos bens”, que estariam onerando suas “parcas reservas”,conforme ele próprio ressaltou no mandado de segurança que impetrou para a libe-

ração da madeira apreendida. Para cobrir tantos custos, o depositário teria despen-

dido “de suas próprias reservas pessoais, a esta altura, praticamente exauridas, noduro trabalho de se responsabilizar por bens de terceiros”.

Mas ele não agia às cegas nem aleatoriamente. Tinha o pleno domínio sobreo bem apreendido. Iria transformar as toras brutas de madeira em pranchas. De-

 pois, as empacotaria e classicaria. Isso feito, as levaria para um depósito. Qualdepósito? O que a nobre desembargadora indicou quando concedeu o mandado desegurança.

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Mas, estando em Belém, o que saberia a magistrada sobre o armazém sito àavenida Tancredo Neves, Jardim Industrial II, em Altamira, de propriedade do mé-

dico Cláudio do Valle Alves, por ela apontado para abrigar a madeira já processada,

às expensas e conforme as determinações do el depositário? Como chegou a talespecicidade e precisão na nomeação do armazenador do bem? Ora, claro, porinformações do próprio depositário.

 Não fui só eu quem fez a procedente e necessária pergunta. Outros órgãos da

imprensa igualmente o zeram. E o próprio ministro do Meio Ambiente. Notíciadistribuída pela assessoria de imprensa do Ministério do Meio Ambiente, através daAgência Brasil, porta-voz do governo federal, anunciava, no dia 18 de dezembro de2002: “O ministro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, solicitou à AGU – Ad-

vocacia Geral da União, que por meio do Ministério Público Federal ingresse nestaquarta-feira (18), junto ao Tribunal de Justiça do Pará com pedido de suspensão domandado de segurança que liberou o mogno que estava apreendido pelo Ibama em

Altamira, no Pará, desde o ano passado”.

O ministro foi surpreendido com a decisão da desembargadora do Tribunal de

Justiça do Pará, Maria do Céu Cabral, que no dia 11 deste mês autorizou atravésde liminar à serragem, empacotamento, classicação e depósito em armazém’ deuma grande quantidade de mogno que segundo o Ibama foi extraído ilegalmenteno estado do Pará.

O ministro estranhou a decisão da desembargadora, já que em agosto deste anoo Tribunal de Justiça do Pará já havia se pronunciado sobre a questão, decidindo pela incompetência da Justiça estadual em atuar no caso. Em seu despacho, a juízaDanielle de Cássia Silveira Burnheim deslocou a competência para o âmbito da

Justiça Federal.

“Sem o propósito de manifestar qualquer desrespeito às decisões da justiça,estou determinando à Consultoria Jurídica do Ministério as providências judiciaiscabíveis à reversão da medida e ao mesmo tempo determinando ao Ibama que atue

na esfera administrativa para impedir que madeira explorada comercialmente semautorização dos órgãos competentes seja colocada no mercado como se legal fosse’,armou José Carlos Carvalho”, concluía a matéria da agência ocial federal.

A então presidente do Tribunal de Justiça do Estado, desembargadora CliminiePontes, acionada pelo ministro, convocou imediatamente a desembargadora Mariado Céu Cabral Duarte ao seu gabinete e a convenceu a cancelar a ordem que havia

concedido. Maria do Céu teve que revogar o mandado de segurança, deslocando ofeito para a justiça federal, já considerada competente para apreciar a questão.

A decisão da desembargadora Maria do Céu, datada de 20 de dezembro de

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2002, merece ser transcrita na íntegra, por ser curta e por seu signicado insólito para o rito processual regular: “Face entendimento com a Exa. Sra. Desembarga-

dora Presidente deste Egrégio Tribunal de Justiça – e ante a matéria exposta nestes

autos – declino de minha competência para conhecer e julgar o presente feito, e emconsequência considero o foro da Justiça Federal – cando nulos os atos decisóriosaté aqui praticados”.

O despacho foi inusitadamente manuscrito. A data estava rasurada: o número

20 foi escrito em superposição à graa anterior, de 19. Indicação de desleixo ou mávontade? Ou de contrariedade? Ou tudo isso, numa reversão de decisão por contade pressão externa, inclusive – e, sobretudo – da perplexa opinião pública nacional?

Trata-se, realmente, de reação nacional, como admitiu o próprio Wandeir, ainda

que por sua ótica deformada. Para ele, o despacho da desembargadora Maria doCéu foi objeto de “sensacionalismo jornalístico da imprensa diária e os noticiáriosdestorcidos [sic] difundidos para o mundo por via da internet”.

Identicando-me como o autor dessa difusão, Wandeir Costa ajuizou duasações penais contra mim por crime de imprensa. Citou como uma das razões da

sua acusação um trecho da matéria em que eu suscitava a possibilidade de que “a

decisão do Senado impedindo que as toras de mogno remanescentes ao temporal do

mês passado viessem a ser levadas a leilão” acabasse não podendo ser cumprida.

 Não seria a primeira vez que isso iria ocorrer na Amazônia. Bastaria lembrar

os intermináveis “estoques remanescentes” de peles de animais que subsistiram

à proibição de sua produção e comercialização pelo IBDF, antecessor do Ibama.Ou a abundante comercialização de castanheira, supostamente extraída da área dofuturo reservatório da hidrelétrica de Tucuruí, a única área na qual não se aplicavaa proibição de abate e comercialização da espécie, estabelecida em lei especial parasua proteção.

 Na ação contra mim, Wandeir Costa alegava que essa hipótese não ocorreria porque “vem merecendo absoluta conança do próprio IBAMA, tanto assim que,

nesta mesma semana, no dia 18 de dezembro de 2002, quando foram apreendidasmais 2.285 toras de madeira de lei (mogno e cedro), pelo IBAMA, esse lenho foiconado” em nome do dele.

Era verdade. A nova delegação, porém, ocorreu por mero efeito inercial. Como já era o el depositário el, designado pelo juiz Jackson José Sodré Ferraz, da 1ªvara cível da comarca de Altamira, desde setembro de 2001, era natural que maisessa carga fosse colocada sob a responsabilidade de alguém a quem missão conexa já havia sido delegada.

Mas foi exatamente nesse dia, com a divulgação da concessão do mandado de

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segurança que dava novos poderes a Wandeir Costa, que o ministro do Meio Am-

 biente, ao qual o Ibama estava jurisdicionado, se colocou contra a iniciativa, obvia-

mente por detectar a malícia da iniciativa e o risco que ela acarretava à integridade

da valiosa carga.

Se é que o Ibama – só de Altamira ou de Altamira e Brasília – tinha conançaem Wandeir Costa até aquele momento, a partir daí ele decaiu dessa conança.Mais do que isso: a partir daí perderia a conança, tanto do instituto quanto doministério. Só se manteve nessa função porque obteve decisão judicial favorável dadesembargadora Maria do Céu, que, não por mero acaso, também me processou.Se dependesse do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente, não estaria mais coma guarda da preciosa madeira.

Para abordar a trama, o ministro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, foiao município de Altamira, em agosto de 2002, viajando diretamente de Brasília,num avião da FAB, e levando consigo o presidente do Ibama. Rômulo BarretoMelo, além de scais e agentes federais (desta vez não requisitou pessoal local, deAltamira e Santarém: só usou servidores deslocados da capital federal).

Informado de que as operações anteriores, além de inúteis, serviam para regula-

rizar madeira extraída ilegalmente, o ministro quis agir de surpresa e com o controletotal dos seus atos. Pretendia passar tudo a limpo para que as ervas daninhas não

voltassem a crescer, como sempre tem acontecido.

Do aeroporto de Altamira, o ministro foi diretamente para a serraria do madei-reiro Cláudio Valle apreender as toras que lá se encontravam. Surpresos, os atoresdas velhas encenações perceberam que desta vez não só viera um ministro agir no

teatro das operações, mas um ministro que trazia consigo um roteiro bem traçadode toda a história.

Imediatamente, o ministro determinou que 1.800 toras de mogno, no valor de15 milhões de reais, fossem novamente apreendidas, após terem sido apreendidas pela primeira vez, em novembro de 2001, em função da ação de interdito proibitó-

rio patrocinada, em última instância, pela C. R. Almeida.Determinou também que fossem também apreendidas as máquinas e equipa-

mentos que encontrou na Fazenda Juvilândia, onde a madeira se encontrava. De-

sautorizou o el depositário. E prometeu remover os agentes do Ibama de Altamira.Admitiu que a conivência pudesse ser ainda mais ampla. A iniciativa foi inédita

 para uma autoridade com esse status.

Havia todas as justicativas para uma operação secreta e fulminante porque atriangulação entre grileiro-“laranjas”-justiça era forte. A advogada do el depositá-

rio, por exemplo, era também representante, em Altamira, da Incenxil, sob o contro-

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le da C. R. Almeida, que, por sua vez, era litisconsorte ativa no interdito proibitório proposto pelo espólio de Raimundo Ciro de Moura contra vários madeireiros, quelevou justamente à indicação do el depositário da madeira e dos equipamentos

apreendidos (e outra vez apreendidos pelo Ministério do Meio Ambiente, por frau-de ao ato inicial), espólio do qual conseguiu se tornar inventariante Marco AntônioCassou, membro da C. R. Almeida Engenharia e Construções, através de contratormado com alguns dos herdeiros.

O autor por trás de tudo

Os procuradores federais não recearam armar que, por trás de interpostas pes-

soas, os verdadeiros donos do que já foi classicado como “o maior latifúndio do

mundo”, eram Cecílio do Rego Almeida e seu lho, Roberto. Admitiram que aassertiva “pode parecer temerária à primeira vista quanto à pessoa de Cecílio, massua negativa sucumbe ante as inúmeras evidências, que incluem as próprias pala-

vras deste”.

Lembraram que na data da efetivação do negócio, a Rondon AgropecuáriaLtda., empresa à qual coube fatia de 95% das cotas sociais da Incenxil, tinha comosócios a Rondon S/A, TB Transportadora de Betumes Ltda, Denise Beltrão de Al-meida, Roberto Beltrão de Almeida, César Beltrão de Almeida, Guilherme Beltrãode Almeida, Marcelo Beltrão de Almeida, Renata Pernetta Almeida Bertoldi, Ana

Cecília P. Almeida Guimarães, Henrique do Rego Almeida Filho. Na composição societária, assim, havia duas pessoas jurídicas e oito pesso-

as físicas. Ambas as empresas pertencem à família de Cecílio Almeida e todos osoutros sócios são seus parentes próximos (os cinco primeiros listados são lhos eos demais são sobrinhos), como ele mesmo já havia confessado em depoimento perante a CPI estadual.

“Essa cadeia societária revela, de forma inequívoca, a natural ascendência deCecílio Almeida sobre o negócio em questão, uma vez que ele é o grande magnata

da família, sendo evidente que expedientes como este apenas se prestam a resguar -dar sua pessoa de acusações de irregularidades que recaiam sobre avenças por ele

ordenadas e comandadas”, dizia a denúncia do MP.

Como comprovação, citava um prospecto publicitário intitulado “Amazon Dre-

am: Forest Forever” (Sonho Amazônico: Floresta para Sempre), publicado pelaRondon Projetos Ecológicos Ltda (nova denominação da Rondon AgropecuáriaLtda) em versão bilíngüe (inglês-português), onde consta a informação: “RondonProjetos Ecológicos Faz Parte da C. R. Almeida S.A. Engenharia e Construções, umdos maiores grupos econômicos do Brasil, com mais de 50 anos de excelência em

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engenharia, gerenciamento de obras e administração nanceira”.

Além disso, aduziam os procuradores, o próprio Cecílio Almeida, “homemocupado que se presume ser”, foi quem, pouco antes da aquisição das cotas da In-

cenxil pela Rondon, veio a Belém para falar pessoalmente com o então presidentedo Iterpa, Ronaldo Barata, a respeito das terras que pretendia adquirir.

Documentos juntados aos autos de inquérito policial por um dos integrantesdo grupo econômico comandado por Almeida através de petição revelavam que o

 pagamento pela aquisição das cotas da Incenxil foi efetuado diretamente pela C.R. Almeida S.A. Em entrevista concedida ao programa Jornal da Cultura, da TVCultura em 1999, logo após a circulação de edição da revista Veja contendo repor -tagem (“O maior latifundiário do mundo”), o empresário confessou, várias vezes,

“de forma cabal e explícita”, que foi o adquirente das terras.“Ainda, dá a entender claramente que partiu só dele o interesse na aquisição

quando refere ao seu desejo íntimo de levar para sua terra natal (Pará) um poucoda riqueza que acumulou no sul do país, bem como quando menciona anúncio daFazenda Curuá na imprensa”, acrescentava a denúncia.

Sustentava o MP Federal que, além de ter sido o comprador da área, Cecílio doRego Almeida sabia que havia adquirido terras griladas. “Sua consciência e vontadeem relação a esse fato exsurgem cristalinas nas declarações que prestou à PolíciaFederal o então presidente do Iterpa, Ronaldo Barata”, informava a denúncia, re-

 produzindo seu depoimento à Polícia Federal: “que, salvo engano, encontrou-se, por coincidência, nas dependências do Incra em Altamira com a Sra. Rita Furs-tenberger, que, na condição de representante do Sr. Cecílio do Rego Almeida, es-

tava vericando a existência de grande área de terra para aquisição; que já nesseencontro o depoente, na condição de profundo conhecedor de assuntos fundiários,inclusive já tendo sido Superintendente do Incra/PA e do Getat, avisou a nominadaque não existiam grandes áreas de terras na mão de particulares; que algum tempodepois, a mesma Rita, acompanhada de seu marido, estiveram no Iterpa já procu-

rando saber da regularidade das terras pertencentes à empresa Incenxil, entretantonão apresentou qualquer documentação pertinente a essas terras; que, mais umavez, o depoente alertou e informou que este Estado, na área informada, não haviaintitulado terras nas dimensões narradas por Rita; que o depoente se pronticou,mediante apresentação de documentos das terras da Incenxil, fazer uma análise dasmesmas, e em consequência, informar sua regularidade ou não; que, aproximada-

mente um mês depois do encontro com a Sra. Rita, encontrou-se com o Sr. Cecíliodo Rego Almeida nas dependências do Hotel Sagres, nesta capital, para conversa-

rem sobre as terras da Incenxil e a possível proposta, por parte do Sr. Cecílio, para

a implantação de um grande projeto econômico para aquela região; que o depoente,

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assessorado por seu Diretor, rearmaram, agora diretamente ao Sr. Cecílio, que asterras que ele pretendia adquirir não estavam acobertadas por documentação hábil;que, mais uma vez, foi pedida apresentação de documentos para que o Iterpa se

manifestasse ocialmente sobre os mesmos; que nenhum documento foi apresen-tado, apenas o Sr. Cecílio armou que, segundo sua assessoria jurídica, as terras daIncenxil estavam regulares perante os órgãos competentes”.

Outra prova da consciência que o empresário tinha da grilagem era um memo-

rando no qual os advogados de Cecílio, José Norberto de Toledo e Eduardo Toledo,faziam referência clara ao conhecimento, por parte do patrão, ao qual dirigem amensagem, do vício de origem das terras: “Todavia, o audacioso projeto de V.Sa.,é tão audacioso que tem encontrado obstáculos nos quadrantes da rosa dos ventos,onde Shakspeare [sic] não se enquadra, e é fruto da mente dinâmica e projetada deum homem que descobre nestes tempos, a realidade do tempo futuro, conquantosoubesse, desde o início, das diculdades que encontraria, em virtude da origemdaquelas terras”.

 Na entrevista concedida ao Jornal da Cultura, Cecílio Almeida procurou justi-

car a lisura de sua conduta ao adquirir a Fazenda Curuá, mencionando hipoteca quea onerou, sua execução pelo Banco do Estado do Pará e posterior reaquisição doimóvel por Umbelino. Segundo seu raciocínio, a aceitação do imóvel em garantia pelo Banpará, instituição nanceira ocial do Estado, a aquisição da propriedade

 por este e a posterior “alienação” à pessoa que o antecedeu na cadeia dominial seria prova mais que suciente da regularidade do título dominial que pretendia para si.

Os procuradores retrucaram que “não só essa conclusão é assaz modesta para

uma assessoria jurídica de ponta como também estão incorretas as premissas fáticaslançadas para a justicativa apresentada”. Reconheceram que o imóvel foi, de fato,hipotecado ao Banpará. “Ocorre que a instituição nanceira – muito ao contrário doque, com todas as letras, arma Cecílio – jamais se tornou proprietária das terras”.

A denúncia também citava o depoimento à CPI do presidente do banco, Mário

Ramos Ribeiro. Ribeiro informou que o Banpará “em momento algum se tornou proprietário; o banco arrematou, mas antes de se tornar proprietário, antes que fosseexpedida a carta de arrematação, a esposa do Sr. Umbelino embargou, e eles com -

 pareceram ao banco para fazer a quitação”.

A própria CPI paraense questionou a garantia aceita pelo banco estadual, ressal-tando que o Banpará “procedeu irregularmente ao realizar essa operação nanceirade empréstimo tendo recebido como garantia da Incenxil não o título denitivo dasterras, mas apenas e tão somente cópia de alteração do contrato social de constitui-ção da sociedade por quotas, que descrevia essas terras em uma de suas cláusulascomo integrante do patrimônio da empresa”.

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Um terceiro ponto anotado pelos procuradores foi que Cecílio Almeida, sendoum dos maiores empresários do país. já tendo gurado na famosa lista da revistaamericana Forbes, em 1992, como um dos homens mais ricos do mundo, com pa-

trimônio, à época, estimado em 1,3 bilhão de dólares, não tenha estranhado o preçoda transação que fez. Segundo laudo pericial solicitado pela Polícia Federal, o valormédio do hectare para a terra nua na região em estudo era de 45 reais em 1998.

 Nessa base, com R$ 755 mil, preço efetivamente pago no negócio de acordocom documento contábil juntado por Roberto Beltrão de Almeida, seria possíveladquirir aproximadamente 16.800 hectares de terra nua, sem benfeitorias, ou seja,uma extensão 283 vezes menor do que a negociada.

Mesmo que o valor da transação fosse o dos R$ 6 milhões declarados no contra-

to, esse valor seria suciente para a aquisição de aproximados 134 mil hectares, oumenos de 3% da extensão pretensamente adquirida. Armavam os representantesdo MP, porém, “que seis milhões de reais não retratam a melhor realidade nan-

ceira da avença porque desse valor apenas 13% foi realizado em dinheiro, sendo orestante entregue em créditos decorrentes de precatórios judiciais emitidos contrao Estado do Paraná, cujo resgate, sabe-se, é tão lento que, na prática, sua alienação por um gigantesco e dinâmico conglomerado empresarial não pode ser tomada à

conta de efetivo e imediato desfazimento de patrimônio”.

A denúncia mostrava que a suposta propriedade se superpunha às Terras Indíge-

nas Xypaia e Curuaya, toda a Floresta Nacional de Altamira, 82% da Terra IndígenaBaú e toda a área dos Projetos de Assentamento do Incra Nova Fronteira e SantaJúlia. Todas essas áreas da União somadas resultam em 2,6 milhões de hectares,“fato que justica a competência da Justiça Federal para apreciar a causa”.

Ao qualicar os denunciados, o MP armou que Cecílio do Rego Almeida, emvárias oportunidades, de forma direta e indireta, foi advertido por autoridade públi-ca competente a não realizar o negócio com o imóvel. Assim, dispunha “de todosos meios possíveis para chegar à evidente conclusão, a que chegaram as autoridades

fundiárias, duas Comissões Parlamentares de Inquérito e o presente inquérito poli-cial, de que o título cartorial não passava de uma fraude grosseira”.

Mas, “vislumbrando os múltiplos e imensos potenciais econômicos da vasti-dão registrada no Cartório de Altamira, ordenou sua aquisição, através de empresa pertencente ao seu grupo econômico e com a participação direta, no negócio, de pessoa de sua elevada conança (seu lho Roberto). Assim agindo, fez inserir, emvários documentos, públicos e particulares, declarações que sabia serem falsas, coma intenção m de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.

Apesar da constatação, o MP deixou de fazer a imputação penal “diante da

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ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, uma vez que Cecílio conta, hoje,com mais de 70 anos de idade, o que reduzia à metade o prazo prescricional”.Sendo o lapso prescricional de 12 anos e tendo o dono da C. R. Almeida direito à

metade, a prescrição ocorreu em 2001. Todos os demais envolvidos, porém, foramdenunciados.

Essa iniciativa do MP Federal devia ser capaz de reverter a absorção de umagrande área de terras públicas, de forma ilícita, por um grupo privado. Mesmo asuposta destinação nobre que a C. R. Almeida iria dar ao imóvel foi desmascaradana investigação policial. Roberto de Almeida anunciou a constituição de 80% daárea em reserva legal obrigatória, “onde não será permitido o corte raso e vedado[sic] a alteração de destinação nos casos de transmissão a qualquer título ou des-

membramento da área”.Em seu depoimento à PF, ele armou que a destinação das terras seria “o de-

senvolvimento de um modelo auto-sustentável para as comunidades da região, pre-

servando os seus valores históricos e culturais, o que já foi implementado, bemcomo estimular a pesquisa e o aproveitamento da biodiversidade, preservação doecossistema, criação de projetos de ecoturismo, estabelecendo áreas de preservação permanente”.

O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Re-

nováveis), porém, que é a autarquia competente para a constituição de unidade deconservação ambiental, informou, em fevereiro de.2001, que não possuía em seusarquivos nenhum registro de plano de manejo orestal sustentado (PMFS) ou dereserva particular do patrimônio nacional (RPPN) em nome das empresas Incenxil,C. R. Almeida., Rondon Agropecuária, Rondon Projetos Ecológicos ou Pater Ad-

ministração e Participação.

Tudo era fantasia. Exceto a denúncia do Ministério Público Federal. Ela era tão bem fundamentada que a justiça federal a acolheu. Em novembro de 2011, o juizHugo Gama Filho, da 9ª vara de Belém, mandou cancelar o registro imobiliário da

Fazenda Curuá, O imóvel teria dimensão superior à dos Estados do Rio de Janeiro,Alagoas, Sergipe e do Distrito Federal. Suas pretensões poderiam ainda exceder es-

sas dimensões. Através de outros imóveis, pretendia alcançar uma área de 7 milhõesde hectares, duas vezes e meia o tamanho da Bélgica, país onde vivem mais de 10milhões de habitantes.

A decisão do juiz federal restabelecia, naquela parte da Terra do Meio, o pri-mado da legalidade. Em primeiro lugar porque o Estatuto da Terra, editado pelo primeiro governo militar pós-1964, o do marechal Castelo Branco, continua emvigor. Esse código agrário sobreviveu à constituição de 1988 e se revelou superior

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em confronto com as regras da chamada carta magna.

O estatuto, com seu propósito de modernizar o campo brasileiro (mesmo que deforma autoritária, à semelhança do que fez o general MacArthur com o Japão ainda

semi-feudal, derrotado pelos americanos na Segunda Guerra Mundial), proíbe aconstituição de propriedade rural com área acima de 72 mil hectares (ou 600 vezeso maior módulo rural, o destinado ao reorestamento, com 120 hectares).

A Fazenda Curuá foi registrada com quase 60 vezes o limite legal. Por que ocartorário legalizou a matrícula do imóvel com sua fé pública, ele que é serventuá-

rio de justiça, sujeito à polêmica (e questionada pelo Conselho Nacional de Justiçada ministra Eliana Calmon) Corregedoria de Justiça do Estado?

A apropriação ilegal de terras públicas, fenômeno a que se dá a qualicação de

grilagem, é simples, embora de aparência complexa para o não iniciado nos seusmeandros. Ainda mais porque lendas são criadas em torno da artimanha dos esper-

tos e passam a ser apresentadas como verdade.

Muita gente acredita, por exemplo, que a expressão grilagem se deve à práticados fraudadores de colocar papéis para envelhecer articialmente em gavetas comgrilos.

A verdade é menos engenhosa. A origem é romana e diz respeito ao fato de que

a terra usurpada serve à especulação imobiliária e à formação de latifúndios impro-

dutivos. Tanta terra não cultivada acaba se tornando pasto para grilos. Uma maneirade estigmatizar de forma popularizada o roubo de terras públicas, que tantos danoscausa à nação.

O espantoso, no caso da Fazenda Curuá, é que o golpe tenha se mantido portantos anos. Sua tramitação acidentada e pedregosa seria evitada se a justiça do Parátivesse realmente examinado as provas dos autos. Neles está demonstrado que o usodas terras no rico vale do Xingu, onde está sendo construída a hidrelétrica de BeloMonte e agem com sofreguidão madeireiros e fazendeiros, começou em 1924, semnunca gerar domínio.

Como os cartórios não se preocupavam (e, em sua maioria, continuam sem se preocupar) com o rigor da iniciativa, até mesmo dívidas em jogo deram causa àtransmissão da inexistente propriedade de um detentor para outro. Cadeias suces-

sórias se formaram sem uma prova do desmembramento das terras do patrimônio

 público, através de um instrumento adequado de domínio.

Apesar de tantas barbaridades cometidas, a justiça do Pará não só não se con-

venceu dos argumentos contra o grileiro como lhe deu ganho de causa em todos

os processos em que ele foi parte. Até que, nalmente, o juiz Hugo Gama Filho,

acatando as razões do Ministério Público Federal, as mesmas apresentadas à justiça

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estadual, mandou cancelar o fraudulento registro imobiliário e devolver as terrasaos seus verdadeiros donos, usurpados pelo empresário.

Foi preciso que o processo chegasse à justiça federal para, nalmente, 15 anos

depois da propositura da ação pelo Iterpa, secundado por outros agentes públicos,a situação se invertesse. Não é ainda uma decisão denitiva. Os herdeiros da C. R.Almeida poderão ainda recorrer. Mas já sem o registro cartorial que lhes permitiamanipular terras como se fossem os donos do 21º ou do 19º maior Estado brasileiro,conforme a metragem da sua audácia.

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No fm de tudo a condenação

Todo esse percurso de combate à grilagem podia favorecer a minha posição

de denúncia contra o grileiro-mor, que eu chamei de pirata fundiário. Mas o meudrama parecia se desenrolar à margem dessa trajetória de desfazimento da tramaurdida por Cecílio Almeida. Ele podia manejar seus cordéis de poder à vontade parame sufocar.

Em maio de 2000, por exemplo, usando como pretexto matérias a grilagemque escrevi no Jornal Pessoal ofensivas à sua honra, o desembargador João AlbertoCastelo Branco de Paiva representou ao Ministério Público do Estado, que me de-

nunciou, com base na já extinta Lei de Imprensa (5.250/67), por alegado delito dedifamação.

A juíza da 16ª vara criminal de Belém, privativa dos crimes de imprensa, re-

cebeu a denúncia e me condenou pelo delito imputado e me aplicou a pena de

detenção de um ano, convertida, em função da minha primariedade como réu, no

fornecimento, a uma instituição de caridade de duas cestas básicas, cada uma novalor de um salário mínimo, durante seis meses.

Inconformado, apelei da sentença para a instância superior. A 3ª Câmara Crimi-nal Isolada do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, para a qual o feito foi distri -

 buído, por unanimidade, com base em parecer do Ministério Público, integralmenteacatado pela desembargadora-relatora, considerou o recurso intempestivo e o inde-

feriu. O acordão da decisão, de julho de 2004, foi publicado no Diário da Justiça jáno período das férias forenses.

Os desembargadores decidiram sem sequer consultar os autos do processo para

comprovar que eu perdera o prazo do recurso, com os quais estavam em agrantecontradição.

A sentença condenatória, proferida em 17 de fevereiro de 2003 pela juíza da 16ªvara criminal, Maria Edwiges de Miranda Lobato, foi resenhada no Diário de Jus-

tiça do Estado dois dias depois. Era verdade que minha apelação só foi protocolada

no dia 7 de março, 16 dias depois.

Aparentemente, portanto, teria razão a 3ª Câmara Criminal em considerar que o prazo para o recurso de apelo, que é de cinco dias, foi ultrapassado, caracterizando

a intempestividade, e, com isso, possibilitando a rejeição da apelação e a aplicação

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da sentença condenatória.

Havia nos autos, porém, informações que negavam a tese da perda do prazo. No dia em que o Diário da Justiça ocializou a decisão da juíza Maria Edwiges,

tornando obrigatório o conhecimento do fato pelo defensor do réu, os autos não seencontravam em cartório. Na verdade, na véspera, os autos haviam sido enviadosao Ministério Público, para ciência da sentença.

O representante do MP, autor da ação penal, provocada pelo desembargadorPaiva, devolveu os autos ao cartório no dia 21 de fevereiro, uma sexta-feira. Osautos dormiram no cartório de sexta-feira para segunda-feira, mas, no alvorecer do primeiro dia útil posterior à devolução, quando poderia começar a contar o prazo para a manifestação do sentenciado, os autos foram devolvidos ao MP.

 Nas mãos do promotor o processo cou até o dia 28 de fevereiro, a sexta-feiraseguinte, quando foi outra vez remetido de volta ao cartório judicial. No dia 3 demarço, segunda-feira, primeiro dia útil, minha advogada pode, nalmente, ter aces-

so aos autos para examinar a sentença.

Só então, evidentemente, com o conhecimento da matéria que iria contraditar,é que começou a contar para ela o prazo de cinco dias, o “qüinqüídio legal”, comodizem os advogados.

 Não havia, então, razão alguma para considerar ameaçada a fruição do prazo

 previsto em lei para a apelação, que foi devidamente protocolada no último doscinco dias facultados pelo artigo 798 do Código de Processo Penal, ou seja, sete demarço de 2003.

 No entanto, estranhando o inusitado procedimento do representante do Minis-

tério Público do Estado, minha advogada teve a cautela de solicitar, à escrivã docartório da 16ª vara criminal, que expedisse uma certidão informando sobre as idase vindas dos autos ao MP. O documento foi devidamente juntado ao processo.

A certidão era autoexplicativa, sem demandar maior indagação. Ela mostravaque, entre os dias 18 e 28 de fevereiro de 2003, os autos não chegaram a completarum dia útil de permanência em cartório. Foram devolvidos e novamente retirados

antes que pudesse ser aplicada a regra que manda ao escrivão não contar o primei-

ro dia, o dia da publicação da sentença, quando for xar o prazo para os recursos,contando o último dia. Se termina ou começa em m-de-semana e feriado, o prazoé prorrogado até o primeiro dia útil seguinte.

 Não se aplicaria ao caso nem mesmo um raciocínio doentio, completamentedestituído de fundamento legal, segundo o qual minha advogada poderia ter retira-

do os autos no dia 21 de fevereiro, a primeira vez em que o processo foi devolvido

 pelo representante do MP ao cartório. Anal, o que contaria para sua intimação

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seria o período entre 8 horas da manhã e 8 horas da noite, que constitui o expedientedo fórum de Belém, do dia 21, o primeiro dia útil em que os autos estariam dispo-

níveis depois da publicação da sentença.

Ainda que, para argumentar com o máximo de absurdo, se admitisse que minhaadvogada perdeu o prazo, ainda assim restava a obrigatoriedade da intimação pes-

soal do réu, condenado à pena de um ano de detenção.

 Não havia um único registro nos autos, por mais pálido que fosse, sobre a mi-nha intimação pessoal. A intimação se deu quando, no dia 7 de março, perfeitamen-

te consciente da situação, apresentei o recurso de apelo, já contendo as razões daapelação, dispensando, dessa forma, o benefício da prerrogativa legal de juntar asrazões depois.

 Não havia, portanto, como se falar de perda de prazo. A decisão dos desembar -gadores era, além disso, um desrespeito ao cidadão, entidade sagrada da instituiçãorepublicana, vedando-lhe a demonstração de sua inocência com um despacho seco,lacônico e autoritário. Parecia um édito real, no qual se proclamava, por mera enun-

ciação aritmética, que ele, réu, cometera o mais primário dos erros advocatícios,sem qualquer outra fundamentação além da contagem dos dias decorridos a partir

da publicação da sentença.

 Nenhuma palavra sobre a certidão da escrivã, peça constitutiva dos autos. Ne-

nhuma atenção para circunstâncias atenuantes de uma eventual falha, mesmo es-

 peculativamente, como argumentação. Nada sobre a inexistência de comprovaçãoquanto à intimação pessoal do réu. Nenhum sinal de respeito ao primado da ampla

defesa, em qualquer circunstância, sobretudo quando envolve pena de privação deliberdade, circunstância cumulada com a atenuante da primariedade do réu. O jul-gamento mais se parecia ao inquisitorial de um Gulag tropical.

Mas o desembargador Paiva não se contentara em me acionar na esfera penal.Além de representar contra mim ao Ministério Público do Estado para que me de-

nunciasse por alegado crime de imprensa, por injúria, calúnia e difamação, propôs

também uma ação ordinária de indenização por danos morais perante o foro cível, por ofensa que dizia estar contida na mesma matéria do Jornal Pessoal sobre a gri-

lagem da C. R. Almeida.

Seu advogado era José Eduardo Alckmin, ex-ministro do Tribunal SuperiorEleitoral, dono de um dos mais movimentados e caros escritórios de advocacia deBrasília, o Alckmin Associados S/C. Foi também quem defendeu o ex-governador,ex-(e-de-novo-atual)-senador Jader Barbalho, quando ele foi preso e algemado pelaPolícia Federal, em Belém, e transportado para Palmas, no Tocantins. Alckmin foiadvogado da Incenxil em ações contra a Shalom, que já transitaram em julgado no

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Superior Tribunal de Justiça. Assim, depois de ter defendido a empresa de CecílioAlmeida, defendeu o desembargador que defendeu seu patrão.

Se contasse com amparo legal que a decisão do magistrado lhe conferiu, a em-

 presa de Cecílio do Rego Almeida teria em seu poder o maior imóvel rural de todoo planeta, sem que para tanto sequer haja apresentado o título de domínio da área,que, até hoje, depois de tanta celeuma, ninguém sabe, ninguém viu (nem quem dizdetê-lo).

A precipitação da Desembargadora

Certamente ele sabia que não investia sozinho contra mim. A ação era conjunta.Mais do que isso: orquestrada. Movimentações outras eram feitas simultaneamente.

Umas para consolidar a grilagem. Outras para afastar quem se colocasse no cami-nho do grileiro.

Às 9h48 da manhã de 14 de maio de 2002, o gabinete da desembargadora Mariado Céu Cabral Duarte na sede do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em Belém,começou a transmitir um fax para o fórum de Altamira. Em um papel simples, era odespacho que a magistrada acabara de assinar, acolhendo recurso dos inventariantesdo espólio de Raimundo Ciro de Moura e da Incenxil.

Através desse recurso, os autores queriam impedir o cumprimento de uma deci-

são da juíza da 2ª vara cível de Altamira, Danielle Silveira Burnheim. A juíza libe-rou máquinas e equipamentos de pessoas acusadas de extrair ilegalmente madeirade uma área em litígio, uma grande extensão de terra no Xingu, rica em mogno eque estava sendo alvo das maiores grilagens do país.

Mal a juíza de Altamira determinou o cumprimento da determinação superior, ogabinete da desembargadora Maria do Céu Duarte, desta vez usando papel timbradodo Tribunal de Justiça, expediu novo fax, às 13h21, pouco menos de quatro horasdepois. Agora, através de ofício, a magistrada pedia à juíza para desconsiderar o faxanterior, que continha o deferimento do agravo, “que por equívoco foi despachado

 por esta Desembargadora em uma cópia que estava sob [sic] minha mesa”. Não exatamente assim. O agravo foi protocolado no TJE pelos advogados Oc-

távio Avertano Rocha e Eduardo Toledo às 10h07 da véspera, 13 de maio. Os advo-

gados dirigiram o documento diretamente à desembargadora Maria do Céu, adosem que prevaleceria o princípio da dependência e da conexão. Em outros momentosdo litígio judicial, petições semelhantes foram distribuídas para essa mesma magis-trada. O agravo, porém, acabou sendo remetido para outra desembargadora, SôniaParente. A distribuição só foi processada às 11h20 daquele dia 14.

Ou seja: duas horas antes que a vice-presidência do TJE decidisse para quem

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iria o recurso, a desembargadora Maria do Céu já havia escrito seu despacho, emextensas quatro laudas, atendendo ao pedido dos autores do agravo, e o enviado porfax para a comarca de Altamira, distante pouco mais de 450 quilômetros de Belém.

A desembargadora assumira o papel de relatora, que iria caber não a ela, mas àsua colega Sônia Parente. Como isso foi possível? Talvez porque os papéis tenhamsido deixados, “por equívoco”, debaixo da (ou sob a, segundo seu léxico) mesa dadesembargadora Maria do Céu?

Exatamente duas horas depois que o processo foi mandado para a desembarga-

dora Sônia Parente, desfazendo a presunção dos advogados da Incenxil e do espó-

lio, a desembargadora Maria do Céu tratou de cancelar seu “equivocado” despacho.

Mas deu motivos para que, no dia seguinte, o advogado Antônio Villar Pantoja

Júnior, defensor de Adnaldo Cabral Cunha, contra o qual foi proposto o agravo,argüisse sua suspeição. Pediu o enquadramento de Maria do Céu no artigo 135 doCódigo de Processo Civil. O artigo caracteriza como parcial o juiz “interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes”.

Parte que, lembrava ainda o advogado, era ninguém menos do que um dos seteacusados de grilagem no Xingu, em inquérito realizado pela Polícia Federal, queresultou na denúncia do Ministério Público à Justiça Federal contra os envolvidos.

O advogado pediu também à então presidente do TJE, desembargadora Cli-

meniè Pontes, providências a respeito do caso, inclusive “a sustação em caráterexcepcional da liberação da madeira” em favor da Incenxil.

O conturbado agravo dizia respeito a apenas um dos muitos incidentes que

 pipocavam sem parar no Xingu, sobre um terreno cediço, minado pelas mais espe-

taculares grilagens de terras de que se tem notícia, atingindo mais de 20 milhõesde hectares.

Praticamente metade desse vasto território estava na mira da C. R. Almeida, acampeã nacional desse tipo de apropriação ilícita. A empresa se valia de registrosfeitos no cartório de imóveis de Altamira (cancelados e depois restabelecidos judi-cialmente) para agir como legítima proprietária das glebas.

Adnaldo Cabral Cunha foi autuado e multado (em 369 mil reais) pelo Ibama,em outubro de 2001, pela extração ilegal de 880 toras de mogno, com 2.461 me-

tros cúbicos de madeira. As árvores estariam no Seringal Monte Alegre, deixadocomo herança por Raimundo Ciro de Moura e sua mulher aos lhos. O inventáriodo espólio constituía outro tumultuado capítulo lateral dessa história: o cunhado deCecílio do Rego Almeida foi nomeado inventariante, com base num simples con-

trato de arrendamento assinado com um dos herdeiros, deslocando dessa posição o

inventariante anterior.

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Através do advogado Otávio Avertano Rocha, o espólio obteve junto a outro juiz da comarca de Altamira, Jackson Sodré Ferraz, interdito proibitório para deter -minar à Madeireira Ferreira e qualquer outra pessoa ou empresa “que se encontrem

no local que se abstenham de turbar ou esbulhar” o Seringal Monte Alegre. O juizdeterminou ainda a busca e apreensão das toras de madeira, colocando-as sob aresponsabilidade de um “el depositário”, Wandeir dos Reis Costa.

Imediatamente a Incenxil, utilizando outro advogado, pediu e conseguiu seradmitida como litisconsorte ativa (ou parte) no mesmo processo. Embora alegas-

se haver uma conexão entre os dois casos, porque o mesmo invasor e extrator demadeira, estaria ameaçando a ambos os autores, o imóvel supostamente esbulhadoda empresa era a Fazenda Curuá (individualmente a maior grilagem do Brasil, se-

gundo o governo federal). Esse imóvel ca a razoável distância do Seringal MonteAlegre, mesmo na escala de gente que trata de milhões de hectares como se fossemquintais (de uma autêntica mãe Joana, à qual o Estado se reduziu).

Assim, um mandado judicial, que deve ser expedido sob fundamentos especí-cos, já estava sendo concedido em tese, ou a rogo. Podia ser aplicado sobre dife -

rentes imóveis, independentemente de sua existência de fato e da demonstração da procedência do pedido.

 Nada a espantar, de acordo com a tese jurídica, já que a mudança nos nomesdos advogados era circunstancial, em ações que tinham atrás de si os mesmos per -sonagens, com pretensões sobre uma amplitude territorial equivalente ao tamanhoda maioria dos países do planeta, nos quais existem riquezas que equivalem a ouro,como as preciosas árvores de mogno.

O contracanto no Tribunal

Uma voz dissonante nessa trama foi a da desembargadora Sônia Maria de Ma -

cedo Parente. No momento em que sua colega Maria do Céu me acionava, eladenunciava o surgimento de um “clima de intranqüilidade” no Tribunal de Justiça,

“em razão de atos praticados por servidores e magistrados”, que estariam contami-nando como um todo a atuação do judiciário, “de maneira perversa”, substituindo“a serenidade, a moderação e a discrição”, característicos do ato de julgar, por um“ambiente de procela”.

Com base nesse diagnóstico, a desembargadora Sônia Parente requereu à pre-

sidente do TJE, Climeniè Pontes, “providências urgentes” para a apuração de fatosque apontou, envolvendo, entre outros, suas colegas as desembargadoras Maria doCéu Cabral Duarte e Rosa Maria Portugal Gueiros.

Sônia Parente começava por estranhar a participação, a seu ver, indevida, de

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Maria do Céu em litígios envolvendo enormes áreas de terras no Xingu. Citavacomo exemplo a distribuição para Maria do Céu do agravo de instrumento de Ad-

naldo Cunha, “embora já se houvesse estabelecido a prevenção da signatária para

relatar o processo”. Alertada para o fato, Maria do Céu encaminhou os autos paraSônia Parente.

O episódio se repetiu em relação a outro agravo, desta vez de Carlos Aguiar,envolvendo as mesmas terras e os mesmos personagens da incessante e cada vez

mais selvagem disputa pelas terras do Xingu. O recurso seguiu direto para a desem-

 bargadora Maria do Céu, como se ela estivesse preventa (isto é, vinculada ao caso, por dele haver participado anteriormente), quando o processo “sequer havia sidodistribuído”, conforme destacava, em grifo, Sônia Parente. Ela é que acabaria sendosorteada como relatora.

A novidade resultava de que, desta vez, a desembargadora Maria do Céu jáhavia concedido o pedido ao agravante, em liminar, e mandado por fax a sua deci-são (de quatro laudas) para cumprimento pela juíza de Altamira, onde tramitava o processo, “sem que existisse o Agravo distribuído e autuado”.

Sônia Parente considerava esse ato “no mínimo temerário, principalmentequando se trata de questão de repercussão nacional, envolvendo empresas arroladasna CPI da grilagem de terras e pessoas denunciadas criminalmente pelo MinistérioPúblico”.

Testemunhava a desembargadora denunciante que quando os interessados

constataram a irregularidade, de um recurso ser decidido antes de ser autuado edistribuído (acabando por ser encaminhado a outra desembargadora), criou-se “umgrande tumulto nos corredores [do fórum de Belém], onde a boataria corria à solta”.Só então Sônia Parente dizia ter tomado conhecimento “que me coubera por distri-

 buição aquele feito, já examinado e despachado por outra desembargadora no diaanterior, sem que sequer houvesse chegado às minhas mãos”.

Ao telefonar para a juíza de Altamira atrás de informações, Parente cou sa-

 bendo que no mês anterior a mesma desembargadora havia concedido outra liminarem favor da Incexil. A juíza informou que só não cumprira a decisão “em razão dotumulto criado no município relativamente a essa fortuna que se encontra na mata”.Ao consultar o computador, Parente vericou a existência de despacho de Maria doCéu “revogando a liminar e determinando que os autos me fossem encaminhados”.

Analisando os processos referentes ao Xingu, a desembargadora constatara si-tuações que deviam ser levadas “em especial consideração, a m de que a justiçado Pará não sirva de instrumento para legalizar terras pertencentes à União ou ao

Estado, em nome de terceiros”.

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Em relação a uma dessas áreas, o seringal Monte Alegre, que a Incenxil preten-

dia ser seu, a partir de habilitação no espólio do suposto proprietário, a desembarga-

dora encontrou nos autos um ofício do Iterpa informando que essa área não passaria

de uma posse (e não propriedade), que no máximo poderia ter 3.900 hectares. No entanto, a posse foi registrada no cartório de imóveis de Altamira, o princi-

 pal esquentador dos papeis das grilagens da região, como se abrangesse nada menosdo que 329.600 hectares. Ciente dessa fraude, em 1996 o Iterpa propôs uma ação decancelamento do registro, “a qual se encontra aguardando o julgamento do feito”.Diante desses fatos, a desembargadora perguntava: “foi apurada a responsabilidadeda escrivã”?

E aproveitava para suscitar uma questão: a formação do inventário dos bens

deixados por Raimundo Ciro de Moura, incluindo o seringal Monte Alegre, e sua propositura na comarca de Belém, ao invés de Altamira, “não será uma forma delegalizar a propriedade”?

Citando o noticiário da imprensa (inclusive o do muito perseguido Jornal Pes-

soal) sobre a pilhagem fundiária e madeireira no vale do rio Xingu, Sônia Paren-

te criticou a liminar concedida por outra desembargadora, Rosa Portugal Gueiros.Rosa tinha concedido o habeas corpus que Osmar Ferreira, conhecido na mídiacomo “o rei do mogno”, requereu para deixar de comparecer a uma audiência nacomarca de Altamira, onde foi denunciado pelo Ministério Público do Estado.

Continuando a folhear os jornais, a desembargadora Sônia Parente localizououtra decisão polêmica: a então juíza (e hoje desembargadora) Marneide Merabet,da 4ª vara cível da capital, deferiu certidão de quitação de imóveis nanciados pelogoverno federal, quitação essa feita com títulos podres, como os tristemente famo-

sos TDAs (Títulos da Dívida Agrária).

Só depois que os imóveis foram alienados a terceiros, produzindo seus “efeitosnefastos”, “a magistrada candidamente revogou a decisão”. Mas aí a quitação jáhavia permitido passar em frente imóveis que continuavam gravados junto ao ban-

co nanciador, prejudicando os compradores, lesados em sua boa fé pela liminarconcedida pela juíza em tutela antecipada ao pedido.

O fel depositário da madeira

A denúncia da desembargadora Sônia Maria Parente agitou o TJE, mas ela nãose importou: voltou a alertar que a justiça do Pará, o segundo maior Estado brasi -

leiro, com território superior ao da Colômbia, podia estar servindo de instrumento para “legalizar terras pertencentes à União ou ao Estado, em nome de terceiros”,transformando-se num braço auxiliar da grilagem.

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A advertência se aplicava ao caso do el depositário el de madeiras apreendi-das na área sub-judice em Altamira. O então juiz da comarca deu à C. R. Almeidaa prerrogativa de indicá-lo, para guardar um volume que chegou a atingir 15 mil

metros cúbicos de mogno, patrimônio calculado na época no valor de 120 milhõesde reais. Esse el depositário – tanto da madeira quanto dos equipamentos apreen-

didos – era o comerciante Wandeir dos Reis Costa, ex-madeireiro de Altamira.

Com essa retaguarda, a empresa começou a operação de juntar a madeira queestava espalhada por toda a região, embora alguns observadores desconassem que praticamente não havia madeira na área que a C. R. Almeida alegava lhe pertencer.

Estimulada, a empresa foi além: requereu indenização pelos danos que teriasofrido com a ação dos invasores, que calculou em quatro milhões de reais. Sempre

tendo o cuidado de informar as autoridades competentes, do Ibama à Polícia Fe-deral, dos procedimentos que estava tendo para defender o patrimônio ecológico.

A preocupação do pobre el depositário com a integridade dos bens postos soba sua guarda se acentuou no dia 22 de novembro de 2002, quando “um grande tem-

 poral, seguido de ventos de alta velocidade”, provocou o desgarramento de “grande parte das toras das amarras que as seguravam, formando jangadas, deixando asmesmas ao sabor das águas”. Não disse quantas toras. Alguém poderia saber real-

mente quanta madeira se perdeu?

Costa noticou a polícia sobre o fato, mas ainda assim sua responsabilidadecontinuou em causa: além de sujeitas a acidentes, as toras de madeira estavam apo-

drecendo na água. Assim, ele tomou a decisão, através de mandado de segurança,de pedir à justiça que o autorizasse “a antecipar os valores necessários” para retirara madeira da água, serrá-la, classicá-la e depositá-la num local seguro, sempre su-

 jeita à scalização da própria justiça, até que o destino dessa riqueza seja decidido,igualmente pela via judicial.

Um ato de grande nobreza. Anal, durante 13 meses o el depositário tirou di-nheiro do próprio bolso para pagar guardas particulares, que dividiam a vigilância

sobre a madeira com soldados da Polícia Militar. O depositário também respondia por honorários advocatícios e outras despesas “inerentes à proteção dos bens”, quealegava onerarem suas “parcas reservas”, já necessitadas de ressarcimento. Mesmonessa situação, ele se dispôs a gastar ainda mais, tendo de volta seus investimentosquando – num futuro de previsibilidade incerta e não sabida – a madeira tiver seu

destino decidido pela justiça.

Apesar de todas as meritórias alegações apresentadas, se o despacho da desem-

 bargadora Maria do Céu tivesse sido cumprido, dicilmente se poderia aplicar àmadeira de Altamira a decisão do Senado, impedindo que as toras de mogno rema-

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nescentes ao temporal fossem levadas a leilão.

Inevitável a venda, haveria ainda uma questão a responder: quem poderia seapresentar em condições de concorrer com quem já possuía créditos acumulados

com a guarda e manutenção da madeira utuante no rio por 13 meses, e com suaserragem, empacotamento, classicação e depósito a partir de então?

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Como funcionava o esquemailegal da madeira

As conversas telefônicas, abaixo parcialmente transcritas, foram gravadas. emfevereiro de 2002, por Ricardo Furstenberg, que era um dos principais represen-

tantes da C. R. Almeida em Altamira e Belém. Ele conversa com Eliezer Ciro deMoura, um dos herdeiros de outra área no Xingu, da qual a empresa tentava seapropriar. Nessa época, Ricardo estava atritado com o empresário e se documen-

tava para a batalha que iriam travar. Eliezer também estava litigando com a C. R.Almeida na justiça. Ele não sabia que a conversa estava sendo gravada. Por isso,revela detalhes condenciais do esquema que permitia a essas pessoas se apropriarde terras e madeiras no vale do Xingu. A primeira conversa foi no dia 7 e a segunda,no dia 20 de fevereiro.

Para melhor compreensão, segue-se um guia dos personagens e questões refe-

ridas nos diálogos:

Eduardo Toledo – Advogado da Rondon /C. R. Almeida / Incenxil.

Avertano Rocha – Também advogado das três empresas.

Vando – Wandeir dos Reis Costa, el depositário das madeiras indicado pela C.

R. Almeida e aprovado pelo juiz de Altamira.Marco Antônio Cassou – Cunhado de Cecílio e um dos seus prepostos.

Juiz de Altamira e ou Uruará Jackson Sodré Ferraz, que exigiu a apresentaçãodo inventário para conrmar se os autores eram legítimos proprietários das terras e por consequência das madeiras apreendidas. Nas terras em questão estão localiza-

das, a Floresta Nacional de Altamira e reservas indígenas.

Inventário dos Bens de Raimundo Ciro de Moura.

Contrato para garantir a divisão do lucro da venda da madeira. 50% para a fa-

mília Moura e 50% para a C. R. Almeida.

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Funcionária do Fórum de Altamira.

Seringal com Ação de Cancelamento de Registro de Imóveis impetrada peloIterpa.

Heleno Moura – Contratado pela C. R. Almeida para transportar a madeira doXingu.

Contrato entre Raimundo Ciro de Moura e Rondon Projetos, para que a Rondonzesse a defesa no processo contra o Iterpa.

Umbelino Oliveira - Antigo proprietário da Incenxil, dona da Fazenda Curuá.

Floriano - Advogado da Família de Raimundo C de Moura no inventário.

PRIMEIRA CONVERSA

RICARDO - Sumiu do ar ...?ELIEZER – Não.... fui só assinar um documento e voltei bem rápido ...

R – Como é que estão as coisas?

E – Rapaz... tá indo tudo bem...nos estamos aí acompanhando aquele proces-so... na poltrona da frente.... ...antes de ontem... o Cassou estava aqui... ele estava no

escritório e eu estive lá.... estava o Zé Inácio, estava o el depositário da madeira eele. Eles zeram, lá no escritório deles, zeram uma divisão... zeram um escritóriomesmo, lá dentro, tudo dividido. Aí o Zé Inácio mandou Dona Maria me anunciar

lá para falar com o Cassou... não quero falar com o Cassou, vim aqui pra ver comoestão as coisas... o Cassou vai ter o momento apropriado pra falar com ele... tá

muito cedo ainda.

R – Mas... daquele negocio não resolveram nada ainda?

E – Do pagamento?

R – Com relação aos pagamentos...

E – Não. Aquela diferença que eles tinham pra me pagar?

R – É.E – Não. Nunca mais falaram no assunto... um dia perguntei pro Dr. Avertano

[Rocha]... ele disse: – Não eu acho...tá normal, isso tá tudo certo, isso não temnada.... o senhor acha... nosso advogado não pensa assim!

R – ... daquela vez ainda? Ainda não resolveram?

E – Nada! Aquilo ali vai ser anulado...vai ter um acordo... se não eles

vão dançar...

R – É mesmo?

E – É... mas o que eu tô achando... é que esses caras tão com um

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 jogo...o Eduardo[Toledo] ... o Eduardo é muito... é muito...

R - Safo?

E – Pilantra, ele é muito bandido... Na realidade eles deram corte... uma coisamuito estranha, já aconteceu muita coisa estranha realmente viu (...) eles não deixa-

ram mais o Heleno levar suprimento...escanteio, aí a princípio eles... combinaramcom o Heleno que o Heleno.... faria o transporte da madeira. Heleno faz o transpor-

te da madeira, pode fazer tudo direitinho... aí o Heleno me avisou e eu disse: – ...tátudo bem e tu aproveita e já faz a tua avaliação, confere lá vê quanto é que tem real-mente. Foi quando eu fui pra Belém. Passei uns dias, quatro ou cinco dias. Quandoeu voltei o Heleno me procurou e disse: – Rapaz tem um fato estranho aqui...eu tivelá com o Vando [Wandeir dos Reis Costa], que é o el depositário... o Vando me

disse que já me tiraram, não vou mais transportar madeira já é ....é o Ibama que vaifazer esse transporte... aí eu perguntei pro Vando o que tinha acontecido e ele merespondeu que Santo de casa não obra milagre.Aí eu disse: – É mesmo, rapaz? ....então espera aí que eu vou dar uma consertada nisso aí, eu sou procurador e essasações aí estão sendo todas em nosso nome, quem manda sou eu, espera aí que euvou já mudar essa história. Aí fui lá no Ibama...o Bisseli não estava lá, mas estavao Assis, que é o subchefe lá...

R – É, eu lembro dele...

E – Assis me conta uma história, o que esta acontecendo? – É que nos recebe-

mos um fax da Melgaço de Belém, Superintendente do Ibama, e nós vamos ter quecontratar aqui empresas para o transporte de madeira... Eu disse: – Com a autoriza-

ção de quem? Não,,. o Ibama... Eu disse: – Companheiro, deixa só eu te ser franco.Autarquia Ibama não tem nada a ver com transporte de madeira. Nunca fez, não vaifazer agora e nunca fará. Prá começar vou logo te ser franco. Se o Ibama tomar fren-

te disso aí e hoje você contratar empresa, hoje é quarta feira... sexta feira a RevistaVeja, O Liberal, vai tá tudo aqui... você sabe de quem é a ação! Não é minha, é lá danossa família e eu sou o procurador. Se isso acontecer, Sexta feira vai tá todos vocês

aqui do Ibama envolvido...eu não vejo o Ibama ter dinheiro.... tudo rasgado aqui...cadê que vocês tem dinheiro pra ao menos consertar esses móveis.Tu aproveita e

fala pro Bisseli e passa uma correspondência pra... essa Melgaço e diz que é Eliezerque tá dizendo isso aqui... bati em cima da mesa... até logo.Aí sai procurei o Van-

do...cheguei lá na porta do escritório tinha umas cinquenta... cinquenta peão... parei

o carro e disse: – Vando vem aqui. O que tá acontecendo? ...você falou pro Helenoque ele não vai mais transportar a madeira? O que é isso? – Não! Foi ordem que eurecebi. – O Zé Inácio tá aí? – Não. – O Dr. Avertano tá aí? – Não. – Pra onde é queeles tão? Não sei, saiu aí... – Quando eles chegarem diz pra eles entrar em contato

comigo e você aproveita e diz pra eles que quem manda nesta M... aqui somos nós.

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R – ... ele falou que tá cando madeira no mato...

E – Muita.

R – ... ele falou ... a ordem é deixar não sei quantos mil metros cúbicos aguar -dados no mato e ele tá cando pra guardar isso no mato... então tá descendo uma parte que é a parte real do Ibama mas o lé tá cando, entendeu.....não sei se vocêtá sabendo disso?

E – Tô! ... o Dino... quando ele estava lá, ele e o Zé Inácio realmente falarammal do Heleno, falaram mal de mim e o Luciano... que morava lá, o Luciano acom -

 panha agente e falou aqui...aí eu fui lá, lá no escritório, juntei Zé Inácio, juntei Dr.Avertano, o Eduardo, só não estava o Dino...aí eu disse: – Companheiro, está ha -

vendo uma situação estranha, tem um disque me disque lá em cima......tá havendo

um comentário lá que o Dino e você Zé Inácio tão falando de mim e do Helenolá. –Não que é isso? – ,.. que estão fazendo comentários, inclusive, coisas assimindecorosas....com que razão você esta falando isso, que motivo? – Não, isso nãoaconteceu... – ... o Luciano falou e disse que vem falar na sua frente. Agora deixaeu só esclarecer uma coisa pra você: Aquela terra lá é nossa!! É Raimundo CiroDe Moura, vocês lá...não mandam P... nenhuma. Vocês tem um contrato conosco,contrato vencido, vencido de direito e de fato, então lá quem manda somos nós. Sevocês mandam porque não procuram o direito de vocês na justiça? E porque vocêsestão fazendo em nosso nome? ... quem manda lá somos nós... se eu der uma cane-

tada cai vocês todinho. E quero esclarecer outra coisa: Vocês estão patrocinando,mas já tem duas madeireiras ... que eu já contatei em Belém, que na hora que vocêsse afastarem elas estão conosco e nos dão até mais do que vocês estão nos dando. –

não, não aconteceu nada disso... – Então presta atenção no que você fala... – ... tu édoido o Luciano está mentindo... – Toma cuidado... ca falando M...

R – O Luciano não é homem de contar história... o Luciano é cabra mateiro...

E – ... o Luciano disse: – Eliezer, vamos lá ...se ele disser que é mentira, douum murro nele. O Heleno não deixou ele ir 

R – ... o Luciano não é homem pra isso...E – Com certeza... agora, resultado, nós armamos a situação, tô com dois advo-

gados... a partir do momento que o juiz assumir e pegar o processo, os poderes doAvertano estão suspensos... vão ter que vir comer milho na nossa mão... ou vem ou

o que eles zerem com a madeira é tudo ilegal e a madeira já tá de viajem pra cá...ca mais fácil... apesar de que eu acho que tem problema pra desgraça ...

R – ... não sei se você viu que noticiaram hoje na televisão... eu vi hoje de ma-

nhã no Bom dia Pará. A Policia Federal entrou nesse caso... das madeiras. O Ibama

mandou um dossiê... A Policia Federal entrou nessa questão... pra acompanhar e

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investigar as ações de madeireiras nessas apreensões que houve... deu hoje no Bomdia Pará... mas passaram uma coisa meio por alto...

E – A gente tá sabendo, eles tiveram aqui. A jogada maior disso tudo... me preocupa é só um fato... terem essa sacanagem de negociar por fora e sumir essa

madeira...então eu mesmo antes de ontem chamei o Eduardo e o Cassou estava lá e

disse: – Eduardo vem aqui ,o Zé Inácio queria que eu fosse conversar com o Cas-

sou... eu não fui até porque não tá na hora exata. Deixa só te falar uma coisa: – Euquero na próxima semana, nos vamos assumir esse processo, se vocês quiserem...uma ação conjunta... vocês e nos somos de direito os donos... – ... tudo bem, tudo bem.

 – Então deixa bem claro: estamos entrando com o inventário, vai cair os pode-

res do Avertano, nos não temos nada contra a empresa...mas queremos cinqüenta por cento, isso em contrato, e se houver o pagamento o dinheiro vem pra nossamão primeiro e depois vai pra vocês a metade. Se quiser. Se não quiser você é

quem sabe. O cara amarelou, bicho! – É só bandidagem... a minha preocupação é...enquanto tá vindo aí a madeira... eles tão na boa com a gente, na hora que sumirisso aí eles deixam todo o pepino pra nós. Por exemplo: o el depositário... eu atécomentei...ele disse: – ... eu sou do espólio do Raimundo Ciro De Moura.

 – Eu falei pra ele...você não é el depositário do espólio porque eu não tenomeei, nenhum inventariante te nomeou... o Avertano não é nosso advogado nem

a lha dele. Então tá tudo errado... todos aqueles bens apreendidos já foram des-

viados muita coisa. Pelo menos 50.000 litros de óleo foi desviado, tem maquinaquebrada, ele já tá dizendo que dois caminhão são dele....então vamos fazer umrelatório de tudo isso aí pra apresentar na justiça. O cara já cou assustado comigo...Ele falou: – Não, mas tá tudo certo... – Não... não tem nada de certo não...

R – Eu não entendi... ele foi nomeado el depositário no teu nome, na tua ação?

E – O Vando...

R – Mas na tua ação?

E – Na nossa ação... nomeado, claro, pelo Avertano...

R – Agora, você tirando... você derruba tudo isso?

R – ... o inventário já esta no processo...dei entrada hoje... entrando o proces-so... cai o el, cai os poderes do advogado automaticamente ... aí vão ter que chegara um acordo justo ou então...

R – Mas e aquele contrato de vocês, da venda no passado, eles não podemexecutar isso?

E – O da venda?

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R – É..

E – Não...eles não podem, porque eles são devedores, né?

R – ... mas eles não podem alegar que vocês se recusam a receber aqueles pre -

catórios?

E – Não, aí é a palavra deles contra nossa, até porque foi feito um aditamento...foi feito um pedido de prorrogação... se houve pedido de prorrogação é porque eles

não cumpriram com a parte deles. Eu já pedi pra uma juíza analisar aquilo ali...quatro advogados analisaram... disseram... – não, isso aqui pode ser nulo... comcerteza nulo de pleno direito, porque: uma negociação de venda, compra e venda,é aquela que você vende mas recebe. Se não recebe não é uma negociação, não é?(...) Tem muita coisa pra rolar.... o que nós queremos na realidade (...) 50% nosso,

50% deles... começando passando pela nossa mão, claro, a gente recebe e paga praeles. Eles recebem pra nos pagar, nós não aceitamos. Porque nos não damos, nanossa procuração, nos não damos poderes de quitação... O poder que eles tem é pra vender. Então isso aí... eles tão buscando alguma maneira, eu não sei como é...alguma maneira... eles tão tentando pra ver se da golpe, mas só que não tem jeitomais... empurraram com a barriga...

R – ... me diz uma coisa: o Ibama se manifesta, eu vi pela televisão hoje, queessa madeira apreendida eles vão dar destinação, que não pode ir pra leilão mais,...que fariam doações... Como é que vai car o Ibama nesse papel com vocês?

E – Quem vai doar a madeira?

R – O Ibama!

E – Não. O Ibama não tem poderes pra isso. Porque isso aí é uma reintegraçãode posse... uma área onde foi tirada a riqueza tem que voltar...

R – Ela vem pro dono.

E – Exato! Foi afetada, foi roubada, então essa riqueza tem que ir pro dono.

R – Porque pelo que eu vi o Ibama tá falando, um tempo atrás, aquele cara lá,

o presidente do Ibama, falou em cima dessa questões da madeira, das apreensõese destinação, que as madeireiras estavam conseguindo liminares pra ... venda demadeira... não sei se você se lembra disso?

E – É verdade.

R – Que conseguiram la pra madeira de Uruará, né?

E – É. Acho que conseguiram cassar essa liminar.

R – ... cassaram?

E – Foi cassada já essa liminar... de exportação. Eles conseguiram exportar

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400 metros cúbicos, aí imediatamente foi cancelada, foi cassada a liminar.

R – ... foi cassada por via da empresa ou...

E – ... foi cassada hoje inclusive...

R – ... mas por via da empresa ... o Avertano?

E – É... também, né... também tem muita inuência.

R – Ah, tá.

E – Só que eu acho que isso é um jogo... eles vão segurar e a hora que tiver pronta essa daqui, aí eles vão dar um jeito de se juntar com a máa lá, que é praliberar tudo.

R – Mas é danado, né...

E – .... isso aí é uma máa do caramba...R – Ah é grande...

E – .... eu tenho certeza... também que eles tem um canal pra tirar essa... e ven-

der essa madeira, se não eles não estariam gastando esse dinheirão não...

R – Estão gastando muito, é?

E – ... acho que já vai uns dois milhões de reais.

R – O que da empresa?

E – Da empresa.R – Você tá brincando cara!!

E – Com certeza absoluta.

R – Mas no que... gasta tanto?

E – ... só pra você ter uma idéia ... ele mantém lá uma média ... acho que são

trinta...trinta e dois policial a cinqüenta reais a diária ...

R – Tudo mantido por eles?

E – Tudo... fora a alimentação, frete de barco, avião, aí vai ocial de justiça,

vai delegado, aí a viagem de advogado pra cá, advogado pra lá, diária, hotel... vai oagrado pra um, agrado pra outro mais... cento e trinta mil.... só numa cacetada dessamadeira, duzentos e setenta mil pra tirar a madeira do Iriri...

R – Duzentos e setenta mil?

E – É... essa mixaria pra tirar essa madeira de lá pra cá..

R – ... então eles estão com acerto muito maior de retirada, com certeza ...

E – Com certeza...

R – ... deve ter um esquema de colocação muito grande.... agora vê se docu-

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menta... esse negócio... se não você ca a ver navio....

E – .... quando eles estão de bem pro nosso lado e sorrindo, já sei que é golpe....mas eles tão muito preocupados e agora não tem mais jeito não, agora amarrou

tudo.... o inventario agora tirou eles totalmente fora da jogada, toda e qualquer açãotem que passar pela nossa mão, o que eles vão fazer tem que ser com nosso apoio,nosso acordo, senão não vai...

R – (...) e o Heleno, como é que tá , Tá bem?

E – .... O Heleno tá indo amanhã ... buscar o resto da madeira...

R – Tá bem cheio o rio... tá dando pra baixar.....

E – ... encheu bem... mas tem uns quatro dias baixou... muito mesmo, mas

tem condições de tirar a madeira, com certeza.R – Já tá toda pinada...?

E – Tá tudo já em jangada...

R – ... é só rebocar?

E – É só rebocar...

R – ... e aí em Altamira isso vai car armazenado onde?... na água mesmo?

E – ... a gente tem um local apropriado pra armazenar 

SEGUNDA CONVERSAR – Alô

E – Fala (...)

R – Fala meu velho. Tá bom?

E – Ta cando bom agora rapaz...

R – Rapaz, o que houve a ... me falou... meia parada, tipo: ... pelo que o Eliezerme falou deve ter dado um pepino muito grande.

E – ...os caras são fogo! O Eduardo é louco! louco! A ação de apreensão daque-

le mogno... que precisava do juiz que pediu o inventário... que eles me pediram, sóque eu pedi o contrato, né? Que eles zessem um acordo prévio, né? Aí eles enrola-

ram, enrolaram e sumiu nunca mais pediram. Eu andei lá pelo Fórum e perguntei lá pra menina o que... ela tinha visto lá.... o inventário, tal ...a Jaci, já tinham compradoa Jaci...aí eu pedi o processo pra tirar uma xerox e não me deram o principal... eladisse: – Ah, o principal tá não sei com quem... tal . Quando foi pela semana passadaeu peguei e tirei um... quando vejo pelo nal um inventário feito pelo Eduardo...

R – ... você tá brincando!!......

E – ... sem a nossa autorização eles foram no cartório... e pegaram ...um atesta-

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do de óbito do papai e procederam... zeram o inventário como se papai tivesse de bem só o Monte Alegre. Que eles eram credor das outras áreas... e que era somenteaquilo ali que o papai tinha de bens.

R – .... você tá brincando!E – ... com certeza... eu tirei uma xerox...

R – ... e quem assina esse inventário?

E – ... ele fez assim: O Avertano preparou o pedido do inventário, nomeou oCassou inventariante, o Cassou passou uma procuração pro Eduardo, .... todos os poderes possíveis, e o Eduardo substabeleceu pro Avertano. E eles lá quietinhos,tal, a maior amizade com a gente... na justiça agora contra eles. Tá p... o Eduardotá p... Eu abri o jogo com ele tipo: moleque, ladrão, sem vergonha, lho da p... por

aí a fora... não dei um murro... só por nada (...) ele disse: – vou mandar parar o He-

leno!! Que o Heleno tá fazendo o transporte lá. – .... vai tomar no c...lho da p......vou fazer uma representação com nossos advogados.....tão tocando aí tão mexendoos pauzinhos...

R – Aqui?

E – É!

R – ... mas você entrou com alguma ação contra eles?

E – Vamos entrar! Ainda não porque nos vamos pedir a anulação do inventário, porque não tem validade... não tem nada de documento, não tem nada...

R – Isso é estelionato, não é??

E – Hein?

R – Isso não é estelionato? Ou eles tinham algum documento teu que dava poderes?

E – ... eles pegaram uma procuração velha do Heleno. Tu lembra que o Heleno

 passou uma procuração pra ti naquele tempo do Monte Alegre?

R – Não.E – O Heleno deu uma procuração pra que fosse feito aquele acordo de parce-

ria, né?

R – ... não foi dada procuração...

E – O Heleno não passou nada?

R – Não, ali foi feito um contrato. Que eu saiba é um contrato8.

E – Então eu não recordo o que esses caras tem....

R – Mas você não viu o processo?

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E – ... nosso advogado tirou uma cópia, tirou uma xerox... mas ele tá vindoagora ...eu vou dar uma olhada.

R – ... tem que ver a origem de tudo isso, né?

E – com certeza.

R – Como é que procede a coisa... que coisa estúpida...! Agora, você tinha mefalado que estava entrando com o inventário. Você não deu entrada?

E – O nosso já!.... tem lá... lá no processo, já... foi feito a juntada

dos dois, tem os dois inventários lá, né?

R – ... eles unicaram....

E – É tem dois. Agora o juiz vai julgar, né? Ele lá depois a dona Maria falou

 pra gente, que falou pra alguém e eu quei sabendo, que: - é o nosso inventário éque tem valor! Rapaz os caras tão brincando, vai ter morte nesse negócio, só pode...tá doido!!

R – Mas que estupidez, rapaz...

E – Pô, eles tão... uns trinta e cinco mil metros cúbicos de mogno...os caras tãoloucos! Os caras só falam ... em dinheiro, é carrão, é mansão, é viajem, os c... aquatro. Agora não que eu falei que vai quebrar tudo dentro, eles tão doido. Inclusiveo Zé Inácio ligou pra mim em seguida e disse: – Pô, Eliezer, tem que ver a gente

tem que se juntar desse lado... enquanto a gente tá brigando, os madeireiros tão se juntando...a pior coisa é dormir com o inimigo na trincheira. É porque os Umbelinolá brigaram com a gente e nós deixamos eles f... Eu disse: – Só que vocês deixarameles , nós não...

R – Ele falou assim?

E – Falou! – ...vocês deixaram eles e a madeira estava bem aí, antes que vocêsdeixem todo o pepino pra nós, imposto e toda encrenca, vou cortar antes de vocês botar a mão na madeira. Ele pode pegar outra madeira aquela não. Agora uma coi-

sa viu... eu acredito que o Cassou teve lá... inclusive semana passada. antes de eu

descobrir a bomba, o Cassou estava lá, eu fui lá e eles queriam que eu conversassecom o Cassou, eu disse: não... tem pra tratar com Cassou. É que se eu soubessedessa bomba, né? Eu não tinha falado... eu tenho a impressão que o Cassou... devetá inocente, pelo que eu percebo acho que ele tá inocente disso...

R – Mas como... não foi ele que passou a procuração?

E – Sim. Mas acho que ele, com certeza deve... com a nossa concordância...

R – .... não entra nessa!

E – Não?

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R – ... Agora é muito grave isso que foi feito, viu? Se não tem um documentoque de sustentação pra isso, se a família não deu poderes, como que um estranhose habilita? Eu posso abrir um inventário no nome do teu pai? Não posso! Da tua

família, posso fazer isso?E – Acho que... eu não sei, teria que ver a lei. Qualquer pessoa pode, desde que

seja credor...ou qualquer coisa parecida....

R – Mas eles não são credores de vocês...

E – São devedor! Mas eles usaram de má fé uso...

R – ... o que ele pode ter usado.... aquele contrato do Monte Alegre é o que oIterpa entrou com a Ação, não é ?

E – Certo!

R – ... então sim, o contrato ali, eu lembro da coisa, reza o seguinte: Que oCecilio do Rego Almeida daria todas.... o apoio jurídico pra sua família , né?

E – Certo!

R – ... naquela questão e caria com 50% do patrimônio, né?

E – Isso!

R – ... e ndada a ação, coisa que ele não queria que aparecesse em registro deimóveis, foi feita aqui no cartório aqui em Belém...

E – Kós Miranda.R – ... no Kós Miranda, ndada a ação... ele compraria os outros 50% num

 preço previamente acertado, não é isso?

E – Isso!

R – ... então ali é que usaram de má fé agora. Quem usou de má fé foi o próprioAvertano e o Eduardo, Logicamente, colocaram na cabeça até do Cecilio isso. Aínão tem nenhum anjo, não vai ter anjo nessa história não. Não se engane. E a pro-

curação é ad judicia, que foi passada pra eles, para os advogados poderem defender

o Monte Alegre. É por isso que eles tão alegando esta questão de credor... É umduro golpe em cara? E eu acho que é legal. Se você for analisar eu acho que foi umgolpe legal deles.

E – Não!

R – Rapaz!

E – Porque nós pedimos, nós, vamos ver... pedimos substituição do inventa-

riante. No nosso entender, nós não concordamos, aquilo foi golpe, não é do nossoconhecimento...

T – ... você quer ver uma coisa, Eliezer, eu vou te falar o que vai ocorrer nesse

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negócio: Na justiça aí, você acabou de me falar o nome de uma mulher que deveser do Fórum, não é?

E – É...

R – Você falou que foi comprada...por aí vai. Então.... se você entrar na justiçaagora, eles vão contestar, vão levar até chegar em Brasília ... independente do trâmi-te jurídico, enquanto tá rolando na justiça eles vão ter poderes sobre essa madeira....

E – Só que com uma questão a menos...com uma denuncia na revista Veja tal-vez não.

R – ... só pra mim entender, coisa que nós sempre falamos muito... eu não fe-

chei a coisa: No negócio da madeira como começou, qual foi a proposta deles pravocês? Quem começou isso, foram eles que te procuraram ou...

E – Foi. 50%.

R – ...eles propuseram 50%?

E – ... o acordo era esse.

R – do Eduardo?

E – É! Depois já mudou.

R – O Cassou nessa como é que cou?

E – Não sei... acho que tem que por a 50% ou nada

R – Eles que zeram a proposta?E – Não! Nós é que, nós é que falamos sobre isso aí, eles não falaram nada.

R – Aí zeram contrato disso, ou não?

E – Claro que não!!

R – E nem podem fazer, né? Porque eles não querem aparecer.

E – Mas de qualquer forma, nós vamos pra justiça... se for o caso, nós vamosnos juntar e vamos trazer a mídia inteira e mostrar que o assunto é deles e nós não

concordamos com isso, aí vamos ventilar na justiça o direito.R – ...eu acho muito difícil ...que eles consigam tirar um pau desse...depois queestiver em Altamira.... Porque com certeza esses movimentos sociais vão se mobi-

lizar, com certeza vão vir uma p... de mobilização. Você não falou que o Tarcisio tárecebendo uma ponta da empresa?

E – Tá!

R – É ...você falou na época em duzentos pau...

E – Não sai de lá! Escuta (...) Amanhã você não sai daí o dia todo?

R – ... eu tenho uma saída meia rápida...

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E – ... eu vou ver um horário....nal da tarde, noite, eu te ligo e vou aí comFloriano... a gente bate um papo.

R – Você vem aqui?

E – vou...

R – ... se você quiser vir durante o dia, eu te espero... a tua situação é muito maisemergencial... do que eu iria fazer, aí eu te aguardo. Porque eu acho o seguinte, viu,Eliezer, não seja anjo na história... até o próprio Floriano, enquanto advogado, eleestá indo muito pelo direito, entendeu?

E – Sei!

R – ... a coisa não funciona bem por aí, daqui a pouco você tá enroscado emuma situação criminal, porque está sendo cometido um crime na posição, tá enten-

dendo? E sobra pro teu ...

E – Tá! Ok!

R – A gente troca uma idéia.... você tá onde? Em Belém ou Altamira?

E – To aqui em Belém, eu te ligo amanhã...

R – ... aí ca mais fácil, me liga amanhã, então...

E – Então tá...

R – ... aí passa aqui comigo... pessoalmente a gente conversa melhor...

E – tá bom...

R – ... o Heleno tá lá no mato?

E – O Heleno tá! Ele... trazer a madeira.

R – Ta ganhando bem pelo menos pra fazer isso?

E – ... o acordo é signicativo, em parte.

R – Tão cumprindo com ele lá?

E – A primeira parte cumpriram.

R – ... menos mal...E – É...

R – ... eu espero uma ligação tua.

E – Tá bom

R – Falou?

E – Tá, um abraço

R – Um abraço.

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MORRE DE INFARTO O MAIOR GRILEIRO

DA AMAZÔNIA

BRASÍLIA – O empreiteiro Cecílio do Rego Almeida morreu de infarto aos 78

anos, dia 22 de março, em Curitiba (PR). Deixou viúva Ângela Almeida e seis lhosdo primeiro casamento, entre eles o deputado federal Marcelo Almeida. Filho de pernambucano e natural de Óbidos (PA), Cecílio foi educado no Paraná, onde criouo grupo CR Almeida, hoje, com patrimônio líquido de R$ 9,4 bilhões. Em 1992,Dom Ciccillo, como era chamado pelos que o conheciam bem de perto, apareceu narevista Forbes com patrimônio de US$ 1,3 bilhão. Foi o maior grileiro do mundo.

Grilou cerca de 6 milhões de hectares num santuário no Pará, a Terra do Meio,no vale do rio Xingu, município de Altamira, com reserva de US$ 7 bilhões emmogno, além de jazidas de ouro; o Aguirre grilou terras dos povos Araueté, Pa-

racnã, Xipaia, Curuá e Caiapó-Baú-Mecranoti; a Floresta Nacional do Xingu; aFloresta Nacional de Altamira; dois assentamentos do Incra (Instituto Nacional deColonização e Reforma Agrária); e área onde vivem cerca de 200 famílias de ribei-rinhos e extrativistas - analfabetos e sem certidão de nascimento. Se fosse permitidoa Dom Ciccillo criar um Estado particular, sua grilagem seria a décima-primeiramaior unidade do país, área equivalente à Bélgica e Holanda juntas.

Em setembro de 2006, o jornalista Lúcio Flávio Pinto, editor do Jornal Pessoale colunista da Agência Amazônia, foi condenado pela Justiça paraense a pagar R$

8 mil, mais acréscimos a Dom Cecílio. O motivo: Em 2000, Lúcio Flávio comen-tou reportagem de capa da revista Veja, que apontava Dom Cecílio como “o maiorgrileiro do mundo”. No Jornal Pessoal da segunda quinzena de setembro de 2006,Lúcio Flávio Pinto, na matéria intitulada “Chamar grileiro de pirata tornou-se crimeno Pará”,, relata que o julgamento do caso, pelo juiz Amílcar Guimarães, foi umafarsa.

Já em 1996, o jornalista paraense Oliveira Bastos, falecido, utilizou seu porrete,isto é, seu texto, para esmigalhar Lúcio. Ferino, brilhante e, às vezes, pena de alu-

guel, para utilizar adjetivos aplicados por Lúcio Flávio Pinto, Oliveira Bastos fora

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OS GRILEIROS

A Amazônia está à venda. Os anúncios se multiplicam na internet. Na segunda

reportagem da série Brasil Invisível, Marcelo Canellas e Luiz Quilião mostramcomo a grilagem está devastando vidas e natureza na Terra do Meio.

A Amazônia está à venda. Os anúncios se multiplicam na internet. Por trás das

ofertas, empresas e fazendeiros que se dizem donos legítimos de áreas enormes deoresta no Pará. Têm até documentos para provar isso, tudo forjado. O mais grave:a ocupação ilegal avança à bala.

Hoje, o beiradeiro Edmilson Viana nos recebe no beiradão do Xingu. Mas, porduas vezes, já teve de pedir licença para pisar na terra onde nasceu.

“Eu quei foragido daqui dois anos, se apossaram desse lugar meu. Para chegaraqui tive que pegar duas autorizações”, lembra Edmilson Maranhão Viana.

Depois que a Polícia Federal montou uma delegacia na região, as ameaças pa-

raram. Mas o assédio, não.

“Só quem não vendeu terra na beira do rio foi esse velho bem aqui, o senhor seinforme. Grileiro comprando terra, lutaram para comprar, tanto em Altamira quantoum cara de São Félix. A gente gosta do lugar da gente. Nunca vendemos, graças aDeus, eu me senti bem, porque se eu tivesse vendido, eu não estava aqui”, armaEdmilson Maranhão Viana.

O governo calcula que o Brasil tenha cem milhões de hectares de terras públi-

cas griladas, o equivalente a quatro vezes o território do estado de São Paulo. Só noPará, seriam 30 milhões de hectares.

É uma prática tão antiga quanto o termo “grilagem”. Para esquentar escriturasfalsicadas, os golpistas colocavam o papel em uma gaveta, e jogavam dentro um punhado de grilos. Os excrementos do inseto amareleciam o papel branco, dando-

-lhe uma aparência de documento velho.

Hoje é tudo pela internet. Com sites anunciando terra pública a preço de bana-

na, a grilagem é on-line, negociação por telefone.

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Grileiro - Estou negociando essa com pessoa de fora e a documentação é boa,normal.

Bom Dia Brasil - Pessoa de fora, que o senhor fala, é estrangeiro?

Grileiro - Sim.

Bom Dia Brasil - Eles estão comprando fazenda ali, é?

Grileiro - Estão, para gado.

E se o freguês quiser madeira...

Bom Dia Brasil - Então não tem problema tirar madeira lá que o Ibama não vai

aparecer?

Grileiro - Olha, até hoje nunca teve nada não.O acerto é feito sem constrangimento.O fazendeiro Levino de Carvalho acha

que fechou um negócio da China.

“Eu comprei do grileiro. Sabia que a terra era grilada. Não me incomodo com

isso, porque de Conceição do Pará para cá tudo foi assim. Tem muita gente, em-

 presário milionário, fazendo a vida em cima disso. Nunca foi incomodado. Todomundo é assim na Terra do Meio”, aponta Levino de Carvalho.

Estamos na Terra do Meio, em pleno Parque Nacional da Serra do Pardo. A lei

diz que, em parques assim, só pode haver pesquisa cientíca e educação ambiental.Mas debaixo de uma placa do Ibama, o que há é um curral.

“Há uma faixa de umas 400 cabeças na área do parque”, contabiliza o gerentede fazenda Osmarino Brandão.

Dois anos depois da criação do parque, fazendas imensas continuam criandogado e desmatando. No Médio Xingu, na sede de uma fazenda, encontramos uma pista de avião.“Aí precisa, em caso de doença. Só nós e os vizinhos próximos, se precisar, usam essa pista”, diz o fazendeiro Gilmar Gomes da Silva.

Tiramos as coordenadas geográcas para checar a localização. Trata-se de uma pista clandestina, sem registro no livro de rotas aéreas do Ministério da Aeronáuti-ca. As relações trabalhistas também são precárias, para dizer o mínimo.

“Não tenho carteira assinada”, comenta o peão Brás Silva.

É hábito na região descontar dos peões até o material de trabalho.

“No município de São Félix ninguém usa dar nada não, nem as ferramentas detrabalho. Tudo é descontado do salário”, informa o peão Brás Silva.

O Ministério Público Federal está pedindo a desocupação das áreas da União.

Uma das fazendas é de Raimundo Pinheiro. Ele foi acusado de esquentar a escritu-

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ra. Está sendo processado por grilagem.

“Não zemos isso. Se ele é esquentado, ou frio, ou quente, eu não sei. Compra-

mos como boa. Não sabia que aquilo é uma terra pública”, defende-se RaimundoAlves Pinheiro.

 Analfabeto e desempregado, ele explica como arranjou dinheiro para compraruma fazenda: “Eu vim arrumar capital consertando rádio em cima de uma mesa.

Tudo era barato. Consertar rádio é muito melhor que roubar no Rio de Janeiro ouem São Paulo”, diz.

 O médico Abel Rodrigues Filho, sócio de Raimundo, diz que ambos agiramde boa-fé.

“A gente tinha a expectativa de um documento que nos dava uma certa condi-

ção de fazer o que todo mundo fazia no Pará. Comprar terra que já tinha algumacoisa feita, e pôr gado. Ninguém tem documento.aqui os documentos que tem, boa parte deles são forjados”, conta o médico e fazendeiro Abel Rodrigues.

Bom Dia Brasil - Mas o senhor sabia que o seu era?

Abel Rodrigues - Não. Eu cheguei aqui e entrei.

Alguns documentos da fazenda são do cartório do primeiro ofício de Altamira,fechado no ano passado por suspeita de fraude. A dona responde a 29 processos naJustiça Federal.

“Toda uma expansão da fronteira agrícola sendo feita à custa de desmatamento,expulsão de populações tradicionais e ocupação irregular de terras públicas”, apon-

ta o procurador federal de Altamira Marco Antônio Delno.

O Ministério Público está conseguindo os primeiros mandados de desocupação.Em um, o juiz fundamenta dizendo que há uma indústria ilegal de aquisição de ter -ras e um sosticado esquema de fraude na região. Um ocial de Justiça executou aordem do juiz.

“Ele pediu para desocupar e que se pare qualquer atividade nociva ao meio

ambiente que seja encontrada aqui”, diz o ocial federal Cássio Bittar.A Polícia Federal apreendeu armas e coordenou a retirada dos empregados.

Mas a Amazônia Projetos Ecológicos, que pertence ao grupo C.R. Almeida, diz sera dona legítima de uma área com o dobro do tamanho do Distrito Federal e que suaúnica intenção é preservá-la.

Andando pela sede você percebe claramente que não há, de fato, nenhuma in-

tenção de fazer a fazenda produzir. Eles construíram uma estrutura mínima para osempregados. Têm três barracões de madeira. Em frente, uma área desmatada que

dá acesso ao Rio Xingu, uma criação de pequenos animais e, atrás, um roçado de

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mandioca, o que é quase nada diante do gigantismo de 1,2 milhão de hectares deoresta. Mas as autoridades ambientais acusam a empresa de usar a preservaçãocomo fachada de um grande negócio ilegal.

“O interesse da empresa em manter uma área grande nessa região seria pedir

indenização para o Ibama, porque eles estão mantendo a área preservada, não estãodepredando, não estão desmatando. É mera especulação imobiliária”, arma Patrí-cia Greco, do Instituto Chico Mendes.

A advogada da empresa diz que vai esclarecer tudo na Justiça.

“O processo está correndo na Justiça Federal de Altamira e nós provaremos ao

nal que a área não é grilada”, aponta a advogada da Amazônia Projetos EcológicosFrancineide Amaral Levi.

Até hoje, ninguém fez um levantamento fundiário completo, com a checagemdas escrituras. A confusão entre o que é do governo e o que não é alimenta a indús-

tria da grilagem e a histórica tensão no sul do Pará.

“Muito dessa violência se deve a essa omissão, porque se houvesse, por partedo governo estadual, do governo federal, uma maior preocupação da regularizaçãodesses títulos, ou seja, o título aqui é falso, é frio, as pessoas não cariam circulandocom esses títulos”, diz o procurador da República Marco Antônio Delno.

Enquanto isso, Maria Pastora Viana do Nascimento, a Dona Bebé, ribeirinha

nascida dentro de um seringal, se mantém rme no beiradão do Xingu.“Não vendo aqui de jeito nenhum”, reforça Maria Pastora Viana do Nascimen-

to.

 No dia que alguém ncou a placa da Amazônia Projetos Ecológicos na porta dacasa dela, Dona Bebé achou um desaforo. A placa virou parede de galpão. “Não temquem faça me tirar daqui”, garante.

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O ROTEIRO DA DESTRUIÇÃODE 1 MILHÃO DE HECTARES

Em 1981 foi divulgado o primeiro relatório de pesquisa do Programa de Mo-nitoramento da Cobertura Florestal do Brasil, realizado em conjunto pela Sudam(Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) e o IBDF (Instituto Brasi-leiro do Desenvolvimento Florestal, antecessor do Ibama). O levantamento tomou por base imagens do satélite Landsat, que cobria toda a Amazônia a cada 18 dias.

Seu foco foi a principal frente de penetração econômica da Amazônia, que seespalhava por uma área de 51 milhões de hectares, no sul do Pará, oeste do Mara-

nhão e norte de Goiás (atual Tocantins). O desmatamento, medido até 1979, atingiamais de um milhão de hectares. Podia parecer pouco, mas a pesquisa apontou avelocidade crescente na derrubada da oresta nativa. Pela primeira vez era possí-vel encarar o problema a partir de uma base concreta e não mais através de meras

especulações. As imagens obtidas através do satélite eram um retrato da realidade.

Mas não toda ela.

Em matéria que escrevi dois dias depois da apresentação do relatório, na sededa Sudam, me detive em cada imagem e tentei fazer uma interpretação com basenas informações obtidas nas minhas viagens a essa região. Cada imagem abrangia

uma área de 136 por 185 quilômetros, formando um conjunto de mosaicos. Pu-

 bliquei esse texto em O Liberal, de Belém, de 23 de agosto de 1981. Certamenteele possibilita comparações com a evolução dessa área, quase três décadas e meiadepois, atentando-se para a reconguração dos municípios na atualidade.

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tins, já foi toda derrubada. Era de oresta densa, na qual não há nenhum projetoagropecuário aprovado pela Sudam.

4 Esta folha se estende por uma área leste do Pará, na divisa com o Maranhão.Compreende trechos de nove municípios (Bujaru, Irituia, Ourém, Paragominas, S.Domingos do Capim, Tomé-Alu e Viseu, mais Caraparu, no Maranhão). A áreadesmatada já cobre mais de 10% de toda a extensão dessa fotograa, ou 287.478hectares, dos quais 111.776 hectares em Paragominas. As margens do rio Capim,nesta folha, estão mais atingidas do que na anterior. Foram identicadas 11 fazen-

das nessa região. A ,maior delas é a Companhia Agropecuária Simeira, mas nela asderrubadas são ainda pouco expressivas. Em compensação, as fazendas Colatiera e

Fonte: Projeto Radam Brasil. Departamento de Economia Florestal. Programa de Monito-ramento da Cobertura Florestal do Brasil. Mapa elaborado com base no satélite Landsat. Escala1.250.000, 1975. (Fotografia: Daiana Brito dos Santos)

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Essa ação é proibida pela legislação para evitar fenômenos como os que têm sido

observados na Zona Bragantina: o assoreamento e até o completo desaparecimentode cursos d’água que perdem a cobertura vegetal de suas margens.

6  Esta folha pega trecho do rio Tocantins à altura de Jacundá e das rodo-

vias PA-150 (de Belém a Marabá) e a antiga PA-70 (da Belém-Brasília a Marabá).Abrange partes dos municípios de Igarapé-Mirim, Itupiranga, Jacundá, Marabá eSão Domingos do Capim, no Pará, e Imperatriz, no Maranhão. Na época (1979) emque foram obtidas as imagens de satélite, a colonização na PA-160 tinha menos dedois anos, mas já era intenso o desmatamento ao longo dela, tanto por colonos como por médios proprietários.

Mesmo assim, a devastação desta área, a oeste, se diferencia bastante da ocu- pação mais antiga, feita a leste, ao longo da PA-70 ou sob a inuência da Belém-

-Brasília, onde as derrubadas são muito mais extensas. O desmatamento nessa folhaatingia 166 mil hectares, sendo 107 mil em S. Domingos do Capim, um dos mu-

nicípios mais compridos (direção norte-sul) do Pará e que, por essa característicageográca, apresenta diversas formas de ocupação humana, por nativos, colonos eempresas.

7 Nesta folha o desmatamento ainda é inexpressivo: ela pega apenas dois mu-nicípios, Itupiranga e Marabá, nos quais a alteração da cobertura vegetal atingiuapenas 20 mil hectares. Nela está o vale do rio Itacaiúnas, com seu auente, oParauapebas, onde se localiza a província mineral de Carajás. Uma dezena de des-

matamentos ao longo do alto e médio Itacaiúnas exemplica bem a especulaçãode terras: são pessoas que se antecipam à penetração nessas grandes áreas ermas,convictas de que elas serão abertas à ocupação e por isso terão grande valorização.

Fazem derrubadas sem qualquer interesse econômico imediato, apenas para garan-

tir a posse.

Já em Paragominas essas derrubadas são mais frequentes, especialmente a les-te, por inuência das estradas. Os técnicos do Projeto Radam (Radar da Amazônia)sugeriram a criação de uma reserva nessa área, mas a proposta caiu no vazio.

8 Esta folha tem Marabá como centro, apanhando trechos de Goiás [hojeTocantins] e do Maranhão, na bifurcação do Tocantins com o Araguaia, incluindo aTransamazônica entre Araguatins e |Itupiranga. O desmatamento atinge quase 290mil hectares, sendo 137 mil em São João do Araguaia e 64 mil em Marabá. A Tran-

samazônica foi particularmente danosa a S. João do Araguaia, provocando a perda

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de 20% de suas ricas orestas, incluídos castanhais.

Pode-se vericar a convivência da grande propriedade com a pequena em al-guns trechos, mas o processo de absorção em outros: o colono da margem da rodo-

via é engolido pelo proprietário, que se expande pelos fundos dos lotes dos assen-

tamentos. Na Fazenda Landy, próximo a Marabá, o desmatamento já ultrapassou os50% da propriedade. Toda a área ao redor de Marabá perdeu sua cobertura vegetal.As cabeceiras do rio Sororó, auente do Itacaiúnas, também foram devastadas. No-

ta-se que o intenso desmatamento praticado na PA-70 tem apenas uma interrupção:são os ricos castanhais do interior da reserva Mãe Maria, dos índios Gavião, que aestrada corta ao meio; Por isso são terras tão cobiçadas.

9 Esta folha pega o sul do Pará, entre Marabá e Conceição do Araguaia, ondeo desmatamento ainda é relativamente pequeno (90 mil hectares), serve para de-

monstrar a força de uma estrada, quando ela corta uma região pioneira. É o casoda PA-279 (erroneamente assinalada no mapa como PA-270). Em 1979, apenas80 dos seus 270 quilômetros estavam abertos. Na ocasião, as obras se achavam paralisadas. Três anos antes, quando a construção começou, o governo do Estadotentara impedir o acesso à estrada, impondo um controle sobre a sua entrada. Aísurgiu Xinguara, povoado com mais de 20 mil habitantes. E já em 1979 haviam sidodesmatados ao longo do traçado da rodovia, às vezes até mesmo se antecipando a

ela, num processo comandado pelo interesse especulativo, mas que atrai também olavrador interessado em conquistar o seu sonhado pedaço de terra.

 10 Esta folha abrange uma área compreendida entre a PA-150 (no trechoMarabá-Conceição do Araguaia) r o tio \Araguaia, no Pará, e parte de seis muni-cípios goianos [tocantinos], onde já é maior a participação dos projetos agrope-

cuários da Sudam (10 no Pará e um em Goiás). A maior das propriedades é a doBamerindus, com mais de 80 mil hectares, encravada em região de castanhais, na

divisa de Conceição do Araguaia com Marabá. O maior desmatamento, contudo, éo da fazenda São José, do empresário paulista José Alves Veríssimo, que tem 30 milhectares de terras nas margens do Araguaia. O limite de 50% está sendo atingido. Odesmatamento em toda essa folha era de 292 mil hectares: 90 mil em Conceição doAraguaia e 72 mil em Xambioá. Segundo o mapa, trata-se de uma área de cerrado.

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11  Nesta folha, centrada na PA-150 e abrangendo terras de Conceição doAraguaia, Marabá e São Félix do Xingu, verica-se claramente o resultado da açãodos grandes projetos agropecuários, serrarias e colonos cuja ação é aí bastante in-

tensa. A leste da estrada, há uma sucessão de pequenas derrubadas, provocadas por lavradores que penetram na região a partir do rio Araguaia, ocupando glebasde antigos loteamentos.. A oeste da estrada, 12 projetos agropecuários incentivos,dentre os quais se destaca a Companhia de Terras da Mata Geral, já no limite coma reserva indígena Gorotire. É fácil comprovar como detentores de grandes áreasa subdividem em duas ou três fazendas, com duplo objetivo. O principal deles éapresentar mais de um projeto à Sudam, a m de receber maior volume de recursosnanceiros. O outro objetivo é driblar a legislação orestal, que manda deixar in-

tacta metade da área do imóvel rural.

Desmatamento bem menos curioso é um que aparece em uma colônia agrícola

Fonte: Projeto Radam Brasil. Departamento de Economia Florestal. Programa de Mo-nitoramento da Cobertura Florestal do Brasil. Mapa elaborado com base no satélite Landsat.Escala 1.250.000, 1975. (Fotografia: Daiana Brito dos Santos)

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do Incra em Rio Maria. Comprido e delgado, parece mais destinado a servir de pista de pouso para avião do que à prática agrícola. Entre outros motivos, por issotambém fracassou.

12 Nesta folha, mais ao sul da anterior, com partes dos municípios de Con-

ceição do Araguaia, Santana do Araguaia e São Félix do Xingu, aparecem comnitidez as pastagens dos projetos agropecuários incentivados pelo governo federal.São grandes áreas, em média de 30 mil hectares, distribuídas em quadriláteros quedeixam escapar sua origem: os loteamentos particulares feitos no nal da décadade 1950 e início da seguinte. O que mais espanta não é propriamente a extensão daárea desmatada (135 mil hectares): se o observador do mapa for fazer um sobrevoo

da área constatará que grande parte dessas fazendas desmatou para formar pastosque cam ociosos a maior parte do tempo por falta de rebanho. A intenção nemsempre é a de dar à terra uma função produtiva, econômica, mas mantê-la comouma reserva de valor. A maioria dessas fazendas se formou antes da construção da

estrada de Conceição do Araguaia a Santana e que agora passa por dentro de muitas

 propriedades. Naturalmente, valorizando-as.

13 Esta folha, já no extremo sul do Pará, divisa com Mato Grosso e Goiás, pode ser considerada histórica. Ela mostra o que foi a maior queimada de orestafeita na Amazônia, a mais célebre de todas: a da Companhia do Rio Cristalino, propriedade de 140 mil hectares da Volkswagen. Em 1976 o satélite registrou umenorme incêndio no sul do Pará, que um cientista disse ter consumido um milhão dehectares, com evidente exagero. Eram 11 mil hectares, queimados de uma só vez.Aí está o grande prejuízo que a devastação causa pelas empresas é capaz. São ex -

tensas áreas de oresta, como a da Rio Cristalino, destruídas rapidamente. O mapamostra que as derrubadas se concentram no limite sul da propriedade.

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Índice onomástico

AAGUIAR, Carlos, 99ALBERTO, João, 63, 70

ALBUQUERQUE, Paulo Ronaldo, 64ALCKMIN, José Eduardo, 96

ALENCAR, Torquato, 70-72ALMEIDA, Cecílio do Rego, 61-63, 66-68, 70, 76-77, 83, 88-92, 94, 96, 98,

116

ALMEIDA, César Beltrão de, 88ALMEIDA, Denise Beltrão de, 88

ALMEIDA, Guilherme Beltrão de, 88ALMEIDA, Marcelo Beltrão de, 88

ALMEIDA FILHO, Henrique do Rego, 88ALMEIDA, Roberto Beltrão de, 77, 79, 81, 88, 90-91

ALVES, Cláudio do Valle, 83, 87

BBARATA, Ronaldo, 88

BARBALHO, Jader, 96BASTOS, Miranda, 4BASTOS, Oliveira, 116

BERTOLDI, Renata Pernetta Almeida, 88

BITTAR, Cassio, 119BRANDÃO, Osmarino, 118BUKOWSKI, Gerardo - não encontrei referência na INTERNET , 7, 12

BURNHEIM, Danielle de Cássia Silveira, 85, 97

CCALMON, Eliana, 92

CANDOTTI, Ennio, 32

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CANELLAS, Marcelo, 117

CARDOSO, Fernando Henrique, 40, 67CARVALHO, Levino de, 118

CARVALHO, José Candido de MelloCARVALHO, José Carlos, 4, 85, 87

CASSOU, Marco Antônio, 83, 87, 103CASTELO BRANCO, Humberto de Alencar, 15, 92

CAVALCANTE, Francisco, 61CAZETTA, Ubiratan, 77CHAVES, Aloysio, 64

CHAVES, Arthur Pinheiro, 56-57CORRÊA, Carlos Alberto Lamarão, 66-67

COSTA, Wandeir dos Reis, 61, 83, 84, 86, 98, 101-102CUNHA, Adnaldo Cabral, 98-99

D

DAMMIS, Heinsdjik, 4

DELFIN NETTO, Antonio, 19DELFINO, Marco Antônio, 119-120DIAS, Álvaro, 68DONNER, Hans, 19

DUARTE, Maria do Céu Cabral, 61, 84, 85, 97-100, 102DUBOIS, Jean, 5

 

F FEARNSIDE, PhilIip M., 20-21FERRAZ, Jackson José Sodré, 86, 98, 103

FERREIRA, Osmar, 82, 101FORD, Henry, 18

FREITAS, Eugênia Silva de, 77-79, 81FURSTENBERGER, Rita, 89

FURSTENBERGER, Ricardo, 103

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GGAMA FILHO, Hugo, 92-93

GUEIROS, Rosa Maria Portugal, 101GUIMARÃES, Ana Cecília P. Almeida, 88

HHUBER, Jacques, 27

KZAN, Rosângela Maiorana, 61KUBITSCHECK, Juscelino, 34

L

LEITE, Bento Mendes, 78LEVI, Francineide Amaral, 120

LOBATO, Maria Edwiges de Miranda, 94

LUDWIG, Daniel, 18 MMAGGI, Blairo, 43

MAIORANA JÚNIOR, Rômulo, 61MAIORANA, Ronaldo, 61

MEDEIROS, Carlos, 61, 75

MEIRELLES, Francisco Acioly, 78MELEM, José Carlos, 105MELO, Rômulo Barreto, 87

MENDES, Chico, 54MENEZES, André Luiz de, 77

MERABET, Marneide, 101MODESTO, Eduardo, 67

MONTEIRO, Luiz Carlos, 46

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MONTEIRO NETO, Aristides, 41MORAES, Vicente, 20

MOURA, Eliezer Ciro de, 103, 112MOURA, Heleno, 103MOURA, Raimundo Ciro de, 83, 87, 97-98, 101, 103

N

NASCIMENTO, Maria Pastora Viana do, 120NOBRE, Milton, 75

NUNES, Anfrísio da Costa, 78

OOLIVEIRA, Carlos Alberto Melo de, 79

OLIVEIRA FILHO, Umbelino José de, 78, 90OLIVEIRA, Humberto Esteves Melo de, 70, 79, 103

P

PAIVA, João Alberto, 61, 74PAIVA, João Alberto Castelo Branco de, 62, 70, 94,96PANTOJA JÚNIOR, Antônio Villar, 98

PARENTE, Iolanda, 70PARENTE, Sônia Maria de Macedo, 97, 99-100, 101

PENTEADO, Antonio da Rocha, 5PEREIRA, Marcos, 24

PERES, Haroldo Leon, 68PINHEIRO, Raimundo Alves, 119PINTO, Lúcio Flávio, 116

POLICARPO JÚNIOR, 66PONTES, Climeniè, 85, 98,99

PONTES JÚNIOR, Felício, 77POTIGUAR, José Augusto, 77

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Q  

QUILIÃO, Luiz, 117

R REIS, Marcelo, 38

REIS, Rangel, 17RIBEIRO, Mário Ramos, 90RIBEIRO, José Hamilton, 32

ROCHA, Ibraim, 72ROCHA, Octávio Avertano, 97-98, 103

RODRIGUES, Edmilson, 61RODRIGUES FILHO, Abel, 119

S

SANTINI, Gustavo, 67SARNEY, José, 40

SAYÃO, Bernardo, 33

SAUER, Wolfgang, 17SETZER, Alberto, 14, 22SILVA, Brás, 119SILVA, Ernesto Acioly da, 78, 79

SILVA, Francisco Eduardo Modesto da, 66SILVA, Gilmar Gomes da, 117

SILVA, Hélio Ferreira da, 67

SILVA, João Gomes da, 78SILVA, Luis Ignácio Lula da, 40, 46, 48SILVA, Marina, 42

SILVA, Sebastião Lima da, 78SILVEIRA, Álvaro Adolfo da, 3

SIOLI, Harold, 5SOARES, Lúcio de Castro, 3

SOUZA, José de Ribamar de, 55

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SOUZA, Maria de Nazaré Brabo de, 74SOUZA, Nilson Lameira de, 78

  T

 TOLEDO, Eduardo, 89, 97, 103 TOLEDO, José Norberto de, 89

VERÍSSIMO, José Alves, 125VIANA, Edmilson Maranhão, 117

 W  WISNIEWSKI, Alfonso, 6

 X 

 XIPAIA, Manuel, 68

 

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