o fenol no tratamento da espasticidade

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O Fenol no tratamento da espasticidade Dr Marcelo Benedet Tournier – Médico Fisiatra - UFSC ([email protected] ) Espasticidade é definida como uma alteração motora caracterizada por hipertonia muscular e hiperreflexia, dependentes da velocidade do movimento de estiramento muscular, associado a outras manifestações decorrentes de lesões do motoneurônio superior. Dentre as causas destas lesões, podemos destacar os traumas raquimedulares e/ou encefálicos, infarto / hemorragia cerebral, esclerose múltipla, paralisia cerebral, entre outras. Existem muitos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na via do reflexo do estiramento (compreendendo os motoneurônios alfa, gama, interneurônios medulares, vias espinhais ascendentes e descendentes), mas se destaca nestas a perda do controle inibitório do reflexo de estiramento performada pelo trato cortico-espinhal (piramidal), que medeiam a ação supra-espinhal na medula. Isto pode causar tanto uma hiperatividade dos motoneurônios alfa. Descontrole dos motoneurônios gama ou ambos. A espasticidade pode repercutir negativamente na função. Geralmente é acompanhada de fraqueza muscular e compõe com esta uma barreira dinâmica ao movimento. Nos membros superiores, esta perda se torna mais evidente em cotovelo, punho e mão, com padrões posturais de flexão, adução e pronação com rotação interna, comumente encontrados nos portadores de hemiparesia espástica (seja qual for a etiologia). A função manual se torna prejudicada, pois há dificuldade na ação da musculatura antagonista ao padrão, principalmente na extensão dos dedos, punho e cotovelo. Com a manutenção do padrão, há encurtamento desta musculatura, podendo tornar este padrão postural irreversível. O padrão pode predispor também ao membro doloroso nos hemiparéticos, não só pela postura, mas pelo imobilismo do membro. Outro padrão, este geralmente encontrado nas tetraparesias, é o de adução dos polegares, que pode prejudicar a função (se houver alguma) e a higiene. Porém, alguns pacientes podem se beneficiar da espasticidade dos membros superiores, como os lesados medulares, onde a hiperatividade

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O uso do Fenol no Tratamento da Espasticidade

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Page 1: O Fenol No Tratamento Da Espasticidade

O Fenol no tratamento da espasticidade

Dr Marcelo Benedet Tournier – Médico Fisiatra - UFSC ([email protected])

Espasticidade é definida como uma alteração motora caracterizada por

hipertonia muscular e hiperreflexia, dependentes da velocidade do movimento

de estiramento muscular, associado a outras manifestações decorrentes de lesões

do motoneurônio superior. Dentre as causas destas lesões, podemos destacar os

traumas raquimedulares e/ou encefálicos, infarto / hemorragia cerebral,

esclerose múltipla, paralisia cerebral, entre outras.

Existem muitos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na via do reflexo

do estiramento (compreendendo os motoneurônios alfa, gama, interneurônios

medulares, vias espinhais ascendentes e descendentes), mas se destaca nestas a

perda do controle inibitório do reflexo de estiramento performada pelo trato

cortico-espinhal (piramidal), que medeiam a ação supra-espinhal na medula. Isto

pode causar tanto uma hiperatividade dos motoneurônios alfa. Descontrole dos

motoneurônios gama ou ambos.

A espasticidade pode repercutir negativamente na função. Geralmente é

acompanhada de fraqueza muscular e compõe com esta uma barreira dinâmica

ao movimento. Nos membros superiores, esta perda se torna mais evidente em

cotovelo, punho e mão, com padrões posturais de flexão, adução e pronação com

rotação interna, comumente encontrados nos portadores de hemiparesia

espástica (seja qual for a etiologia). A função manual se torna prejudicada, pois

há dificuldade na ação da musculatura antagonista ao padrão, principalmente na

extensão dos dedos, punho e cotovelo. Com a manutenção do padrão, há

encurtamento desta musculatura, podendo tornar este padrão postural

irreversível. O padrão pode predispor também ao membro doloroso nos

hemiparéticos, não só pela postura, mas pelo imobilismo do membro. Outro

padrão, este geralmente encontrado nas tetraparesias, é o de adução dos

polegares, que pode prejudicar a função (se houver alguma) e a higiene.

Porém, alguns pacientes podem se beneficiar da espasticidade dos

membros superiores, como os lesados medulares, onde a hiperatividade

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involuntária da musculatura, produzindo uma postura flexora, pode ser treinada

para ser utilizada de forma funcional (através de adaptações ou não).

Especialmente nos lesados medulares com tetraplegia (geralmente C6 ou C7),

onde há o encurtamento da musculatura flexora dos dedos pelo acometimento

topográfico dos miótomos da mão, ocorre o fenômeno da tenodese. Este é

caracterizado pelo movimento sinérgico de flexão dos dedos com preensão tipo

palmar na vigência da extensão do punho ipsilateral, explicado pelo retesamento

dos tendões encurtados durante o movimento de extensão do punho.

A espasticidade no tronco pode ser um problema desencadeador de

deformidades da coluna vertebral, principalmente nas crianças e adolescentes,

onde um desequilíbrio das forças de tração sobre a coluna pode levar à escoliose,

que dependendo do grau de curvatura e progressão da deformidade, pode

dificultar muito a postura do paciente, principalmente sentado, aumentando

também a morbidade. Apesar deste fato, a espasticidade de tronco em

pacientes que têm fraqueza da musculatura extensora deste pode proporcionar

uma melhora postural destes pacientes, pelo fato da espasticidade agir como

substituta da força da musculatura paravertebral, mantendo seu tônus.

O padrão de flexão com rotação interna e adução também é comumente

observado nos membros inferiores, produzindo alterações de marcha, de

posicionamento e estéticos. No entanto, padrões de espasticidade da

musculatura extensora dos membros inferiores podem ser benéficos e auxiliar

estes pacientes, proporcionando mais estabilidade no ortostatismo e

transferências que dependem da descarga de peso sobre estes.

ABORDAGENS NO TRATAMENTO

É importante lembrar que no tratamento da espasticidade o objetivo não é

melhorar esta, mas melhorar a função que está prejudicada pelo aumento do

tônus. Quando se reconhece que o padrão de espasticidade apresentado pelo

paciente implica em piora funcional ou postural, o tratamento da mesma deve

ser considerado. Não há protocolos de tratamento da espasticidade, mas um

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plano de abordagens progressivo, do mais conservador ao mais invasivo.

Em primeiro plano, a abordagem mais conservadora consiste em melhorar

a postura / posicionamento do paciente (com medidas simples, travesseiros ou

órteses) e retirar ou tratar quaisquer fatores nocivos ao paciente (como úlceras

de pressão, obstipação, infecções. Mesmo uma unha encravada pode ser um

estímulo). Seguido a estes, a terapia física se mostra benéfica, principalmente

com os alongamentos passivos diários da musculatura afetada, como profilático

contra as deformidades pelas contraturas e por promover algum relaxamento do

tônus. A utilização de meios físicos no tratamento da espasticidade mostra

alguns resultados positivos, mas os estudos geralmente possuem resultados

controversos.

O uso de drogas miorrelaxantes (baclofeno, diazepam, tizanidina,

dantrolene, entre outras) é considerado geralmente nos casos de espasticidade

global, onde esta não se concentra em apenas um grupo muscular localizado. A

abordagem cirúrgica (ortopédica e /ou neurocirúrgica) ou a colocação de drogas

intratecais é um recurso reservado a seletos casos refratários.

A utilização de bloqueios periféricos no tratamento da espasticidade pode

ser feita com injeções em pontos motores com fenol, álcool, anestésicos ou

toxina botulínica. Esta vem sendo utilizada crescentemente no tratamento da

espasticidade focal, com muitos estudos atualmente para sua comprovação e

eficácia.

FENOL

Apesar de ser utilizado há mais de 50 anos como agente neurolítico, seu

uso inicial foi como um agente simpatolítico, quando sua aplicabilidade clínica

foi descoberta em 1926. Algum tempo depois, começaram a ser usadas injeções

intratecais e epidurais na dor oncológica intratável.

Inicialmente, o fenol foi utilizado para espasticidade por via intratecal,

com grande morbidade e complicações, incluindo a morte. Em 1966, um estudo

descrevendo o bloqueio de pontos motores com 39 pacientes mostrou um alívio

Page 4: O Fenol No Tratamento Da Espasticidade

da espasticidade por um período médio de 6 meses. Outros agentes como etanol

e lidocaína foram usados com o mesmo intuito, porém sem o mesmo tempo de

duração do fenol. A lidocaína ainda é utilizada para casos em que há dúvidas na

indicação de injeção de fenol, pois tem um efeito similar ao mesmo, quando

injetada junto a ramos nervosos motores, mas com duração de algumas horas.

Quanto ao princípio de ação, o fenol age primeiramente e imediatamente

como anestésico local das fibras gama. Seguido a isto, ocorre uma axonotmese

com destruição dos axônios, mas com preservação dos tubos endoneurais. Com a

interrupção da condução nervosa, não ocorre mais o arco reflexo, havendo

relaxamento muscular e até paresia. Dentro de semanas a meses, ocorre a

regeneração dos axônios, acompanhado do rebrotamento de novas terminações

axonais à junção mioneural.

Existem muitas técnicas para a aplicação de fenol. Uma das originais é o

bloqueio do nervo periférico, localizado com auxílio de eletroestimulador e

agulha isolada. As principais complicações são dor e parestesia local em 10 a 30%

dos casos. A aplicação em nervos com alguma função sensitiva não é mais

recomendada, com exceção de pacientes que não possuem sensibilidade na

região (lesado medular, por exemplo). Já a aplicação em ramos nervosos

motores, como o ramo anterior do nervo obturador, o ramo motor do n.

isquiático e o n. musculocutâneo. A aplicação junto aos ramos motores também

pode ser feita diretamente sobre o nervo exposto cirurgicamente.

Aplicação intramuscular é uma técnica realizada em pontos motores (áreas

com maior enervação motora do músculo). Também é utilizada uma agulha

isolada e um eletroestimulador, tentando localizar a área com a máxima

contração muscular isolada. Observa-se que a duração do efeito nesta técnica

geralmente é inferior em relação ao bloqueio do nervo.

O fenol pode ser preparado em água, glicerina ou óleo, em ordem

crescente de potência. A solução mais utilizada por via percutânea é a água

fenolizada. O volume injetado varia entre 0,1 a 5,0 mL (normalmente 2,0 mL),

mas não há dose máxima estabelecida. O efeito colateral mais comum é dor e

hiperemia na região aplicada, mas podem ocorrer náuseas / vômitos ou nos casos

Page 5: O Fenol No Tratamento Da Espasticidade

de injeção endovenosa acidental, tremores, convulsões, falência respiratória e

supressão miocárdica.

As principais vantagens do uso do fenol são ablações efetivas e específicas

do tônus muscular com maior duração do efeito. O custo por aplicação é baixo

(cerca de duzentas vezes mais barato que a toxina botulínica, se comparado o

uso de ambas em um mesmo ponto), o efeito no relaxamento é praticamente

imediato e não há tempo de latência para aguardar entre o bloqueio de um nervo

e outro, nem formação de anticorpos. As principais contraindicações para o

bloqueio com fenol são: mal estado de saúde e a presença de contraturas severas

ou excessivas. O uso repetido de fenol em um mesmo ramo ou ponto provoca

sucessiva fibrose no local, podendo haver dificuldade na aplicação e redução da

eficácia nas próximas aplicações.