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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X O FEMINISMO BLOGUEIRO NO BRASIL: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS TEÓRICOS EM QUATRO BLOGS (2014-2016) Gabriela Luiz Scapini 1 Mayara Bacelar Rita 2 Resumo: Debates feministas têm ganhado destaque com o desenvolvimento de sites e blogs na internet. Nossa proposta de trabalho para o 11º Congresso Fazendo Gênero busca investigar as afiliações teóricas construídas por blogs feministas brasileiros. Na busca por contemplar tais perspectivas, selecionamos quatro blogs para análise neste trabalho: Coletivo Manas Chicas, Transfeminismo, Blogueiras Negras, e Feminismo sem Demagogia. A partir desse recorte, coletamos postagens dos respectivos blogs feitas entre 2014 e 2016, verificando as seguintes questões: o que eles entendem como feminismo?; quais aproximações e distanciamentos teóricos os blogs apresentam entre si? Assim, buscamos compreender as abordagens desses blogs, bem como verificar como se dá a construção da luta feminista a partir da contribuição da militância virtual. Palavras-chave: Blogs Feministas, Radical Feminismo, Feminismo Interseccional, Transfeminismo, Feminismo Marxista Introdução Os blogs feministas vivenciam um momento de grande repercussão em espaços virtuais no país, como as redes sociais. São diversos sites do gênero que circulam seus conteúdos na internet e ampliam o espaço de discussão sobre as pautas feministas, com novas dinâmicas que se impõem para a análise: por vezes, é por meio desses blogs que mulheres aproximam-se do feminismo e da luta política a ele associada, o que dá um caráter pedagógico aos blogs no movimento feminista; os blogs também se constituem em espaços para a construção da subjetividade dessas mulheres, se apresentando como importantes instâncias de compartilhamento de experiências e discussão sobre suas vivências; quando lidamos com o feminismo blogueiro, observamos proposições teóricas distintas, levando a uma série de tensões dentro do próprio movimento feminista. Em uma breve busca na web, contabilizamos mais de 50 blogs brasileiros autointitulados feministas. Apesar de todos esses se identificarem como feministas, eles possuem visões distintas 1 Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com formação em Ciências Sociais pela mesma universidade. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) 2 Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com formação em Comunicação Social - Jornalismo pela Pontificada Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

O FEMINISMO BLOGUEIRO NO BRASIL:

APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS TEÓRICOS EM QUATRO

BLOGS (2014-2016)

Gabriela Luiz Scapini1

Mayara Bacelar Rita2

Resumo: Debates feministas têm ganhado destaque com o desenvolvimento de sites e blogs na

internet. Nossa proposta de trabalho para o 11º Congresso Fazendo Gênero busca investigar as

afiliações teóricas construídas por blogs feministas brasileiros. Na busca por contemplar tais

perspectivas, selecionamos quatro blogs para análise neste trabalho: Coletivo Manas Chicas,

Transfeminismo, Blogueiras Negras, e Feminismo sem Demagogia. A partir desse recorte, coletamos

postagens dos respectivos blogs feitas entre 2014 e 2016, verificando as seguintes questões: o que

eles entendem como feminismo?; quais aproximações e distanciamentos teóricos os blogs apresentam

entre si? Assim, buscamos compreender as abordagens desses blogs, bem como verificar como se dá

a construção da luta feminista a partir da contribuição da militância virtual.

Palavras-chave: Blogs Feministas, Radical Feminismo, Feminismo Interseccional, Transfeminismo,

Feminismo Marxista

Introdução

Os blogs feministas vivenciam um momento de grande repercussão em espaços virtuais no

país, como as redes sociais. São diversos sites do gênero que circulam seus conteúdos na internet e

ampliam o espaço de discussão sobre as pautas feministas, com novas dinâmicas que se impõem para

a análise: por vezes, é por meio desses blogs que mulheres aproximam-se do feminismo e da luta

política a ele associada, o que dá um caráter pedagógico aos blogs no movimento feminista; os blogs

também se constituem em espaços para a construção da subjetividade dessas mulheres, se

apresentando como importantes instâncias de compartilhamento de experiências e discussão sobre

suas vivências; quando lidamos com o feminismo blogueiro, observamos proposições teóricas

distintas, levando a uma série de tensões dentro do próprio movimento feminista.

Em uma breve busca na web, contabilizamos mais de 50 blogs brasileiros autointitulados

feministas. Apesar de todos esses se identificarem como feministas, eles possuem visões distintas

1 Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com formação em

Ciências Sociais pela mesma universidade. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(Capes)

2 Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com formação em

Comunicação Social - Jornalismo pela Pontificada Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista da

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

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sobre o feminismo, associando-se a diferentes correntes teóricas do movimento. A partir desta

constatação, optamos por acompanhar blogs identificados com quatro visões distintas de feminismo:

o radical feminismo, o transfeminismo (vinculado à causa LGBT, especialmente à questão

transsexual), o feminismo marxista e o feminismo interseccional (aqui colocado como uma

ramificação do feminismo negro). O principal objetivo do trabalho é debater como esses diferentes

blogs contribuem para a formação do movimento feminista brasileiro. Da mesma forma, vamos

verificar como eles se posicionam sobre temas centrais do feminismo: mundo do trabalho; corpo e

sexualidade; e violência.

Os critérios escolha dos blogs investigados foram o volume de postagens, sua periodicidade

e a repercussão desses blogs junto às leitoras, além da opção por blogs compostos por múltiplos

autores e autoras. Aplicando os critérios acima, foram selecionados quatro blogs para análise:

Coletivo Radical Feminista Manas Chichas (auto-declarado feminismo Radical), Transfeminismo

(auto-declarado LGBT/Transfeminismo), Blogueiras Negras (auto-declarado feminismo

Interseccional) e Feminismo Sem Demagogia (auto-declarado feminismo Marxista). O corpus da

análise é composto pelo conteúdo publicado nos blogs supracitados entre os anos entre 2014 e 2016.

Esse recorte temporal foi estabelecido por constatarmos que no período referido houve um

crescimento exponencial dos blogs feministas e de seu acesso por parte de meninas e mulheres. A

metodologia adotada neste trabalho é quali-quantitativa, associando elementos de análise de conteúdo

e da contabilização e categorização dos posts publicados. Desse modo buscamos abranger tanto o

volume de textos publicados quanto investigar o teor do conteúdo apresentado por esses blogs (Oro,

2001). Assim, buscamos associarmo-nos ao estudo da relação entre o movimento feminista, a internet

e o ciberativismo.

Feminismos que permeiam os blogs analisados

O movimento feminista brasileiro passou por diversas transformações desde seu surgimento.

Uma constante, mesmo frente a cenários diversos, é a preocupação em informar sobre a situação da

mulher no país e no mundo por meio de mecanismos que abrangessem o maior número possível de

leitoras. Nos séculos XIX e XX, diversos jornais e revistas feministas estiveram em circulação, o que

exemplifica como essa luta política buscou mobilizar ferramentas para alcançar pessoas que

pudessem aderir à causa feminina (Pinto, 2003, p. 19).

O primeiro jornal brasileiro escrito por uma mulher com viés feminista de que se tem registro

foi publicado em 1873, de autoria de Senhorinha Motta Diniz. Já nesse período visões antagônicas

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sobre o movimento feminista circulavam no país: de um lado, femininas vinculadas à causa operária

e, de outro, as feministas associadas ao sufrágio eleitoral. Tal tensionamento pode ser encontrado em

panfletos e jornais que circulavam à época. (Pinto, 2003).

Nesse contexto havia dificuldades para a divulgação das ideias feministas, seja pelo alto custo

de impressões do material ou pela sua circulação restrita, chegando a poucos lugares e mulheres, em

especial às mais letradas. Na contemporaneidade é observada uma reinvenção do movimento, através

de novas dinâmicas surgidas principalmente nos anos 2000: o desenvolvimento do gênero enquanto

uma categoria de análise histórica (Scott, 1995), além das transformações do movimento feminista

mostram que ele se encontra ativo (Costa, 2013; Matos, 1996; Miguel; Biroli, 2014). O advento da

internet também permite que diversas mulheres escrevam e leiam sobre o feminismo na web,

possibilitando a criação de espaços de debate e o rompimento das barreiras de espaço-tempo. Espaços

como esses, de ativismo político em ambientes virtuais, constituem o que chamamos de

ciberativismo. Assim, traçamos um paralelo entre o ciberativismo e o feminismo blogueiro que tem

se expandido principalmente desde 2013 no país. Assim, essa nova manifestação do feminismo pode

ser entendida nos termos da cibercultura, considerando o ciberespaço e a Internet 2.0 como locais

privilegiados para o desenvolvimento das lutas políticas contemporâneas (Levy, 1999; Castells,

2013).

A existência de divergências nas bases teóricas do feminismo não é fato recente, podendo ser

percebidas desde a emergência do movimento, entre os séculos XIX e XX (Pinto, 2003) e, na

atualidade, as divergências persistem e são representadas pelas correntes teóricas distintas verificadas

no movimento feminista. Apresentamos a seguir um breve panorama histórico de cada uma das

correntes referenciadas pelos blogs em análise.

Sobre o radical feminismo, é importante frisar que há diversas posições dentro dessa corrente.

Considera-se aqui o radical feminismo com origem em meados dos anos 1970 que rompe com o

feminismo liberal. Firestone (1970) e Millet (1971) lançam mão da teoria do patriarcado: a base de

toda a opressão e desigualdade encontra-se nas relações patriarcais de dominação dos homens sobre

as mulheres. Autoras como Andrea Dowrkin (1974) e Catherine Mackinnon (1979) também

contribuem para essa vertente. As demandas do radical feminismo implicam uma nova ordem social

em que o patriarcado e toda a opressão que dele incorre sobre as mulheres tenha fim. O uso da

categoria “mulheres” é específico nessa visão: parte considerável das autoras não reconhece o uso da

categoria gênero. A mulher é aquela que nasce reconhecida biologicamente como mulher e é

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socializada como tal. Temas como heteronormatividade compulsória, estupro, probidade da

prostituição são recorrentes. (Miguel; Biroli, 2013; Tong, 2013).

Já o transfeminismo possui conexão com o desenvolvimento do movimento LGBT, em

especial com a causa trans (transexualidade e travestilidade). Esse movimento promove uma inter-

relação entre o movimento feminista e a incorporação das demandas de mulheres e homens

transsexuais ou travestis e baseia-se em pensar as experiências dos corpos e identidades para além do

binarismo de gênero. Uma das principais autoras é Judith Butler (1990): quando falamos na dicotomia

homens e mulheres, estamos nos fundamentando no sexismo ao reproduzir as estruturas de poder que

buscamos eliminar.3 O sistema binário de sexo não precisa corresponder ao de gênero, sexo/gênero

não são categorias necessárias nem automáticas. (Miguel; Biroli, 2013).

O feminismo negro trouxe importantes avanços para o movimento feminista, realçando as

dificuldades do feminismo da primeira e segunda onda em relação às demandas das mulheres negras,

que identificaram a ausência de suas particularidades no debate. Enquanto as feministas brancas e de

classe média/alta reivindicavam a inserção da mulher dentro do mercado de trabalho, por exemplo,

as mulheres negras lembravam que as negras e pobres já trabalhavam e suas demandas deveriam ser

inseridas no feminismo. (Davis, 2011). O desenvolvimento o chamado feminismo interseccional

surge unindo o movimento negro e o movimento feminista nos Estados Unidos, especialmente nos

anos 1960 e 1970. As feministas interseccionais apontavam para a opressão de classe, racial e sexual.

Importantes contribuições no período foram dadas por teóricas e militantes como Audre Lorde

(1984), Bell Hooks (1981), Angela Davis (1981), Kimberlé Crenshaw (2012). (Jabardo, 2012; Biroli;

Miguel, 2013).

Por último, elencamos a contribuição do feminismo marxista que tem sua origem desde as

autoras socialistas como as bolcheviques Clara Zekin (1920) e Alexandra Kollontai (1927), entre os

séculos XIX e XX. De forma geral, o marxismo apontava para a opressão de mulheres como um

resultado da opressão de classes, ou seja, quando a opressão de classes fosse substituída pelo

socialismo a opressão das mulheres teria o seu fim. Porém, diversas mulheres vivenciavam

dificuldades no movimento operário, onde elas eram oprimidas por seus companheiros de luta.

Feministas marxistas observaram que a luta de classes era insuficiente para resolver a opressão

3 Embora a autora trabalhe com a concepção de que gênero e sexo sempre foram apreendidos como sendo a

mesma coisa.

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relacionada às mulheres. No Brasil, o trabalho de Heleieth Saffoti (1969) contribuiu para pensar a

condição da mulher a partir de um viés marxista no contexto brasileiro (Pinto, 2003).

Analisando os blogs: principais características

Após a identificação dos quatro blogs aqui analisados, foi coletado material empírico do

período correspondente (2014-2016). Em um primeiro momento investigamos o “Quem sou eu?” de

cada um dos blogs, ou seja, as apresentações voluntárias feitas por cada um nas páginas da internet.

Em seguida iniciamos as análises a partir dos tópicos temáticos (a) violência; (b) mundo do trabalho

e (c) corpo e sexualidade. Por último, destacamos as aproximações e distanciamentos teóricos entre

esses blogs, pensando sobre a contribuição deles para a construção do movimento feminista no país.

“Quem sou eu?”: conhecendo os blogs a partir de suas próprias perspectivas

O primeiro blog analisado foi o Coletivo Radical Feminista Manas Chicas, formado em 2013.

Comparativamente é o blog com menor volume de postagens entre os quatro analisados neste

trabalho: são nove publicações que abortam os eixos do corpo e sexualidade, violência e mundo do

trabalho entre 2014 e 2016. As escritoras são todas mulheres e vinculadas ao radical feminismo,

militam para além do blog e formam um coletivo localizado na cidade de São Paulo. Compactuam

com o lema “o pessoal é político”, tentando romper com a dicotomia público/privado. Afirmam

buscar o combate em diversas esferas de exploração da mulher: “A tarefa, portanto, reside numa nova

forma de analisar a condição das mulheres, desfazendo os mitos de que (a) não somos um

agrupamento definido, (b) enfrentamos “problemas” apenas “pessoais” e (c) tais “problemas” podem

ser resolvidos sem organização ou ação coletivas” (Coletivo Radical Manas Chicas, 2013).

O blog Transfeminismo tem início em meados de 2014. Nasceu como uma crítica à cultura

Pop. Posteriormente as autoras partiram para inclusão de temas sobre transfeminismo, de forma

direta. Apresentam debates sobre “justiça social, questões trans, feminismo

intersecional, transfeminismo, corpo-positividade e cissexismo” (Transfeminismo, 2016). A questão

do corpo é marcante para essas militantes: lutam pelo reconhecimento da identidade de gênero,

apreendida tanto no sentido político como no subjetivo. Destacando a pluralidade e multiplicidades

de identidades, rompem com o binarismo homens/mulheres.

Já o blog Blogueiras Negras surgiu em 2012, especificamente no dia 08 de março, Dia

Internacional da Mulher. São mais de 200 mulheres que atuam nesse blog, composto por diversas

militantes feministas e negras que buscam um espaço de fala sobre a questão da mulher negra e

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também se constituem como coletivo para além do blog. São vinculadas ao combate da opressão de

gênero e raça. O blog é um espaço aberto para diversos temas que afetam as mulheres negras, que

apresentam seus relatos próprios sobre situações de abusos; buscam no empoderamento estético uma

arma contra a opressão. A resistência da mulher negra é marca característica no blog: E eu, negra,

não sou uma mulher? (Bogueiras Negras, 2016).

Já o blog Feminismo sem Demagogia iniciou atividades em meados de 2012. As blogueiras

apresentam uma visão estruturalista, remetendo à necessidade de combater a desigualdade de renda,

de gênero e racial. Operam denúncias fortes ao capitalismo como o sistema hegemônico e gerador de

opressões, ao mesmo tempo em que apontam para a necessidade da “revolução ser feminista”. “Só

os trabalhadores, homens e mulheres, atuando em conjunto num movimento revolucionário poderão

destruir a sociedade de classes e com ela a opressão sobre as mulheres de forma definitiva”.

(Feminismo Sem Demagogia, 2012).

A violência como tópico do ativismo blogueiro

A abordagem sobre a violência contra a mulher ganha diferentes contornos nas abordagens

adotadas por cada um dos blogs analisados. No caso do Coletivo Manas Chicas, de viés feminista

radical, a violência é diretamente ligada à ordem patriarcal que reproduz as desigualdades entre

mulheres e homens. O patriarcado é o foco de denúncia das blogueiras, estando presente nas

diferentes esferas da vida das mulheres – inclusive nos relacionamentos heteronormativos, ou na

atuação do Estado ao regrar o corpo feminino. As políticas públicas são vistas como ações pontuais

e ineficientes para erradicar as desigualdades sexuais: denunciam a implementação de um “vagão

rosa” por metrô na cidade de São Paulo (o projeto de Lei 175/2013) por refletir essa ineficácia do

combate as desigualdades, não chegando a “raiz”. (ColetivoManas Chicas, 2013)

No blog Transfeminismo, o tema de violência a pessoas trans foi recorrente nas postagens,

estando vinculado com o cotidiano das autoras e autores do blog. O Estado também é alvo de críticas

por parte das transfeministas, já que muitas vezes barra ou dificulta o acesso aos direitos das pessoas

trans, como uso do nome social. Abordam a grande dificuldade de obtenção da cirurgia de

redesignação sexual, tema onde é denunciada a patologização da identidade de gênero enquanto

forma de violência. (Transfeminismo, 2014; 2016). Tais processos são geradores de violência física

ou simbólica que afetam as pessoas trans. É criado também um ambiente para discutir sobre formas

de enfrentar essa violência, atentando para as experiências cotidianas das e dos autores do blog.

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No Blogueiras Negras, as autoras apresentam a questão do racismo e machismo como fatores

agravantes da violência contra às mulheres negras. As autoras veem a violência contra as mulheres

como um produto da história, relacionada à condição de gênero, classe, raça/etnia. Apontam que entre

2002 e 2010 houve aumento de 48% nas mortes de mulheres negras em relação às mulheres brancas,

especialmente na região nordeste brasileira, segundo o Mapa da Violência de 2012 (Blogueiras

Negras, 2015). As blogueiras buscam o combate sistemático à violência física e simbólica contra a

mulher, especialmente as negras e pobres. Ressaltam que a violência praticada contra a mulher negra

ocorre desde o período escravocrata e se replica na atualidade mascarada pela dita democracia racial

brasileira.

A abordagem sobre violência contra a mulher no blog Feminismo Sem Demagogia aparece

relacionada à manutenção da ordem capitalista na sociedade e suas formas de organização e de

exploração entre as classes. O Estado burguês é considerado pelas autoras uma das fontes principais

da opressão e exploração das mulheres se encontram na massa trabalhadora. A capacidade

reprodutiva das mulheres é colocada como central para a substituição da força de trabalho (perpetuada

pela cultura do estupro) por isso argumentam que as mulheres são violentadas para a manutenção das

relações capitalistas. (Kollontal, 2016). O blog destaca a violência acometida pelo Estado (polícia) e

as diversas instituições burguesas que oprimem as mulheres, especialmente as negras e trans. Assim

trabalham com os temas de combate a homofobia e ao racismo. Problematizam o empoderamento

feminino para que ele não se restrinja às camadas mais ricas: ele deve chegar às mulheres pobres.

Abordagens sobre corpo e sexualidade

As blogueiras do Coletivo Radical Feminista Manas Chicas apontam a exploração do corpo

e sexualidade da mulher como centrais na ordem patriarcal. Para elas, o corpo das mulheres é

extremamente regrado através de diversos mecanismos: a criminalização do aborto, a

heterossexualidade e a maternidade compulsória são relacionadas como formas de “controlar” e

“subordinar” o corpo feminino. No blog, o “mito” da maternidade reflete a ordem patriarcal e serve

para mantê-la. Defendem a legalização do aborto e do ensino feminista para promover o combate às

opressões. As blogueiras condenam a sociedade patriarcal e suas medidas paliativas para inclusão de

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pessoas “LGB” (aqui elas não usam a sigla LGBT)4. Buscam por uma emancipação rela das mulheres

quanto a sexualidade. (Coletivo Radical Manas Chicas, 2014).

A questão do corpo e da sexualidade é crucial no blog Transfeminismo. Sua centralidade se

dá no contexto da construção da identidade de pessoas trans, que passa pela questão do corpo. O

reconhecimento social de uma pessoa trans é recorrente nas postagens, onde é apontada a dificuldade

do Estado e da sociedade em aceitarem a existência do corpo de uma pessoa trans. Assim, é constante

a abordagem sobre a dificuldade da obtenção do nome social de pessoas trans, bem como as recusas

para o processo de redesignação sexual, que requer laudo médico que indique “transtorno de gênero”

à pessoa que deseje realizar a cirurgia. O próprio termo “transexualidade” é oriundo de uma noção de

patologia psiquiátrica, levando as autoras a reivindicarem a despatologização da transsexualidade.

Também são problematizadas as divergências que se fazem entre travestis e transsexuais e a

necessidade de que as duas concepções não sejam generalizadas, pois muitas travestis consideram-se

como um terceiro gênero, não se identificando, necessariamente, como mulheres. “Vocês NUNCA

saberão se uma pessoa é trans ou travestis apenas pelos estereótipos construídos pelos pré-conceitos.

Não tem nada a ver com aparências, cirurgias, feminilidade… NÃO É NADA DISSO”.

(Transfeminismo, 2016).

Nas Bloguerias Negras, o debate sobre corpo será realizado com a particularidade de uma

abordagem estética da mulher negra. Tal questão é apresentada a partir de relatos de casos de

preconceito enfrentados por mulheres negras sobre suas aparências. O blog debate os elementos que

envolvem a questão do corpo como um artifício para luta contra o racismo e machismo na sociedade.

Assim, temas como cabelo afro são colocados como formas de empoderamento e combate ao racismo.

O blog é o único entre os quatro analisados que publica conteúdo sobre o cuidado com o corpo,

cabelo, etc., tratando a questão como ação prática contra uma estética normativa racista. Espero que

você, preta, encontre no seu reflexo no espelho, uma linda declaração de amor. (MAIAJAN, 2016).

Além disso, falam reiteradamente da hiperssexualização do corpo negro e suas consequências na vida

de mulheres negras. Também apontam para as discriminações que as negras lésbicas, assim como as

trans, passam no cotidiano.

No Feminismo Sem Demagogia, a questão do corpo e sexualidade foi abordada com foco na

manutenção de ideias dominantes que condicionam padrões de beleza excludentes para as mulheres

4 As blogueiras acrescentam o T à sigla ao falar das mortes do segmento populacional LGBT. Nesse ponto,

mostram um reconhecimento frente as particularidades da população trans.

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pobres, negras e trans,lidas socialmente como “fora de um padrão aceitável de feminilidade e beleza”.

As blogueiras relacionam a frase de Karl Marx “As ideias da classe dominante são, em todas as

épocas, as ideias dominantes” com a opressão estética que a classe dominante impõe às mulheres. A

sexualidade também é lida na perspectiva de opressão da classe dominante e das relações capitalistas

que permeiam a vida. As mulheres são lidas socialmente como vulgares, seus corpos e sexualidade

são vendidas no mercado de trabalho. Assim como a “vadia”, a “mulher vulgar” é um mito que a

sociedade inventou como castigo por ela fugir dos padrões.

Mulheres e Trabalho: como os blogs percebem essa relação

O blog Coletivo Radical Manas Chicas apresentou três posts sobre o tema do trabalho. Neles,

as autoras contestam a reforma da previdência social que busca nivelar o tempo de aposentadoria

entre homens e mulheres; elas destacam a dupla e tripla jornada de trabalho nas quais as mulheres

são submetidas, invisibilizadas, conferindo-lhes sérias desvantagens. (Coletivo Radical

ManasChicas, 2013). A temática de trabalho também aparece mobilizada como fator de exploração

na sociedade patriarcal, por meio da sexualidade e capacidade reprodutiva da mulher. A

heteronormatividade compulsória compõe essa faceta exploratória do corpo e sexualidade da mulher

(biológica e socialmente). As blogueiras usam a expressão sexo feminino e não debatem o conceito

de gênero.

No blog Transfeminismo, localizamos 10 postagens sobre o mundo do trabalho. As escritoras

apontam as dificuldades de mulheres e homens transsexuais em conseguirem empregos e como isso

torna-se problemático. As blogueiras reivindicam cotas para que pessoas trans sejam inseridas no

mercado de trabalho e tenham maiores chances de sobrevivência, assim como cotas para facilitar a

entrada desse público nas universidades. É destacada a importância de projetos como a Lei 297/2015

que busca descontar os impostos de empresas no Rio de Janeiros mediante a contratação de pessoas

trans (Transfeminismo, 2015). As blogueiras e blogueiros mostram como na vida cotidiana as pessoas

trans sofrem adversidades e que identidade de gênero não é uma “opção” ou “escolha”, mas que tais

diferenças afetam diretamente suas vidas - cerca de 90% das pessoas trans encontram-se fora do

mercado formal de convencional no país. (BEATRIZ, 2015).

As Blogueiras Negras apresentaram uma série de 16 postagens que debatem o tema de

trabalho da mulher negra e a condição de precariedade – a opressão cotidiana de racismo, pobreza e

sexismo que elas sofrem. O corpo feminino negro é apresentado na sua complexidade: a mulher negra

e gorda que tem dificuldade de obter um emprego; a mulher negra que é discriminada pelo seu cabelo

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no ambiente de trabalho; a mulher trans negra que não consegue adquirir um emprego. As blogueiras

negras buscam também suprir espaços de ausência e invisibilidade da mulher negra através do próprio

blog: são apresentadas mulheres negras de destaque no país e mundo, do passado e da atualidade. “O

racismo apaga, a gente reescreve” (Blogueiras Negras, 2016).

No blog Feminismo sem Demagogia a questão do trabalho se mostra determinante, sendo

trabalhado em nove postagens, de modo inter-relacionado com outras abordagens feitas nesta

pesquisa: a violência, o corpo e sexualidade das mulheres. As autoras do blog destacam a relação de

opressão entre as classes como um motor do capitalismo e um propulsor das desigualdades sociais

que afetam os indivíduos e, em especial, as mulheres. Em seus textos, afirmam almejar romper com

essas relações, buscando combater o machismo e o racismo. Há, por exemplo, o debate sobre a licença

maternidade, em que as blogueiras apontam não ser essa mais do que a obrigação das empresas e

colocam que a dificuldade de algumas em cumprir essas recomendações visam apenas aos seus lucros.

Salientam também a questão da (baixa) qualidade de empregos destinados às mulheres, em especial

às negras.

Considerações finais

A análise aqui empreendida mostra que a temática que apresenta maiores pontos de contato

entre os blogs é a violência contra a mulher, que perpassa o conteúdo produzido em todos eles,

indicando ser uma prioridade da militância que se estabelece na blogosfera brasileira independente

da afiliação teórica proposta. Apesar dessa aproximação, os blogs partilham de visões distintas sobre

as “causas” que geram a violência: as feministas radicais vinculam-na ao patriarcado; já as feministas

marxistas relacionam à ordem capitalista. As blogueiras negras, assim com as transfeministas

percebem uma série de fatores: entre eles o sexismo que permeia a sociedade, o capitalismo que gera

desigualdades e opressões oriundas da discriminação à mulher negra e à mulher transexual.

O tema do corpo e sexualidade, embora apareça numericamente mais vezes no material

analisado, indica menos convergência no posicionamento dos diferentes blogs. Tal tensão é

exemplificada pelas diferentes abordagens de blogs como o Coletivo Radical Manas Chicas,

identificado com o Radical Feminismo, que refuta o uso do termo gênero e muitas vezes não inclui

as mulheres transsexuais em seu conteúdo, e o blog Transfeminismo que, em posição diametralmente

oposta, sai em defesa do corpo e da identidade de gênero de pessoas trans. Nas Blogueiras Negras o

tema do corpo e sexualidade é recorrente, sendo o mais abordado dentre os três verificados. Enquanto

isso, no blog Feminismo Sem Demagogia é o menos abordado dos três, onde a questão do corpo é

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vinculada aos padrões de beleza e sexualidade que servem para manter a ordem capitalista e as

desigualdades. Tanto no Blog do Coletivo Manas Chicas quanto no Blog Transfeminismo o tema do

trabalho aparece em menor escala quando comparados às outras duas temáticas. Em termos

proporcionais, o blog Feminismo Sem Demagogia é o que dá maior espaço ao tema do Trabalho, a

partir de uma perspectiva marxista em que o trabalho aparece como central na manutenção da ordem

capitalista, sendo apoiado pela ideologia burguesa que afeta as mulheres, especialmente as pobres.

Considerando os pontos acima citados, entendemos que a contribuição dos blogs analisados

ao movimento feminista brasileiro tem caráter ambíguo. Por um lado, apresenta ampla diversidade

de abordagens e de conteúdo, o que facilita o acesso das mulheres aos feminismos e ao debate sobre

seus direitos e emancipação. Por outro, a segmentação teórica encontrada nesses blogs indica haver

a inibição de um diálogo profícuo entre eles, gerando fissuras no movimento feminista que impedem

a união em torno de pautas comuns. Percebemos também haver coerência entre as afiliações teóricas

propostas nos blogs e as posições por eles sustentadas. Nossa contribuição tem caráter preliminar e

busca somar à compreensão de um fenômeno recente como o ciberativismo. Salientamos que nossa

ideia não é apontar se a recorrência de temas nos blogs converge com a abordagem de determinada

corrente teórica. Isso seria adotar uma postura determinista sobre o que é cada vertente, postura que

refutamos. Assim, buscamos elucidar quais conteúdos feministas estão na internet e como interagem

com o movimento mais amplo. Frente à renovação de conteúdos vista na internet, acreditamos que

esse objetivo nunca será plenamente atingido, mas ser possível elucidar os caminhos trilhados pelos

novos modos de ativismo.

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04.maio.2017

The blogger feminism in Brazil: theoretical approximations and distancing in four blogs

(2014-2016)

Abstract: Feminist debates have gained prominence with the development of websites and blogs on

the internet. Our work proposal for the 11th Congresso Fazendo Gênero seeks to investigate the

theoretical affiliations built by Brazilian feminist blogs. In the search to contemplate such

perspectives, we selected four blogs for analysis in this work: Coletivo Manas Chicas,

Transfeminismo, Blogueiras Negras, and Feminismo sem Demagogia. From this clipping, we

collected posts from the respective blogs made between 2014 and 2016, checking the following

questions: what do they understand as feminism?; What approximations and theoretical distances do

blogs have among themselves? Thus, we seek to understand the approaches of these blogs, as well as

verify how the construction of the feminist struggle takes place based on the contribution of virtual

militancy. Keywords: Feminism; gender; Virtual militancy; Blogs; Cyberactivism