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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 277-293, 2012 277 O ETHOS NA ENTREVISTA JORNALÍSTICA: REFAZER E DESFAZER UMA IMAGEM Ivo José Dittrich RESUMO Com base na Teoria da Argumentação, o artigo analisa estratégias retóricas utilizadas pelo Entrevistado quando sua própria imagem constitui o tema da Entrevista – ethos tematizado. A cenografia se caracteriza pela interlocução a partir de um ethos prévio e a construção da imagem resulta da interação entre duas estratégias retóricas bási- cas: refutar para desfazer uma imagem negativa e contra- -argumentar para refazê-la positivamente. PALAVRAS-CHAVE: ethos; Entrevista jornalística; es- tratégia retórica. Introdução A Entrevista jornalística, pelo menos em tese, objetiva buscar e sedi- mentar informações ou discutir e aprofundar determinados temas, geralmente aqueles que fazem parte do noticiário mais recente. Não faltam, entretanto, situações em que algumas perguntas formuladas pelo Repórter ou Entrevistador dizem respeito à personalidade do próprio Entrevistado, referindo-se às suas ações (ou omissões) no universo público, principalmente aquelas que desencadearam algum evento mais importante, pelo menos sob o olhar da mídia. Trata-se de uma situação um tanto quan- to constrangedora, pois fazer referência aos próprios valores, qualidades e atitudes torna-se complicado na medida em que, social ou culturalmente, não é muito bem aceito falar de si mesmo, pelo menos não explicitamente. O Entrevistado, no entanto, algumas vezes se vê na contingência de entrar

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 277-293, 2012 277

o ETHOS NA ENTrEviSTA jorNALÍSTicA: rEfAZEr E dESfAZEr umA imAgEm

Ivo José Dittrich

RESUMOCom base na Teoria da Argumentação, o artigo analisa estratégias retóricas utilizadas pelo Entrevistado quando sua própria imagem constitui o tema da Entrevista – ethos tematizado. A cenografia se caracteriza pela interlocução a partir de um ethos prévio e a construção da imagem resulta da interação entre duas estratégias retóricas bási-cas: refutar para desfazer uma imagem negativa e contra--argumentar para refazê-la positivamente.

PALAVRAS-CHAVE: ethos; Entrevista jornalística; es-tratégia retórica.

introdução

A Entrevista jornalística, pelo menos em tese, objetiva buscar e sedi-mentar informações ou discutir e aprofundar determinados temas, geralmente aqueles que fazem parte do noticiário mais recente.

Não faltam, entretanto, situações em que algumas perguntas formuladas pelo Repórter ou Entrevistador dizem respeito à personalidade do próprio Entrevistado, referindo-se às suas ações (ou omissões) no universo público, principalmente aquelas que desencadearam algum evento mais importante, pelo menos sob o olhar da mídia. Trata-se de uma situação um tanto quan-to constrangedora, pois fazer referência aos próprios valores, qualidades e atitudes torna-se complicado na medida em que, social ou culturalmente, não é muito bem aceito falar de si mesmo, pelo menos não explicitamente. O Entrevistado, no entanto, algumas vezes se vê na contingência de entrar

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no próprio (de)mérito devido à interpelação que exige uma manifestação, já que o silêncio também pode ser comprometedor.

Sabe-se que tanto a mídia televisiva quanto a impressa, por opção delibera-da ou por obrigação mercadológica, às vezes investem em estratégias sensaciona-listas com forte teor emotivo para gerar impacto e angariar a atenção do público a fim de manter ou ampliar seu “ibope”. De acordo com Medina (1986, p.15)1, “as Entrevistas podem ser agrupadas em duas tendências: as de espetaculariza-ção e as de compreensão (aprofundamento)”. Assim, os Entrevistadores podem apostar em perguntas que explorem determinada imagem prévia do Entrevista-do e este, por obrigação ou oportunidade, encontra-se na circunstância de des-fazê-la e, se possível, refazê-la imediatamente. Não se trata daquelas perguntas “cretinas, óbvias ou descabidas” que, infelizmente, alguns repórteres, por opção ou despreparo, inserem nas entrevistas, principalmente nas televisionadas.2

Tomando por base fragmentos de Entrevistas da mídia impressa ou ele-trônica, é possível observar como o Entrevistado enfrenta esta situação em que desfaz e refaz uma imagem projetada (mesmo que implicitamente) na pergunta do Entrevistador. Ao apontar que procedimentos retóricos o Entrevistado adota em seu discurso a fim de construir uma representação positiva perante seu efetivo interlocutor – o leitor –, espera-se contribuir para melhor entender o fenômeno do ethos neste gênero do discurso jornalístico, cuja cenografia é abordada a seguir.

A entrevista jornalística

Embora mantenha algumas características da conversa, a Entrevista as-sume natureza própria por situar-se em um universo de maior formalidade e com um direcionamento mais voltado para extrair informações ou posiciona-mentos: há quem pergunte e quem responda, geralmente em função de um tema pré-agendado. Todavia, diferentemente do “vamos conversar sobre” – tí-pico das conversas –, a Entrevista busca saber o que o Entrevistado conhece ou pensa sobre determinado assunto, como se posiciona a respeito de uma ques-tão relevante e, por vezes, ele mesmo torna-se a razão de ser da Entrevista. No

1 MEDINA, C. Entrevista: o diálogo possível. São Paulo: Ática, 1986.2 Trata-se de perguntas cretinas, ou óbvias como, por exemplo, perguntar à vítima de uma

tragédia “Como você está se sentindo?” Vide: MARQUES, J. N. Perguntar ofende!: perguntas cretinas que repórteres não podem fazer (mas fazem). São Paulo: Disal, 2003.

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entanto, desde a sua motivação, preparação, execução e, muitas vezes, edição, a Entrevista pode apresentar variados aspectos em sua organização e, de acor-do com Muñoz (1999)3, caracterizar-se por uma natureza mais, ou menos, interpretativa, opinativa ou informativa. Às vezes, no entanto, pode extrapolar estes limites, aproximando-se de um “espetáculo” de fisgadas, insinuações e constrangimentos. “Dependendo da habilidade retórica do entrevistado e da competência acusatória do repórter, a entrevista pode transformar-se em um espetáculo de constrangimento ou, pelo contrário, em uma peça de redenção” (LAGE, 2005, p. 76)4.

Do ponto de vista de seus objetivos, ainda segundo Lage (op. cit. p.75), as Entrevistas podem ser agrupadas em quatro categorias: rituais, temáticas, testemunhais e em profundidade. Nestas, o objetivo “não é um tema parti-cular ou um acontecimento específico, mas a figura do entrevistado, a repre-sentação de mundo que ele constrói, uma atividade que desenvolve ou um viés de sua maneira de ser, geralmente relacionada com outros aspectos de sua vida”. Parece serem estas as que mais favorecem, por sua natureza, que o ethos, ou pelo menos determinado ethos do Entrevistado constitua o tema das intervenções. Como quem não é conhecido do público poderia não gerar “publicidade” ou interesse na matéria, o jornalismo seleciona para serem en-trevistadas personalidades que já gozam de certo prestígio ou que sejam - ou tenham sido - foco de algum acontecimento marcante de natureza política, social, econômica ou cultural.

Ressalte-se, todavia, que é de praxe introduzir a matéria com uma apre-sentação do Entrevistado a fim de situar o público, ocasião em que já são sele-cionados aqueles aspectos que, possivelmente, serão explorados na Entrevista. Assim, formulam-se questões (pelo menos algumas) que já partem de deter-minado pressuposto ético e o Entrevistado vê-se na iminência de consolidar determinada imagem, refazê-la ou, pelo menos, desfazê-la no caso em que a exposição pública já provocou alguns “estragos”. No primeiro caso, reforça o teor da pergunta, no segundo, reformula a questão que lhe foi dirigida de forma a reelaborar sua imagem e, no último, esforça-se por refutar possíveis insinuações ou, até mesmo, acusações mais ou menos diretas. 3 MUÑOZ, J.J. Redacción periodística: teoria y práctica. Libreria Salamanca: Cervantes: 1999.4 LAGE, N. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. 5a ed. Rio de

Janeiro: Record, 2005.

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Lage (op. cit) também caracteriza as Entrevistas a partir das circunstân-cias de realização: ocasionais, de confronto, coletivas e dialogadas. Enquanto a coletiva se caracteriza pelo alto grau de formalidade, a ocasional e a dialogal acontecem em ambiente mais descontraído e, muitas vezes, em função de uma necessidade específica. A de confronto, como o próprio nome já o sugere, parece a que melhor representa o estudo aqui desenvolvido: “é a entrevista em que o re-pórter assume o papel de inquisidor, despejando sobre o entrevistado acusações e contra-argumentando, eventualmente com veemência, com base em algum dossiê ou conjunto acusatório” (LAGE, op. cit., p. 75)5. Até por força das cir-cunstâncias, o desenvolvimento da Entrevista pode tornar-se uma oportunidade para que o Entrevistado refaça aquele ethos – geralmente negativo - implicado nas intervenções do jornalista e, simultaneamente, reconstrua um ethos positivo.

O estudo de Entrevistas, mesmo que com ênfase nas impressas, permite apontar a que alternativas retóricas o Entrevistado recorre para não ferir sua imagem, nem seus interesses: “na retórica podemos operar sobre os questiona-dores ou então sobre a própria questão e resposta” (MEYER, 1993, p. 133)6. Não parece ser uma boa estratégia retórica confrontar diretamente – argu-mento ad hominem – a pessoa do Repórter ou a instituição jornalística que representa. Os Entrevistados preferem pronunciar-se sobre a questão em pau-ta. Pode-se dizer que a Entrevista é caracterizada por este jogo de poder e de enfrentamento em que as partes buscam legitimar7 seu direito à palavra, bem como o direito a manifestarem seu próprio parecer a respeito de determinada questão, ainda mais quando se trata da personalidade ou dos atos de uma das partes envolvidas – geralmente o Entrevistado.

Vale salientar, ainda, que a constituição de determinado ethos resulta da interação entre a autoridade institucional do Entrevistado e o discurso de-senvolvido. De um lado, confere maior ou menor credibilidade ao que ele diz, ao que se sabe ou ao que é enfatizado a seu respeito. As circunstâncias

5 Idem6 MEYER, M. Questões de retórica: linguagem, razão e sedução. Trad. António Hall. Lisboa:

Edições 70, 19987 Em Análise do Discurso, a noção de legitimação pode ser utilizada para significar que o su-

jeito falante entra em um processo de discurso, que deve conduzir a que reconheça que tem direito à palavra e legitimidade para dizer o que diz. CHARAUDEAU, P. e MAINGUENE-AU, D. Dicionário de análise do discurso. Trad. Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004.

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da Entrevista lhe favorecem acionar um ativo pessoal – os atos anteriores e a boa reputação que deles resulta – que, conforme Perelman e Tyteca (1996)8, ele tem direito a invocar em defesa própria. Por outro lado, entretanto, este ethos (institucional) prévio é justamente o que é questionado e surge, então, a necessidade da argumentação com o objetivo de construir ou manter perante o público uma imagem positiva. Assim, a habilidade discursiva – capacidade para refutar e contra-argumentar – permite-lhe desfazer aquela imagem nega-tiva de modo a refazer sua reputação anterior. É nesse sentido que Eemeren e Grootendorst (2004, p. 01)9 caracterizam a argumentação como “uma ativi-dade verbal, social e racional que objetiva convencer um interlocutor sobre a aceitabilidade de um ponto de vista através de um conjunto de proposições que justificam ou refutam a proposição expressa como ponto de partida”.10

O Ethos

A Retórica clássica, principalmente a partir da sistematização realizada por Aristóteles11, e as correntes modernas nela inspiradas (neo-retóricas) reconhecem três modos de persuadir (ou convencer) um auditório: pelo logos – por meio do raciocínio (entimemas e exemplos, e outras formas de argumento) –, pelo pathos – apelo às paixões da platéia – e pelo ethos – mediante a credibilidade do orador constituída pela sua imagem social e pela representação constru-ída ao longo de seu discurso. O recurso ao ethos significa que sem a credibi-lidade do orador, um discurso emocionado (ou emocionante) e mesmo bem articulado em sua argumentação pode estar fadado ao fracasso (REBOUL, 2000)12. Por isso, um discurso eficaz pressupõe o cuidado do orador para mostrar-se merecedor de confiança de seu auditório. Esta estratégia de

8 PERELMAN, C. e OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. Trad. Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

9 EEMEREN, V. e GROOTENDORST, R. A systematic theory of argumentation: the pragma--dialectical approach. Cambridge: CUP, 2004.

10 [...] a verbal, social and rational activity aimed at convincing a reasonable critic of the ac-ceptability of a standpoint by putting forward a constelation of propositions justifying or refuting the proposition expressed in the standpoint.

11 Conforme, ARISTÓTELES. Arte retórica e Arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.12 REBOUL, O. Introdução à Retórica. Trad. de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.

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conquista, entretanto, ou por isso mesmo, situa-se no limite entre o ser e o pare-cer, pois a atividade comunicativa do ser humano é, quase sempre, um jogo de representações. Daí, a estreita relação, não apenas etimológica, entre ethos e Ética.

A Ética, como ciência do comportamento moral, não é uma disciplina normativa ou pragmática. Segundo Vasquez (1997, p.23)13, “é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é a ciência de uma forma específica de comportamento humano”. E os atos dos seres humanos são morais somente se considerados nas suas relações com os outros. Assim sendo, o discurso como interação entre co-enunciadores histó-rica e socialmente situados dimensiona o relacionamento entre eles na esfera de um ato público, cujas consequências apontam para a maior ou menor pro-ximidade, sendo regulado por um conjunto de normas previamente aceitas ou dadas na situação interlocutiva. “A moral é um conjunto de normas, aceitas livre e conscientemente, que regulam o comportamento individual e social dos homens” (VASQUEZ, 1997, p.63)14.

Na Entrevista, entretanto, este relacionamento entre os interlocutores tem alcance mais amplo do que a situação mais imediata em que se encon-tram. Configura-se como um espaço em que o dito, o omitido, o implicitado e mesmo o descontextualizado interferem na imagem social do Entrevistado. Aquele mais desatento, ou inexperiente, pode não se dar conta de que o Audi-tório que avalia sua postura e seu desempenho está muito além da câmera, do microfone ou dos apontamentos do Repórter. Neste sentido, a questão ética aponta para um jogo de imagens que pode favorecer um ou outro, mas não parece ético os interlocutores aproveitarem-se das circunstâncias ou da falta de habilidade de um ou outro para constituir uma imagem distorcida, quando não equivocada. Diferentemente da sedução e da manipulação, a retórica – ainda mais a jornalística – pressupõe (ou deveria pressupor) transparência e honestidade. É o que aponta, por exemplo, Breton (1999)15 quando caracte-riza a argumentação como uma ética da comunicação, ou mesmo Habermas (1989)16 quando se refere à situação ideal de fala.

13 VASQUEZ, A.S. Ética. Trad. João Dell’Anna. 24ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

14 Idem15 BRETON, Ph. A argumentação na comunicação. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru: Edusc, 1999.16 HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

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E se for correto o dizer popular de que “as palavras valem de acordo com aquele que as profere”, não parece difícil entender a relevância da imagem pré-via que um tem do outro nas intervenções verbais. Na Entrevista, em particular, este aspecto é, por vezes, explorado pelo Entrevistador que, apoiado em conhe-cimentos sobre o Entrevistado, cria ou mobiliza o discurso a fim de imprimir à Entrevista um caráter mais, ou menos, pessoal. Sabe-se que, como produção social originada em uma práxis humana, o discurso se configura, por natureza, como relação ética entre os interlocutores. Significa dizer que, como jogo de imagens, como espelho, o discurso comporta em sua dimensão ética um jogo de representações no sentido de favorecer ou obstruir a credibilidade e a legi-timidade de quem o produz. Não se apagam, assim, as marcas que revelam a natureza do ethos: “a experiência primeira do ethos revela [...] uma característica dual e constitutiva: o ethos é, inseparavelmente, social e individual. É uma reali-dade sócio-histórica. Mas só existe, concretamente, na práxis dos indivíduos...” (LIMA VAZ, 1999, p.38)17. Assim, tanto em sua dimensão institucional quan-to discursiva, o ethos não deixa de estar relacionado com a representação social previamente dada e com aquela que é construída ao longo de seu discurso.

O Ethos tematizado

PLANTIN (2005)18 admite a possibilidade de atribuir ao ethos três di-mensões, configuradas a partir de três instâncias enunciativas no discurso: ex-tradiscursiva, inferida e tematizada. Correspondem, respectivamente, ao ethos prévio, ao ethos discursivo (construído no discurso) e ao ethos que o orador diz de si mesmo, como objeto da própria enunciação – ethos tematizado. “À retórica interessa (estudar) os casos em que eles são postos a serviço de uma intenção estratégica e co-orientados com os objetivos gerais da argumentação” (Plantin, 2005, p. 95)19. Assim, se considerados os objetivos da Entrevista, principalmente aquela caracterizada como “em profundidade”, é possível ob-servar ao longo de seu desenvolvimento pelo menos algumas questões formu-ladas pelo Repórter que exigem do Entrevistado uma resposta, ou pelo menos

17 LIMA VAZ, H.C. Introdução à Ética filosófica. São Paulo: Loyola, 1999.18 PLANTIN, C. L’Argumentation. Paris: PUF, 2005.19 Idem. «La rhétorique s’interesse au cás où elles sont mises au service d’une stratégique, et

coorientées avec les buts géneraux de l’argumentation».

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um pronunciamento a respeito de si mesmo. “Em situação argumentativa, os locutores são levados a valorizar sua pessoa a fim de se autolegitimarem; as exi-gências da situação de argumentação prevalecem sobre o princípio da polidez linguística, que interdita fazer o próprio elogio” (PLANTIN, 2005, p. 94)20.

É preciso considerar, no entanto, que, no caso da Entrevista, o efetivo in-terlocutor é o público (leitor, ouvinte ou telespectador), cabendo ao Repórter, pelo menos em tese, o papel de representante dos anseios da sociedade. Diante disso, a preocupação do Entrevistado é (ou deveria ser) a sua imagem perante este Auditório, considerando as possíveis repercussões do que diz ou deixa de dizer. Se o Repórter põe em dúvida determinada imagem do Entrevistado ou se o questiona a respeito, o último parece contar com duas alternativas para enfrentar a situação: refutar, procurando derrubar os argumentos de quem pergunta ou apresentar argumentos a favor de outro ponto de vista. Por hipó-tese, pelo menos, a estratégia é a junção das duas, apesar do possível paradoxo argumentativo: quanto mais se procura refutar uma questão, mais atenção ela está merecendo e, por consequência, mais valorizada se torna ou, paradoxal-mente, atesta-se sua pertinência.

O Ethos na entrevista jornalística

Nunca é demais lembrar que um dos elementos culturais que interfere na avaliação da imagem pública é o que, na área do discurso, é caracterizado como estereotipagem: “é a operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado”. (AMOSSY, 2005, p. 125)21. Trata-se, por exemplo, daquela imagem do po-lítico associada à corrupção, daquela do economista vinculada a um discurso incompreensível, daquela do vendedor relacionada com estratégias de mani-pulação (sempre escondendo alguma informação) e sedução pelo produto, entre outras. Estes estereótipos, alguns mais e outros menos consensuais ou estabilizados no meio social, municiam o telespectador, ouvinte ou leitor com certa reserva ou favorecimento em relação ao que ainda será dito e, em função

20 Ibidem. «En situation argumentative, les locuteurs sont fréquemment tenus de valoriser leurs personne, afin de s’autolegitimer; les exigences de la situation d’argumentation préva-lent sur le príncipe de politesse linguistique, qui interdit que l’on fasse son propre éloge”.

21 AMOSSY, R. (Org). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

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disso, o sucesso na construção de uma imagem positiva pode exigir esforço adicional ou o cuidado em evitar certos discursos que, à primeira vista, pode-riam não favorecer àquele que os profere.

Se for consenso o fato de que o ethos diz respeito às imagens de si no discurso, não parece simplesmente tratar-se de construir determinada imagem; esta construção pode ser decorrente de diversas atitudes discursivas – estratégias retóricas – configuradas nos sentidos de verbos como desfazer e refazer. É o que acontece na Entrevista jornalística, se não em toda, pelo menos em alguns de seus turnos, em que o Entrevistado se vê na iminência de referir-se a si mesmo porque o teor da pergunta – insinuado ou explícito – que lhe foi dirigida as-sim o exige: o orador faz uma estimativa de quem é seu Auditório e do modo pelo qual será percebido. Por isso, “avalia o impacto sobre seu discurso atual e trabalha para confirmar sua imagem, para reelaborá-la ou transformá-la e produzir uma impressão conforme às exigências de seu projeto argumentativo”. (AMOSSY, 2005, p.125)22. O primeiro caso – confirmar uma imagem – seria aquele em que, propositalmente ou não, as perguntas do Repórter favorecem, muitas vezes de forma previamente agendada, uma resposta que dá margem para elencar atitudes e pontos de vista que o Entrevistado considera positivos para sua imagem frente ao público23. Considere-se, todavia, que o sentido de confirmar ou consolidar pressupõe uma imagem prévia – ethos prévio – já ava-liada positivamente pelo público leitor. É o que acontece, por exemplo, quando são entrevistadas aquelas pessoas ou instituições envolvidas em projetos de so-lidariedade ou que acabaram de desenvolver alguma atividade que teve reper-cussão na mídia em função de sua relevância, geralmente social. Apesar da sua importância teórico-analítica, não se constitui no foco do estudo aqui empre-endido, que pretende enfatizar as estratégias retóricas de reelaboração, ou seja, aquelas que implicam, se não apagar, pelo menos inibir ou desfazer aquele ethos negativo do Entrevistado que já é de domínio público e que afeta a interpre-tação das suas palavras. Se no caso de confirmar uma imagem o Entrevistado está bastante à vontade, quando se trata de desfazer uma imagem encontra-se em uma situação mais delicada em que até o silêncio parece comprometedor. Precisa pronunciar-se, portanto. É válido, assim, estudar as estratégias retóricas

22 Idem.23 Nos programas políticos isso parece bastante comum.

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que adota nestas circunstâncias, contribuindo para melhor compreensão do que acontece nas Entrevistas jornalísticas, ainda mais naquelas em que o teor da matéria se desenvolve sobre as imagens do Entrevistado. “O jogo começa com o repórter e o Entrevistado pisando sobre um campo minado. Um está apreensivo por saber que assuntos polêmicos sobre os quais ele não gostaria de falar virão. O outro o rodeia à espera do momento certo para o bote” (MARIA, 2007, p. 15)24.

Desfazer e refazer a imagem

Algumas vezes, dada a pergunta formulada, o Entrevistado não tem mui-ta alternativa a não ser reverter o jogo sobre determinada imagem que, muitas vezes, a própria mídia erigiu a seu respeito. Apesar do que Plantin (op. cit.) chama de “paradoxo da argumentação” – quando se refuta um ponto de vista, ao mesmo tempo se lhe está atribuindo importância e reconhecendo sua per-tinência –, será preciso contestar (ou, pelo menos, enfraquecer) os argumentos do Repórter, ou, então, reverter o curso do diálogo para a apresentação de argumentos favoráveis a um ponto de vista contrário àquele apontado ou insi-nuado pelo jornalista. Tanto num caso quanto noutro, o esforço é direcionado para estratégias retóricas que, se não apagam, pelo menos inibem a represen-tação negativa colocada na pergunta. É o que acontece, por exemplo, nesta entrevista concedida por Clodovil ao repórter da Revista Isto É25. Depois que o Entrevistado negou votar com seu partido a favor da base aliada do Governo, o Repórter perguntou:

Entrevistador: O sr., então, não será fiel à orientação partidária?Entrevistado: Eu sou fiel ao meu povo. O governo é o meu povo. Quando os

políticos saem daqui, eles fazem parte do povo. As decisões tomadas aqui refletem na vida deles também. Eles esquecem disso. Às vezes, eles votam aqui por interesses pessoais e, quando chegam lá fora, eles apanham.

Ao acentuar sua fidelidade ao povo e não ao partido, tal como insinuara o Repórter, o Entrevistado desfaz sua imagem de “infidelidade partidária”, apon-tando que “o governo é o meu povo” e, portanto, ser fiel ao povo é votar no

24 MARIA, J. Palavra cruzada: o jogo da entrevista. São Paulo: Seoman, 2007.25 ISTO É. Entrevista. Ed. Nº 1981. São Paulo: 17/10/2007, p. 11.

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Governo. Reforça este seu posicionamento ao dizer que “os políticos fazem parte do povo”. Com habilidade, o Entrevistado utiliza-se desta estratégia retórica para inibir a imagem que vinha sendo encaminhada na Entrevista e, ao mesmo tempo, refaz sua representação de que “político eleito pelo povo deve ser fiel ao povo que o elegeu”. Se não consegue desfazer um possível ethos negativo, pelo menos cria certa dúvida a respeito do que o Entrevistador lhe pretende impingir.

Estratégia semelhante – desfazer determinado ethos – é adotada por Ga-rotinho quando possível candidato do partido para a presidência da Repúbli-ca. Na questão anterior que lhe fora dirigida, o Entrevistado falara do seu pro-grama de Governo que objetiva “acabar com o predomínio do setor financeiro sobre o setor produtivo, reduzir juros, fazer a reforma tributária...”, ao que o Repórter, simultaneamente como resposta e pergunta, afirma e questiona, conforme segue26:

Entrevistador: Essas foram as promessas de Lula como candidato do PT. Por que acreditar no sr?

Entrevistado: Não tenho nada a ver com isso. O único responsável pelo não cumprimento das promessas de Lula é o próprio Lula, mais ninguém. Ele amare-lou diante dos banqueiros, se tornou gigante diante dos pequenos e anão diante dos poderosos. Eu não vou amarelar.

Parece bastante claro que o Entrevistado tenha observado imediata-mente a pressuposição inserida na pergunta do Repórter: Lula não cumpriu suas promessas em relação ao setor financeiro e por que então acreditar que o Entrevistado o faça de modo diferente. Mais do que desfazer uma imagem falando de si mesmo, a estratégia retórica consiste em tematizar um ethos pré-vio estereotipado – políticos não cumprem suas promessas de campanha. No lugar de assumir tacitamente um “eu não sou assim”, o Entrevistado focaliza aquele ethos prévio e nele inclui o presidente Lula para dizer que o estereótipo não se aplica necessariamente a todos os candidatos. Assim, no lugar de negar diretamente que em relação a ele (Garotinho) não é o caso, fragiliza o estereó-tipo e a conclusão lhe favorece: se outros são, não significa que todos o sejam e, portanto, que eu também o seja. Se acentuasse justificativas para dizer – a mim não se aplica – provavelmente estaria atribuindo importância à pergunta do Repórter, significando que a questão colocada fora pertinente e, portanto,

26 ISTO É. A batalha de Garotinho. Ed. Nº 1901. São Paulo: 29/10/ 2006, p. 39

288 Dittrich, Ivo José. O ethos na entrevista jornalística: refazer e desfazer uma imagem

o Entrevistado enfraqueceria seu próprio posicionamento.Não muito diferente é a estratégia retórica adotada pela cantora Ivete Sangalo, em resposta a uma das perguntas que lhe foi dirigida por um leitor da revista Época27:

Entrevistador: O axé é um ritmo essencialmente popular. Nos últimos anos, porém, os shows de artistas desse gênero vêm ficando cada vez mais caros e restritos a uma parcela social. Por quê?

Entrevistada: Em absoluto! Os shows têm levado grandes públicos, o que explica esses valores. Eu, por exemplo, sou uma artista popular e procuro fazer ações populares. O país é grande demais e nos dá a possibilidade de criar dife-rentes eventos. Acabei de fazer shows em Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Boa parte foi a preços bem populares. A conta é fácil: quanto mais popular o preço, mais gente verá o show. E é esse o objetivo. Mas fazemos shows para todo tipo de público em diferentes perfis de festa. O que você aponta não é o que vejo no dia a dia profissional.

Tanto no início quanto no final de sua intervenção, a Entrevistada re-futa um ethos de “cantora de elite” encaminhado na pergunta. Por meio das expressões – “em absoluto” e “não é o que vejo no dia-a-dia profissional” refuta a afirmação do Entrevistador. O restante da intervenção é utilizado justamente para sustentar que sua – da Entrevistada – refutação é sustentada em argumen-tos, principalmente aqueles da ordem da quantidade: “boa parte foi a preços bem populares”; “mais gente em decorrência de preço mais popular”; “shows para todo tipo de público”. Além disso, ao citar estados do Nordeste brasileiro, ge-ralmente conhecidos como de “menor poder aquisitivo”, traz o argumento da causa/consequência que poderia ser assim elaborado: se uma cantora faz shows em Estados tidos como mais pobres, é porque não deve estar cobrando preços muito elevados. Pode ser dito que o excerto de Entrevista representa a típica situação argumentativa em que ao papel argumentativo do Proponente (Repórter) se contrapõe o do Oponente (Entrevistado): este procura desfazer o ethos sustentado por aquele, propondo uma tese oposta e justificando-a em argumentos que considera pertinentes e compreensíveis, principalmente para o Auditório em causa: o público leitor da Revista. É uma maneira de inibir, se não de apagar, um ethos prévio que fora imputado, ainda que indiretamente, à

27 ÉPOCA. 2007. Entrevista: Ivete Sangalo. São Paulo: 19/09/2007, Ed. Nº 487. p. 107.

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Entrevistada, no caso. Embora com desenvolvimento um pouco diferente, estratégia retórica

semelhante pode ser notada, por exemplo, no seguinte trecho da Entrevista concedida por Nelson Jobin, também a um dos leitores da Revista Época28:

Entrevistador: O senhor, como advogado, se acha qualificado o suficiente para estar à frente das questões relacionadas ao caos aéreo?

Entrevistado: A questão não é ser advogado ou não, a questão é ter capa-cidade de gestão. Já tenho alguma experiência nesse sentido e não há dificuldade alguma. É um equívoco achar que o Ministério da Defesa só tem de se preocupar com a aviação civil. Este é apenas um dos temas, embora seja o mais urgente, e de maior repercussão popular.

Aqui, a estratégia retórica do Entrevistado aponta para a tematização de um ethos prévio estereotipado em grande parte na sociedade brasileira – o de que a administração competente em determinada área pública ou privada pres-supõe que o encarregado seja daquela área29. Assim, mais do que falar de si mesmo, Jobim refaz a imagem negativa insinuada na pergunta, tematizando sobre a doxa – conjunto de crenças e valores compartilhados em determinada sociedade – que imagina estar subjacente à pergunta e, com isso, refaz uma imagem que, mais ou menos explicitamente, estivera arranhada pelo fato de ele ser advogado e estar administrando uma área, em principio, bastante diferente de sua formação acadêmica.

No excerto que segue – Entrevista concedida por Lula a uma jornalista brasileira que trabalha na imprensa francesa30 –, o Presidente também procura desfazer um ethos prévio de “responsável pela corrupção no PT”, agora deslo-cando a linha de argumentação do individual para o institucional: se alguém pertence a determinada instituição, é esta que deve ser avaliada e, portanto, se alguém errou nos “escândalos de corrupção divulgados na imprensa”, foi a Instituição e, portanto, o erro, se existente, não poderia ser atribuído, indivi-dualmente, a um de seus membros. Mesmo que Lula não negue taxativamente sua possível responsabilidade, fa-lo na medida em que desloca a tese do par-

28 ÉPOCA. Entrevista: Nelson Jobim. São Paulo: 29/10/ 2007, Ed. Nº 493. p. 45.29 Questão semelhante já era discutida na própria Grécia antiga: se o melhor administrador da

cidade seria o filósofo (teórico) ou aquele provido de conhecimento prático, inclusive o Orador. 30 FANTÁSTICO. Entrevista com Lula. Disponível em: http://fantastico.globo.com/Portal/

jornalismo/. Acesso em 20/11/2007.

290 Dittrich, Ivo José. O ethos na entrevista jornalística: refazer e desfazer uma imagem

ticular para o institucional, ao mesmo tempo em que “suaviza” uma possível culpa ao valorizar os méritos do Partido.

Entrevistador: O sr. foi criador do PT. É impossível não associar a sua imagem à imagem do partido. Hoje ele comemora 25 anos e, infelizmente, está envolvido em todas essas denúncias de corrupção. Onde foi que o pai, Lula, errou?

Entrevistado: Olha, eu tenho o PT como filho, porque eu ajudei, sou um dos fundadores do PT. Acho que o PT está sendo vítima do seu crescimento, ou seja, em 20 anos chegamos à Presidência do Brasil, coisas que, em outras partes do mundo, muitos demoraram 100 anos para chegar. A minha tese é de que o PT tem (de) explicar para a sociedade brasileira que erros cometeu. Na medida em que o partido trocou de direção e está fazendo auditoria interna, o Tarso Genro tem o compromisso de explicar para a sociedade o que aconteceu com o PT e o que vai acontecer daqui para a frente. [...] O PT tem na ética uma de suas marcas mais extraordinárias. E não é por causa do erro de um dirigente ou de outro que você pode dizer que o PT está envolvido em corrupção. [...].

A estratégia de desfazer e refazer determinada imagem se resume no es-forço do Entrevistado em pontuar que “aquilo que já fui”, ou “aquilo que disseram de mim” – no passado – não está esquecido; apenas houve, ou se supôs ter havido um possível deslize, pontual, circunstancial que está sendo excessivamente valorizado de forma que as atitudes e virtudes positivas aca-bam sucumbindo. Esta estratégia se acopla àquela imediatamente anterior: na mesma resposta, o Entrevistado reverte o teor da pergunta e passa a apresentar argumentos favoráveis a um ponto de vista que transforma sua imagem de acusado para uma representação de cunho positivo no universo de crenças e valores de seu efetivo Auditório: um “pequeno” deslize não poderia apagar vinte anos de trabalho sério, eticamente conduzido.

Algo semelhante acontece na resposta dada pelo Presidente (então candi-dato à reeleição) Lula, em Entrevista concedida ao Bom Dia Brasil31 – da Rede Globo –, às vésperas das eleições de 2006. Uma das perguntas dizia respeito ao “escândalo da compra do dossiê”, cujos envolvidos seriam pessoas muito próximas ao Presidente:

31 FOLHA ONLINE: Leia íntegra da entrevista de Lula ao “Bom Dia Brasil”. Disponível em: http://tools.folha.com.br. Acesso em 20/11/2007.

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Entrevistador: Nesse novo escândalo, estão envolvidas pessoas muito próxi-mas ao senhor; alguns, companheiros seus há anos: o seu assessor especial que tra-balhava no Palácio (Freud Godoy), o presidente do seu partido (Ricardo Berzoini), um dos coordenadores de sua campanha (Gedimar Passos), um dos autores do seu programa de governo (Osvaldo Vargas); um diretor do Banco do Brasil (Expedito Afonso Veloso). Não é grave?

Entrevistado: É grave, é lógico que é grave. O fato de a pessoa fazer uma investigação da vida dos outros, fazer levantamento, e, sobretudo, pagar. [...] En-tão, obviamente, as pessoas, ao receberem a proposta, deveriam ter denunciado, como eu fiz no dossiê das Ilhas Caymans. Vocês estão lembrados. Ou seja: aquele dossiê era para prejudicar um segundo turno da campanha do Mario Covas, e eu fiz questão de entregar para o Márcio Thomaz Bastos, que chamou o candidato José Serra, que chamou o Mario Covas e entregou.

Considerando o contexto histórico em que acontece a Entrevista, é im-portante lembrar que se trata de um período em que “pipocava” na imprensa toda a questão do aludido escândalo e, portanto, pairava – ou se tentava fazer pairar – uma grande dúvida sobre a honestidade do então candidato Lula. O próprio Repórter parte deste ethos prévio para fazer a pergunta. O Entrevis-tado, no entanto, reverte o “jogo” ao apontar que se trata de um posiciona-mento equivocado, pois ele próprio – o Entrevistado – em situação anterior semelhante fizera o papel de denunciar esquema parecido. Refaz, assim, sua imagem de possível desonestidade, passando a apresentar-se como candidato honesto, pautado na doxa de que “se alguém denunciou no passado, fá-lo-á novamente hoje; se não o faz, é por que não lhe caberia fazê-lo”. Enquanto o Repórter insinua que “aquele que tem seus amigos mais próximos envolvidos em escândalo, também deve ter comportamento semelhante”, ancorado na doxa sistematizada no slogan – diga-me com quem andas e eu te direi quem és –, o Entrevistado sustenta sua argumentação na doxa anterior, ao mesmo tempo em que diz: seu (de Repórter) ponto de partida da argumentação está equivocado.

Interessante observar como o Presidente Lula, nos dois excertos exami-nados, parte de um acordo com o Repórter: no início de sua intervenção concorda com ele: “ter o PT como filho” e “é grave, sim”. É o que Perelman

292 Dittrich, Ivo José. O ethos na entrevista jornalística: refazer e desfazer uma imagem

(1996)32 e Breton (1999)33 caracterizam como o acordo inicial entre os inter-locutores, estabelecendo um clima de cordialidade e empatia possível. Sobre esta base (comum), ou a partir dela é que a contra-argumentação vai sendo desenvolvida de forma a dizer com sutileza: a representação que você – Repór-ter – tem (ou quer fazer passar) da minha pessoa tem de ser revista em função dos argumentos que lhe apresentei. É o que também parece predominar nas demais Entrevistas.

Considerações finais

Seria inconsequente afirmar que, na Entrevista jornalística, o ethos tema-tizado se resumiria a dois movimentos discursivos – estratégias retóricas – por parte do Entrevistado: desfazer e refazer. A cenografia é particularmente com-plexa na medida em que o Entrevistador atua como funcionário da Empresa jornalística e, ao mesmo tempo, como representante de um interlocutor geral: o leitor, ouvinte ou telespectador. Mereceria certamente um estudo que aqui não se esgota. Mas as indicações aqui apontadas parecem pertinentes para le-vantar a questão de que falar a respeito de si mesmo tem relação com o estudo do ethos e é bem mais frequente do que se poderia imaginar à primeira vista.

Não se pode esquecer, também, que, por mais que se esforce para contro-lar sua imagem a partir do que o Entrevistador pergunta e do que a Entrevista lhe permite, o efetivo ethos do Entrevistado resulta do conjunto deste gênero jornalístico, e, portanto, da interação entre o que dizem ou dão a entender ambos. Além disso, é preciso frisar que este controle sempre é instável como o é, aliás, o próprio discurso: na medida em que é dirigido a alguém, o efeito do discurso depende, em boa parte, da interpretação daqueles a quem é dirigido.

Finalmente, pode ser acrescentado que a análise do discurso jornalístico, em seus diversos gêneros, pode oferecer amplos e diversificados conhecimen-tos que permitam à Teoria da Argumentação sedimentar ou reconstruir seu aparato teórico-metodológico em relação à plasticidade discursiva que, na atu-alidade, exige dinamismo, flexibilidade e interação entre diferentes teorias a fim de que consiga acompanhar não só o que se escreve, mas principalmente o

32 Idem33 Idem

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como se produzem discursos em uma sociedade pluralista em constante movi-mento. Neste sentido, Jornalismo e Teoria da Argumentação têm condições (e necessidades) de aproximação, auxiliando a melhor compreender as diferentes faces que se escondem, ou revelam, na mídia atual, inclusive por meio da participação dos leitores.

ETHOS iN THE JOURNALiSTiC iNTERViEW: TO CONTEST AND TO RECOMPOSE A PREViOUS iMAGE

ABSTRACTFrom a point of view of the Argumentation Theory, this paper examines the rhetorical strategies used by the in-terviewed when his own image constitutes the theme of the Interview - ethos schematization. The scenography is characterized by an interlocution developed from a previous ethos and the construction of the image results from the interaction among two basic rhetorical strate-gies: to refute for contest a negative ethos and to contra--argument for its positive recomposition.

KEYWORDS: ethos; journalistic Interview; rhetorical strategy.

Recebido em: 20/09/11Aprovado em: 26/05/12