o estudo do Índio brasileiro - ontem e hoje

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O ESTUDO DO INDIO BRASILEIRO - ONTEM E HOJE . Inúmeras vêzes a marcha do pensamento científico e a pro- gressiva substituição de seus problemas centrais têm sido interpre- tadas com referência ao quadro mais amplo da história geral da humanidade. À sociologia da cultura coube precisar a natureza dos liames que prendem a vida espiritual de uma época às neces- sidades da vida política e econômica dos povos. Também o nasci- mento da ciência etnológica como ramo da antropologia cultural, a seqüência das diretrizes teóricas e o cunho específico de muitas de suas contribuições particulares só poderão ser compreendidos satisfatóriamente através de uma análise a um tempo histórica e sociológica. Isto vale para a etnologia geral como para os es- tudos parciais sõbre os povos primitivos dêste ou daquele país. Os conhecimentos sõbre o índio brasileiro, obtidos no decor- rer de quatro séculos e meio, revelam-se particularmente interes- santes quando encarados dêsse ponto-de-vista. A pretensão do presente ensaio, todavia, não vai além de indicar alguns dos dados mais significativos da história dêsse estudo, apontando, de modo conciso, as relações que os ligam a fenômenos históricos mais ge- rais e, particularmente, à vida espiritual duma época ou a deter- minadas teorias científicas (1 ). I. Relatórios e descrições do período colonial O zêlo apostólico da Idade Média experimentou extraordiná- ria renovação na época dos grandes descobrimentos marítimos, quando em tõdas as latitudes — na África, na Ásia, na América — navegadores portuguêses e espanhóis vieram encontrar um sem- -número de povos entregues ao paganismo. Não é de se admirar, por isso, que em seu minucioso relatório sõbre o descobrimento do (1). De modo algum, se pretende, Pois, apresentar nesta exposição sumária a obra de todas as figuras importantes da etnologia 'brasileira do pas- sado e do presente. Se aqui não se discutem nem comentam as contri- buições de, por exemplo, Cardim, Marcgraf, Figueira, Mamiani, Cou- dreau, Ehrenreich, Krause, W. Schmidt, Nordenskidld, Friederici, Mé- traux, Colbachini, H. A. Tôrres, Pinto, Airosa, Fernandes e tantos outros, isto não significa, evidentemente, que se deixe de reconhecer o seu alto valor para o conhecimento cientifico do índio brasileiro. Muitas delas têm mesmo importância capital, sobretudo no que diz respeito à elaboração teórica e aos estudos lingüísticos, e em trabalho histórico orientado segundo perspectiva diferente não seriam, nem po- deriam ser omitidas.

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León Cadogan

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  • O ESTUDO DO INDIO BRASILEIRO - ONTEM E HOJE .

    Inmeras vzes a marcha do pensamento cientfico e a pro-gressiva substituio de seus problemas centrais tm sido interpre-tadas com referncia ao quadro mais amplo da histria geral da humanidade. sociologia da cultura coube precisar a natureza dos liames que prendem a vida espiritual de uma poca s neces-sidades da vida poltica e econmica dos povos. Tambm o nasci-mento da cincia etnolgica como ramo da antropologia cultural, a seqncia das diretrizes tericas e o cunho especfico de muitas de suas contribuies particulares s podero ser compreendidos satisfatriamente atravs de uma anlise a um tempo histrica e sociolgica. Isto vale para a etnologia geral como para os es-tudos parciais sbre os povos primitivos dste ou daquele pas.

    Os conhecimentos sbre o ndio brasileiro, obtidos no decor-rer de quatro sculos e meio, revelam-se particularmente interes-santes quando encarados dsse ponto-de-vista. A pretenso do presente ensaio, todavia, no vai alm de indicar alguns dos dados mais significativos da histria dsse estudo, apontando, de modo conciso, as relaes que os ligam a fenmenos histricos mais ge-rais e, particularmente, vida espiritual duma poca ou a deter-minadas teorias cientficas (1 ).

    I. Relatrios e descries do perodo colonial

    O zlo apostlico da Idade Mdia experimentou extraordin-ria renovao na poca dos grandes descobrimentos martimos, quando em tdas as latitudes na frica, na sia, na Amrica navegadores portuguses e espanhis vieram encontrar um sem--nmero de povos entregues ao paganismo. No de se admirar, por isso, que em seu minucioso relatrio sbre o descobrimento do

    (1). De modo algum, se pretende, Pois, apresentar nesta exposio sumria a obra de todas as figuras importantes da etnologia 'brasileira do pas-sado e do presente. Se aqui no se discutem nem comentam as contri-buies de, por exemplo, Cardim, Marcgraf, Figueira, Mamiani, Cou-dreau, Ehrenreich, Krause, W. Schmidt, Nordenskidld, Friederici, M-traux, Colbachini, H. A. Trres, Pinto, Airosa, Fernandes e tantos outros, isto no significa, evidentemente, que se deixe de reconhecer o seu alto valor para o conhecimento cientifico do ndio brasileiro. Muitas delas tm mesmo importncia capital, sobretudo no que diz respeito elaborao terica e aos estudos lingsticos, e em trabalho histrico orientado segundo perspectiva diferente no seriam, nem po-deriam ser omitidas.

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    Brasil, Vaz de Caminha veja o alcance do feito de Cabral em ha-ver ste proporcionado ao soberano portugus a oportunidade de conduzir mais um povo pago ao seio do Cristianismo. Esta seria, diz o escrivo no final da Carta, a melhor semente a ser lanada no solo recm-descoberto.

    Assim mesmo, muitos cristos tiveram no incio profunda re-lutncia em reconhecer os ndios como sres de igual estirpe. No por desmedido orgulho, mas porque duvidavam sinceramente de que eram homens os naturais do Novo Mundo. Seria lcito, per-guntavam missionrios escrupulosos, pregar-lhes o Evangelho e ministrar-lhes o batismo? At que, afinal, o Papa Paulo III, pela bula de 2 de julho de 1537, ps fim s dvidas, declarando oficial-mente serem os ndios "veri homines", homens verdadeiros, "lidei catholicae et sacramentorum capaces", portadores de alma imortal

    dignos, por isso, de serem recebidos no seio da Igreja. Dir-se-ia talvez que do indgena brasileiro o sculo XVI nos

    deixou apenas uma imagem caricatural. Pois no se costumava, de h muito, caracterizar como sres monstruosos a quantos vi-vessem nas trevas do paganismo? Certo, tal atitude no falta nas crnicas dos conquistadores, dos missionrios e dos aventureiros da poca. Mas de modo geral admirvel a riqueza de informa-es certas e precisas nos escritos daqueles observadores pr-cien-tficos. A um homem como Hans Staden, que durante meses fra prisioneiro dos Tupinamb, espera do dia em que se lhe abrisse

    crnio a golpes de tacape, no faltavam motivos para odiar os ndios. E no entanto conseguiu traar um quadro singelo e bas-tante objetivo das idias religiosas, das instituies sociais e de muitas outras coisas que observara e experimentara no cativeiro entre os aborgenes. A sua "Verdadeira histria e descrio de uma terra de antropfagos selvagens, ns e ferozes, situada em

    Novo Mundo Amrica", publicada em 1557, constitui uma de nossas principais fontes sbre a cultura dos Tupinamb meri-dionais.

    notrio que o "bon sauvage" da filosofia iluminista, cujo mais ardoroso propugnador no sculo XVIII foi Rousseau, se ba-seava em grande parte em descries da vida indgena do Brasil, provenientes dos meados do sculo XVI. Mas interessante sa-ber tambm que a atitude fundamental daquela filosofia, na me-dida em que se ligava interpretao de formas-de-vida ndias. existia j na poca dos cronistas. Em outras palavras: a teoria do bom selvagem remonta at o sculo XVI. que o movimento da Reforma e as conseqentes lutas religiosas haviam abalado a confiana nas "coisas estabelecidas" e sobretudo na ordem social do Ocidente. Em um de seus "ensaios", Montaigne confronta a fraqueza moral do mundo europeu e, em especial, as barbaridades das guerras de religio com a maneira-de-ser e os costumes, em sua opinio bem mais razoveis, dos indgenas brasileiros. le pr-

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    prio nunca viera ao Brasil, mas conhecera ndios levados Frana e ouvira colonos que haviam estado aqui em companhia de Ville-gaignon. notvel no smente a sua tendncia de idealizar as instituies dos aborgenes, em grande parte opostas ao cdigo da moral europia, procurando compreend-las e justific-las, mas tam-bm a naturalidade com que apresenta o ponto-de-vista, extraordi nrio para a poca, de que o europeu, qualificando os ndios como selvagens e brbaros, age na impossibilidade de julg-los por outro critrio que no seja o prisma de sua prpria cultura. Cada qual, diz le, considera brbaro o que no de seu costume. E na opi-nio de Montaigne as maneiras naturais e espontneas do selv-cola podiam concorrer, sem mais nem menos, com os valores duvi-dosos da vida artificializada do mundo europeu.

    O sculo XVI rico em descries dos ndios brasileiros, de seus costumes extravagantes e de suas instituies. Os povos eu-ropeus mantinham a ateno voltada para a Amrica recm-desco-berta e mal conhecida.

    Em poucos decnios se alargara e enriquecera o horizonte cul-tural do Velho Mundo; era o resultado primrio e imediato dos grandes descobrimentos martimos. Mas dentro em breve haveriam de surgir conseqncias mais profundas e de maior alcance; entre estas, a revoluo da economia europia e, embora indiretamente, a reestruturao da sociedade ocidental com o aparecimento do es-prito mercantilista burgus. So fatos conhecidos, cujos pormeno-res no preciso discutir. Basta assinalar talvez que o intersse do homem europeu pelas coisas americanas, a curiosidade e a so-freguido com que o leitor da poca recebia as descries e nar-rativas, que tratavam do novo continente, constituiam poderoso es-tmulo para todos os viajantes, impelindo-os a darem ampla e ge-nerosa publicidade a suas aventuras reais e imaginrias. E uma vez que o ndio fazia parte dessa paisagem, cumpria apresent-lo minuciosamente, com tudo o que nele houvesse de singular e de esquisito. Isto, porm, veio a ser de grande proveito para a etno-logia, e , por exemplo, graas riqueza dessas descries que te-mos hoje a possibilidade de remontar traos essenciais da acultu-rao dos ndios at os primeiros decnios. da conquista.

    Dos livros deixados pelos cronistas daquela poca o mais co-nhecido , sem dvida, o do mencionado Hans Staden. Constitui indispensvel fonte de informao para o estudioso das culturas indgenas do Brasil, pois, alm dos pormenores da antropofagia e das atividades guerreiras, fornece valiosos elementos sbre a eco-nomia e a tcnica na configurao cultural tupinamb. Maior abun-dncia de dados etnogrficos encontra-se, verdade, nos escritos dos cronistas franceses e portuguses. Os jesutas portuguses ti-nham a obrigao de prestar contas regularmente, a seus superio-res, das dificuldades e dos xitos do trabalho missionrio; alguns de seus relatrios so admirveis pela informao etnogrfica, co-

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    mo, por exemplo, o clebre estudo do Padre Jos de Anchieta s-bre as regras de casamento e o sistema de parentesco dos Tupi-namb.

    Entre as obras dos cronistas portuguses destaca-se, ainda, em importncia para o indianista contemporneo o "Tratado descritivo do Brasil em 1587", redigido por Gabriel Soares de Souza. O au-tor, que foi abastado senhor-de-engenho na Bahia, apresenta de modo sistemtico e com bastante cuidado a paisagem geogrfica, a fauna, a flora e as populaes indgenas da zona litornea.

    Dois franceses, Andr Thevet e Jean de Lery, contam-se en-tre os melhores informantes sbre os ndios do sculo XVI. Am-bos haviam vindo ao Brasil em companhia de Villegaignon, incum-bido de conquistar esta terra para a cora francesa. Na baa de Guanabara, fundou a "France Antarctique", colnia em que devia reinar o esprito da compreenso e da tolerncia religiosa, especial-mente para os adeptos de Calvino. Entre os seus companheiros, havia telogos catlicos e calvinistas, que se entregavam no raro a eruditas discusses sbre os problemas mais intrincados da dou-trina crist. Ao gsto por tais assuntos liga-se, por certo, o inte-rsse dispensado s crenas e aos ritos dos ndios, fato a que de-vemos uma srie de dados aproveitveis sbre representaes co-letivas e instituies da tribo, h muito extinta, dos Tupinamb.

    Thevet, que era monge franciscano, alcanou depois posio de prestgio como sbio da crte, "Cosmographe du Roi". Jean de Lry, por seu turno, continuou at o fim da vida ardoroso pro-pugnador da doutrina reformada. Alfred 1VItraux acenta com acrto que o franciscano no era dotado de grande "sprit criti-que", o que todavia no diminui a importncia e o valor de sua obra como fonte informativa. "Observava tudo, e como tudo o assombrasse, registrava tudo, sem preocupar-se com as contradi-es ou o absurdo dos informes obtidos"(2). Bem diferentes so as pginas de um Jean de Lry, reveladoras de uma inteligncia insatisfeita, de um esprito irrequieto, empenhado em descobrir o sentido das coisas que observara.

    Nos primrdios do sculo XVII os franceses fundaram a sua segunda colnia no Brasil, dessa vez na Ilha de So Luiz, no lito-ral norte. Em homenaguem a Luiz XIII, menino de pouca idade, a fundao recebeu o nome de So Luiz. Trs capuchinhos se in-cumbiram de converter ao Cristianismo a populao indgena, tra-balho, alis, bem mais fcil do que o de Anchieta e seus irmos--de-hbito mais ao sul, de .vez que os colonizadores franceses, ao contrrio dos portuguses, revelaram sempre maior habilidade em estabelecer e manter camaradagem com os naturais da terra. Dois dos missionrios, Yves d'Evreux e Claude d'Abbeville, deixaram

    (2). La religion des Tupinamba et ses rapports avec eelle des nutres tribos tupi-guarani; Paris, 1928; p. 2.

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    boas descries etnogrficas de seus protegidos. Em d'Evreux, que se esforou principalmente pela converso dos pajs, com os quais discutiu muito sbre questes religiosas, louva-se o profundo co-nhecimento da psique indgena.

    Da a meio sculo, em 1663, publicava-se uma obra histrica: sbre misses brasileiras, a "Crnica da Companhia de Jess no Estado do Brasil", do jesuta portugus Simo de Vasconcelos.. Alm de uma sntese do que na poca se julgava saber acrca da vida aborgene, o autor apresenta uma classificao sumria das. tribos. O critrio. principal , para le, o da braveza e da mansi-do, e ~ente em segundo lugar atende s diferenas idiomti-cas. A "Crnica" representa, em certo sentido, o marco final da primeira fase de estudos sbre o ndio brasileiro, uma vez que nos cento e cinqenta anos subseqentes. pouco se fz neste domnio.

    E isso tinha a sua razo de ser. Basta lembrar que a vida da Colnia marcada nessa poca pela seqncia de numerosos fatos de extraordinria repercusso histrica: a marcha dos ban-deirantes para o oeste, o descobrimento e a explorao das minas de ouro, a expulso dos jesutas (1759) e assim por diante. Eram anos de intensa atividade, em que se atendiam s coisas imediatas e no ao pobre selvcola, que nem sequer para escravo se prestava. Em tda parte, o que empolgava eram quase que exclusivamente as coisas da economia e da poltica, exceo feita de algumas pou-cas cidades favorecidas pela sorte, como a de Ouro Preto, onde a fase de opulncia foi seguida de excepcional florescimento nas letras e nas artes plsticas. Assuntos etnolgicos, porm, no in-teressavam. De uma regio apenas, da banda ocidental do Mato--Grosso, que na segunda metade do sculo XVIII nos vieram elementos substanciais para o conhecimento dos ndios. Um jesu-ta austraco, Martin Dobrizhof fer, e outro espanhol, Snchez La-brador, escrevendo sbre ndios do Paraguai, reuniram dados tam-bm sbre tribos vizinhas em territrio brasileiro. Um relatrio do oficial portugus Francisco Rodrigues do Prado, que nas funes de comandante do Real Presdio de Coimbra tivera ensejo de observar as instituies sociais dos Guaikur, considerado como a contribuio mais importante daquele tempo. Em conjunto, po-rm, material escasso em comparao com o que se encontra nos escritos de aventureiros, colonos e missionrios de geraes ante-riores.. O primeiro perodo dos estudos sbre o selvcola brasileiro. caracterizado pelo seu cunho essencialmente emprico, estava che-gando ao fim.

    Il. O incio da investigao cientifica das culturas indgenas na primeira metade do sculo XIX

    Por mais que acentuemos o valor das fontes dos primeiros s-cuias, evidente que ainda no constituem, como no poderiam

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    constituir, trabalhos cientficos no sentido rigoroso da palavra. Na maioria dos casos, trata-se da descrio de peculiaridades mais ou menos bem observadas. Representava-se o natural da terra tal qual le se afigurava, ao colono ou ao missionrio, em funo das experincias culturais do homem europeu em seu prprio mundo histrico. E no podia ser de outra forma. E por isso mesmo no podia haver etnologia propriamente dita. A cincia requer siste-matizao e explicao segundo princpios tericos. Reunir fatos r trabalho preliminar, pr-cientfico, que ainda no fornece com-preenso da realidade, nem interpretao de relaes e processos.

    A ste respeito, as contribuies de Karl Friedrich Phillip von Martius, que durante trs anos ( de 1817 a 1820) percorreu vas-tas extenses da Amrica Portugusa, valem como transformao fundamental e decisiva. Martius era botnico, mas tambm viva-mente interessado em questes de etnologia. A le devemos a pri-meira tentativa sria de por ordem no quadro confuso e desorien-tador de tribos e de idiomas, e de apresentar uma classificao am-pla e sistemtica das nossas populaes aborgenes. O seu esprito de observao e a sua inteligncia habilitavam-no, como a nenhum contemporneo, a compor um quadro em que se reunisse a rica experincia pessoal informao bibliogrfica disponvel, quadro em cujo traado havia, por certo, muita coisa errnea, mas que nem por isso deixou de facilitar de maneira extraordinria o trabalho dos estudiosos da poca seguinte. Sem dvida alguma, cabe a Mar-tius o mrito de ter feito passar a etnologia brasileira da primeira fase, a dos cronistas, isto , da observao emprica, para a se-gunda, a da sistematizao. Os seus "Beitraege zur Ethnographie und Sprachenkunde Americas, zumal Brasiliens" ( Leipzig, 1867) contm a primeira viso panormica do mundo indgena brasileiro. Se preciso reconhecer que, de um lado, a etnologia de Martius se levanta sobre os alicerces de uma determinada concepo do mundo, no menos verdade tambm que, do outro, ela se mostrou altura das exigncias, cientficas da poca.

    Exceo feita das pginas puramente etnogrficas dos precur-sores, entre elas a excelente descrio dos Botocudos pelo Prncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, lcito talvez dizer que antes de Martius a existncia dos indgenas brasileiros fora encarada como problema propriamente cientfico apenas na medida m que se dis-cutia a provenincia de to curiosa gente. Desde a ra dos des-cobrimentos que se vinham forjando as mais temerrias hipteses sobre a origem do homem americano. E eram to numerosas que seria necessria toda uma dissertao para examin-las, ainda que superficialmente. Aqui basta lembrar que mesmo em nossos dias o enigma est longe de uma soluo satisfatria. Parece at pro-vvel que a -esfinge indiana" nunca revelar inteiramente o segre-do milenar. E significativo que a Martius ncr seduziam as es-peculaes sbre a origem do ndio; bastava-lhe o mito egpcio-

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    --platnico da sinistrada Atlntida, que se enquadrava, quase como argumento, no edifcio de suas explicaes etnolgicas.

    A essas explicaes desenvolveu-as pela primeira vez de modo sistemtico numa assemblia de sbios alemes, reunida em Fri-burgo (Brisgvia) no ano de 1838. Em sua conferncia, intitulada "Die Vergangenheit und Zukunft der amerikanischen Menschheit - . defendeu a tese de que as populaes naturais do Novo Mundo, longe de viverem numa originalidade biblica, se encontrariam em estado de primitividade secundria. Seriam, pois, antes asselvaja-dos do que propriamente selvagens.

    Essa tese vale por uni protesto, que tem as suas razes na his-tria do pensamento alemo. Dirigia-se contra a filosofia do ilu-minismo francs, cuja viso cultural tinha por fundamento a teoria do bom selvagem e que provocava as iras do idealismo filosfico alemo e, com maior razo, as da Baviera crist de Martius. No, para Martius no havia bondade natural no aborgene americano, cuja vida levava o slo da degenerescncia. Certa noite, narra o explorador, surpreendeu num rancho indgena uma bruxa depra-vada, escrava de tribo estranha: com sorriso perverso e ardorosos murmrios, lanava ao fogo bolotas d ervas e cabelos, no intuito de matar os filhos de seus senhores. "Neste momento, diz o sbio, desvendaram-se-me os olhos, compreendi que homens assim j no viviam em estado de inocncia paradisaca, e que aquelas doutri-nas de Jean Jacques no passavam de quimeras". Para Martius, os ndios haviam decado das eminncias de grandes conquistas cul-turais, destino a seu ver, alis, inelutvel, uma vez que todo flo-rescimento cultural, por deslumbrante que pudesse parecer, abri-garia o germe da prpria degenerescncia, salvo se orientasse pe-las verdades da revelao crist ou se apoiasse nos princpios mo-rais 'do Cristianismo. um ponto-de-vista que nunca deixou de ter voga na filosofia da .cultura ligada Igreja.

    As numerosas tribos afiguram-se a Martius como "disjecta membra" de povos em vias de desorganizao e em cuja consti-tuio fragmentria repontariam ainda vestgios de velhas formas hierrquicas e monrquicas. Assim, a crena num poder sobrena-tural e a ordem social fundada sobre um sacerdcio, embora dege-nerdo a ponto de ,j no passar duma instituio de magos e fei-ticeiros. A tradio dos heris civilizadores entre os povos do M-xico, da Colmbia e do Per no atribui a sses reformadores o mrito de terem superado uma condio de primitivismo original, mas o de terem sustado o asselvajamento e a decadncia moral. Ademais, diz Martius, uns tantos smbolos e instituies jurdicas, como a ordem matrimonial, a iniciao dos rapazes e das jovens, alm de no se coadunarem com o estado geral de barbarismo das tribos, distribuem-se de modo fragmentrio e discontnuo pelo con-tinente afora. Os povos e as famlias lingusticas, em vez de cons-tituirem um todo integrado, dividem-se em pequenos grupos, dis-

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    persos desordenadamente por extensos territrios. Alm disso, a distribuio das lnguas dos dialetos no coincide com a dos ti-pos tnicos, e os prprios idiomas no constituem sistemas firmes e equilibrados, estando, ao contrrio, sujeitos a contnuas transfor-maes. Caracteriza-os a fuso, a dissoluo e a recomposio dos elementos, processos que no podem deixar de ter conseqncias, anti-sociais. E bastaria recordar que. na Amrica se falam mais de 1.300 dialetos, para se ter a impresso viva do longo processo de ciso e desintegrao lingustica e social que se teria operado neste continente. Por fim, so idiomas pobres, mas no com rela-o feitiaria e ao culto dos demnios, donde a suposio de que ste deriva necessriamente de uma sabedoria natural mais ele-vada.

    Em todo caso, trata-se, na opinio de Martius, duma raa fa-dada ao desaparecimento. E como fatores responsveis o etnlogo. aponta, a par do "obscurecimento hereditrio do esprito", a va-rola e outras molstias, a aguardente e ainda a crueldade dos se-nhores de escravos e o despropsito dos trabalhos exigidos. Em. suma: a chegada do homem branco veio acelerar o extermnio. . "Sim, pode-se dizer sem restrio que a civilizao europia mata o americano". Psquica e fisicamente, os mestios de ndios ficam muito aqum dos mestios das outras raas, e a fertilidade das n-dia .s, que nunca foi considervel, est em declnio, mesmo nos lu-gares em que no houve cruzamento com brancos. Sbre a vida sexual e sbre as relaes entre os cnjuges paira a maldio mo-ral: "le, um sonhador indolente, obstinado e bravio; ela, uma coquete leviana e frvola".

    Tudo isso, curiosa combinao de grosseiras generalizaes com fatos em parte muito bem observados, leva o acento duma pro-funda convico, se bem que o cientista se apresse em declarar que no pretende seno formular dvidas e hipteses, a fim de incen-tivar novas pesquisas. Pois bem, as pesquisas mostraram que a tese de Martius no resiste crtica. Dificilmente o ndio ter co-nhecido em su histria um nvel "mais elevado" de moral e de cultura. Por outro lado, as profecias sbre o triste futuro dos abo-rgenes se revelaram lamentvelmente exatas. A passo rpido,.va-mo-nos aproximando do dia em que o ndio brasileiro ocupar o seu lugar no plano das figuras lendrias.

    Dentro do conjunto, a segunda fase da etnologia brasileira, cujo representante principal e quase que nico discutimos de ma-neira bem extensa, se apresenta como perodo de transio. Mas seria injusto no apreciar devidamente o alcance de seu trabalho preparatrio. Coube-lhe descobrir problemas, que sem dvida falta de mtodos adequados no podia resolver, mas que desde logo colocaram a poca subseqente, a das grandes expedies, diante de tarefas positivas e concretas.

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    HL As grandes expedies ao interior do Brasil, de 1884 at o incio da Primeira Guerra Mundial

    No possvel discutir aqui, uma por uma, as expedies ao serto brasileiro realizadas no perodo de 1884 at crca de 1914. Cientistas alemes, como Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Hermann Meyer, Max Schmidt, Theodor Koch-Grnberg, Fritz Krause, mas tambm exploradores de outras nacionalidades visi-taram, nesse perodo, uma infinidade de tribos, enriquecendo de maneira notvel os nossos conhecimentos etnolgicos.

    Tratemos primeiro de Karl von den Steinen, a personalidade mais conhecida e mais importante de tda essa fase. Na preocupa-o de compreender as caractersticas mentais dos povos primiti-vos, Karl von den Steinen seguia a linha de Adolf Bastian, autor da teoria da idia elementar e da idia tnica. Alm disso, o gsto por essa ordem de problemas se ligava sua formao cientfica e profissional de psiquiatra. De tda a obra cientfica de von den Steinen so as contribuies no campo da etno-psicologia as que, na perspectiva atual, se afiguram de maior alcance. E isto tambm na medida em que vieram corrigir as conjeturas e idias do velho Martius, que pintara o aborgene americano como figura sombria e taciturna, no menos decadente na vida psquica do que nas qua-lidades biolgicas.

    O empenho de von den Steinen na observao e interpretao da psique indgena funda-se na teoria evolucionista; que dominou a etnologia at os fins do sculo passado. Em ltima anlise, os graus de evoluo cultural estabelecidos pela especulao terica, para serem apenas confirmados atravs da pesquisa objetiva, no eram seno fases de evoluo mental. Os povos primitivos repre-sentavam os degraus iniciais da escada, e neles se esperava des-cobrir as verdadeiras origens de nossa vida mental e psquica, de nossa lgica, de nossas reaes afetivas. A seu modo, pois, os es-tudos indigenistas, como eram feitos por von den Steinen, j ti-nham em vista um objetivo geral vlido ainda para a etnologia de nossos dias: a investigao dos povos primitivos com o intuito de se alcanar viso mais profunda de nossa prpria natureza humana.

    Como se nos apresenta o ndio atravs das pginas encanta-doras de Karl von den Steinen? J no , em todo caso, a figura tristonha e decadente, que no decorrer de milnios teria cado das alturas de pujante florescimento cultural a lamentvel estado de primitividade secundria, do qual no poderia mais ressurgir. Pro-cura-se-lhe compreender agora a natureza original, v-lo em sua . primitividade primria, como "criptgamo do gnero humano", se-gundo a expresso de Bastian. Quanto mais primitiva a tribo, mais se acreditava corresponder primeira fase de nossa prpria evo-luo cultural. Por ste motivo, a rpida extino dos naturais,

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    causada pelo avano da civilizao europia, incitava os etnlogos a irem procura das poucas tribos ainda isoladas, para fazerem. o levantamento de suas culturas antes que fsse tarde.

    O destino da viagem de Karl von den Steinen eram as nas-centes do Xing, mais ou menos desconhecidas naquele tempo at; mesmo do ponto-de-viSta geogrfico. Aps longa e penosa mar-cha pelo serto matogrossense, foi encontrar no Kulisehu um pa-raiso etnolgico, um sonho transposto para a realidade, autntico paraiso com Ado e Eva ingnuamente ns, entregues a uma exis-tncia bblica. Desde tempos imemoriais, umas tantas tribos, os Bakairi, os Mehinak, os Kustena, os Auet e outros mais, viviam a em estreita unio com a natureza, e pouco sabiam da existncia de sres humanos vestidos.

    E logo se via que eram homens bons. No tinham expresso de grotesca selvageria, nem o arreganho feroz de sres que tives-sem parado em alguma estao intermediria na passagem do ani-mal para o homem. Nem to pouco havia neles o menor indcio de decadncia moral, que se espelhasse por ventura na ruindade de um carter soturno e retrado.. No, eram pacatos e alegres, s vzes mesmo loquazes e folgazes. Tinham um sentimento de pudor, anlogo ao nosso; sentimento que, porm, no se referia nudez, mas ao ato de comer. O ndio tinha vergonha de alimen-tar-se em presena de outros, da mesma forma como o ocidental a teria de passear n por uma rua. De outro lado, o nosso impe-rativo moral de ocultar certas partes do corpo lhes era inteiramente incompreensvel. ': verdade, diz Karl von den Steinen, o assunto. que a ns se apresenta chocante divertia imensamente os Bakair, tanto aos homens como s mulheres; e se um puritano pedante, que a todo custo queira ver resguardada a nossa idia de pudor como patrimnio inato da humanidade, pretendesse encarar essa grande hilariedade como expresso da canalhice duma tribo moralmente degenerada, posso retrucar-lhe nicamente que o riso alegre ds-ses ndios no era nem deslavado, nem to pouco dava a impres-so de encobrir um embarao moral" (3).

    Nem por isso o nosso pesquisador deixa de acentuar que "se-ria ridculo compreend-los mal em sentido rousseaunano, de vez- . que no havia neles a mnima idealidade; no eram seno produto de condies simples e tranqilas, e aos olhos do visitante habi- . tuado ao movimento e luta davam a impresso de um "idlio". Quer se venha dum regato, quer dum rio caudaloso ou do -mar, -infalvel sentir-se o encantamento dum lago tranquilo mais na--. da" (4).

    Lembremos, em seguimento a Karl von den Steinen, um in- - dianista falecido h ano e meio na capital do Paraguai: Max Sch- -

    'Untar den Naturvoelkern Zentralbrasiliens, Berlim, 1894; p. 65. Ibidem, p. 74.

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    midt, que, a partir de 1900, realizou vrias expedies ao Mato-. -Grosso, tanto ao Alto-Xing como ao Alto-Paran. Seus traba-lhos se ligam estreitamente aos do primeiro grande explorador do Xing, embora os intersses tericos s em parte coincidissem com os do antecessor. Schmidt se dedicara anteriormente a estudos ju-rdicos, o que veio influir no rumo de suas pesquisas etnolgicas, fazendo-o atender a problemas at ento pouco investigados com. relao aos naturais do Brasil. verdade que Schmidt no foi o primeiro a estudar as formas do direito entre os ndios. Muito an-tes dele, Martius redigira longo ensaio "Sbre o estado de direito-entre os aborgenes do Brasil", um como que tratado de jurispru-dncia indgena, composto de elementos colhidos pelo autor em su prpria viagem, e de outros respigados nas obras dos antecessores. Martius, porm. tomara a .noo de direito em sentido muito am-plo, fazendo-a coincidir, por assim dizer, com a fundamentao ideal e estrutural da prpria sociedade, e pretendendo, em ltima anlise, apresentar um estudo de sociologia. Por seu turno, Max -Schmidt trata de focalizar a prpria realidade jurdica em suas. vinculaes com a existncia tribal.

    Mais dois setores das culturas indgenas mereceram especial intersse da parte de Max Schmidt: primeiro, a tcnica dos tran-ados e seu papel nas origens do desenho ornamental e, em se-. gundo lugar, a conjuno de fatres materiais e sociais na origem. das diferentes formas de organizao econmica. Em ambos os -domnios a contribuio de Max Schmidt teve importncia tambm. no desenvolvimento da etnologia geral.

    J em sua primeira viagem ao Mato-Grosso, nos anos de 1900 a 1901, Max Schmidt transps, em mais de um sentido, o mbito das cogitaes etnolgicas da poca, investigando problemas que s nestes ltimos dois decnios vieram firmar posio no primeiro plano das pesquisas. Entre les, a aculturao do ndio sob a in-fluncia de elementos da civilizao ocidental. Certo, tambm nes-te ponto Schmidt tivera precursores entre os etnlogos do sculo XIX (Martius e von den Steinen, por exemplo), mas cabe-lhe o mrito de ter sido o primeiro a mostrar, num exemplo definido no. espao e no tempo, as linhas gerais da aculturao e a indicar os setores em que se operam as primeiras mudanas de maior alcance. . O exemplo escolhido foi o das tribos do Alto-Xing nos anos de 1884 a 1901, perodo limitado em que sses grupos receberam a vi-sita sucessiva de cinco expedies alems.

    As viagens etnolgicas ao interior do Brasil eram financiadas,. na maior parte, por museus e outros institutos cientficos. A pa-lavra de ordem era a de salvar o mais que se pudesse, reunindo colees bastante completas da cultura material de tribos ainda no atingidas pela civilizao. Selvcolas que andassem de calas e ca-misa, que usassem armas de fogo em vez de arco e flecha, derru-bassem as rvores com machados de ferro, temperassem os alimen--

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    tos com sal, bebessem cachaa e tivessem aceito mais outras ddi-vas do homem branco, pareciam definitivamente perdidos para a cincia. No se compreendera ainda o intersse cientfico da acul-turao. Da o lema "periculum in mora", que hoje em dia talvez no inquiete os etnlogos na medida de h meio sculo, mas que naquele tempo tinha a vantagem de incitar o ardor dos pesquisa-dores. Entre os mais ativos indianistas dessa gerao, que no re-ceavam privaes nem canseiras para irem s mais longnquas e inspitas regies, onde pudessem observar os naturais em sua pri-mitividade e originalidade, cumpre mencionar ainda a Theodor Koch-Grnberg. Trs grandes expedies ( entre 1898 e 1913) le-varam-no aos sertes do Brasil central e setentrional e a territrios limtrofes da Amrica espanhola. Depois, em 1924, tornou a par-tir, dessa vez em busca das nascentes do Orinoco, mas sucumbiu, vitimado pela malria, muito antes de chegar ao destino da via-gem. Alm de suas obras, deixou grande nmero de pequenos es-tudos particulares, em que trata das caractersticas etnogrficas, lingsticas e antropogeogrficas de muitas tribos. No esfro constante de encarar e interpretar a existncia indgena no ape-nas de um s ponto-de-vista, mas na multiplicidade de suas mani-festaes, refletia-se .um dos traos mais notveis de sua persona-lidade de pesquisador. As suas produes ganharam em amplitude e importncia por terem surgido numa poca em que o mtodo evo-lucionista perdera o domnio absoluto e em que j se considera-vam indispensveis as perspectivas histrica e geogrfica para a compreenso das culturas primitivas.

    IV. Os estudos indianistas do perodo atual e sua ligao com problemas prticos

    Durant todo o sculo XIX e ainda at o incio da primeira guerra mundial, o estudo sistemtico do ndio brasileiro esteve de preferncia em mos de etnlogos europeus, sobretudo alemes, mas nestes ltimos decnios, correspondentes ao quarto perodo, houve mudana radical neste sentido com a participao, cada vez mais ativa, de cientistas brasileiros e tambm norte-americanos nas pes-quisas etnolgicas. Entre os intelectuais do Brasil, que outrora com exceo de uns poucos pioneiros, como Couto de Magalhes e Barbosa Rodrigues pouco se interessavam pelo aborgene bra-sileiro enquanto objeto de cincia, veio formar-se um grupo de etn-logos ativos e competentes.

    transformao decorrente da necessidade de se fazer face a problemas de ordem prtica. O mrito de ter dado impulso deci-sivo pesquisa etnolgica entre os cientistas nacionais cabe ao General Cndido Mariano da Silva Rondon, que h quarenta anos recebeu do govrno federal a incumbncia de fundar o Servio de Proteo aos ndios. Mas j antes disso, ao construir uma linha

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    telegrfica atravs de regies inexploradas do serto matogrossen-.se realizao que o tornou clebre Rondon mandara fazer es-tudos indianistas. Um de seus colaboradores, Roquette-Pinto, es-creveu o belo volume "Rondnia" sbre os aborgenes da Serra do Norte, at ento inteiramente desconhecidos.

    Ao Servio de Proteo aos ndios compete, porm, antes de mais nada, cuidar das boas relaes entre os ndios e os chamados moradores civilizados do interior. Cumpre-lhe, pois, evitar e aco-modar situaes de conflito e impedir, na medida do possvel, a explorao econmica e outras arbitrariedades da parte de fazendei-ros e sitiantes. Com vistas a essa tarefa e baseado em pesquisas etnolgicas realizadas na Seco de Estudos, que conta hoje com a colaborao de especialistas (como Darci Ribeiro), o Servio tem procurado, nos ltimos anos, dirigir e orientar o processo de aculturao do ndio brasileiro. A passagem da primitiva econo-mia comunitria tribal para a economia individualista da nossa ci-vilizao talvez a transformao mais difcil e perigosa em todo o processo aculturativo, passo decisivo, alis, que a maioria das tribos no conseguiu dar e que foi a causa de sua runa.

    Por estranho que parea, no de longa data que se tomou conscincia do grau em que o exame das transformaes que acom-panham o caminho da vida tribal cultura cabocla pode propor-cionar compreenso mais profunda de muitos processos culturais. Para tanto, foi necessrio que se viesse cogitar das aplicaes da etnologia na prtica administrativa. Com essa mudana, os estu-dos indianistas entraram em seu quarto perodo, que o atual.

    Hoje os aborgenes deixaram de nos interessar em primeiro lugar como "filhos da natureza" nos dois significados que a pa-lavra teve nos sculos XVIII e XIX primeiro, em sentido idea-lista: o homem, a qualidade humana, em sua mais natural, genuina e pura expresso; e em segundo lugar, em sentido que talvez se possa chamar de naturalista: grupos tribais que em alto grau de-pendem das condies do ambiente. A nossa preocupao bem diversa: a de compreender as culturas em sua dinmica e de expli-car a maneira pela qual o tipo de personalidade, as instituies so-ciais, o regime econmico e o sistema religioso se integram e en-trosam para constituir um todo funcional. A par disso, procura-mos determinar os fatres que, em situaes de contato intertnico, vm abalar as bases .da configurao cultural, levando esta a des-fazer-se ou ento a reestruturar-se em novas condies de equi-lbrio.

    Da o intersse cada vez maior pelo ndio de calas e camisa, pelo ndio que sacrificou as caractersticas e os valores da orga-nizao tribal em troca dos duvidosos presentes do homem branco. Como vimos, o intersse que sse tipo humano representa para a cincia se liga tambm vida real: existncia de um problema que, hoje mais do que nunca, requer soluo prtica racional, so-

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    luo que se espera encontrar sbre a base de investigao cient-fica. J no segrdo para ningum que os grupos indgenas, uma vez em contato permanente com a civilizao, dificilmente conse-guem manter a sua unidade tribal. E a histria mostrou que, en-tregues a si mesmos, no sobrevivem ento a duas ou trs geraes. Para no desaparecerem, devem integrar-se na vida das popula-es sertanejas, e para isso precisam de medidas de proteo e de auxlio.

    De h muito se evidenciou o rro dos que estabelecem normas prescries rgidas, impondo-as indistintamente administrao

    dos postos e a quaisquer grupos indgenas. Cada tribo se distin-gue por uma personalidade cultural prpria, cuja natureza singular no raro se revela precisamente na atitude e nas reaes em face das coisas novas e estranhas. E a compreenso dessa natureza es-pecfica tarefa de mxima importncia para o indianista mo-derno.

    At hoje, o maior conhecedor dos ndios do Brasil foi Curt Nimuendaj, cujo primitivo nome era Curt Unkel. Durante 40 anos de 1905 at a sua morte, em dezembro de 1945 le se dedicou ao estudo dos nossos aborgenes, convivendo com muitas tribos. Livre de qualquer estreiteza imposta por esta ou aquela teoria, esforou-se logo no primeiro trabalho (5) por decifrar a personalidade cultural de uma determinada tribo, conseguindo, de fato, explicar as relaes profundas entre a estrutura mental e a concepo do mundo entre os ndios Guarani.

    Na superfcie da terra no h, por certo, povo ou tribo a que melhor se aplique do que ao Guarani a palavra evanglica: "O meu reino no dste mundo". roda a vida mental do Guarani converge para o Alm. Desejos de prosperidade econmica, am-bies polticas ou quaisquer outras aspiraes terrenas pouco sig-nificam para le e no o preocupam. O seu ideal de cultura de outra ordem: a vivncia mstica da divindade, que no depende das qualidades ticas do indivduo, mas da disposio espiritual de ouvir a voz da revelao. Essa atitude e sse ideal que lhe determinam a personalidade. E como as aves do cu, que no semeiam nem ceifam, nem recolhem em celeiros, o Guarani vai vi vendo a sua vida, sem preocupar-se com necessidades econmicas que por ventura lhe possam sobrevir. Por sse motivo semente e no por preguia inata, como tantas vzes se afirma, que no

    seduz o trabalho, como ns o entendemos na economia ocidental. ste mundo, afirma o Guarani, no est longe de seu fim, O ca-ptulo 57 do mito tribal registrado por Nimuendaj reza o seguinte: "Nhanderykey est acima de ns (no zenite) , le cuida da terra

    sustenta o suporte da terra. Pois, se o tirar, a terra cair. Hoje

    (5). Die Sagen von der Ersehaffung und Vernielitung der Welt als Grund-lagen der Religion der Apapoeuva-Guarani, in Zeitsehrift fur Ethno-logie, 1913.

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    em dia a terra est velha, a nossa gente no quer mais reprodu-zir-se. Havemos de rever a todos os mortos, cairo as trevas, o morcego descer e todos os que esto sbre a terra ho de mor-rer. A ona azul descer para devorar-nos".- No admira que um povo cuja religio se baseia em mito to apocalptico viva em cons-tante pnico, atordoado pela mania de perseguio e dominado pelo anseio de escapar runa ameaadora, para encontrar ref-gio na "Terra sem Males".

    A Nimuendaj coube . mrito de fazer a anlise cultural no sentido de -pr em relvo o tipo de personalidade do Guarani e de mostrar as suas relaes com a tradio mitica e a vida religiosa tribal. Se o conseguiu, foi porque no teve dvidas em conviver durante anos com os ndios, vivendo a vida dles e maneira d-les. Mais tarde visitou ainda muitas outras tribos, realizando ao todo mais de trinta expedies. Nos ltimos anos de sua vida in-teressou-se especialmente pela organizao social das tribos do grupo J do Brasil setentrional. Veio a falecer numa aldeia dos Tukuna, s margens do Solimes.

    A maioria dos indianistas contemporneos especializados no estudo do aborgene brasileiro, como Charles Wagley, Herbert Baldus, Claude Lvi-Strauss e Jules Henry, se esfora por ligar a anlise psicolgica sociolgica. Alm disso, domina-os a pre-ocupao de explicarem o entrosamento funcional das vrias esfe-ras num todo cultural, com o intuito de caracterizarem o ethos da tribo. O rumo em que 'se desenvolvem as pesquisas parece ser o de uma etnologia "compreensiva", o que por sua vez corresponde a uma tendncia cada vez mais acentuada nas cincias do esprito, em contrapeso talvez ao excesso de especializao.

    Encontramo-nos, portanto, num ponto em que j no se en-caram as culturas aborgenes atravs do prisma de teorias unila-terais. Todo .meio de conhecimento com base metodolgica racio- nal poder integrar a sntese que, pela multiplicidade das perspec-tivas tericas judiciosamente coordenadas, seja capaz de propor-cionar a viso do que certo e verdadeiro. Se a etnologia moderna desenvolver e firmar essa sntese, sem perder-se em estril ecle-ticismo, ela nos permitir discernir o aborgene brasileiro tal qual le se apresenta na realidade.

    Para se compreender o indigena dos nossos dias, cumpre in-vestigar as transformaes de sua vida sob o influxo de homens e de culturas estranhas. Entre os primeiros autores que deram a ste aspecto posio central no conjunto das investigaes est Herbert Baldus, que em diversos trabalhos tratou de pr em relvo os efei-tos da aculturao do selvcola sbre a estrutura da personalidade. Entre os Bororo do Mato-Grosso conheceu um ndio, cujo destino exemplifica de maneira eloqente as conseqncias por vzes de-sastrosas do contato inter-tnico sbre a vida psquica do indiv-duo. Aqule homem, que hoje tem os seus cinqenta e poucos anos

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    de idade, chama-se Tiago Marques Aipobureu. Aipobureu era o seu apelido indgena, e Tiago Marques lhe foi posto pelos padres salesianos. Criana, foi levado escola dos missionrios em Cuia-b, distinguindo-se como bom aluno, e aprendendo vrias lnguas. Cheios de satisfao, os professres o enviaram Europa, onde conheceu as grandes cidades --- Roma, Pars e aos dezessete anos voltou aldeia natal, s margens do Sangradouro, casando-se com uma jovem da tribo, e passando a trabalhar como professor da infncia bororo. Mas o encanto da mata virgem e as aventu-ras da caa o atraiam mais do que os deveres de mestre-escola. Cdo se desaveio com os missionrios, que o acusavam de indo-lente. E quando um dia um dos padres lhe bateu a porta, extin-guiu-se de vez o que nele sobrava do amor civilizao. Desgos-toso, passou a evitar o convvio dos brancos, deixou crescer a ca- beleira e quis voltar a ser ndio em tda a extenso da palavra. Mas no lhe foi possvel. Em seu peito h duas almas, e falta-lhe destreza no uso de arco e flecha, motivo pelo qual os companheiros de tribo no o prezam. Dizem ser mau caador, preguioso e in-capaz. Triste e isolado, le vive, assim, entre dois mundos, nenhum dos quais lhe pertence (6). Por sentimental que seja, a histria no deixa de indicar os contornos do problema fundamental do ndio brasileiro, pelo me-nos no que respeita sua face scio-psicolgica. Tiago Marques Aipoburu um' dentre muitos. Eu mesmo conheci muitos Tiago Marques no serto brasileiro, pobres representantes de uma gera-o desarraigada e infeliz. Mas para a maior parte de seus filhos e netos o problema j no existir; hp de renunciar tradio pa-terna, deixaro de falar a lngua da tribo e desaparecero no meio da populao mestia do interior. Mais cdo ou mais tarde, todos iro por sse caminho, e por certo no est longe o dia em que nas matas do Brasil no haver mais aborgenes reunidos em comuni-dades distintas e portadores de cultura prpria.

    Diante disto, seria ocioso indagar do carter de atualidade das pesquisas indianistas sbre a aculturao e os aspectos psico--sociais da marginalidade, estudos que ultrapassam o intersse te-rico, vindo atender necessidade de resolver problemas da vida real. Entretanto, para corresponder a tal objetivo, a etnologia, em vez de contentar-se com um ou outro aspecto da aculturao, deve examinar ste processo em tdas as esferas da cultura, em sentido monogrfico. O primeiro trabalho sbre ndios do Brasil com sse objetivo o de Charles Wagley e Eduardo Galvo (7). Os au-tores, dos quais um norte-americano e o outro brasileiro, focali-zaram os processos culturais entre os Tenetehara da 'regio lim-trofe entre o Par e o Maranho, uma das poucas tribos que, a

    (6) . Ensaios de Etnologia Brasileira, So Paulo, 1937. (7). Tho Tenetehara Indians of Brazil A Culture in Transition, publi-

    cado em Nova York, 1949.

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    despeito das profundas influncias a que estiveram expostas, lo-graram manter a sua unidade. Certo, no tocante cultura, os Te-netehara atuais so antes caboclos do que ndios legtimos, mas so-bzevivem corno grupo tribal distinto e organizado. Das pginas de Wagley e Galvo resulta que os Tenetehara conseguiram isso por se aferrarem menos do que outras tribos aos valores da cul-tura tradicional, opondo pouca resistncia aculturao. evi-dente que tal fato, revelado pela investigao cientfica, no po-der doravante ser ignorado pela administrao oficial. A etnolo-gia moderna, como tda a antropologia, tem a pretenso de con-tribuir para a formao do mundo de amanh.

    A ttulo de concluso, convm precisar mais uma vez as qua-tro fases dos estudos sbre o ndio brasileiro:

    perodo colonial, principalmente o sculo XVI, com seus relatos pr-cientficos e de cunho emprico, mas em parte va-liosos, que, despertando a ateno dos intelectuais da Frana, so aproveitados para fundamentar doutrinas de filosofia social e da cultura;

    a primeira metade do sculo XIX, com a obra pioneira de um Martius, dando a primeira sistematizao ao material exis-tente, e indicando rumo pesquisa subseqente;

    a poca das grandes expedies, a partir de 1884, o pe-rodo ureo dos estudos indianistas, com a preocupao fundamen-tal de se obter, atravs da etnologia, uma viso mais clara das condies primordiais do gnero humano;

    a poca' atual, em que, primeiro, se procura a ligao entre teoria e prtica; segundo, se abandonam teorias unilaterais em favor da conjugao de vrios princpios explicativos, e, em terceiro lugar, se adota um universalismo material, atendendo a t-das as esferas da cultura, e encarando a vida tribal em sua tota-lidade, para compreender os aspectos dinmicos e, sobretudo, os processos de transformao.

    Em suma: um progresso que, alm de alargar horizontes te-ricos, veio avivar o senso de realidade.

    EGON SCHADEN Professor de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade

    de So Paulo.