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Grupo de Trabalho: III- Controle Social, Segurança Pública e Direitos Humanos

O estrangeiro e a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985): possibilidades da Justiça

de Transição no ensino jurídico

Camila Soares Lippi – Universidade Federal do Amapá

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O estrangeiro e a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985): possibilidades da Justiça de

Transição no ensino jurídico

Camila Soares Lippi1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar como os manuais de Direito Internacional Público e de DireitoInternacional Privado tratam a temática “condição jurídica do estrangeiro”. Nosso Estatuto do Estrangeiro (Lei6815/1980) surge em plena ditadura militar, e estabelece, no texto da Lei, que estava deverá ser interpretada eaplicada de acordo com o princípio da “segurança nacional”. Portanto, ainda estamos diante de um resquício daditadura, que trata os estrangeiros como potencial ameaça à segurança nacional, e não como ser humano dotadode direitos. Pretende-se investigar se os manuais problematizam o Estatuto do Estrangeiro, ou se se constituemem mera reprodução da lei e descrição de procedimentos burocráticos nela previstos. Como o ensino jurídico, emvirtude da herança do modelo coimbrão, é baseado no uso de compêndios ou manuais, caso tais obras apenasreproduzam a Lei, sem problematizá-la, estão contribuindo para a formação de profissionais do Direito quepodem reproduzir a lei, sem questioná-la, o que pode ocasionar em violações de direitos humanos dosestrangeiros por parte desses mesmos profissionais no futuro.

Palavras-chave: direitos humanos, estrangeiros, Justiça de Transição, ensino jurídico.

1. Introdução

Este trabalho tem por objetivo analisar como os manuais de Direito Internacional

Público e de Direito Internacional Privado tratam a temática “condição jurídica do estrangeiro

no Brasil”. Nosso Estatuto do Estrangeiro (Lei 6815/1980), lei que rege essa matéria, surge

em plena ditadura militar, e estabelece, no texto da Lei, que estava deverá ser interpretada e

aplicada de acordo com o princípio da “segurança nacional”. Portanto, ainda estamos diante

de um resquício da ditadura, que trata os estrangeiros como potencial ameaça à segurança

nacional, e não como ser humano dotado de direitos. Pretende-se investigar se os manuais

problematizam o Estatuto do Estrangeiro, ou se se constituem em mera reprodução da lei e

descrição de procedimentos burocráticos nela previstos.

Entende-se que pesquisar tais manuais é necessário sobretudo pelo seu impacto na

educação jurídica. Isso porque o ensino do Direito no Brasil ainda é marcado pela tradição

manualística, em que o ensino é feito com base em compêndios ou manuais. Trata-se de uma

herança da tradição coimbrã do ensino jurídico, que consiste na repetição e leitura dos

1 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora de Direito Internacional no curso deRelações Internacionais da Universidade Federal do Amapá. Trabalho financiado pela Universidade Federal do Amapá, através do Edital nº 30/2015/PROGRAD.

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manuais.2 Tal fato ainda foi agravado pela reforma universitária de 1968, em que o que Paulo

Freira chama de “educação bancária” atinge o ensino universitário, incluídos aí os cursos

jurídicos3. Se os manuais são amplamente utilizados no ensino jurídico, é importante

problematizá-los, questionar a sub-representação das experiências de violações de direitos

humanos dos estrangeiros no período da ditadura militar, amparadas na ideologia da

“segurança nacional”, que está presente até hoje na nossa legislação.

Este artigo, num primeiro momento, trata da necessidade de se transversalizar Justiça

de Transição ao tratar da condição jurídica dos estrangeiros no Brasil. Por isso, faz-se uma

análise de elementos da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) presentes nessa legislação.

Em seguida, aborda-se a contribuição de Justiça de Transição como campo de estudo para

compreender a como esses resquícios da ditadura implicam num tratamento desumano ao

estrangeiro até hoje. Finalmente, são analisados os manuais de Direito Internacional, tanto

Público quanto Privado, para analisar qual é a abordagem deles em relação à matéria

“condição jurídica do estrangeiro”, e seus impactos sobre o ensino jurídico. É importante

destacar que os manuais aqui são utilizados como fontes primárias de pesquisa, como objeto

de análise, e não como fontes secundárias de pesquisa.

2. Os estrangeiros e a necessidade de se tranversalizar a Justiça de Transição

A Lei 6815/1980, também conhecida como Estatuto do Estrangeiro, nossa legislação

migratória em vigor, surgiu no fim da ditadura militar, já na fase da abertura “lenta, gradual e

segura”, anunciada pelo então Presidente da República, o General Ernesto Geisel. Não é

legislação migratória mais rigorosa de nossa história (normas ainda mais rígidas foram

2SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini. O Ensino jurídico como reprodutor do paradigma dogmáticoda ciência do Direito, p. 7. Disponível em:http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/manaus/ensino_jur_samyra_n_sanches.pdf. Acesso em2/12/2015.3COSTA, Alexandre Bernardino, AGUIAR, Roberto. O legado da ditadura para a educação jurídica brasileira.SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et al (orgs.). Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina.Brasília: UnB; MJ, 2015. (Série O Direito Achado na Rua, vol. 7), p. 406-409.

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adotadas ainda no começo da ditadura, em 1969, um ano após o AI-5, como os Decretos-Lei

nº 417 e 9414), mas traz resquícios do período ditatorial.

Exemplo disso é o fato de, logo no começo da Lei, em seu art. 2º, estabelece-se que

“Na aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional [grifo nosso]

[...]”.5 Da mesma forma, seu art. 65, caput, que trata da expulsão de estrangeiros do território

nacional, afirma que

“É passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquerforma, atentar contra a segurança nacional [grifonosso], a ordem política ou social, a tranqüilidade [sic]ou moralidade pública e a economia popular, ou cujoprocedimento o torne nocivo à conveniência e aosinteresses nacionais”. 6

Algo a se notar é a recorrência do termo “segurança nacional” na Lei 6815. Em

nenhum lugar dentro da legislação define-se o que vem a ser “segurança nacional”, havendo,

portanto, ampla margem de discricionariedade do Estado para a expulsão de estrangeiros, já

que é passível de expulsão do território nacional o estrangeiro que contra ela atentar.

Além disso, cabe chamar a atenção o art. 107 da mesma Lei, segundo o qual:

“Art. 107. O estrangeiro admitido no território nacionalnão pode exercer atividade de natureza política, nem seimiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicosdo Brasil, sendo-lhe especialmente vedado:I - organizar, criar ou manter sociedade ou quaisquerentidades de caráter político, ainda que tenham por fimapenas a propaganda ou a difusão, exclusivamente entrecompatriotas, de idéias, programas ou normas de açãode partidos políticos do país de origem;II - exercer ação individual, junto a compatriotas ounão, no sentido de obter, mediante coação ouconstrangimento de qualquer natureza, adesão a idéias,programas ou normas de ação de partidos ou facçõespolíticas de qualquer país;III - organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniõesde qualquer natureza, ou deles participar, com os fins aque se referem os itens I e II deste artigo”.7

4CLARO, Carolina de Abreu Batista. As migrações internacionais no Brasil sob uma perspectiva jurídica: análiseda legislação brasileira sobre estrangeiros entre os séculos XIX e XXI. Cadernos OBMigra, v. 1, nº 1, 2015, p.140-1425BRASIL. Lei 6815, 1980. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6815.htm. Acesso em18/04/2016.6Idem.7Idem.

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O que se percebe aqui é a absoluta vedação da participação política do Estrangeiro, e

aí não somente o direito ao voto, mas também o direito a professar suas crenças políticas, e de

participar em manifestações a favor delas. Nota-se, portanto, por todos esses aspectos,

resquícios, na legislação, da chamada Doutrina da Segurança Nacional.

A DSN surge no contexto da Guerra Fria, como reação dos Estados Unidos a

governos nacionalistas na América Latina, que vinham implementando políticas como as de

reforma agrária (inclusive sobre propriedades rurais de empresas estadunidenses nesses

Estados latino-americanos), e ganha mais força após o êxito da Revolução Cubana, em 1959.

A partir daí, os Estados Unidos adotam como estratégia em sua política externa a contra-

insurreição, a guerra contrarrevolucionária. Essa guerra contrarrevolucionária tinha como

estratégia a combinação de investimentos em esforços militares e programas de ação cívica no

combate aos problemas sociais do Terceiro Mundo, que, para os formuladores dessa

estratégia, seriam o principal motivo e atração do ideário comunista. 8

Com o objetivo de levar a cabo a contra-insurreição, fundou-se, nos Estados Unidos,

em 1946, a National War College, vinculada diretamente ao Pentágono, que teve como

objetivo a criação de uma doutrina própria (a DSN) para estudar e aperfeiçoar a política

externa estadunidense no contexto da Guerra Fria. As escolas militares na América Latina,

dentre elas a Escola Superior de Guerra (ESG), no Brasil, foram formuladas segundo a

inspiração dessa escola de guerra, e militares desses Estados foram treinados na Escola do

Caribe do Exército dos Estados Unidos, no Panamá, na zona do Canal. Devido a esses fatores,

a DSN foi a ideologia disseminada nessas instituições, e que, portanto, foi a ideologia que

balizou a ditadura militar brasileira.9

A Doutrina da Segurança Nacional tem como pressuposto a flexibilização do

conceito de comunismo, sua amplitude, base ideológica para fundamentar um dos conceitos-

chave da DSN: o do “inimigo interno”. O comunismo não seria uma agressão externa, mas

estaria insuflado dentro das fronteiras nacionais de cada país. A indefinição desse “inimigo

interno” é que legitima a permanente militarização e as medidas repressivas que são adotadas

pelos governos ditatoriais que nasceram inspirados por essa Doutrina. E para se defender

desse inimigo, não haveria diferenciação entre violência preventiva e violência repressiva.8FERNANDES, Ananda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela Escola Superior deGuerra no Brasil: a geopolítica de Golbery do Couto e Silva. Antíteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, p. 834-837.9Idem.

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Inclusive, os golpes de Estado ocorridos no Cone Sul na segunda metade do século XX foram

justificados como golpes contrainsurgentes, preventivos, com a justificativa de impedir que o

comunismo se instalasse. Esse “inimigo interno” pode estar localizado em outro Estado, assim

como o “inimigo interno” de outro Estado também precisa ser combatido também pelo país

que o abriga.

“Na concepção de 'fronteiras ideológicas', diante daameaça e da expansão do comunismo para o “MundoLivre”, as fronteiras territoriais e geográficas nãoestavam mais em questão. Elas poderiam serultrapassadas, visto que não havia mais soberanianacional a ser respeitada quando os valores dacivilização democrática e cristã estivessem sob ameaça.Assim, o que importava era a ideologia vigente nogoverno em questão ou se havia algumgrupo/movimento que pudesse desestabilizar o governo.Desse modo, na lógica da DSN, invasões, interferênciasem países considerados de perfil “comunista” ouameaçados por ele seriam consideradas naturais, a fimde manter sua segurança interna”.10

É nesse contexto em que estrangeiros passam a ser vistos como “inimigos”

potenciais por nosso Estado, cuja ditadura civil-militar foi fortemente inspirada pela DSN.

Dessa forma surgem, num primeiro momento, os Decretos-Lei nº 417 e 941, em 1969, e, já no

contexto de abertura política controlada pela ditadura militar, o Estatuto do Estrangeiro. Em

ambos, o estrangeiro é visto como potencial “inimigo”, passível de ser retirado do nosso

território se atentar contra a “segurança nacional”, proibido de manifestar posicionamentos

político-partidários.

Por isso, a noção de Justiça de Transição pode ser extremamente útil para

problematizar a nossa legislação vigente sobre o estrangeiro. Justiça de Transição é uma

terminologia que caracteriza tanto um conjunto de políticas públicas quanto um campo de

estudos científicos, ambos marcados por uma interdisciplinaridade intensa. Especificamente

no campo das políticas públicas, essa terminologia se refere a um conjunto de mecanismos e

processos, políticos e judiciais, utilizados por sociedades em conflito ou pós-conflito para

lidar com seu passado de autoritarismo e de violações em massa dos direitos humanos. A

Justiça de Transição, como campo de estudos científicos, busca estudar tais processos.11

10Ibidem, p. 839.11TORELLY, Marcelo. Justiça de Transição: origens e conceito. SOUSA. JUNIOR, José Geraldo de, et al(orgs.). Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina. Brasília: UnB; MJ, 2015. (Série O Direito

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Costumam ser indicadas como as quatro dimensões da Justiça de Transição as

políticas da memória e da verdade, que buscam investigar a verdade e manter viva a memória

desse passado de violações em masse de direitos humanos; as reparações, tanto materiais

(pecuniárias) como simbólicas; a responsabilização dos indivíduos que cometeram graves

violações de direitos humanos no passado autoritário; e as reformas institucionais, que

buscam reformar as instituições responsáveis pelos abusos em massa contra os direitos

humanos, de forma que tais violações cessem. Por isso, diz-se que a Justiça de Transição

adota uma perspectiva transgeracional, no sentido de que é necessário que as gerações atuais e

futuras conheçam o legado de violações em massa de direitos no contexto autoritário para, a

partir do conhecimento desse legado, tomem medidas para que tais abusos não se repitam

nunca mais.12

Transversalizar a noção de Justiça de Transição ao se abordar a temática condição

jurídica do estrangeiro nos traz possibilidade de formar um profissional que não somente sabe

como operar a nossa legislação sobre o estrangeiro, mas também um que seja um crítico dessa

mesma lei. Ao abordar o surgimento da nossa legislação sob a influência da Doutrina da

Segurança Nacional, as violações aos direitos dos estrangeiros que foram causadas por essa

doutrina na época da ditadura, e as que são causadas até hoje13, propicia a formação de um

profissional que, conhecendo o legado de violações dos direitos dos estrangeiros que a

ditadura civil-militar nos deixou, está potencialmente comprometido com a mudança social.

Achado na Rua, vol. 7), p. 146.12Idem; ABRÃO, Paulo; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. Direito à Justiça eReforma das Instituições. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et al (orgs.). Introdução Crítica à Justiça deTransição na América Latina. Brasília: UnB; MJ, 2015. (Série O Direito Achado na Rua, vol. 7), p. 376.13Exemplo das violações aos direitos dos estrangeiros que perduram até hoje, sob o argumento da “segurançanacional”, pode ser visualizado nesta reportagem: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolivianos-contra-o-impeachment-serao-deportados —diz-pf,10000026395, acesso em 18/04/2016. A reportagem trata da recenteameaça de deportação, pela Polícia Federal, de bolivianos contrários ao impeachment da Presidenta da RepúblicaDilma Roussef.

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3. Analisando e discutindo o tratamento da temática “condução jurídica do

estrangeiro no Brasil” nos manuais de Direito Internacional

Apesar de a nossa legislação sobre estrangeiros ter surgido no período da ditadura

militar, e dela trazer resquícios, como a influência da DSN, nota-se que os manuais de Direito

Internacional Público e de Direito Internacional Privado, ao abordarem tais pontos, não

problematizam a nossa legislação como fruto da ideologia da “segurança nacional”, do

inimigo. Foi o que se percebeu em Dolinger, que afirma que “O artigo 107 da Lei nº 6815

veda ao estrangeiro o exercício de atividades de natureza política”14, sem questionar ou buscar

contextualizar historicamente essa proibição num contexto ditatorial. O autor não

problematiza o caráter autoritário desse comando normativo. Muito pelo contrário, ainda

legitima a norma usando como argumento de autoridade os comentários de João Barbalho à

Constituição de 1891 (não são comentários à Constituição de 1988, que, em nosso ponto de

vista, não recepcionou diversos dispositivos do Estatuto do Estrangeiro, e sim a de 1891,

primeira Constituição republicana de nosso país) segundo o qual:

“É evidente que não se advoga, aqui, a proibição aosestrangeiros das discussões puramente doutrinárias ecientíficas sobre matéria política, mas tão somente a dasque entendem com o modo porque se conduz agovernação do Estado, a crítica e oposição aos atos dasautoridades, a propaganda, mesmo moderada e pacífica,contra a ordem política existente, a incitação, mesmoindireta, à desobediência às leis do país, à mudança dasinstituições. Ainda que tudo isso se faça nos termos osmais temperantes e comedidos, seria inépcia tolerá-lo. Ahospitalidade que autorizasse esta imixtão eimpertinência seria mal entendida e nociva, e sobretudoderrogatória do direito em virtude do qual ao cidadão, enão ao forasteiro, é que cabe tal ingerência, tal como alei faculta e pelos meios que ela estabelece, nosnegócios públicos”.15

Ou seja, por esse ponto de vista, citado sem nenhum tipo de questionamento em

Rezek, o estrangeiro não teria direito a se manifestar sobre a vida política do país em greves,

manifestações de rua etc. É preocupante que um livro que seja utilizado para a formação dos

14DOLINGER. Jacob. Direito Internacional Privado: Parte Geral. 9ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.221.15BARBALHO, João, Apud DOLINGER. Jacob. Direito Internacional Privado: Parte Geral. 9ª edição. Rio deJaneiro: Renovar, 2008, p. 223.

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futuros profissionais do Direito defenda tal ponto de vista, pois, assim, contribui-se para a

formação de profissionais questionadores, com a visão de que os direitos humanos devem ser

tratados como seres humanos.

Celso Mello16, Francisco Rezek17, assim, como Hildebranco Accioly, Geraldo Eulálio

do Nascimento e Silva e Paulo Borba Casella18, também não contextualizam historicamente a

aprovação do Estatuto do Estrangeiro, com todos os problemas que ele nos traz até os dias de

hoje. Os textos carregam em si uma preocupação em meramente ensinar a operacionalizar o

Estatuto do Estrangeiro, abordando os tipos de visto e as modalidades de saída compulsória

do estrangeiro do Brasil (expulsão, deportação, extradição). Em nenhum momento, ao tratar

dessas modalidades de saída compulsória, problematizam a presença da DSN no Estatuto do

Estrangeiro, quando coloca que o estrangeiro pode ser expulso por atentar contra a segurança

nacional, sem dizer o que isso significa. E na época da ditadura militar, quando a lei foi

aprovada, atentar contra a segurança nacional podia ser meramente questionar politicamente o

governo. Assim, esses manuais partem de uma suposta neutralidade perigosa ao ensino

jurídico, pois nega uma inspiração claramente autoritária dessa lei. Algumas explicações para

a adoção desse tipo discurso nos manuais de Direito Internacional podem ser encontradas na

seguinte passagem:

“O Direito tem a linguagem do presente, não possuimemória. Não tem passado nem futuro. Diz como ascoisas devem ser, não como as coisas são. Não existecontexto, existe um arranjo linguístico para reger, paracompor ou para obrigar, ou mesmo para traduzir jogos epoderes […]. Por ser monodisciplinar, o Direito distancia-se dorestante da sociedade, sem ver as outras facetas:História, Economia, Política etc. Vive uma contradiçãobásica: é político e nega-se como tal. O Direito nega-sea perceber como ele participa da ordem contextual dasociedade que pretende regular.Esquecendo-se do político e do social e olvidando ascontradições, despreza as ideologias que estãorepresadas em seu interior, acredita que suas normas sãocertas, aplicáveis e adequadas para o que vai regular”.19

16MELLO, Celso D. de Albuquerque Mello. Curso de Direito Internacional Público. 15ª Ed. Rio de Janeiro:Renovar, 2004, p. 1048-1061.17REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 13ª edição, 2ª tiragem. São Paulo:Saraiva, 2011.18ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direitointernacional público. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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O que Costa e Aguiar afirmam ali é que o Direito, ao se afirmar como neutro, represa

as ideologias que estão no seu interior, como a DSN. Ao se afirmar como atemporal, nega as

influências de determinados contextos históricos nele. E os manuais de Direito Internacional

aqui analisados, ao se apresentarem como neutros, negando o caráter político do Direito e,

mais particularmente, negando os efeitos que a DSN tem até hoje sobre o estrangeiro. Além

disso, ao não adotarem uma abordagem interdisciplinar, tais manuais deixam de tratar uma

temática extremamente complexa, como os fluxos migratórios e a vinda de estrangeiros para o

Brasil, na abordagem holística que é necessária para analisar a matéria. Ao não se dar uma

formação multidisciplinar aos discentes de Direito, que dê conta de analisar como os

resquícios da ditadura militar no Estatuto do Estrangeiro contribuem para a desumanização

desse migrante, forma-se, com esses manuais, profissionais que contribuam para dar

continuidade a essas violações no presente.

Todos esses manuais apresenta o que Luis Alberto Warat chama de senso comum

teórico dos juristas. Segundo o autor, esse senso comum caracteriza-se pela “separação dos

conceitos de suas teorias produtoras”20, e que

“permite a constituição de um sistema de verdades, oqual não está vinculado a conteúdos, mas sim, aprocedimentos legitimadores, determinantes para oconsenso social. Este consenso provém de um processode conotações institucionais, que substituem a esfera dosentido conceitual por uma ordem de evovações [sic]controladas, ou seja, estereotipadas. Funda-se, porconseguinte, um processo de apropriação institucionaldos conceitos, cuidadosamente elaborado, para exercitaro poder dos significados”. 21

Em outras palavras, o senso comum teórico dos juristas, portanto, tem como

pressuposto o descolamento dos conceitos dos contextos históricos em que surgiram, sendo

exemplo disso a noção de segurança nacional, da qual tratamos anteriormente. Nos manuais

de Direito Internacional que foram aqui analisados, esta noção aparece descolada do contexto

histórico em que surgiu, a Guerra Fria, e também do período da ditadura militar, período esse

no qual essa noção foi utilizada para legitimar repressão política e violações em massa de

19COSTA, Alexandre Bernardino, AGUIAR, Roberto. O legado da ditadura para a educação jurídica brasileira.SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et al (orgs.). Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina.Brasília: UnB; MJ, 2015. (Série O Direito Achado na Rua, vol. 7), p. 392.

20WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Sequência, Vol. 3, nº 5, 1982, p. 55.21Idem.

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direitos humanos, inclusive sobre os estrangeiros que, se alguma forma, representavam

qualquer coisa que lembrasse o comunismo (ainda que não fossem comunistas).

4) Conclusões

Este artigo teve como objetivo analisar os manuais de Direito Internacional, mais

especificamente a forma como abordam o tema “condição jurídica do estrangeiro no Brasil”

tem sido tratado por esses manuais. Num primeiro momento do trabalho, analisou-se como o

Estatuto do Estrangeiro, aprovado no final da ditadura, guarda ainda fortes ranços daquele

período, com clara influência da DSN. Justamente por isso, desumaniza o estrangeiro,

tratando-o não como um ser humano, dotado de direitos, e sim como problema de segurança

nacional, potencial ameaça ao Estado. Logo na sequência foi analisada a contribuição que os

estudos de Justiça de Transição tem para essa temática.

Num segundo momento, foram analisados os manuais de Direito Internacional. O

que se percebeu, em todos os manuais analisados, e que eles partem de uma perspectiva

aparente neutra, asséptica, do Direito Internacional. Esses manuais assumem uma neutralidade

que o Direito (e, aqui, mais especificamente, a Lei 6815) não tem, pois o Estatuto do

Estrangeiro tem como base a DSN, e, com ela, as ideias de “inimigo interno” e “fronteiras

ideológicas”. Portanto, ao não questionarem as origens autoritárias da Lei, e a forma como

esse autoritarismo ainda se faz presente em sua interpretação e aplicação até os dias de hoje,

tais manuais não contribuem para formar profissionais mais humanos no tratamento aos

estrangeiros. Portanto, nesse aspecto, o ensino jurídico deve se reinventar: ou os manuais são

redimensionados para que seja suprido essa problema, ou abandona-se o manualismo. Há

artigos de qualidade publicados em periódicos, ou como capítulos de livros, que

problematizam a Lei 6815, alertando sobre suas origens ditatoriais, e sobre a forma como

essas origens ditatoriais se fazem presentes até hoje.

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