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O Estado como proprietário de televisão no Brasil Suzy dos Santos & Luiz Felipe Ferreira Stevanim Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil E-mail: [email protected] , [email protected] As duas faces do Estado na comunicação brasileira H Á alguns anos teve ampla visibilidade uma longa batalha entre a TV pú- blica britânica, a BBC, e o primeiro-ministro Tony Blair. Segundo re- portagem exibida no programa de rádio Today, o relatório governamental so- bre a existência de armas de destruição em massa no Iraque, publicado em setembro de 2002, trazia dados propositalmente exagerados. Do outro lado, o Governo acusou a BBC de ser parcial e não investigar corretamente a infor- mação. O caso acabou envolvendo o suicídio da fonte da BBC, após a divulgação de seu nome pelo Governo, e um inquérito público no qual o relatório do juiz, Lord Brian Hutton, absolveu o Governo pela responsabilidade no suicídio e condenou a BBC por ter divulgado uma informação com base em única fonte. O conflito entre Governo e BBC abalou a imagem das duas instituições e cau- sou as demissões de altos funcionários da companhia pública de radiodifusão e da assessoria de imprensa do Primeiro-Ministro. Desde a divulgação, em fevereiro de 2003 pelo Channel 4, das comprovações de plágio no dossiê do serviço de inteligência britânico até a divulgação do ‘relatório Hutton’, em 28 de janeiro de 2004, a polêmica tem servido de pano de fundo para nova discussão sobre a condução e a manutenção da independência das empresas públicas de radiodifusão. Em um momento em que o governo brasileiro começa a executar o plano de uma TV estatal fortalecida, o debate sobre as condições de independência nas emissoras estatais existentes pode jogar alguma luz acerca desse processo. Na história da televisão brasileira nem há episódio onde uma emissora educa- tiva tenha questionado com tanta intensidade o Estado nem se nota vivência, em qualquer época, de debate amplo sobre a própria televisão. Murilo César Ramos aponta a ausência de visibilidade no cenário televisivo sobre as ques- Estudos em Comunicação nº7 - Volume 2, 85-107 Maio de 2010

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O Estado como proprietário de televisão no Brasil

Suzy dos Santos & Luiz Felipe Ferreira StevanimUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

E-mail: [email protected], [email protected]

As duas faces do Estado na comunicação brasileira

HÁ alguns anos teve ampla visibilidade uma longa batalha entre a TV pú-blica britânica, a BBC, e o primeiro-ministro Tony Blair. Segundo re-

portagem exibida no programa de rádio Today, o relatório governamental so-bre a existência de armas de destruição em massa no Iraque, publicado emsetembro de 2002, trazia dados propositalmente exagerados. Do outro lado, oGoverno acusou a BBC de ser parcial e não investigar corretamente a infor-mação.

O caso acabou envolvendo o suicídio da fonte da BBC, após a divulgaçãode seu nome pelo Governo, e um inquérito público no qual o relatório do juiz,Lord Brian Hutton, absolveu o Governo pela responsabilidade no suicídio econdenou a BBC por ter divulgado uma informação com base em única fonte.O conflito entre Governo e BBC abalou a imagem das duas instituições e cau-sou as demissões de altos funcionários da companhia pública de radiodifusãoe da assessoria de imprensa do Primeiro-Ministro. Desde a divulgação, emfevereiro de 2003 pelo Channel 4, das comprovações de plágio no dossiê doserviço de inteligência britânico até a divulgação do ‘relatório Hutton’, em28 de janeiro de 2004, a polêmica tem servido de pano de fundo para novadiscussão sobre a condução e a manutenção da independência das empresaspúblicas de radiodifusão.

Em um momento em que o governo brasileiro começa a executar o planode uma TV estatal fortalecida, o debate sobre as condições de independêncianas emissoras estatais existentes pode jogar alguma luz acerca desse processo.Na história da televisão brasileira nem há episódio onde uma emissora educa-tiva tenha questionado com tanta intensidade o Estado nem se nota vivência,em qualquer época, de debate amplo sobre a própria televisão. Murilo CésarRamos aponta a ausência de visibilidade no cenário televisivo sobre as ques-

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tões relativas ao próprio negócio como uma barreira à prática de cidadania nopaís. Em depoimento à Comissão Especial do Senado, “Destinada a Analisara Programação de Rádio e TV, no País”1, Ramos afirmava que:

Hoje ainda, tal qual no século XIX, nosso liberalismo estabelece um limiteclaro para seu avanço democrático: o limite da escravidão. Lá, o povo eraprivado da sua liberdade no sentido mais absoluto; aqui, a privação, aindaque relativa, pode ser quase tão cruel, pois um homem privado da infor-mação continua a ser, de algum modo, escravo, pois escravo é todo aqueleque não pode se apresentar diante do outro como verdadeiro cidadão. Ecidadania não há sem acesso à informação. Inclusive, e principalmente, in-formação sobre os interesses e o funcionamento dos meios de comunicação.Pois eles, constituidores principais da esfera pública contemporânea, têm odever de estar, juntamente com as organizações estatais – e eu friso – en-tre as mais públicas, as mais transparentes, de todas as instituições sociais.(Simon, 1998, p. 53)

O exemplo mais próximo de programação televisiva como a requeridapelo autor é o Observatório da Imprensa exibido pela Rede Pública de Te-levisão, que integra as emissoras públicas, estatais e privadas sem carátercomercial. O próprio programa, porém, traduziu recentemente a expressivadependência da televisão pública às índoles políticas locais e regionais.

Em fevereiro de 2001, o apresentador do programa, Alberto Dines, cance-lou a edição do programa que entrevistaria João Carlos Teixeira Gomes, autorde um livro-denúncia contra o senador, falecido em julho de 2007, AntônioCarlos Magalhães2. O jornalista alegou, dentre outros motivos, que a exi-bição do programa poderia ser usada para prejudicar o então presidente daTVE-Rede Brasil, Fernando Barbosa Lima. Nas palavras de Dines:

a TVE tem dono, é do governo federal, embora o projeto em curso sejaconvertê-la em rede pública. O Executivo paga e manda [...] E o governofederal vive uma crise política protagonizada justamente pelo senador ACM(teoricamente aliado e, portanto, “sócio” da TVE). Acresce que dos novecomentaristas políticos convidados para participar do programa, apenas um

1Criada pelo Requerimento nº 470, de 1995, a Comissão elaborou um vasto relatório con-tendo proposições para o setor.

2Intitulado Memória das Trevas: uma devassa na vida de Antônio Carlos Magalhães, o livrofoi lançado em janeiro de 2001, pela Geração Editorial.

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aceitou, Tales Faria, da IstoÉ em Brasília, ele mesmo uma vítima das per-seguições de ACM. Os outros oito recusaram sob os mais variados pretex-tos, o que evidentemente eliminaria qualquer possibilidade de isenção comuma saraivada de críticas ao senador durante uma hora de programa. [...]Acresce ainda que o programa coincidiria com o início da gestão do novopresidente da TVE, o jornalista Fernando Barbosa Lima, uma das grandesfiguras do telejornalismo brasileiro, um dos poucos – talvez o único – ca-pazes de tirar a televisão educativa da crise em que se encontra. Mais: aTVE da Bahia (um feudo do senador ACM) ao longo daquela terça-feiradeu sucessivos indícios de que não retransmitiria o ‘Observatório’, criandoum “imbróglio” político que respingaria no presidente recém-empossado.(Dines, 2001, [Em linha])

Ampliando o recurso figurado de Dines, é possível alegar que, além de‘sócio’ da TVE, o senador Antonio Carlos Magalhães era na época ‘propri-etário’ também da afiliada regional da emissora na Bahia. A TV Educativaintegra o IRDEB – Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia, vinculado àSecretaria de Cultura e Turismo do Estado, e sua programação foi fortementeinfluenciada pelo Senador nos longos períodos em que seus aliados estiveramnos cargos centrais do governo estadual. No mesmo 2001 em que ocorreu asuspensão da entrevista no Observatório da Imprensa, a TV educativa baianadeixou de retransmitir outros dois programas que continham acusações contraAntônio Carlos Magalhães:

o programa Opinião Brasil, em 24 de janeiro, com uma entrevista doautor de Memória das Trevas; e,

o programa Vitrine, em junho, quando transmitia uma entrevista ao vivocom Andrei Meireles, o jornalista da revista Istoé co-autor da reporta-gem que continha a declaração do Senador sobre sua participação emuma violação do painel de votos do Senado.

Nos dois episódios, a justificativa dada pela TV Educativa da Bahia foia de que problemas técnicos tiraram o sinal do ar. Como não há, no país, anecessária autocrítica do setor nem políticas públicas que incluam o controledo conteúdo transmitido pelas estações educativas, os episódios de atrelagemda TV Educativa a uma elite política regional foi pouco questionado. Demaneira adversa à ideia de TV pública independente, ainda são escassas no

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país as estações públicas que não estão diretamente condicionadas ao aparatoestatal.

Tanto o rádio quanto, posteriormente, a televisão, tiveram papel funda-mental não apenas na criação de uma indústria totalmente nova, a IndústriaCultural, como também na divulgação da convicção de que era indissolúvel ocasamento entre eficiência tecnológica e os valores morais de justiça, igual-dade e bem público (Mosco, 1996, p. 34). No entanto, esse casamento, porser ‘arranjado’, não reflete a felicidade ‘até que a morte os separe’:

Sempre que o acesso às comunicações e aos recursos de informação ne-cessários à cidadania plena depende do poder de compra (como expressodiretamente através dos pagamentos de clientes ou indiretamente atravésda distribuição desigual de subsídios publicitários à produção), desigualda-des substanciais são geradas a ponto de minar a universalidade nominal dacidadania. (Murdock; Golding, 1997b, p.104, tradução nossa3)

Os serviços de telecomunicações, no que se refere ao provimento de con-teúdo (radiodifusão) e ao tráfego de informações (telefonia/transmissão dedados), cresceram e foram regulados sob lógicas e instâncias normativas dis-tintas (Garnham, 1990; 1996; Richeri, 1995). As diferentes naturezas dosserviços fizeram com que a telefonia fosse regulada prioritariamente em re-lação à distribuição/transporte de informações e a radiodifusão em relação aoconteúdo.

Os serviços de telefonia e transmissão de dados se consagraram histori-camente como monopólio estatal, exceto nos EUA, e sua estrutura regulatóriafoi desenvolvida em relação à estrutura física, com base em três princípiosgenéricos:

acesso universal (common carriage);3Trecho original: “Whenever access to the communications and information resources

required for full citizenship depends upon purchasing power (as expressed directly throughcustomer payments or indirectly through the unequal distribution of advertising subsidies toproduction), substantial inequalities are generated that undermine the nominal universality ofcitizenship.” A referência da primeira publicação do texto é: MURDOCK, G.; GOLDING,P. (1989). Information poverty and political inequality: citizenship in the Age of PrivatizedCommunications. Journal of Communication. n. 39, v. 3. p. 180-195. Utilizamos aqui aversão apresentada no segundo volume da coletânea The Political Economy of Media, editada,em 1997, pelos mesmos autores. p. 100-115.

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interconexão; e,

controle de preços (tarifas não discriminatórias).

Encarado como questão estratégica nas políticas de desenvolvimento doséculo XX, o controle desses serviços era regido especialmente por um enfo-que geopolítico e de segurança do Estado. O conteúdo das transmissões eraconsiderado uma transação privada e jamais foi controlado, salvo em períodosde guerra ou convulsão social.

Na radiodifusão, tanto a distribuição quanto o conteúdo eram fortementecontrolados pelos Estados, fossem nos modelos público, estatal ou comercial.Essa regulação incluía critérios culturais e econômicos, além dos políticos, es-tando baseada em princípios diversos das telecomunicações e mais próximosà lógica aplicada anteriormente à imprensa.

Como sustenta Othon Jambeiro:

Histórica e universalmente, os sistemas regulatórios desenvolvidos para go-vernar a indústria da TV têm derivado diretamente dos instrumentos legaise aparatos burocráticos que os estados-nações criaram para tratar com aImprensa. Na medida em que novas tecnologias deram origem a novosmeios de comunicação de massa - o cinema, depois o rádio, em seguida aTV - aqueles instrumentos e aparatos foram consequentemente adaptados,muitas vezes para permitir que se pudesse continuar a policiar e controlara mídia. Os sistemas regulatórios evoluíram em seguida para evitar danosmorais, regular a relação trabalhista entre empregados e proprietários dosmeios, prevenir excessiva concentração de poder, licenciar frequências derádio e TV, e - particularmente nas democracias liberais da Europa oci-dental e nos Estados Unidos - garantir formas de competição econômicasuficiente para frustrar o estabelecimento de monopólios. (1997, p. 148)

Apesar das distinções no mercado e na natureza da regulação, esses servi-ços usualmente estão incluídos dentro de um setor único, genericamente cha-mado de comunicações, no qual o Estado assume as funções de proprietário,promotor ou regulador. Ainda segundo Jambeiro,

Ele é Estado Proprietário, no que se refere, por exemplo, a bibliotecas, cen-tros de documentação, ao espectro eletromagnético e às emissoras de rádioe TV que explora diretamente. É também Estado Promotor, porque traçaas estratégias públicas para o desenvolvimento do setor, faz inversões de

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infra-estrutura, e concede incentivos e subvenções. E, finalmente, é EstadoRegulador, na sua função de fixar regras claras de instalação e operação,que eliminem as incertezas e desequilíbrios. (Jambeiro, 2000, p. 23)

Embora seja pouco discutida a atuação estatal no cenário brasileiro de ra-diodifusão, no caso da televisão, a participação da União, dos Estados, doDistrito Federal e dos Municípios como proprietários, tal qual definido porJambeiro (2000), é parcela considerável da distribuição de programação tele-visiva. É possível dividir essa atuação em duas funções. Uma primeira emque o Estado atua como produtor, gerando programação para canais especí-ficos e, uma segunda, em que atua apenas como distribuidor, retransmitindoprogramação das redes já existentes em localidades de difícil acesso.

“Síndrome de Estocolmo” das TVs Estatais: os conflitosno Estado Produtor4

Não raro se ouve de dirigentes de TVs estatais queixas sobre a atuaçãodos governos frente às instituições de radiodifusão. Tão recorrente quanto aqueixa é a exiguidade das situações onde o jornalismo das estatais cumpre seupapel de watchdog alertando os telespectadores quanto aos abusos dos podereslocais, regionais ou nacionais. Essa corriqueira relação de amor e ódio temancestralidade na Rádio Nacional de Getúlio Vargas, nos anos 30, e berço nosgovernos militares, do período posterior a 1964. A tentativa de estabeleceruma rede estatal nacional de televisão educativa encontrou no próprio Estadoseu maior complicador. A infraestrutura de telecomunicações possibilitavatecnicamente a constituição dessas redes. Por outro lado, como dependiamdos aparatos estatais, esses canais estiveram sempre submetidos às injunçõespolíticas e econômicas dos poderes onde estavam localizados.

Apesar de ser ator preferencial na expedição de outorgas para a prestaçãode serviços de radiodifusão, a participação do Estado como produtor terminoupor ser pouco expressiva e fragmentada. Como mencionado anteriormente, amaioria das geradoras federais e estaduais se diferencia da ideia de TV Pú-blica como instituições independentes dos governos e do mercado tanto na

4A Síndrome de Estocolmo é um estado psicológico que se desenvolve em vítimas de se-questro, no qual a vítima inicia um processo de identificação com o agressor para tentar cativarsua simpatia.

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forma de controle quanto no financiamento. Juridicamente impedidas de vei-cular publicidade, essas emissoras dependem exclusivamente do aparato esta-tal para a sua sobrevivência. No entanto, as experiências das televisões esta-duais apresentam alguns casos de programação com esforço de se desprenderda influência dos governos.

A principal exceção ao controle direto do Estado é a Fundação Padre An-chieta - Centro Paulista de Rádio e Televisão Educativa, gestora da TV Culturade São Paulo. A TV Cultura possui uma estrutura administrativa desvincu-lada dos poderes executivos nacional, estadual ou municipal. Não tendo seusmembros indicados pelo poder público, o Conselho Curador da Fundação Pa-dre Anchieta é composto por 47 conselheiros assim distribuídos, segundo aredação do Estatuto de 2005: 20 membros natos, nas pessoas de representan-tes de instituições educativas e culturais públicas e privadas, cujos mandatossão coincidentes ao período em que os titulares permanecem nos cargos; trêsmembros vitalícios, conforme estabelecido pela fundadora da instituição, Re-nata Crespi da Silva Prado; 23 membros eletivos, indicados pelo próprio Con-selho, sendo obrigatória a renovação anual de um terço dos membros, commandato de três anos reelegível por igual período; um representante dos fun-cionários da Fundação, eleito em votação direta e secreta (Fundação PadreAnchieta, [Em linha]).

Criada em 1967, a instituição gestora da TV Cultura já nasceu com admi-nistração independente do governo estadual, inspirada nos moldes da BBC.A contradição na implantação do modelo de TV pública está exatamente noperíodo dessa criação. Uma TV pública formada no auge do autoritarismomilitar não poderia ser totalmente independente do Estado. Assim, a depen-dência direta das verbas públicas fez com que a TV Cultura estivesse sujeitaaos ‘humores’ dos governos em questão, tal qual nas emissoras estatais.

Por ser administrada por um conselho que inclui diversas representaçõesda sociedade, a TV Cultura não pode ser incluída no rol das fundações pri-vadas que vêm ganhando espaço, nos últimos anos, nem no das instituiçõesestatais de radiodifusão. Por outro lado, por não traduzir um modelo de fi-nanciamento vinculado a normas que proporcionem a sua independência emrelação ao Estado, a TV Cultura também não se insere nas definições de radi-odifusão pública. Ela configura uma espécie singular de fronteira entre essasclassificações.

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Dentre as televisões tradicionalmente definidas como estatais, dois exem-plos que também se aproximam da ideia de gestão pública são a TVE-RS -Fundação Cultural Piratini, e a Rede Minas de Televisão - Fundação TV Mi-nas Cultural e Educativa. Ambas estão vinculadas às Secretarias de Estadoda Cultura e condicionadas à indicação de membros dos Conselhos Curado-res pelos governadores dos estados onde se inscrevem. Contudo, os estatutosdessas fundações trazem dispositivos que buscam assegurar a independênciaideológica. Um primeiro dispositivo que as distingue das demais empresasestatais de radiodifusão é a presença de representantes de esferas distintas daestatal, como instituições de ensino e entidades de classe, na composição dosconselhos gestores, tal qual ocorre na Fundação Padre Anchieta.

Outro dispositivo é relativo à coibição do uso político-partidário das emis-soras. O estatuto da Fundação Piratini, definido pela Lei Nº 10.535, de 08 deagosto de 1995, estabelece a promoção da liberdade de expressão e a proibiçãoda censura (Art. 3º §§ 3º e 4º). O Artigo sexto, parágrafo único, garante queos serviços da Fundação “funcionarão de modo a salvaguardar sua indepen-dência perante o Governo Estadual e demais Poderes Públicos, e assegurara possibilidade de expressão e confronto de diversas correntes de opinião”(TVE, 2007 online). Um pouco menos elaborado, mas igualmente incisivo,o Estatuto da Fundação TV Minas, aprovado pelo Decreto 53.502, de 30 demarço de 1994, proíbe à Fundação “utilizar, sob qualquer forma, a programa-ção de televisão cultural ou educativa com fins político-partidários ou divulgarideias que incentivem preconceitos de raça, classe ou religião” (Rede Minas,2007 online.

A transmissão de conteúdo distinto do comercial também não está ga-rantida nas TVs estatais brasileiras. De tempos em tempos, ouve-se falar dacomercialização de espaços publicitários em algumas emissoras ou de pro-gramas sensacionalistas em outras. Também a proximidade entre Estado emercado de televisão comercial é tradição no Brasil. Mas, no Pará, a rara si-tuação de cessão da estrutura estatal de radiodifusão para um canal comercialchama atenção.

A Funtelpa – Fundação de Telecomunicações do Pará, vinculada à Se-cretaria Especial de Promoção Social do Estado, alugou, por pelo menos 25anos, sua rede de retransmissoras no estado para a TV Liberal, retransmis-

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sora da Rede Globo. A Folha de São Paulo e a Istoé5 mostraram funçõesdistintas no acordo. Enquanto a coluna de Elvira Lobato, publicada no jornaldiário, afirmou que o acordo consistia em uma permuta pela qual o governorecebia 30 minutos mensais de espaço publicitário na grade da TV Liberal(LOBATO, 2000), a revista Istoé dizia que a retransmissora da Rede Globorecebeu R$ 200 mil para ceder sua programação às retransmissoras estatais(ISTOÉ, 1997). Embora com uma diferença de três anos entre si, as duas pu-blicações tratam do mesmo contrato. A permuta, revelada por Elvira Lobato,pode ser confirmada no Balanço de Promoção Social da Secretaria da Fazendado Pará, de 1998, onde se afirma que

A Funtelpa é responsável também pela implantação e funcionamento doSistema Estadual de Repetidoras e Retransmissoras de Sinais de Televisão– SIERT em todo o Estado, podendo para tal realizá-lo diretamente ou pordelegação, assim como, por força de convênios passou a executar a despesacom pagamento de publicidade e publicações do governo estadual.

Através de repetidoras de televisão, a Funtelpa exerce a gerência diretade manutenção de 76 (setenta e seis) retransmissoras de televisão, espalhadaspor vários municípios do Estado, possuindo também sob sua responsabili-dade a operacionalização do sistema digital de televisão, que proporciona atransmissão via satélite da imagem da quase totalidade de nossos 143 (centoe quarenta e três) municípios através dos sinais da TV Liberal (Secretaria daFazenda, 1998 [em linha]).

O convênio chegou a ser objeto de uma ação popular, em 1997. SegundoElvira Lobato, o governo estadual justificou a parceria com a TV Liberal, emdetrimento da TV Cultura do estado também vinculada à Funtelpa, como umato político de integração social afirmando que “um dos objetivos do Estadoé integrar a população através dos meios de comunicação de massa, como atelevisão”6. Não se tem, também, notícia de qualquer observação da Anatelou do Ministério sobre o caso.

Além das políticas públicas confusas, a situação de ausência de controledos canais estatais deve-se também à sua pequena expressão na totalidade do

5A Folha de São Paulo é jornal diário e a ISTOÉ semanário, ambos com expressiva circu-lação no território nacional.

6Trecho da defesa da Funtelpa citado por Elvira Lobato (LOBATO, 2000).

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sistema televisivo. As geradoras e retransmissoras vinculadas às administra-ções federal e estaduais não ultrapassam 6,8% do total de outorgas do país.No âmbito federal, são seis geradoras de televisão aberta: a TV Câmara eTV Senado, ligadas às duas Casas do Poder Legislativo; a TV Justiça, sobresponsabilidade do Supremo Tribunal Federal; e as três subsidiárias da Em-presa Brasil de Comunicação, nos estados do Maranhão e Rio de Janeiro e noDistrito Federal. As TVs operadas por governos estaduais estão distribuídasconforme a figura a seguir.

Ilustração 1: Distribuição nacional das TVs de Governos Estaduais7

Os canais educativos brasileiros tiveram sempre uma média de audiênciapequena, tecnologias ultrapassadas e financiamento insuficiente. Mais recen-temente, esses canais passaram a trabalhar com patrocínio e mesmo com pu-blicidade, absorvendo a lógica dos canais particulares. A legislação em vigorproíbe essa forma de financiamento, pelo Decreto-Lei 236 de 1967, mas umdispositivo facilitador foi o Artigo 19 da Lei 9.637, de maio de 1998, que libe-rou a publicidade institucional sob a forma de patrocínio (apoio cultural). Há

7Fonte: Ministério das Comunicações, Agência Nacional das Telecomunicações, 2007.

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canais que extrapolam esse limite, mas como sem a publicidade estariam con-denados à extinção, a Justiça não dá prosseguimento a processos intentadospor canais particulares ou por multas de órgãos de controle.

A formação de uma rede pública complementar às estatais e privadas so-mente pode ser pensada como uma política pública mais global. Como afirmaCésar Bolaño, “deve-se levar sempre em consideração a importância das in-junções políticas que influenciam fortemente a estrutura econômica dos meiosde comunicação de massa no Brasil e que sempre atuaram no sentido de ma-nutenção das posições dominantes” (1999).

O esqueleto que sustenta o sistema: o Estado Distribui-dor

O bem sucedido projeto dos governos militares de fazer a televisão chegara todos os pontos do país transformou o Estado em importante distribuidor desinal. O serviço de retransmissão de TV é o primordial facilitador desse ob-jetivo, especialmente nas localidades onde o interesse comercial em explorarradiodifusão de sons e imagens é inexistente. Regulamentada pela primeiravez em 1978, pelo Decreto 81.600 de 25 de abril, a retransmissão de televisãonão se insere no mesmo processo de licitações previsto para a radiodifusão.

As permissões são concedidas diretamente por portarias do Ministério dasComunicações e têm caráter precário, com prazo indeterminado para a ex-tinção. O Ministério pode, a qualquer momento, cancelar as permissões oumantê-las ad infinitum sem ser necessário que elas passem por qualquer pro-cesso de avaliação do serviço como requisito para a renovação das outorgas.

Tal serviço teve alterações significativas em 19888. O Decreto 96.291e, logo após, a Portaria 93, de 1989, estabeleceram uma nova categoria, asretransmissoras mistas - educativas e em fronteiras de desenvolvimento dopaís - que poderiam inserir programação local, geradas por elas próprias, ematé 15% do total. Essa alteração agregou um atrativo político ao serviço deretransmissão educativa. Como era previsível, em pouco tempo começaram a

8Nesse ínterim, normas complementares foram sendo expedidas através dos seguintes de-cretos: nº 84.064, de 08 de outubro de 1979; nº 84.854, de 12 de julho de 1980; 87.074, de 31de março de 1982.

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aparecer fundações e associações controladas por vereadores e deputados emvárias partes do país.

Em 1998, as chamadas retransmissoras mistas foram extintas pelo Decreto2.593, de 15 de maio. As permissionárias teriam o prazo de dois anos paraadaptarem-se às novas regras, porém, o governo voltou atrás antes do prazoextinguir. Como conta o editorial da revista Tela Viva,

Os permissionários ganharam uma sobrevida, nada isonômica, com a publi-cação do Decreto nº 3.451 (09/05/2000). Tanto as retransmissoras educa-tivas quanto as microgeradoras poderão funcionar nas mesmas condiçõesatuais até que uma geradora se instale na mesma praça ou poderão soli-citar a transferência do canal para o Plano Básico de TV, isto é, poderãotransformar-se em geradoras. E aí mora a grande distorção. Lembro queambas não precisaram enfrentar a tramitação no Congresso (e atualmenteos processos licitatórios) obrigatória para uma concessão comercial, pois aspermissões foram dadas pelo Ministério das Comunicações. A maioria dasRTVs educativas está instalada em regiões de alta densidade populacional,onde já existem emissoras comerciais. Como a legislação aplicável aos ser-viços de radiodifusão educativa não prevê o lançamento de editais para aconcessão dos canais, os atuais permissionários ganharão sem concorrênciaa frequência que ocupam no espectro (FALGETANO, 2000).

A participação das prefeituras municipais no serviço é representativa. Se-gundo os dados oficiais, dos 5.561 municípios brasileiros, 1.676 têm retrans-missoras outorgadas às prefeituras. Ao todo são 3.341 outorgas de retransmis-soras nas mãos de prefeituras.

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Ilustração 2: Distribuição das outorgas de retransmissoras dasprefeituras municipais9

Dentre as 3.341 permissões de retransmissão concedidas a prefeituras,apenas 3810 são de caráter educativo e 168 encontram-se na área onde sãopermitidas as estações retransmissoras mistas11. Mas não é possível afirmarque apenas 6,18% do total de retransmissoras das prefeituras geram progra-mação própria. Embora efetivamente a maioria das RTVs seja usada apenaspara fazer chegar o sinal das grandes redes às pequenas cidades do país, háuma parcela, impossível de precisar, que atua na ilegalidade.

Amparadas pelo parco conhecimento público de suas limitações e pelasdificuldades operacionais da Anatel para fiscalizar todo este rol de estações,algumas prefeituras fazem das retransmissoras seus porta-vozes sem seremincomodadas pelo poder federal. Como declarou, em entrevista ao jornal Cor-reio Braziliense, um dos membros titulares da Comissão de Ciência e Tecno-

9Fontes: Ministério das Comunicações; Agência Nacional de Telecomunicações: 2006.10As retransmissoras educativas estão distribuídas entre onze estados: São Paulo e Rio de

Janeiro, oito permissões; Rio Grande do Sul, cinco; Mato Grosso do Sul, quatro; Minas Geraise Paraná, três; Goiás e Piauí, duas; Alagoas, Mato Grosso e Paraíba, uma prefeitura permissi-onária de retransmissora educativa em cada.

11Estas retransmissoras são permitidas na região da Amazônia Legal que engloba: Acre,Amazonas, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Roraima, Rondônia e Tocantins.

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logia, Comunicação e Informática – CCTCI da Câmara dos Deputados, depu-tado Walter Pinheiro (PT/BA), “a chance de uma emissora dessas ser punidapor causa do conteúdo de sua programação é próxima a zero” (COSTA; BRE-NER, 1997).

Na série de reportagens, reproduzidas na versão em rede do Observató-rio da Imprensa, Sylvio Costa e Jayme Brener detalham algumas situaçõesnas quais o poder federal beneficia prefeituras dos partidos aliados, ou asprefeituras fazem doações de terrenos a retransmissoras educativas ou mis-tas controladas por aliados dos prefeitos, ou, ainda, as prefeituras desligamos equipamentos de transmissão quando as geradoras estão exibindo progra-mação que prejudica os interesses locais. Uma delas retrata um exemplo decomo as elites políticas regionais fazem uso das RTVs em períodos eleitorais:

Nas eleições de 1994, a governadora Roseana Sarney (PFL) e o senadorEpitacio Cafeteira (PPB) disputavam o segundo turno quando o pai de Ro-seana, o ex-presidente e atual senador José Sarney (PMDB-AP), foi pro-tagonista de uma curiosa operação montada para ajudar a filha. Por nãoser candidato no Maranhão, Sarney não podia participar do horário polí-tico gratuito, o único espaço reservado pela legislação para a propagandaeleitoral. Gravou, então, um pronunciamento - de caráter inequivocamenteeleitoral - veiculado em todo o estado pelas repetidoras em poder das pre-feituras.

Terno claro e com a mesma expressão grave com que falava à nação emcadeia nacional ao tempo em que era presidente, o senador usa o pronuncia-mento para explicar aos eleitores que eles deveriam optar entre “dois quadradi-nhos”. O primeiro, o de Cafeteira, seria “o quadradinho da velha politicageme do ódio”.

O segundo, o de Roseana, o do “programa da concórdia”. “Roseana”,continuou Sarney, “tem um programa de governo definido. Vai contar coma minha ajuda, vai contar com a ajuda de Fernando Henrique, vai fazer umgoverno de união pela paz”. E conclui: “Peço ao Maranhão que me ajude acontinuar ajudando o Maranhão”.

A própria fita de vídeo repassada às prefeituras, cuja cópia foi obtida peloCorreio Braziliense, denuncia a irregularidade ao alertar que a fala do ex-presidente, cuja duração foi de 2 minutos e 45 segundos, deveria ser exibida“em horário de telejornal, nunca na propaganda eleitoral do TER” (COSTA;BRENER, 1997).

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Para além do uso eleitoreiro, há também a dificuldade em saber quais são ecomo são escolhidos os canais que as prefeituras retransmitem. Embora existaa exigência de que as operadoras do serviço de retransmissão entreguem aopoder concedente a indicação do canal a ser retransmitido, com autorizaçãoda geradora, estes dados jamais foram tornados públicos. Sendo responsáveispela cobertura de 30,14% do território nacional e por 34,13% das retransmis-soras de TV no país, a ausência de identificação clara dos canais retransmiti-dos impossibilita, por exemplo, determinar os índices exatos de abrangênciadas redes nacionais.

O destaque fica por conta das redes religiosas onde são frequentes as re-ferências às parcerias entre prefeituras e igrejas. Fazendo uma busca em sitesde prefeituras e jornais de pequenas cidades, é comum encontrar referênciassobre visitas de comissões da Rede Vida, ligada à Igreja Católica, ou da RIT –Rede Internacional de Televisão, de propriedade do líder da Igreja Internaci-onal da Graça de Deus, às prefeituras para estabelecer acordos de retransmis-são ou financiamentos para a instalação de retransmissoras vinculadas a essasigrejas.

No estado de São Paulo, por exemplo, as redes católicas têm forte ligaçãocom as prefeituras municipais. Em Vargem Grande do Sul, não há gerado-ras, apenas três permissões de retransmissão. Das três permissões da cidade,registradas em nome da prefeitura, a primeira a ser inaugurada foi do canal ca-tólico, em junho de 2003 (TV CANÇÃO, 2003). Em São José do Rio Pardo asituação é diferente, há três outorgas ligadas a canais religiosos12 - Rede Vida,Rede Mulher e TV Canção Nova – que concorrem com cinco canais comerci-ais e um não identificado que é retransmitido pela Prefeitura. Apesar de nãoretransmitir a rede católica, a obtenção da outorga é creditada à atuação dovereador Fábio Augusto Porto Junqueira (PSDB) (GAZETA, 2003), que tam-bém indicou à prefeitura o pedido de verba para a instalação do equipamentotransmissor (CÂMARA, 2002).

O esforço necessário para precisar qual o real alcance dos canais comerci-ais, educativos ou religiosos fatalmente encontra na ausência de transparênciadas outorgas seu maior obstáculo. Praticamente todas as redes nacionais, ex-ceto a Rede Globo, indicam prefeituras como afiliadas. A adesão de uma pre-

12Embora a Rede Record seja vinculada à Igreja Universal do Reino de Deus e tenha progra-mação religiosa na sua grade, neste estudo ela é considerada um canal comercial, não religioso.

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feitura à afiliação de um canal específico, além de traduzir uma fatia maior deaudiência para esse canal, significa também minimizar os custos da geradorana implantação de retransmissoras próprias.

O protagonismo do Estado na implantação da EmpresaBrasil de Comunicação

A criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), com a finalidade deoperar tanto os serviços de publicidade do governo quanto uma rede públicade rádio e televisão, reafirma o papel do Estado como proprietário de televi-são no Brasil. O atual estado da arte é um canal dito nacional (ou federal),transmitindo em sinal aberto apenas para Rio de Janeiro, Maranhão, DistritoFederal e para a cidade de São Paulo, que sofre de uma crise aguda de gestãoe busca uma identidade corporativa que se reflita na programação – ponta finale mais importante de uma televisão.

Dois conjuntos de atores se envolveram no processo que desembocou nacriação da EBC em 2008: um grupo de representação dos movimentos soci-ais, reunindo entidades do setor e intelectuais, e outro emergente do cenáriopolítico, conduzindo as ações do governo. A combinação de forças entre asduas instâncias não foi sempre equilibrada: governo e organizações sociaisatuaram em parceria por ocasião do I Fórum Nacional de TVs Públicas, o quenão se repetiu na implantação propriamente dita da emissora, por meio de umaMedida Provisória do Executivo. Do ponto de vista da comunicação pública,quais foram os resultados dessa lógica desequilibrada de ação?

O tema cresceu na agenda social brasileira a partir do ano de 2006, coma publicação de dois cadernos de textos, produzidos por organismos da áreae pessoas do governo ligadas principalmente ao Ministério da Cultura. Alémde um diagnóstico histórico do campo público no país, foram apresentadasalgumas diretrizes para o que poderia ser uma emissora pública nacional comoperação em rede. Nasciam assim as bases para um encontro de discussão,que aconteceria no ano seguinte, transferindo o tópico para a agenda de outrossetores do governo.

Encampado pelo Ministro da Cultura Gilberto Gil, através da Secretariade Audiovisual, o Fórum contou inicialmente com o protagonismo de cincoorganizações da sociedade civil: a Associação Brasileira de Emissoras Pú-

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blicas, Educativas e Culturais (Abepec), a Associação Brasileira de TelevisãoUniversitária (ABTU), a Associação Brasileira de Televisões e Rádios Legis-lativas (Astral), a Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM)e o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC).

No plano político, essa articulação significou um ponto importante de ma-turidade democrática, desde o fim da ditadura, sobretudo pela negligência ha-bitual em torno de um terreno para o qual confluem interesses díspares. ACarta de Brasília, documento síntese do encontro, tornou-se um manifesto emdefesa da democratização da comunicação, na figura de um campo públicoindependente e fortalecido. Pela hegemonia consolidada do privado, há al-guma semelhança com o movimento que acarretou a constituição do PublicBroadcasting Service (PBS) nos Estados Unidos.

A defesa inicial era a de que o Estado organizasse a estrutura existente,constituindo um sistema encabeçado por uma emissora federal, titular de umacentralidade que deveria ser compensada pelo fortalecimento horizontal dasdemais instituições componentes da rede. Porém, em um segundo momentodo processo que levou à criação da EBC, o governo de Luís Inácio Lula daSilva assumiu para si o projeto que vinha sendo concebido juntamente com asorganizações sociais, em uma ação unilateral que abria brechas para a oposi-ção defender que se tratava de uma televisão com fins políticos.

Depois de um primeiro anúncio vindo do Ministro das Comunicações Hé-lio Costa, que chegou a basear a defesa da nova TV em uma necessidade deespaço para o governo, a condução do processo ficou a cargo da Secretaria deComunicação Social, sob a chefia de Franklin Martins. No âmbito instituci-onal, a Empresa Brasil de Comunicação provém da fusão de duas estruturasjá existentes: a Radiobrás, regulada por uma lei de 1975, com perfil de co-municação estatal; e a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto(Acerp), mantenedora da TVE Brasil, com sede no Rio de Janeiro, da TVEdo Maranhão e da Rádio MEC. O novo canal público surgiu por meio da Me-dida Provisória 398 de 2007, depois convertida na lei 11652 de 07 de abril de2008, data em que a TV Brasil já estava no ar – a justificativa do governo foide que a tramitação regular do projeto dentro do sistema legislativo provocariauma situação prolongada de incerteza para os funcionários das empresas quese fundiriam.

Tal desenho significou um gradual afastamento do Ministério da Cultura,que concebeu os primeiros contornos do projeto em debate público. A evidên-

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cia mais dramática dessa mudança se deu com a saída do diretor-geral da TVBrasil, Orlando Senna, um dos principais articulares do Fórum de TVs Públi-cas – o motivo alegado foi a discordância em relação à gestão empreendida.As disputas de poder no interior das instâncias governamentais trazem à luz aconclusão de que mesmo o governo não pode ser considerado um ator socialhomogêneo.

O modelo de gestão adotado pela Empresa Brasil de Comunicação abarcaum Conselho Curador, de natureza consultiva e deliberativa, responsável pelaspolíticas editoriais da empresa. Diferente do quadro vivido pela FundaçãoPadre Anchieta, o órgão está fortemente sujeito às intervenções do governo.Compõe-se de quatro ministros de Estado, dois representantes do LegislativoFederal (um indicado pela Câmara dos Deputados, outro pelo Senado), 15membros da sociedade civil e um representante dos funcionários. A estruturagerencial conta ainda com um Conselho de Administração, composto peloExecutivo e com funções gerais de planejamento frente às diretrizes apontadaspelos curadores, um Conselho Fiscal, a monitorar os gastos da corporação,e a Diretoria Executiva, cuja função é administrar diretamente as ações daempresa.

Tal desenho institucional não garante a incorporação do caráter público,sobretudo pela centralidade atribuída ao Poder Executivo Federal, na realidadeconstituído por grupos políticos com interesses marcados. Embora pretendarepresentar a diversidade da sociedade, até o momento a estrutura mostrou-sepouco permeável à entrada de demandas dos grupos sociais representativosou dos cidadãos comuns. Os componentes oriundos da sociedade civil aindadesempenham um papel figurativo, quando essa deveria ser uma instância deprotagonismo de gestão. Inicialmente indicados com o crivo do Presidenteda República, há uma promessa de consulta pública para as próximas admi-nistrações, mas não se elaborou previsões concretas de como isso poderá serfeito.

Esse é o principal desafio para a nova televisão pública quanto à gestão.Como parte de uma empresa que conta como uma de suas funções a operaçãodos serviços de imagem e som do governo, a TV Brasil precisa firmar-se comooutra matriz de comunicação, o que começa por ampliar as instâncias de admi-nistração ao controle e à participação social e possibilitar, nas esferas em queo Estado se faz presente, o equilíbrio entre o Executivo e o Legislativo, podereste cujo desenho pretende abrigar representações populares diversas. Há al-

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guma contribuição nessa direção a ser dada pela figura do ouvidor, fundandomecanismos de autocontrole, permeáveis às demandas sociais.

Outro ponto fundamental para a constituição de uma política pública fortepara a área de televisão é a definição de um orçamento independente. A matrizpública não pode se ligar às disputas de mercado, uma vez que se pauta poroutras finalidades que não a busca de audiência quantitativa, mas também nãodeve se tornar refém dos favores temporais dos governos. Alternativas comoapoio cultural, patrocínio e captação de verbas de incentivo não substituem oorçamento público, que precisa ser regulamentado por lei - trata-se de um mo-delo cuja exigência provém da realidade brasileira, enquanto outros países domundo dispõem de formas centrais como financiamento direto pela popula-ção (Reino Unido) e doações (Estados Unidos), que aqui ocupariam um lugarirreal ou marginal.

Uma opção a ser consolidada, como novo padrão de captação de recur-sos, é o fundo com taxações sobre os serviços de comunicação, na forma deContribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública. O destino do finan-ciamento precisa considerar o valor estratégico de cada uma das etapas doprocesso comunicativo, além da necessidade de atualização tecnológica e mi-gração digital.

A implantação da televisão pública no Brasil envolve o desafio de ampliaro alcance para além das diversidades regional, cultural e socioeconômica. Aomesmo tempo, permanece a necessidade de absorver os elementos do plura-lismo e do contraditório em sua programação, uma postura editorial que seequilibra entre a competitividade e a responsabilidade pública da emissora –na dimensão que afeta diretamente o público.

Nesse sentido apontam tanto as reivindicações dos setores sociais, ao de-fender um envolvimento do projeto público com “a expressão maior das di-versidades de gênero, étnico-racial, cultural e social brasileiras, promovendoo diálogo entre as múltiplas identidades do País” (FÓRUM NACIONAL DETVs PÚBLICAS, 2007, p.02), quanto a determinação legal, preocupada como fato de que o cumprimento da vocação cidadã não deve retirar “seu carátercompetitivo na busca do interesse do maior número de ouvintes ou telespec-tadores” (BRASIL, 2008).

Outros ganhos podem ser obtidos em médio e longo prazo, na dinâmicaeconômica, a partir das etapas de produção, de distribuição e, no horizonte,dos hábitos e práticas de consumo. A busca pelo pluralismo aliado à quali-

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dade encontrou consonância na exigência legal que determina a presença deproduções independentes (no percentual mínimo de 10% da grade semanal)e regionais (5%), no que pode fornecer alguma contribuição a experiênciabem sucedida do DOC TV, que alia fomento público à iniciativa artístico-profissional de segmentos privados.

Porém, os resultados na produção, na gestão e no financiamento são pre-judicados pelo alcance restrito da emissora, como acontece ainda hoje. É umparadoxo que a televisão pública brasileira atingisse, em sinal aberto no anode 2009, apenas três estados nacionais (Maranhão, Rio de Janeiro e a capitalde São Paulo), além do Distrito Federal. A reivindicação do Fórum Nacio-nal de TVs Públicas ainda não foi atendida: de que a TV Brasil, ente públicoorganizado pelo governo federal, atuasse como um operador de rede, a inte-grar as iniciativas regionais e locais de comunicação pública. Esse é o desafioprimordial para que a iniciativa passe do engatinhar para o andar sobre suaprópria sustentação.

Breves Conclusões

A recente transição para um modelo democrático de Estado teve comocaracterística fundamental a manutenção das elites políticas já estabelecidasem todo o país. Essa relação de continuidade política fez com que as políti-cas públicas e privadas de comunicação de massa jamais fossem efetivamentedesnudadas do denso véu que as cobriu ao longo de seu desenvolvimento.

Houve, sim, algumas tentativas, como, por exemplo, a divulgação de al-gumas listas de acionistas ou a adoção de processo licitatório para a concessãodos serviços principais. Porém, a ausência de revisão das outorgas já concedi-das e a persistência das práticas clientelistas no âmbito estatal fazem com queas iniciativas de desnudamento sejam tímidas. Quase vinte anos após a voltada democracia, é como se a televisão brasileira mal conseguisse exibir suascanelas em público.

Outro aspecto que merece ser destacado, diz respeito ao fato de que aretirada do Estado das operações de serviços de comunicações não ocorreuna televisão da mesma forma sistemática que ocorreu nas telecomunicaçõesem meados dos anos 1990. Embora o processo de privatização do sistemade telefonia tenha produzido uma profunda rearticulação nas comunicações

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nacionais, a televisão aberta ainda depende fundamentalmente das PrefeiturasMunicipais para atingir as regiões menos interessantes ao mercado em termoseconômicos.

Por um lado, o Estado saiu da operacionalização da telefonia e serviçosconexos, mantendo-se apenas como regulador e, também, as geradoras de te-levisão por ele operadas, tanto na esfera federal quanto estadual, não chegama 10% do total. A retransmissão dos canais televisivos pelas prefeituras, poroutro lado, atinge mais de 30% dos municípios brasileiros. Conforme foiapontado, essas outorgas têm possibilidade de geração de conteúdo e o con-trole sobre elas é praticamente nulo como também é inexistente a definiçãodos critérios que pautam a escolha dos canais a serem retransmitidos.

Além da atuação como retransmissor, nos poucos canais estatais existen-tes, é visível a persistência do Estado como produtor de conteúdo televisivoem oposição à ideia de consolidação da matriz pública independente, comgestão desvinculada do poder político, tanto nos domínios federais quanto es-taduais. Embora historicamente tenham pouco alcance também em termosde audiência, essas emissoras, por sua natureza educativa e não comercial,poderiam representar um diferencial qualitativo na programação televisiva.

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