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O espelho quebrado Segurem-se bem. Aqui vamos nós! Quando chegarmos ao final da história, todos saberemos um bocadinho mais do que agora. Era uma vez um demónio, o pior demónio do mundo. Alguns chamavam-lhe Satanás ou Velho Demo, mas todos sabiam que era o próprio Diabo. Houve um dia em que ele se sentiu bastante feliz — tinha inventado um espelho com poderes mágicos. Qualquer coisa boa ou bonita reflectida nesse espelho tornava-se insignificante. Mas todas as coisas inúteis ou feias pareciam belas e importantes. A paisagem mais bonita parecia uma horta podre e estragada e as pessoas mais bondosas pareciam horríveis — com cabeças grandes e torcidas ou com buracos no lugar do estômago. “É um espelho mesmo divertido”, pensava o Diabo. Se alguém tinha um pensamento bondoso, um olhar horrível e maldoso aparecia reflectido no espelho, deformando de tal modo o rosto que era impossível uma pessoa reconhecer-se a si própria. O Diabo ria-se da sua própria esperteza. Todos os pequenos diabretes que andavam na Escola dos Demónios, onde o Diabo era director, aplaudiam o seu professor. Às gargalhadas, correram o mundo com o espelho, até conseguirem que a imagem de todas as pessoas fosse distorcida por ele.

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O espelho quebrado

Segurem-se bem. Aqui vamos nós! Quando chegarmos ao final da história, todos

saberemos um bocadinho mais do que agora. Era uma vez um demónio, o pior demónio do

mundo. Alguns chamavam-lhe Satanás ou Velho Demo, mas todos sabiam que era o próprio

Diabo. Houve um dia em que ele se sentiu bastante feliz — tinha inventado um espelho com

poderes mágicos. Qualquer coisa boa ou bonita reflectida nesse espelho tornava-se

insignificante. Mas todas as coisas inúteis ou feias pareciam belas e importantes.

A paisagem mais bonita parecia uma horta podre e estragada e as pessoas mais

bondosas pareciam horríveis — com cabeças grandes e torcidas ou com buracos no lugar do

estômago.

“É um espelho mesmo divertido”, pensava o Diabo. Se alguém tinha um pensamento

bondoso, um olhar horrível e maldoso aparecia reflectido no espelho, deformando de tal

modo o rosto que era impossível uma pessoa reconhecer-se a si própria.

O Diabo ria-se da sua própria esperteza. Todos os pequenos diabretes que andavam na

Escola dos Demónios, onde o Diabo era director, aplaudiam o seu professor. Às

gargalhadas, correram o mundo com o espelho, até conseguirem que a imagem de todas as

pessoas fosse distorcida por ele.

Um dia, os diabretes decidiram voar até ao céu com o espelho e fazer troça dos anjos.

Mas, quando o levavam para cima através das nuvens, o espelho começou a abanar por causa

das gargalhadas.

Assim foram a voar até aos portões do céu. Porém, nessa altura, o espelho abanava

tanto que não conseguiram agarrá-lo, deixando-o cair. O espelho do Diabo caiu com violência

na terra e desfez-se em cem mil pedacinhos. Foi então que começou o verdadeiro problema.

Alguns pedaços não eram maiores do que grãos de areia e o vento espalhou-os por todo

o planeta.

Se um grão daquele espelho se alojasse nos olhos de alguém, ficava lá para sempre.

Assim, essa pessoa veria tudo da forma errada e só conseguiria ver o lado feio das coisas e

das pessoas. O mais terrível era quando um pedacinho do espelho entrava no coração de

alguém. Esse coração transformava-se em gelo.

Alguns pedaços do espelho eram tão grandes que foram usados como vidraças de

janelas. Mas atenção! Não se devia olhar para os amigos através dessas janelas.

Alguns pedaços de tamanho médio eram aproveitados para fazer óculos — podem

imaginar o que acontecia quando se esperava um julgamento justo no tribunal e o juiz

usasse um par desses óculos.

Tudo isto fez com que o Diabo se risse tanto que o seu estômago acabou por rebentar.

Como se costuma dizer, rebentou de riso.

Porém, alguns fragmentos do espelho demoníaco ainda ficaram no ar. Ouçam com

atenção o que aconteceu depois.

Os Melhores Amigos

A grande cidade era tão povoada que muitas famílias não podiam ter jardim.

Contentavam-se com alguns vasos de flores. Porém, havia uma menina e um menino pobres

que partilhavam um jardim no terraço. Não eram irmãos, mas sim grandes amigos. As suas

famílias viviam nos sótãos de duas casas altas e as suas janelas estavam de frente uma para

a outra. Podiam sair de uma janela, saltar sobre a caleira, atravessar um pouco do telhado

plano e entrar pela janela do outro. Nesse telhado, havia caixas de madeira cheias de terra

onde se cultivavam ervas aromáticas e roseiras.

Assim era o jardim onde os meninos brincavam. Ervilhas-de-cheiro caíam suspensas de

um dos lados das caixas e duas roseiras cercavam as janelas, formando um pequeno arco

verde. Era aqui que estes amigos se sentavam, em pequenos bancos debaixo das rosas,

contavam histórias um ao outro e inventavam jogos maravilhosos.

Quando o Inverno chegava, estava muito frio para se brincar no jardim do terraço. As

janelas eram bem fechadas e ficavam, por vezes, cobertas de gelo. Então, os meninos

aqueciam moedas de cobre nos fogareiros e encostavam-nas com força às vidraças das

janelas geladas para fazerem dois círculos por onde espreitavam.

Assim, em cada círculo espreitava um olho amigo. Um pertencia ao menino, o outro à

menina. O nome dele era Kai, que rima com Pai, e o dela era Gerda. No Verão, conseguiam

encontrar-se dando um salto para o terraço. Mas no Inverno tinham de descer sete lanços

de escadas, atravessar um pátio com neve e subir outros sete lanços para se encontrarem.

— As abelhas da neve estão outra vez a formar enxames — disse a velha avó.

— Elas têm uma rainha? — perguntou Kai, que sabia que todas as colmeias têm a sua

rainha.

— Sim, as abelhas da neve têm uma rainha — disse a avó. — É a Rainha das Neves. Nas

noites de Inverno, ela costuma deslizar pelas ruas da cidade. Pára a olhar fixamente em

frente de todas as janelas e deixa flores de gelo desenhadas nas vidraças.

— Será que a Rainha das Neves conseguia entrar aqui? — perguntou Gerda.

— Deixa-a só tentar que vais ver — disse Kai. — Bato-lhe com uma tenaz a escaldar,

que ela derrete logo numa poça de água.

A avó fez-lhe uma festa na cabeça e mudou de assunto, contando outra história.

Naquela noite, quando Kai se preparava para ir dormir, pôs-se em pé sobre uma cadeira

e olhou através do círculo da sua janela. Foi então que viu um floco de neve do tamanho de

uma noz cair sobre o telhado. Enquanto observava, o floco de neve cresceu cada vez mais

até se transformar numa mulher alta.

Ela usava um vestido branco, formado por milhares de pequenos flocos de neve. Era

muito bonita, toda ela feita de gelo resplandecente. Os seus olhos observavam Kai como

duas estrelas cintilantes – mas não havia paz nem bondade neles. Ela apontou para a janela

e chamou-o.

Kai ficou tão assustado que saltou da cadeira. Pareceu-lhe, então, que um grande

pássaro passara em frente da janela.

No dia seguinte fazia muito frio e o céu estava limpo. O Sol levantou-se e espalhou os

seus raios por todo o lado — e o degelo começou. Em breve, voltaria a ser Primavera. Gerda

e Kai poderiam sentar-se novamente no jardim, muito acima da cidade.

O Verão chegou e as rosas começavam a aparecer. Kai e Gerda sentaram-se a ver um

livro de animais. Subitamente, no momento em que a torre da igreja bateu as cinco horas,

Kai gritou:

— Ai! Sinto uma dor no coração! E tenho alguma coisa nos olhos!

— Deixa-me ver — disse Gerda. — Pisca os olhos. Pode ser que com as lágrimas saia

também o cisco. Deixa-me ver, Kai.

Ela segurou-lhe na pálpebra e observou.

— Não consigo ver nada.

— Deve ter saído — disse Kai. — Parecia que um grão de vidro me tinha entrado nos

olhos e outro no coração.

Porém, esses dois fragmentos voadores do espelho do Diabo não tinham desaparecido.

Um estava a mudar a visão de Kai, para que tudo o que fosse bom se transformasse em mal.

O outro estava a transformar-lhe o coração numa pedra de gelo. Em pouco tempo, Kai

mudou completamente.

— Afasta-te de mim! — gritou.

Gerda saltou como se tivesse sido picada.

— Kai! Magoei-te?

Kai imitou a voz de Gerda de modo cruel:

— “Kai! Magoei-te?” Tira essas tuas mãos pegajosas de cima de mim. Estão todas

roxas e suadas. Os teus dedos parecem salsichas podres.

— Porque estás a falar assim? Dói-te alguma coisa? — perguntou Gerda.

— Claro que não, sua estúpida. Mas dói-me olhar para ti. És feia como uma rã gigante.

Porque é que não choras? Assim ainda ficavas mais feia.

— Nós nunca choramos — disse Gerda engolindo em seco. — Nunca choro.

— Isso é o que vamos ver — disse Kai, fazendo um sorriso maldoso.

— Tu não és o Kai — disse Gerda. — Eu devo estar a dormir. Tu és um menino que se

parece com o Kai e isto é um pesadelo. Quero acordar!

Kai riu e disse:

— Eu acordo-te, não te preocupes. Olha para esta rosa. É nojenta. Está cheia de

minhocas.

Kai pegou num pau e arrancou o botão de rosa.

— São umas rosas horríveis — disse ele. — Vou arrancá-las todas.

Kai levantou mais uma vez o pau, mas Gerda agarrou-o e partiu-o em dois.

— Senta-te, Kai — disse ela. — Senta-te e pensa. Estás doente. Pensa bem.

— Tudo aquilo em que posso pensar é na tua voz esganiçada. Parece um gato a ser

escaldado vivo. Não quero ficar neste estúpido terraço.

E assim cortou mais uma rosa, esmagou-a, virou costas e subiu para o sótão.

Gerda cobriu o rosto com as mãos.

— Nós somos amigos — continuou para si própria. — Tenho a certeza de que ele vai

melhorar. O que quer que aconteça, somos grandes amigos.

Mas Kai não melhorou. O Kai bondoso transformou-se num Kai cruel! Se Gerda ia ter

com ele para lhe mostrar um livro de imagens, ele dizia-lhe que aqueles livros eram para

bebés e rasgava as suas páginas. Se a avó tentava contar-lhe uma das suas histórias

encantadoras, Kai ria-se nas partes mais tristes e fazia caretas nas costas da avó.

Num dia de Inverno, enquanto a neve caía, Kai fez uma magnífica lupa para observar os

flocos de neve que poisavam no seu casaco azul.

— Olha através deste vidro, Gerda — disse. — Vê como são interessantes estes flocos

de neve. Um parece uma bonita orquídea. Outro parece uma estrela com dez pontas. São

muito mais interessantes do que as flores. Se não derretessem, seriam perfeitos.

Gerda preferia as flores, mas tinha demasiado medo da língua afiada de Kai para o

dizer. Assim, apenas sorriu.

— Para quê esse estúpido sorriso? — perguntou Kai. — Vou para a praça andar de

tobogã, mas tu não podes vir comigo.

Na praça, os rapazes mais corajosos costumavam atar os seus tobogãs às carroças dos

camponeses e correr sobre a neve puxados por eles.

No meio da brincadeira, surgiu um grande trenó branco, conduzido por um cavalo negro

e outro branco. No trenó seguia uma pessoa alta, envolta, da cabeça aos pés, numa espessa

peliça branca.

O trenó deu duas voltas à praça. Kai conseguiu amarrar o seu tobogã, que foi

arrastado.

Seguiam cada vez mais depressa, pelas ruas escuras da cidade. O condutor do trenó

acenou como se eles se conhecessem. Sempre que Kai pensava desprender o tobogã, o

condutor fazia-lhe sinal e Kai, subjugado, não se mexia.

Saíram da cidade e a neve começou a cair cada vez com mais força.

— Pare! Quero ir para casa! — gritou Kai, mas ninguém o ouviu.

A neve fazia remoinhos e o trenó corria vertiginosamente.

De vez em quando, dava um salto, como se atravessassem sebes e valas. Kai estava

aterrorizado. Tentou até rezar, mas só conseguia lembrar-se da tabuada de multiplicar.

— Cinco vezes cinco são vinte e cinco, cinco vezes seis são trinta, cinco vezes sete são

trinta e cinco, cinco vezes oito são oitenta... não, não está certo. Oh!...

De repente, o trenó branco parou. O condutor levantou-se. A peliça que a envolvia era

de neve pura. Tratava-se de uma mulher, alta e brilhante. Era a Rainha das Neves.

— Percorremos um longo caminho — disse a Rainha das Neves ao trémulo Kai. —

Pareces ter tanto frio! Aninha-te no meu casaco de peles.

Ela lançou as peles à volta de Kai. Era como afundar-se num monte de neve.

— Ainda tens frio? — perguntou, beijando-o na testa.

O seu beijo foi mais frio do que gelo. Atingiu directamente o coração gelado de Kai.

Por um momento, sentiu que estava a morrer, mas logo descobriu que já não sentia frio.

— O meu tobogã! Não se esqueça do meu tobogã! — disse ele.

A Rainha das Neves deu-lhe outro beijo. Kai sentiu que estava a afundar-se num mar

de diamantes. As recordações do seu tobogã, dos pais, da avó e de Gerda ficaram perdidas

naquela névoa de diamantes. Passado algum tempo já não conseguia lembrar-se de nada a

respeito deles.

— Não recebo outro beijo? — perguntou Kai.

— Não podes receber mais beijos — disse a Rainha das Neves. — Seria a tua morte.

Kai olhou para ela. Como era deslumbrante! Não seria possível imaginar rosto mais belo

nem mais sedutor.

— Acho-a perfeita. Agora já não tenho medo de si. Espero que goste de mim. As

pessoas acham-me esperto. Consigo fazer de cabeça contas de somar, de multiplicar e de

dividir. Até consigo resolver fracções. Sou capaz de lhe dizer quantos quilómetros

quadrados tem a Espanha, a Dinamarca ou os Estados Unidos. Sei a população do Mali e da

Rússia e da Prússia. Sei qual é a extensão do Rio Amazonas e do Mississipi e a altura exacta

de todas as montanhas e vulcões mais conhecidos.

— Isso é bom — disse a Rainha das Neves.

— Mas talvez não seja o suficiente — comentou indeciso.

— Talvez — respondeu ela. — Logo veremos. Mas agora temos de continuar.

Ela bateu com o chicote e chamou pelos seus dois cavalos:

— Mais depressa, Madrugada! Mais depressa, Trovoada!

A Rainha das Neves sorriu para Kai e ele olhou para a grande escuridão do céu,

enquanto deslizavam por cima de uma nuvem negra.

Voaram sobre florestas e lagos, sobre terra e mar. Por debaixo deles, rebentavam

grandes tempestades de neve e uivavam lobos esfomeados. Mas, acima deles, a lua de prata

iluminava tudo em redor.

Kai admirou a beleza daquela longa noite de Inverno. Quando o dia nasceu, Kai

adormeceu aos pés da Rainha das Neves e dormiu o dia inteiro.

A Busca de Gerda

As horas passaram, os dias passaram, as semanas passaram, e Kai ainda não tinha

voltado para casa. Ninguém sabia aonde tinha ido. Os rapazes na praça só sabiam que

tinham visto o tobogã de Kai a correr para fora da cidade atrás de um elegante trenó

branco.

Todos lamentavam o sucedido e muitos estavam tristes, mas Gerda chorou muito de

desgosto. As pessoas começaram a dizer que Kai devia estar morto, provavelmente afogado

no rio sinuoso. Foi um Inverno longo e triste. Mais tarde, a Primavera voltou e o Sol brilhou

de novo.

— O Kai está morto — disse Gerda. — Partiu para sempre.

— Eu não acredito nisso — disse o Sol.

— O Kai está morto, não está? — perguntou ela às andorinhas.

— Nós também não acreditamos nisso — disseram as andorinhas. E Gerda começou a

pensar que Kai ainda devia estar vivo.

— Eu vou encontrar o Kai onde quer que ele esteja — disse Gerda ao Sol e às

andorinhas. — Vou calçar os meus sapatos vermelhos novos, aqueles que o Kai nunca viu. E

depois irei descer o rio sinuoso e perguntar-lhe algumas coisas.

No dia seguinte de manhã cedo, Gerda beijou a avó, que ainda estava a dormir, calçou

os sapatos vermelhos, saiu da cidade descendo até à beira-rio, e cantou:

Rio sinuoso, algumas pessoas dirão

Que levaste o meu amigo do coração

Rio sinuoso, devolve-mo a mim

E eu prometo e juro que no fim

Te darei os meus sapatos vermelhos.

As pequenas ondas do rio pareceram acenar-lhe, por isso Gerda descalçou os sapatos

vermelhos e lançou-os à água. Estes caíram não muito longe da margem. As pequenas ondas

trouxeram-nos de volta.

“Talvez não os tenha atirado suficientemente longe”, pensou Gerda. Então, subiu para

um pequeno barco, foi até à outra extremidade, deixou-se ficar em pé e atirou os sapatos o

mais longe que conseguiu.

Mas o barco não estava amarrado. O impulso de Gerda fez com que o barco se

afastasse da margem e flutuasse rio abaixo. Ela só reparou que o barco estava a flutuar

quando era tarde demais para saltar para a margem. Sentiu-se assustada.

Os pardais tentaram confortá-la, chilreando “Nós estamos aqui! Nós estamos aqui!” e

voando ao seu lado. O barco avançou à deriva, com os sapatos vermelhos a boiar atrás dele.

As margens do rio eram belas, com chorões que se debruçavam sobre a água para

admirarem o próprio reflexo. Viam-se milhares de flores silvestres de todas as cores, e

ovelhas e cabras mansas a pastar nas encostas relvadas. Mas não se via ninguém.

“Talvez o rio me leve até junto do Kai”, pensou Gerda, e isso animou-a. Levantou-se no

barco e contemplou tudo à sua volta, desde o vale verde junto ao rio até ao céu azul e

branco.

O barco de Gerda flutuou lentamente até um cerejal. No meio deste, havia uma cabana

com estranhas janelas vermelhas, azuis e amarelas, e com um telhado de colmo. Estava

guardada por dois soldados altos.

Gerda chamou-os em seu auxílio, mas eles nada disseram, porque eram feitos de

madeira. Então, ela gritou mais alto e da cabana saiu uma velhinha, que se apoiava num pau

retorcido. Trazia um chapéu grande como uma roda e pintado com bonitas flores.

— Minha senhora! — gritou Gerda. — Por favor, ajude-me, estou perdida!

A velhinha estendeu o braço com o seu pau retorcido, prendeu-o à proa do barco e

puxou Gerda para um local seguro.

— Pobre menina! — disse ela. — Como é que vieste parar a este rio sinuoso, longe de

casa, neste mundo tão grande?

— O meu nome é Gerda — respondeu a menina. — Eu tinha um grande amigo chamado

Kai. Mas ele desapareceu no Inverno passado.

— Até agora não passou aqui, até agora — disse a velhinha. — Mas todos acabam por

viajar pelo rio abaixo, mais cedo ou mais tarde. Gerda, não fiques tão triste. Entra na minha

cabana e come algumas das minhas apetitosas cerejas.

Ela conduziu Gerda à cabana. O sol reflectia-se de forma estranha através das janelas

vermelhas, azuis e amarelas. Mas, em cima da mesa, estava uma taça de cerejas.

— Come quantas quiseres. Sempre desejei ter junto de mim uma linda menina como tu

— disse a velhinha.

— Em breve terei de seguir o meu caminho — disse Gerda. — Tenho de encontrar o

Kai.

— Claro — disse a velhinha. — Mas, enquanto estás a comer as tuas cerejas, vou

pentear-te com a minha escova de ouro especial.

Porém, a escova era mágica e à medida que o cabelo era penteado, Gerda começou a

esquecer tudo sobre Kai. A velhinha não era malvada, mas pensou que Gerda podia ficar

junto dela e fazer-lhe companhia, se se esquecesse de Kai.

A velhinha saiu para o jardim por um momento. Apontou o seu pau retorcido em

direcção a cada uma das suas roseiras. Todas mergulharam na terra preta, nunca mais

sendo vistas. Se Gerda visse as rosas, poderia lembrar-se das rosas do jardim no terraço

de sua casa… e assim, lembrar-se também de Kai e fugir.

A velhinha avançou depressa para a cabana e mostrou a Gerda onde ia dormir — numa

cama de penas de cisne com almofadas de seda vermelha cheias de violetas. Aí, Gerda

dormiu tranquilamente e teve sonhos bonitos pela primeira vez desde que Kai tinha

desaparecido.

Na manhã seguinte, Gerda explorou o jardim, que parecia ter todas as espécies de

flores. Brincou todos os dias no jardim ao longo do Verão, que parecia não ter fim. As

flores eram faladoras e amigáveis, mas às vezes Gerda tinha a estranha sensação de que

faltava uma qualidade de flor.

Um dia, Gerda estava a olhar para o chapéu da velhinha com as flores pintadas e a

mais bonita de todas era... uma rosa. Rosas!

— O quê?! — Gerda admirou-se. — Não há rosas?

Inspeccionou todos os canteiros, mas não havia uma única rosa. Gerda sentou-se e

chorou apenas uma lágrima, mas foi quanto bastou, pois esta caiu onde uma roseira se tinha

enterrado e o seu calor fez com que ela se desenvolvesse e florescesse. Gerda abraçou a

roseira e beijou as suas rosas, enquanto se lembrava das rosas no seu terraço e do seu

melhor amigo — Kai!

— Tenho estado a perder tempo — disse ela. — Eu devia andar à procura do Kai!

Sabem onde o Kai está? — perguntou às rosas. — Acham que ele morreu e desapareceu?

A roseira cantou, numa voz alegre, tão suave como as pétalas:

— Estive escondida bem lá no fundo, onde os mortos têm um sono profundo. O Kai não

está lá, o Kai não está enterrado. Anda por aí, podes crer. O Kai está bem vivo — algures!

— Oh, obrigada! — disse Gerda.

E, correndo por todo o jardim, saltando de flor em flor, perguntava:

— Sabem onde o Kai está?

Mas todas as flores do jardim estavam a sonhar os seus próprios sonhos. O lírio, o

cravo, a margarida, o jacinto, a dália e o narciso, todas lhe contaram uma bela história —

mas nenhuma delas tinha a ver com a missão de Gerda.

— Não quero saber de nenhuma das vossas histórias — disse Gerda, que já não

conseguia ser simpática, pois estava exausta. — Tenho de partir para encontrar o Kai.

Tenho a certeza de que está em perigo.

E, assim, correu para o fim do jardim. O portão estava trancado, mas ela abanou o

trinco enferrujado até se partir e o portão escancarou-se.

— Não vás, pequena Gerda — gritou a velhinha, acenando tristemente com o seu pau

retorcido. — Estás descalça.

— Não tenho sapatos, mas não me importo — gritou Gerda por cima do ombro. — Vou

partir pelo mundo mesmo descalça. Quero encontrar o Kai e vou correr, correr e continuar

a correr até o Verão acabar.

Encontro com o Corvo

Gerda correu, correu e correu. Por fim, já não podia correr mais, por isso sentou-se

numa rocha. Olhou em volta e viu que o Verão tinha terminado.

— Tenho de continuar — disse Gerda. — O ar está a ficar mais frio e vem aí a neve...

— E aqui vem o Corvo!

Pulando para junto dela, um grande corvo, que tinha estado a observá-la já há algum

tempo, cumprimentou-a:

— Có-có-ró! Có-calu! Có-có-ró... e como estás tu?

— Eu não estou lá muito bem, obrigada — disse Gerda.

O Corvo fez um ruído com o bico.

— Isso vejo eu! Uma menina neste mundo tão grande, descalça e sozinha.

— Sozinha, se não fosses tu, Corvo bonzinho.

— Có-calu, então quem és tu?

Gerda disse os motivos da sua busca: — O meu nome é Gerda. Eu tinha um grande

amigo chamado Kai, mas ele desapareceu no Inverno passado. O meu amigo está muito

doente, portanto tenho de o encontrar e tratar dele. Viste-o?

O Corvo acenou: — Talvez o tenha visto!

— Ele está vivo! O Kai está vivo! — exclamou Gerda, dando um abraço muito apertado

ao Corvo e beijando as suas penas.

— Calma aí com os teus beija-flores! — disse o Corvo. — Quase me matas. Esse Kai

tem o brilho de uma águia de montanha no olhar?

— Oh, sim! É o Kai. Ouviste-o falar? Parecia esperto?

O Corvo pensou e respondeu:

— Eu ouvi-o falar alguma coisa. Era bem esperto e atento.

— Kai! — disse Gerda.

— Bem, ele deve ter-se esquecido de ti, agora que encontrou a sua princesa — disse o

Corvo de forma muito directa.

— Ele vive com uma princesa? — perguntou Gerda.

— Escuta — disse o Corvo — é difícil explicar em linguagem humana. Consegues falar a

linguagem dos corvos?

— Lamento, nunca aprendi — disse Gerda.

— Não faz mal — disse o Corvo — vou fazer o melhor que posso... hum, hum... Este país

tem uma princesa muito inteligente. Ela já leu todos os jornais do mundo e soube esquecer-

se de todos. É para se ver como é tão inteligente... No outro dia, ela estava sentada no seu

trono e disse consigo mesma: “Quero casar, mas com quem há-de ser? Quero um marido que

pense por si e não uma bonita estátua de cera”. É tudo verdade — continuou o Corvo. — A

minha amada é um corvo-fêmea domesticado que vive no palácio.

— Sim, eu acredito em ti — disse Gerda com impaciência.

— Ainda bem — disse o Corvo. — Bom, então os jornais publicaram o retrato da

princesa nas primeiras páginas, com uma moldura de pequenos corações a anunciar:

“Qualquer rapaz bonito pode vir ao palácio e falar com a princesa. Ela decidirá quem é o

melhor conversador e casará com ele logo a seguir.”

— A princesa casaria com o melhor conversador? — perguntou Gerda.

— Có-recto — disse o Corvo. — Enfim... apareceram imensos rapazes. Conseguiam falar

suficientemente bem na rua, mas no palácio... com os guardas à porta em armaduras de

prata, e lacaios com tranças douradas junto das escadas de mármore, bem como

candelabros de diamantes a brilhar no salão de baile... bom, ficaram confusos, embaraçados

e sem palavras. Todos falharam nos dois primeiros dias. Mas é claro que, quando saíram do

palácio, começavam a gabar-se tanto que nem conseguia ouvir-me a crocitar.

— Mas Kai, o pequeno Kai! — interrompeu Gerda. — Quando é que chegou?

— Dá-me tempo! — disse o Corvo. — Estou a chegar à parte que lhe diz respeito. No

terceiro dia, um pequeno rapaz subiu com passos largos em direcção ao palácio, corajoso

como um leão. Os seus olhos eram brilhantes como os teus e tinha cabelo liso e comprido,

mas as suas roupas estavam gastas.

— Era o Kai! Finalmente encontrei-o!

— Ele trazia uma mochila às costas — disse o Corvo.

— Não, devia ser o seu tobogã — disse Gerda.

— Talvez sim, talvez não — disse o Corvo de modo irritado. — O que importa? Mas sei

pela minha amada que quando ele viu os guardas à porta em armaduras de prata e os lacaios

com tranças douradas junto das escadas de mármore, apenas lhes fez um aceno e avançou

para o salão de baile. Os candelabros de diamantes estavam todos acesos. Os ministros de

estado e os embaixadores passeavam descalços, transportando pratos de ouro de um lado

para o outro. As botas do rapaz chiavam, mas isso não parecia preocupá-lo.

— Só pode ser o Kai — disse Gerda. — Ele tinha botas novas... lembro-me que chiavam.

— Bom, elas chiavam como um punhado de ratos — disse o Corvo. — Mas ele subiu até

onde se encontrava a princesa. Ela estava sentada num trono majestoso.

— O Kai ficou com a princesa? — perguntou Gerda.

— Olha, se eu não fosse um corvo, até eu teria ficado com ela, apesar de já estar

comprometido. Ele era elegante como eu, e esperto como uma raposa. Não tinha vindo para

cortejar a princesa, mas sim para ouvi-la falar. Ele gostou dela e ela gostou dele.

— Claro que era o Kai — disse Gerda. — Ele sempre foi esperto. Fazia contas de

cabeça, até mesmo fracções. Oh, por favor, leva-me ao palácio.

— É mais fácil dizer do que fazer — disse o Corvo. — Vou falar com a minha noiva

sobre isso. Ela saberá o que fazer. Eles não vão deixar uma menina como tu entrar de

qualquer maneira no palácio.

— Assim que o Kai ouvir que estou cá fora, tenho a certeza de que sairá a correr para

vir buscar-me — disse Gerda.

— Espera por mim nesta rocha — disse o Corvo, que acenou com a cabeça e voou.

Já era bem de noite quando o Corvo voltou.

— Cró-cró! — ele crocitou. — A minha noiva diz que consegue introduzir-te dentro do

palácio. Ela conhece umas pequenas escadas nas traseiras, que dão para o Quarto Real.

Então, o Corvo conduziu Gerda através dos jardins, ao longo de ma avenida muito

comprida, ladeada de árvores gigantes, e deu a volta ao maravilhoso palácio até chegar a

uma pequena porta aberta nas traseiras, perto das cozinhas.

Com a luz de um pequeno candeeiro a óleo, Gerda viu a amada do Corvo no fundo das

escadas.

— O meu noivo fez-lhe grandes elogios, menina — disse o corvo-fêmea domesticado. —

Segure no candeeiro, que eu vou à frente.

Gerda pegou no candeeiro e seguiu o corvo através de um labirinto de bonitas divisões.

O Corvo selvagem seguiu nervosamente logo atrás de Gerda.

Finalmente, os três pararam à entrada do Quarto Real.

O tecto era como uma grande palmeira com folhas de cristal. No meio do quarto, havia

um tronco alto dourado e dele pendiam duas camas, como lírios. Uma das camas era branca;

a princesa estava a dormir aí.

A outra cama era carmesim e foi para lá que Gerda correu para procurar Kai. Ela virou

uma das pétalas e lá estava ele!

Gerda chamou em voz alta pelo nome de Kai e manteve o pequeno candeeiro a óleo

junto da cabeça dele. O rapaz acordou, virou a cabeça e... não era Kai!

— O que é que aconteceu? — perguntou a princesa. Gerda engoliu em seco e, de

seguida, contou toda a história e tudo o que os corvos tinham feito por ela.

— Pobre rapariga! — lamentaram o príncipe e a princesa. Elogiaram os corvos e

disseram que seriam recompensados.

— Gostariam de voar para longe e de ser pássaros livres? — perguntou a princesa. —

Ou preferem ser nomeados Corvos da Corte e ser pagos com todos os restos da cozinha?

Os dois corvos fizeram uma vénia solene e pediram para ser nomeados para a Corte.

— Penas de prata entre as penas negras, sabe... — disse o Corvo selvagem. — Já não

somos nada novos. Temos de pôr alguma coisita de lado e poupar para aqueles dias em que

não há minhocas para comer.

O príncipe saiu da sua cama e deixou Gerda dormir nela. Ela juntou as mãos e pensou

como os pássaros e as pessoas eram bondosas! Depois, fechou os olhos e adormeceu.

No dia seguinte, Gerda foi vestida de seda e veludo da cabeça aos pés, com botas e

agasalho de pele para as mãos. O príncipe e a princesa ajudaram-na a entrar numa

carruagem de ouro, e disseram-lhe adeus, desejando-lhe boa sorte. Havia quatro cavalos,

um cocheiro, um lacaio e batedores.

No portão, os corvos bateram as asas e despediram-se.

O Castelo dos Ladrões

Rolando pelo meio de uma floresta negra, a carruagem de Gerda brilhava tanto que o

bando de ladrões, escondido à espreita, ficou deslumbrado.

— Ouro! Ouro! — gritaram eles, atacando a partir dos arbustos. Agarraram nas rédeas

dos cavalos, mataram o cocheiro, o lacaio e os atedores, e arrastaram Gerda para fora do

coche.

— Ela é adorável e rechonchuda. Tem sido alimentada com nozes — disse uma velha

salteadora chamada Muz, com uma barba cinzenta. — Vou comer a pequena cordeirinha

assada na brasa.

E, dizendo isto, pegou numa faca parecida com um raio enferrujado.

— Au! — gritou ela, pois a sua orelha estava a ser mordida por Buzzer, a sua pequena

neta, que vinha às cavalitas.

— Ela vai ser minha amiga e brincar comigo — gritou Buzzer. — Até vai dar-me o seu

belo manto de princesa. E há-de dormir na minha cama comigo. Concorda, velha Muz? —

perguntou, mordendo-a novamente.

— Au! — gritou Muz. — Concordo!

Buzzer saltou para o chão e puxou Gerda para dentro do coche. O bando de ladrões

entrou no interior da floresta. A rapariga ladra colocou um braço à volta de Gerda e disse:

— Não te preocupes. Eu não vou deixar que eles te matem. Tu és uma princesa, não és?

— Não — disse Gerda — sou só uma pobre rapariga da cidade.

Gerda contou a Buzzer a busca de Kai.

A pequena salteadora acenou com a cabeça e disse:

— Eu não vou deixar que eles te matem... mesmo que me faças zangar. Não, eu vou

tratar das coisas sozinha!

O coche foi conduzido para o castelo dos ladrões. Através dos vidros, viam-se corvos e

morcegos. No meio do chão, crepitava uma fogueira cheio de fumo.

— Vais dormir aqui comigo e com os meus bichinhos — disse Buzzer, puxando Gerda

para cima de um monte de palha.

Apontando para uma gaiola de madeira bem alta na parede, disse:

— Esses são os meus pombos. E esta aqui é a minha querida Moo.

E agarrou nos chifres de uma velha rena e puxou-os até às patas.

— Está amarrada, se não, sai sorrateiramente. Sabes, todas as noites, faço-lhe

cócegas no pescoço com o meu punhal.

Buzzer retirou do cinto uma pequena faca dentada e mostrou-a.

— A Moo gosta disso? — perguntou Gerda desconfiada.

— Oh, não, mesmo nada — riu Buzzer enquanto Moo recuava o mais que podia. — Bem...

está na hora de dormir.

Puxou Gerda para se deitar na palha.

— Dormes sempre com o punhal?

— Oh, sim — respondeu Buzzer. — Nunca se sabe o que pode acontecer. Fala-me mais

sobre ti — pediu, pois adorava histórias.

Enquanto Gerda falava, Buzzer adormeceu, com a faca na mão. Gerda não conseguia

dormir. Iria morrer ou não?

De repente, um dos pombos arrulhou:

— Crruuu! Nós vimos o Kai a deslizar na neve pelos bosques gelados, ao lado da Rainha

das Neves.

Gerda sentou-se. Buzzer estava a ressonar.

— Para onde é que a Rainha das Neves o levou? — perguntou Gerda.

O pombo respondeu:

— Deve ter ido para a Lapónia, pois essa terra está toda coberta de neve. Pergunta à

rena amarrada ao pé da cama, pois ela tem obrigação de saber.

— Moo, conheces a Lapónia? — perguntou Gerda.

— A Lapónia? — sussurrou a rena. — Sim, imensos céus brancos e pradarias a brilhar

com musgos dourados. A Rainha das Neves vive lá no Verão, mas o seu verdadeiro palácio é

mais para cima, perto do Pólo Norte, na ilha dos ventos brancos, a que chamam Spitsbergen.

— Pobre Kai! — lamentou Gerda.

— Está quieta, Gerda, se não, ainda te espeto a faca na barriga — disse Buzzer, e

Gerda obedeceu.

Mas na manhã seguinte, Gerda contou a Buzzer o que o pombo lhe dissera.

A rapariga pareceu ficar séria e depois disse:

— Não te preocupes, cá nos arranjamos. Moo, sabes onde fica a Lapónia?

Os olhos da rena reluziram.

— Foi onde eu nasci.

— Escuta, Gerda — disse Buzzer. — Todos os homens saíram para ir roubar, deixando

Muz de guarda. Mas não tarda nada, ela vai beber do seu garrafão e tirar uma soneca.

Nessa altura farei alguma coisa por ti.

Buzzer saltou da cama, abraçou a avó e puxou-lhe os bigodes:

— Bom-dia, querida cabritinha!

A avó respondeu-lhe com um amoroso murro no nariz.

Mal Muz bebeu do seu garrafão e começou a dormitar, Buzzer deu uma palmada à sua

rena e disse:

— Moo, tu sabes que eu estou cheia de vontade de fazer cócegas no teu pescoço com o

meu punhal. Mas vou cortar-te a corda e libertar-te. Atravessa a Lapónia com a Gerda e

leva-a até ao palácio da Rainha das Neves para ela encontrar o seu amigo.

A rena acedeu, cheia de contentamento. Buzzer ajudou Gerda a montar e prendeu-a ao

dorso da rena.

— Agora, estás bem — disse ela. — Fica com as botas de pele e as luvas... vais precisar

delas. Mas eu fico com o manto.

De seguida, Buzzer abriu a porta e cortou a corda da rena com o punhal.

— Vai lá embora, Moo! — gritou. — Mas toma bem conta dessa menina.

E assim a rena partiu para longe, através de florestas e pântanos, passando por

grandes planícies. Os lobos uivavam e os corvos crocitavam. Subitamente, surgiu um grande

clarão, como se o céu lançasse girândolas de fogo.

— São as minhas queridas auroras boreais! — disse a rena feliz. — Olha como brilham!

E a rena continuou a galopar velozmente, de dia e de noite, até que parou, levantou a

cabeça e inspirou.

— Chegámos — disse. — Bem-vinda à Lapónia.

A Mulher Lapónia e a Mulher Finlandesa

Foi Gerda quem avistou a cabana. O tecto tocava no chão e a entrada era tão baixa que

tinha de se entrar e sair de gatas. Em casa só havia uma velha mulher lapónia, a fritar peixe

num fogão a óleo. Moo contou-lhe, em primeiro lugar, a sua própria história e depois, em

poucas palavras, falou sobre a busca de Gerda, que lhe parecia menos importante. Gerda

sentia frio demais para falar.

— Pobres criaturas! — disse a mulher lapónia. — Ainda têm muitos quilómetros de neve

pela frente até encontrarem o palácio da Rainha das Neves. Vou escrever uma carta à

minha amiga que vive lá perto, uma velha mulher finlandesa. Mostra-lha, que ela saberá o

que fazer. Como não tenho papel para escrever, tenho de escrever num pedaço de bacalhau

seco.

Gerda ficou mais animada depois de comer e beber alguma coisa.

A mulher lapónia escreveu uma longa carta sobre a pele de bacalhau seca, entregou-a a

Gerda, e ajudou a prender a menina ao dorso da rena. O animal partiu a grande galope.

Depressa chegaram à Finlândia e quase chocaram com a chaminé da casa da mulher

finlandesa, que era subterrânea. Que calor fazia lá dentro! A velha mulher tirou as luvas e

as botas de Gerda e arrefeceu com gelo a testa da rena.

De seguida, leu três vezes o que estava escrito na pele seca de bacalhau, e deitou-a na

sua panela da sopa; quem economiza tem quando precisa.

— Agora já sei tudo sobre ti — disse a mulher finlandesa.

— Vejo que a senhora é mágica — disse a rena. — Porque não oferece à Gerda uma

poção que lhe dê a força de dez homens para que consiga vencer a Rainha das Neves?

A mulher finlandesa riu e disse:

— A força de dez homens? Isso não lhe vale de muito.

A seguir, retirou um pergaminho antigo da sua prateleira, desenrolou-o e leu os seus

hieróglifos mágicos até o suor lhe correr pela testa. Depois, conduziu a rena até a um canto

e sussurrou:

— O Kai está com a Rainha das Neves no seu palácio. Ele acredita que ela é bondosa e

bonita; mas é por causa do espelho do diabo, que ele tem no coração e nos olhos. Esses

bocados têm de sair e bem depressa, ou o Kai nunca voltará a ser humano e a Rainha das

Neves ficará com ele para sempre.

— Não pode dar um feitiço à menina para libertar o Kai?

— Eu não posso dar à Gerda mais poder do que aquele que ela já tem. Não vês como é

forte? Observa como as pessoas e os animais querem ajudá-la. Vê o quanto ela já viajou

com os pés descalços por este mundo cruel! Mas ela não pode saber onde reside o seu

poder. Ele vem da inocência que existe no seu coração. A Gerda vai conseguir libertar

sozinha o Kai. Rápido! Leva-a até aos jardins da Rainha das Neves, que ficam a quinze

quilómetros daqui. Mas terás de a deixar quando chegares a um bosque com framboesas,

que verás no meio da neve. Agora, corre e não pares a conversar com as renas que

encontrares pelo caminho!

A mulher finlandesa coloca Gerda sobre o dorso da rena. Moo atravessou a porta e

galopou sobre a neve.

— Esqueci-me das minhas botas e das luvas! — exclamou Gerda.

Mas Moo não se atreveu a parar até chegar ao bosque das framboesas. Ali deixou

Gerda, a quem deu um beijo.

— Não tenho autorização para prosseguir — disse a rena.

— Quem é que dita essas regras tão más?

— Não sei — disse Moo — mas não devem ser quebradas. Nunca quebres uma regra até

saberes o que fazer com os pedacinhos.

Gerda afagou o pescoço da rena e segredou-lhe ao ouvido esquerdo uma canção:

O mundo é grande e nós tão pequenos

e até parece que valemos menos...

O teu coração é leal e a tua coragem é forte.

Acredito que nos veremos no Sul ou no Norte,

este ano ou no próximo, um dia...

Então, Moo virou-se e partiu a correr, com lágrimas nos olhos.

E Gerda ficou sozinha, numa terra de neve e de gelo. Correu em frente, com os pés

roxos de frio.

Subitamente, um exército de flocos de neve apareceu à sua frente. Eles não caíam do

céu — pois esse não tinha nuvens — marchavam pelo chão. Quanto mais se aproximavam,

maiores ficavam. Gerda recordou-se de como pareciam enormes os flocos de neve, através

da lupa de Kai. Mas estes eram muito maiores e mais assustadores.

Estes flocos de neve estavam vivos! Eram os soldados da Rainha das Neves e as suas

formas eram monstruosas. Alguns pareciam porcos-espinhos horrorosos, outros, cobras

entrelaçadas, outros, ursos pardos com o pêlo espetado. Todos eram de uma ofuscante

brancura.

Gerda rezou uma oração que a avó lhe tinha ensinado. O ar estava tão frio que ela

conseguia ver as palavras a soltarem-se da boca em letras de fumo.

Este fumo ficou mais espesso e transformou-se numa nuvem de pequenos anjos

brilhantes. Todos eles usavam capacete na cabeça e traziam lanças e escudos. À medida

que a menina rezava a oração, os anjos cresciam e multiplicavam-se, até Gerda estar

cercada por um exército de anjos.

Estes atacaram os terríveis flocos de neve, despedaçando-os em mil fragmentos. Os

anjos sopraram em direcção aos pés e às mãos de Gerda e ela deixou de sentir frio. E foi

assim que conseguiu seguir rapidamente para o palácio da Rainha das Neves.

O Palácio da Rainha das Neves

O palácio da Rainha das Neves parecia uma torre de um icebergue num mar de gelo.

Havia nele um labirinto de salas imensas, iluminadas pelos clarões da aurora boreal. Tudo ali

cintilava. Mas que vazio e que frio! Na mais imensa das salas, via-se um lago inteiramente

gelado, cujo gelo estava rachado em milhares e milhares de fragmentos, todos

exactamente iguais uns aos outros.

No meio desta toalha de gelo ficava o trono da Rainha das Neves. Ela chamava ao seu

lago O Espelho do Pensamento – o único espelho sincero no mundo.

O pequeno Kai estava roxo de frio, mas não se apercebia disso, pois a Rainha dera-lhe

um beijo e afastara todos os tremores.

Ele andava a arrastar alguns fragmentos de gelo, lisos e regulares, de um lado para o

outro, tentando juntá-los para formar uma palavra. Estava cercado por um puzzle

provavelmente impossível, onde as peças eram iguais umas às outras.

— Como é que está a correr o Grande Jogo do Pensamento, Kai? — perguntou com

calma a Rainha das Neves a partir do seu trono.

— É muito difícil — disse Kai. — É como tentar fazer um quebra-cabeças.

— Mas é muito mais importante do que um quebra-cabeças, não é? — perguntou a

Rainha.

— Claro que sim — respondeu Kai, pois ela tinha-o ensinado bem. — É a coisa mais

importante de todas. A única coisa que interessa é o Grande Jogo.

— Tens razão. É a única coisa que interessa. Tens de juntar as peças para formar a

palavra.

— Tenho de juntar as peças para formar uma palavra — repetiu Kai.

— Não é uma palavra, seu estúpido! É a palavra! O teu cérebro adormeceu?

— Tenho de juntar as peças para formar a palavra.

— E qual é a palavra? — gritou a Rainha das Neves.

— A palavra que tenho de fazer com as peças é... ETERNIDADE.

Entretanto, a Rainha acalmara-se no seu alto e frio trono.

— ETERNIDADE, sim. E o que é que ETERNIDADE significa?

— Eu acho que quer dizer... para sempre.

— Muito bem, Kai, muito bem — disse a Rainha. — Se conseguires fazer essa palavra,

ETERNIDADE, serás livre e eu ofereço-te o mundo inteiro... e um par de patins.

— É muito difícil — queixou-se Kai.

— É mesmo para ser difícil — disse a Rainha. — Agora, tenho de ir cobrir de neve os

cumes dos meus vulcões. Dedica-te ao Grande Jogo, Kai. Eu volto num abrir e fechar de

olhos.

Kai ficou sozinho a olhar fixamente os mil pedacinhos de gelo, e a pensar, a pensar, a

pensar, até se sentir tonto. Estava ali imóvel, inerte. Parecia ter sido petrificado pelo gelo.

Gerda entrou no palácio através do enorme portão, onde se sentiam ventos cortantes

que a impediam de continuar. Gerda rezou a sua oração da noite e os ventos desvaneceram-

-se. Pôde então caminhar pelo labirinto de salas imensas, até entrar na sala do trono.

Ali estava Kai!

Ela reconheceu-o e percorreu os quilómetros de gelo que os separavam até chegar

junto dele, lançando os braços à sua volta e abraçando-o com força. Mantendo-o apertado

contra si, gritou:

— Kai! Kai! Até que enfim te encontrei!

Porém, Kai continuava ajoelhado no chão, frio e parado como uma estátua, com os olhos

fixos nos pedacinhos de gelo.

— Kai! — sussurrou Gerda no seu ouvido. — Sou eu, a Gerda, não te lembras de mim?

Eu não vou chorar — disse ela. — Nós nunca choramos, pois não?

Os lábios azuis de Kai não se abriram. Foi então que Gerda chorou. Chorou quentes

lágrimas que caíram sobre o peito de Kai, penetraram no seu coração e fundiram o gelo, de

modo que o cruel estilhaço de vidro foi levado pelo gelo derretido.

De imediato, Kai levantou a cabeça e levou a mão ao peito.

— O meu coração! — gritou ele. — Está a acontecer algo ao meu coração!

— Não tarda, volta a ser Verão — disse Gerda — e veremos as rosas no nosso terraço.

— Não vou chorar — disse Kai. — Nós nunca choramos.

Mas chorou de facto. Lágrimas que limparam os seus olhos dos pedacinhos de vidro do

espelho do diabo.

E assim Kai reconheceu Gerda e soube o quanto a amava, gritando:

— Gerda! Gerda! Por onde andaste todo este tempo? E eu?

Depois olhou em seu redor e disse:

— Que frio é este lugar! Frio, enorme e vazio!

Kai abraçou Gerda e, de tão felizes, riram, choraram e dançaram.

Estavam tão felizes que até os pedaços lisos de gelo se levantaram e dançaram com

eles. E quando os pedaços de gelo ficaram cansados, deitaram-se no gelo e formaram a

palavra ETERNIDADE.

Foi assim que o feitiço se quebrou. A Rainha das Neves tinha prometido a Kai que, caso

resolvesse o quebra-cabeças, poderia ficar livre, ter o mundo inteiro... e também um par de

patins.

Gerda beijou-lhe as faces e o seu tom arroxeado foi substituído pela cor das rosas.

Beijou as suas mãos e os seus pés e, de repente, Kai voltou a ser um bonito rapaz, cheio de

saúde e de alegria.

O que importava agora, se a Rainha das Neves chegasse? O direito de Kai à liberdade

estava escrito nas letras do gelo cintilante. Kai pegou na mão de Gerda. Juntos saíram do

enorme palácio, conversando sobre a Avó e as rosas do seu terraço.

Enquanto Gerda e Kai saíam do Palácio, os ventos gelados desapareceram e o Sol surgiu

através das nuvens.

Quando chegaram ao bosque, Moo estava à espera. Ele trouxera uma rena fêmea, que

lhes deu leite quente do seu peito.

De seguida, as duas renas levaram Kai e Gerda até à casa da velha mulher finlandesa,

onde se aqueceram, seguindo caminho para visitarem a velha mulher lapónia, que lhes deu

roupas novas feitas por ela e um trenó bem forte para o resto da viagem.

Moo e a sua nova amiga acompanharam-nos até à fronteira da Lapónia, onde as folhas

verdes da Primavera começavam a aparecer.

Então, Gerda e Kai despediram-se com muito carinho das renas e da velha mulher

lapónia.

As árvores da floresta começavam a vestir-se de verde e os pássaros enchiam o ar de

alegres trinados.

Gerda e Kai caminharam de mãos dadas. Alcançaram as margens do rio sinuoso e

seguiram o seu curso durante algum tempo, evitando a cabana da velhinha. Numa das praias

do rio, enquanto molhavam os pés para se refrescarem, Gerda disse a Kai:

— Este é o rio que me ajudou a encontrar-te. Tenho de agradecer-lhe.

E, assim, Gerda cantou para o rio:

Rio sinuoso, por aqui ando eu a passear

Com o meu amigo Kai que acabei de encontrar

Rio sinuoso que para mim foste tão bom,

Peço-te que, a caminho do mar, ouças o som

Da minha voz a agradecer-te...

Naquele momento, Gerda viu os seus sapatos vermelhos sobre uma onda. Entrou na

água, chapinhando por todo o lado, e foi buscá-los.

— O rio devolveu-me os meus sapatos vermelhos — contou a Kai.

Ambos agradeceram ao rio e beberam da sua água saborosa, juntando as mãos em

forma de concha.

Subitamente, os sinos de uma igreja soaram alto.

— Conheço aqueles sinos — disse Gerda. — São os sinos da nossa cidade.

— Olha! — disse Kai. — Ali está ela! E ali está o nosso terraço!

Começaram, então, a correr até à porta da Avó e subiram em direcção ao quarto, onde

tudo estava nos mesmos lugares, excepto um par de patins que brilhava no canto.

O relógio do avô continuava a fazer tiquetaque e os seus ponteiros moviam-se. Quando

Gerda e Kai transpuseram a porta, deram conta de que ambos tinham crescido.

As rosas floresciam junto da janela aberta e Gerda e Kai sentaram-se no banco, como

noutros tempos, e deram as mãos.

Tinham esquecido, como se de um pesadelo se tratasse, os frios esplendores da Rainha

das Neves. A avó estava sentada ao sol e lia a Bíblia: Se não fordes como crianças, não

entrareis no Reino dos Céus.

Kai e Gerda olharam-se e compreenderam.

Permaneceram sentados durante muito tempo, de mãos dadas. Tinham crescido e,

apesar disso, continuavam crianças, crianças de coração.

Hans Christian Andersen

A Rainha da Neve Porto, Editora Civilização, 2000

Texto adaptado