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O ESPAÇO FICCIONAL E A INSTAURAÇÃO DO TERROR NOS CONTOS DE POE

Marisa Martins Gama-Khalil Resumo: A proposta do estudo é mostrar de que forma um elemento narrativo, o espaço, pode fun-cionar de forma decisiva para a construção do clima de terror em narrativas fantásticas. Para esse objetivo, tomaremos como objeto de análise seis contos de Poe: “Berenice”, “A queda do solar de Usher”, “O gato preto”, “O barril do Amontilado”, “O retrato oval” e “O poço e o pêndulo”, porque neles observa-se que a hesitação é construída especialmente pelas configurações espaciais e que tal hesitação, instalada tanto no plano da diegese quanto no da leitura, desencadeia a ambientação de terror nas narrativas. As teorias de T. Todorov, Louis Vax e Remo Ceserani serão os principais su-portes teóricos para o entendimento da ambientação do terror/fantástico; no que tange à compreen-são das construções espaciais, serão utilizadas as noções de heterotopia, utopia e atopia de Michel Foucault, e de espaço liso e estriado de Gilles Deleuze e Félix Guattari; e, por fim, o próprio Poe entra como voz teórica, com as suas filosofias, a da composição e a do mobiliário. Palavras-chave: fantástico · terror · espaço Abstract: This study aims at demonstrating how space as a narrative element can work decisively to construct terror climate in fantastic narratives. It will be taken for analysis six Poe’s tales: “Beren-ice”, “The Fall of the House of Usher”, “The Black Cat”, “The Cask of Amontillado”, “The Oval Por-trait” and “The Pit and the Pendulum”. In such tales, hesitation is constructed, especially, by spatial configurations. Such hesitation, installed both on a diegetic plan and in a reading plan, provokes a terror environment in narratives. The theories of T. Todorov, Louis Vax and Remo Ceserani will be taken as framework to approach terror and fantastic environment. To focus spatial constructions it will be used Michel Foucault’s notions of heterotopy, utopia and atopia, as well as Gilles Deleuze and Félix Guattari’s notions of smooth and grooving spaces. Finally, Poe’s theoretical voice is pre-sent in his philosophies of composition and furniture. Keywords: fantastic · terror · space.

Basta uma noite escura, um ruído insuspeita-do, um momento de descuido em que perce-bemos com o rabo do olho uma sombra passa-geira, para que nossos pesadelos nos pareçam possíveis e para que busquemos na literatura a dupla satisfação de saber que o medo existe e que ele tem a forma de conto.

Alberto Manguel1

Os contos de terror de Poe inauguraram uma nova forma estética revolucionária no

campo da literatura fantástica. Antes de Poe, sabemos que os escritores já exploravam en-

redos cujo mote era a abordagem de horrores e fantasmagorias, na esteira do que ficou co-nhecido como romance gótico ou romance negro; entretanto, coube a Poe o lugar de instau-

rador de novos procedimentos estéticos no campo da literatura fantástica e, mais precisa-

mente, da literatura de terror. Em O horror sobrenatural em literatura, Lovecraft dedica um dos capítulos a Edgar Allan Poe por considerá-lo mestre supremo do fantástico. Os escrito-

1 MANGUEL. História de terror, p. 9.

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res medíocres, na visão de Lovecraft, desrespeitam o fantástico porque banalizam o insólito e tentam explicar o que é inexplicável. Há, contrariamente, nas narrativas de horror de Poe,

sugestões de respostas para o insólito apresentado, mas não uma linha reta de argumento

que racionaliza o irracional. Sua literatura conseguiu ser avaliada como fundadora no gê-nero em função de não trabalhar a partir de oposições simplificadoras. Por esse motivo,

bem e mal são repulsivos e atrativos, estimulantes e deprimentes; tudo dependerá das cir-

cunstâncias em que o sujeito se encontra. É nesse sentido que, em suas narrativas, o traba-lho com a ambientação de cenas de horror mescla-se a passagens repletas de reflexões so-

bre os universos que o homem habita, passagens essas em que o autor se manifesta explici-

tamente como um “formulador de opinião”.2

Em seus contos, Poe atribui a todos os elementos ficcionais a função importante de ge-

ração de sentidos e, por esse motivo, vemos que o espaço, elemento muitas vezes deslocado

para as margens em outras narrativas, ganha lugar de destaque. A atmosfera fantástica dos contos de Poe, na maioria das vezes, é desencadeada por intermédio da constituição dos

espaços onde a história se desenrola; assim, entendemos que ler Poe sem considerar o seu

trabalho com os espaços ficcionais significa perder em grande parte o efeito – a base narra-tiva. No ponto de vista de Michel Foucault, a crítica literária vem conferindo pouco valor

ao espaço ficcional e, em decorrência dessa perspectiva, muitas análises privilegiam o nar-

rador, as personagens e especialmente o tempo como foco de suas abordagens. Para Fou-cault, o tempo é um elemento de enorme importância, já que a linguagem funciona no

tempo, na medida em que “é a cadeia falada que funciona para dizer o tempo”.3 Não obs-

tante, se a função da linguagem é o tempo, seu ser é espacial, pois o que determina o cará-ter sígnico a um signo não é a sua inscrição em um tempo, mas a sua inscrição em um es-

paço, uma vez que “de modo geral, só há signos significantes, com seu significado, por leis de substituição, de combinação de elementos, por conseguinte, em um espaço”.4 Na lin-

guagem cotidiana, por exemplo, a localização das palavras determina os sentidos gerados; o

simples deslocamento de uma palavra desloca também o sentido para outra direção de lei-tura. No caso do texto literário, o trabalho com os espaços é de enorme valor, já que os a-

contecimentos ficcionais conseguem edificar-se somente por intermédio de uma espaciali-

dade que lhes dê sustentáculo.

Nas narrativas fantásticas, defendemos que o espaço ficcional constitui-se como uma

base por meio da qual o leitor será instigado a reler o seu espaço real a partir da visão que

tem daquele espaço irreal e insólito. As imagens que causam o estranhamento desencadei-am reflexões acerca de práticas ideológicas tão comuns no cotidiano, ou seja, o ilógico, o

extraordinário propõe-se como uma ponte para o lógico, para o ordinário. Podemos dizer

que, nas narrativas fantásticas, especialmente as de Poe, as personagens e o espaço ficcio-nal representam a atmosfera que constitui as discrepâncias do mundo. Tais discrepâncias

são constatadas de uma forma indireta, por meio do ilógico, e conduzem a um novo olhar

sobre o aparentemente lógico. Poe ressalta a importância do espaço não apenas na tessitura de seus contos, mas quando expõe também suas reflexões acerca da literatura, como no

2 LOVECRAFT. O horror sobrenatural em literatura, p. 62. 3 FOUCAULT. Linguagem e literatura, p. 168. 4 FOUCAULT. Linguagem e literatura, p. 168.

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caso de “Filosofia da composição”. Para unir o amante ao corvo, ele explica que uma das condições fundamentais era construir o local propício para esse evento:

Para isso, a sugestão mais natural seria a de uma floresta, ou a dos campos; mas sempre me pareceu que uma circunscrição fechada do espaço é absolutamente necessária para o efeito do acidente insulado e tem a força de uma moldura para um quadro. Tem a indiscutível for-ça moral para conservar concentrada a atenção e, naturalmente, não deve ser confundida com a mera unidade de lugar.5

Constatamos, pelo excerto, o quanto Poe valoriza o elemento espacial como base do e-feito desencadeado pelo texto literário. A escolha pelo espaço fechado é determinada pela

necessidade de gerar o sentido de insulamento, não só pela temática desenvolvida como

pelo local onde o episódio acontece, emoldurando a cena. Por essa razão, ele escolhe um quarto para colocar o amante e explicita que essa escolha não acontece em função da acla-

mada unidade de lugar, mas da sugestão que tal lugar poderá imprimir ao todo do texto. O

espaço em que o corvo aparece também é significativo enquanto sugestão de sentidos; ele pousa no busto de Minerva para evocar o contraste entre o mármore e a plumagem (ou,

como explica Italo Calvino,6 entre leveza e peso), para combinar com a sabedoria do aman-

te, bem como pela própria sonoridade do vocábulo Minerva. Percebemos mais uma vez o quanto a escolha do espaço funda, na literatura de Poe, a instauração dos sentidos. Sua

preocupação com as espacialidades pode ser verificada igualmente no ensaio intitulado

“Filosofia do mobiliário”. Nele, Poe manifesta o quanto a composição do cenário é funda-mental para se entender os homens, seus anseios e práticas sociais – na ficção ou fora dela.

Realizaremos um enfoque sobre seis contos de Poe. Todavia, esse enfoque não terá co-

mo objetivo uma análise detida de cada conto, mas o de ressaltar o quanto a construção dos espaços ficcionais em Poe é determinante para a instauração do efeito de terror, que desen-

cadeia tanto nas personagens quanto no leitor a condição básica da narrativa fantástica: a hesitação.7

A abertura do conto “Berenice” surpreende o leitor por apresentar um recurso muito re-

corrente na poética de Poe: a plasticização do abstrato. O narrador, no primeiro parágrafo, compara o infortúnio humano ao arco-íris: “Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o

arco-íris, suas cores são como as deste, variadas, distintas e, contudo, intimamente mistu-

radas. Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris!”8 A repetição que abre e fe-cha o trecho (“Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris”) parece funcionar

como moldura para o quadro que aparece pintado através da comparação e que encerra um

paradoxo, já que tanto o infortúnio como o arco-íris possuem cores variadas, distintas, mas também misturadas. Na produção literária de muitos escritores, vemos o trabalho intenso

com a visibilidade, mas essa se restringe, na maioria dos casos, a coisas concretas, não abs-

tratas. Italo Calvino nos alerta sobre a importância da visibilidade na literatura,9 argumen-tando que ela é capaz de fazer o leitor ver de olhos fechados. Entretanto, no caso de Poe,

essa visibilidade é muito mais intensa do que a visão de olhos fechados, na medida em

5 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 917-918. 6 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 28-29. 7 TODOROV. Introdução à literatura fantástica, p. 39. 8 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 191. 9 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 107-108.

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que, com suas narrativas, somos possibilitados a ver o que não pode comumente ser visto, mas apenas sentido, experimentado. Poe torna sólido o fluido, espacializa o que não tem

lugar no concreto mundo dos homens.

O narrador protagonista do conto, Egeu, não revela o nome de sua família, descreve-a por meio do espaço, o solar dos avós, com suas pinturas espalhadas pelo salão principal, as

tapeçarias encontradas nos dormitórios, a diversidade dos quadros antigos. O que chama

mais atenção no mobiliário do solar é a ideia de fechamento, de clausura. Sua descrição culmina com a revelação de um aposento, a biblioteca, que será o espaço central do solar e

do conto. Nela, o narrador fecha em close, uma vez que tal espaço representa o que desen-

cadeia a narrativa: a memória. É dali que o narrador extrai suas lembranças para contar a sua sinistra história. Ela é o arquivo dos livros e o arquivo de Egeu, da sua vida. Nela, sua

mãe morreu, nela, ele nasceu. A biblioteca é uma tentativa de o homem estriar o liso, orde-

nar o desordenado. O espaço liso é fragmentado, heterogêneo, multidirecional, peregrino, como os livros e textos espalhados no mundo. Ao ordená-los em um espaço, a biblioteca, o

homem impõe regras de acumulação e arquivamento, realizando o estriamento. O espaço

estriado é “definido pelo padrão”.10 A memória humana pode ser definida como um espaço liso, como explica o narrador do conto: “de formas aéreas, de olhos espirituais e expressi-

vos, [...] semelhante a uma sombra, vaga, variável, indefinida, inconstante”.11 Quando ele

começa a resgatar, através de movimentos de lembrança, o fato insólito que vai narrar, ele opera o processo de estriamento e começa a dar luz aos eventos que se escondem nas som-

bras. Por isso, veremos que, ao longo de toda narração, ele tentará ser conduzido pela ra-

zão, mostrando que há algumas possibilidades de entendimento lógico para o ilógico, o fantasmagórico. É nesse sentido que ele explica a sua doença, a monomania (“consistia

numa irritabilidade mórbida daquelas faculdades do espírito que a ciência metafísica de-nomina faculdades da atenção”12) e a possível catalepsia de sua prima.

Para melhor descrever esse espaço em torno do qual orbita toda a narrativa, a bibliote-

ca, o narrador utiliza expressões como “regiões da terra das fadas” e “palácio fantástico”. E essa é uma característica constante na poética de Poe, ou seja, espalhar ao longo da narra-

ção expressões que apontam para o gênero e/ou o efeito provocado pelas narrativas e, as-

sim, vemos a incidência enorme dos termos estranho, fantástico, mistério, terror, horror.

Outro procedimento muito comum nas narrativas de Poe é o entrecruzamento de dois

planos espaciais: da realidade e o do sonho. Esse último pode ser relacionado ao espaço

interno do homem. Em “Berenice”, o narrador reconhece: “As realidades do mundo me afetavam como visões, e somente como visões, enquanto que as loucas idéias da terra dos

sonhos tornavam-se, por sua vez, não o estofo de minha existência cotidiana, mas, na rea-

lidade, a minha absoluta e única existência”.13 Vemos exposta a confissão do narrador so-bre o quanto as suas imagens internas interferem na focalização das imagens externas. O

que temos é a interferência do espaço utópico sobre o heterotópico. De acordo com Michel

10 DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs, p. 183. 11 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 191. 12 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 192. 13 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 192.

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Foucault,14 há dois grandes modos de posicionamentos espaciais: as utopias e as heteroto-pias. As utopias “são os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm

com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa”;15 são es-

paços que desabrocham num espaço maravilhoso, abrindo regiões quiméricas. E as hetero-topias são posicionamentos reais que podem ser encontrados no interior de uma cultura e

que estão ao mesmo tempo representados, contestados, invertidos. O jogo entre os espaços

heterotópicos e utópicos que conferem aos contos de Poe grande parte da atmosfera fantás-tica. O leitor oscila, com o narrador, pelas conjunções e oposições entre os dois espaços e,

quando depara com um acontecimento insólito, não tem a certeza de onde ele provém – da

realidade ou da imaginação. Sendo assim, o jogo entre esses espaços constrói diversificados efeitos de estranhamento no leitor.

De acordo com Louis Vax, o espaço fantástico aparece como uma variação subjetiva do

espaço objetivo – ao mesmo tempo homogêneo e contínuo –, desencadeada por intermédio da hesitação do sujeito, vítima de eventos anormais.16 O mundo exterior deixa de ser uma

realidade plena para transformar-se em outra realidade, que se constitui no interior do su-

jeito, irradiando-se para o exterior sem demarcar contornos precisos. Nesse sentido, é o jogo entre os espaços externos e internos que define em grande parte o grau do fantástico

na narrativa de ficção. Para Gaston Bachelard, “o jogo entre o exterior e a intimidade não é

um jogo equilibrado” nem simples.17 É pelo caráter assimétrico e complexo desse jogo que a narrativa define seus graus de realidade e de irrealidade, e, nessa perspectiva, configura

sua maior ou menor inserção no âmbito do fantástico. De acordo com Remo Ceserani um

dos procedimentos constitutivos do fantástico é a representação da passagem de limite e de fronteira. Nas narrativas fantásticas e de terror de Poe, temos com freqüência

exemplos de passagem da dimensão do cotidiano, do familiar e do costumeiro para a do i-nexplicável e do perturbador: passagem de limite, por exemplo, da dimensão da realidade para a do sonho, do pesadelo, ou da loucura. O personagem protagonista se encontra repen-tinamente como se estivesse dentro de duas dimensões diversas, com códigos diversos à sua disposição para orientar-se e compreender.18

Se observarmos, por exemplo, o caso de “Berenice”, é esse oscilar entre os planos que

propicia a hesitação em Egeu e no leitor. O que ocorreu de fato com Berenice? Levantou-se

fantasmagoricamente da morte ou saiu de um ataque de catalepsia e foi assassinada por Egeu? As trinta e duas coisas brancas e pequenas que caem no solo da biblioteca são os

dentes de Berenice arrancados à força por Egeu? Ou tudo não passa da interferência do

sonho no plano da realidade?

Em “A queda do solar de Usher” também temos esse oscilar de planos espaciais. Nela,

temos a história de um irmão, sua irmã gêmea e sua casa – todos imbricados, como se fos-

sem uma só coisa. Novamente um espaço é de primordial importância para a narrativa; e, nesse caso, esse espaço assume a função de protagonista da trama. O solar de Usher é a

alma dos Usher. O narrador, que visita os dois irmãos, percebe que aquela construção não é

14 FOUCAULT. As palavras e as coisas. 15 FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 16 VAX. A arte e a literatura fantástica. 17 BACHELARD. A poética do espaço, p. 19 18 CESERANI. O fantástico, p. 73.

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um simples espaço físico. A mera contemplação do solar, quando da sua chegada, o pertur-ba: “Era um mistério inteiramente insolúvel”,19 mistério para o qual tenta abrir plausíveis

explicações, mas acaba admitindo que as inferências racionais não conseguem explicar

tudo: “se há, sem dúvida, combinações de objetos muito naturais que têm o poder de assim influenciar-nos, a análise desse poder, contudo permanece entre as considerações além de

nossa argúcia”.20 O que se dá ao longo de toda a narração é uma predominância de trechos

referentes à descrição do solar justamente porque o narrador percebe que esse espaço é responsável pela loucura de seu amigo: “efeito que o físico das paredes e torreões cinzentos

e do sombrio pântano em que esse conjunto se espelhava, afinal, produzira sobre o moral

de sua existência”.21 E tal espaço é responsável também pelo terror crescente e contínuo que ele sentiu na época em que lá se hospedou: “Tentei levar-me a crer que muito, senão

tudo aquilo que sentia, se devia à impressionante influência da sombria decoração do apo-

sento, dos panejamentos negros e em farrapos.”22 A tentativa de que fala o narrador é a de estriar o que se alisa, organizando o insólito em suas deduções. Quando foge de uma cena

em que a suposta irmã levanta-se da morte (ou catalepsia?) e ataca mortalmente o seu ir-

mão, o narrador deixa para trás o solar. É dele que precisa fugir e é a descrição dele que ofe-rece ao leitor nas últimas linhas do conto, a descrição do desmoronamento da edificação.

Outro aspecto relacionado ao relevo das espacialidades é o trabalho opositivo com os

lugares abertos e fechados. Em “Berenice”, o narrador oferece-nos a descrição de si e de sua prima através de noções espaciais: “Para ela, os passeios pelas encostas da colina. Para

mim, os estudos do claustro”,23 e, com isso, o leitor pode perceber a saúde e a alegria de

Berenice e a doença e a tristeza do narrador. Essa oposição construída por Poe para as duas personagens contraria a linha de pensamento da civilização ocidental, que costuma delegar

o espaço fechado às mulheres e o aberto aos homens. Depois do início da narrativa, o espa-ço que prevalece é o do claustro e Berenice é contagiada Poe ele, passando a ser uma pes-

soa sem saúde, definhando e morrendo.

Os espaços fechados, claustrofóbicos, são uma constate nas narrativas de Poe. Em “O barril do Amontilado” e “O gato preto”, por exemplo, o processo de emparedamento é a

imagem que move o ápice da atmosfera de horror. Em “O barril de Amontilado” é uma vin-

gança que leva o narrador a executar o amigo pelo emparedamento; em “O gato preto”, a fúria do narrador contra um gato faz com que ele mate a mulher e emparede-a. A imagem

da parede em “O gato preto” é anunciada em sua importância como elemento narrativo na

cena em que a casa do narrador pega fogo e apenas uma parede fica de pé, estampando emblematicamente a figura de um gato enforcado, aludindo ao gato que o narrador enforca-

ra na noite anterior. Essa descrição da parede funciona como um prenúncio do final da

história, quando o narrador emparedará a sua mulher, o que o levará possivelmente ao en-forcamento pelo assassinato. Por trás da parede, o insólito se apresenta: “Sobre sua [da mu-

lher] cabeça, com a boca vermelha escancarada e o olho solitário chispante, estava assenta-

19 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 244. 20 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 244. 21 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 248. 22 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 253. 23 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 192.

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do o horrendo animal [o segundo gato] cuja astúcia me induzira ao crime e cuja voz delato-ra me havia apontado ao carrasco.”24 A parede, então, funciona como uma dimensão miste-

riosa, transgressora do espaço real. O emparedamento da mulher, em “O gato preto”, é exe-

cutado no porão casa; em “O barril do Amontilado” também é na parte subterrânea da casa do narrador. O porão é um lugar das moradias que, de acordo com a teoria bachelardiana,

os homens guardam os objetos antigos e os segredos, onde a memória se acomoda.

Em “Berenice”, o narrador gosta da clausura e parece temer os espaços externos; seu medo é do incontrolável. Em “A queda do solar de Usher” ocorre o mesmo em relação a

Roderick Usher. Ao passo que em “O poço e o pêndulo” e em “O Barril de Amontilado”, o

fechamento espacial suscita o terror; os protagonistas anseiam pelo espaço aberto, pois este lhes trará a vida novamente. Em “O Barril de Amontilado” não há solução para o empare-

damento de Fortunato, pois ele é trancafiado, como já informamos, na parte mais subterrâ-

nea mansão do narrador. Depois do emparedamento o conto se encerra, como que a anun-ciar ao leitor a clausura eterna de Fortunato. Já em “O poço e o pêndulo”, mantém-se em

suspensão a saída ou não do narrador do seu claustro. Nesse conto, como nos demais, as

cenas de descrição espacial abundam, dada a sua imprescindibilidade para a geração do ambiente de horror. A escuridão inicial e a falta de visibilidade colocam o narrador numa

situação em que ele não percebe o espaço. A partir do momento em que há um fio de luz e

ele consegue ver o espaço de seu entorno, inicia sua luta para a fuga do claustro, já que, por exemplo, ele consegue soltar-se das correias que o prendiam na direção do pêndulo afiado

que se lançava em sua direção. A consciência espacial, nesse sentido, é relacionada dire-

tamente à própria consciência de si e de sua salvação. Em todos os casos, manifesta-se uma topofobia, uma vez que temos a explicitação de lugares desconfortáveis, lugares dos quais

as personagens querem fugir. Nas narrativas de terror são naturalmente os espaços topofó-bicos que dominam.

Em “O retrato oval”, a topofobia é construída em pleno espaço que deveria ser o de a-

conchego, pois o narrador, que se encontrava gravemente ferido, e seu criado encontram um castelo abandonado, espaço que se apresenta a eles como um refúgio, que lhes permiti-

ria não passar a noite em relento. Mas assim que se instalam, o narrador começa a perceber

o espaço sombrio em que se encontrava. As descrições espaciais, como em outras narrati-vas, espalham-se por todos os parágrafos. O que incita, porém, o início do clima do insólito

e do horror não é espaço como um todo, mas um de seus elementos: um retrato ovalado.

Em meio a tantos outros retratos, o ovalado despertou-lhe “um efeito totalmente inespera-do”,25 em função de uma luminosidade misteriosa provocada pela luz das velas. No qua-

dro, havia a pintura de uma bela moça que tinha uma absoluta aparência de vida e esse

fato começa a confundir o narrador, dominá-lo e assombrá-lo. Descobre perto dali um livro que relata a história dos quadros existentes no castelo. A pintura havia sido realizada por

pintor que tomou como modelo, por longos dias a fio, a sua jovem esposa. Ele queria che-

gar à perfeição; ela temia aquela obsessão e, com o desenvolvimento da pintura, começou a definhar. Quanto mais a mulher pintada ganhava vida, mais a mulher real esvaía-se, como

que sugada, até a sua morte, que coincide com a finalização do quadro. O retrato oval era

24 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p.301. 25 POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 280.

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tão misterioso e assombroso por conter a alma da mulher do pintor? Ou tudo foi uma ilu-são oriunda do estado de sonolência e delírio do narrador? Temos, no conto, o jogo entre o

espaço interno e o espaço externo à obra de arte, entre utopia e heterotopia. O formato do

quadro pode ser caminho para algumas interpretações, já que o ovo representa geometri-camente o mundo e a perfeição. Ele é também o símbolo do renascimento e da ressurrei-

ção.26 Todos esses sentidos apontam para a tessitura do conto: a perfeição da pintura alme-

jada pelo escritor e um possível e estranho renascimento da mulher do pintor, que morre no plano real e ressuscita num plano ficcional (para sempre?).

Nesse percurso oblíquo e descontínuo que fizemos pelos seis contos supracitados de

Poe, notamos que a instauração do fantástico, mais especificamente do horror, é provocada, em todos os casos, por um trabalho com as espacialidades ficcionais. Essa atenção especial

que Poe imprime aos espaços parece certificar o que Michel de Certeau defende: que toda

narrativa, todo relato “é uma prática de espaço”.27 Dito de outro modo, não haveria narrati-va fora dos espaços. Onde pisariam as personagens; quais objetos exteriores ela contrastaria

com os labirintos do seu espaço interior; em que medida haveria o horror sem os espaços

que incitassem seu surgimento? O insólito necessita do sólido para emergir.

REFERÊNCIAS

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CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CESERANI, Remo. O fantástico. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

CHEVALIER, Jean; GUEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v. 5.

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FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: MOTTA, Manoel Barros da. (Org.) Estética: litera-tura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Fo-rense Universitária, 2001. s.p.

LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo: Iluminuras, 2007.

MANGUEL, Alberto. História de terror. In: _____. (Org.). Contos de horror do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 9.

POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia & ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

26 CHEVALIER; GUEERBRANT. Dicionário de símbolos, p. 674. 27 CERTEAU. A invenção do cotidiano, p. 200.

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TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

VAX, Louis. A arte e a literatura fantástica. Rio de Janeiro: Arcádia, 1974.

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