o espaço da criança na aldeia de carapicuíba

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DISSERTAÇÃO APRESENTADA À FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM ARQUITETURA E URBANISMO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PROJETO DE ARQUITETURA em 2009Autora: TATIANA DE OLIVEIRA ONOZATO

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  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 1

    TATIANA DE OLIVEIRA ONOZATO

    O espao da criana na Aldeia de Carapicuba

    So Paulo 2009

  • 2 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 3

    TATIANA DE OLIVEIRA ONOZATO

    O espao da criana na Aldeia de Carapicuba

    DISSERTAO APRESENTADA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO PARA OBTENO

    DO TTULO DE MESTRE EM ARQUITETURA E URBANISMO REA DE CONCENTRAO: PROJETO DE ARQUITETURA

    ORIENTADOR: PROF DR SYLVIO BARROS SAWAYA

    So Paulo 2009

  • 4 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. E-MAIL:[email protected]

    Onozato, Tatiana de Oliveira O58e O espao da criana na Aldeia de Carapicuba / Tatiana de Oliveira Onozato. --So Paulo, 2009. 307 p. : il. Dissertao (Mestrado - rea de Concentrao: Projeto de Arquitetura) - FAUUSP. Orientador: Sylvio Barros Sawaya 1. Arquitetura 2.Espaos culturais 3.Brincadeiras 4.Aldeia de Carapicuba (SP) I.Ttulo CDU 72

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 5

    s crianas da OCA e

    Aos meus sobrinhos Sofia e Lucas

  • 6 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    AGRADECIMENTOS

    Infinita gratido a Deus que colocou em meu caminho todas as pessoas com

    as quais compartilhei e compartilho minha vida.

    Ao meu melhor amigo e eterno amor, Maurcio, pelo carinho, apoio,

    compreenso e pacincia. Pelo incentivo, no dia-a-dia, a acreditar em meus

    sonhos e comungar a esperana de mundo melhor.

    Ao Prof. Dr. Sylvio Barros Sawaya, mestre e amigo de grande corao e

    sensibilidade; por ter enxergado uma fora em mim que eu nem imaginava

    que existia.

    As professoras da banca de qualificao: Prof. Dr Anlia Amorim e Prof Dr

    Clice Sanjar Mazzilli pelas sbias colocaes que nortearam a finalizao

    desta dissertao.

    Aos professores: Prof. Dr Eduardo de Jesus Rodrigues, Prof. Dr Maria Jos

    Feitosa e Prof. Dr Miguel Pereira, pelas conversas esclarecedoras e pelo apoio.

    Ao Prof. Dr. Alexandre Delijaicov por conduzir sabiamente a minha primeira

    experincia didtica e por ampliar o meu conceito de arquitetura e

    compreenso do verdadeiro papel do arquiteto.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 7

    Aos funcionrios da FAU Maranho e FAU Cidade Universitria, sem a energia

    de vocs nada funcionaria. Em especial, Isa, Estelita e Maria Jos.

    Eliane Katibian, pela fora e disposio em ajudar desde o incio.

    Prefeitura Municipal de Carapicuba, em especial Secretaria de

    Planejamento e Secretaria da Cultura.

    Ao IPHAN, pelo apoio tcnico do acervo, em especial Rose por sua gentil

    prontido.

    Ao Teatro Brincante, aos professores: Rosane Almeida, Lucilene Silva,

    Cristiane Velasco, Adelson Murta (Adelsin), Maria Amlia Pereira (Peo), Eugnia

    Nbrega, Lydia Hortlio, Cristina Cruz e Maria do Carmo Lima (Mary), e amigos

    - em especial, Al, Jnior e Synthia - do curso de Educador Brincante, por

    revelar caminhos to prazerosos da cultura popular brasileira.

    s crianas da OCA, pela recepo calorosa, pelo carinho e por todos os

    ensinamentos ao longo desses anos.

    Cris Cruz por ter me recebido de braos abertos na OCA.

    equipe maravilhosa da OCA Adh, Aliane, Aninha, Cris Cruz, Ju, Peo, Rose

    e Dona Violeta; aos queridos professores Lu, Vera, Mary e Fofo; aos

    monitores: Adriano, Bibia, Keila, Nenm, Nina, Mayara, Paulo e Pingo. E a

    todos os voluntrios e colaboradores.

    Ao Mox, antigo professor da OCA, que trilha novo caminho com as crianas

    da Aldeia.

    comunidade da Aldeia de Carapicuba.

  • 8 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Aos professores e s crianas da Casa Redonda Centro de Estudos.

    Maria Amlia Pereira - a Peo por ter me acolhido carinhosamente, pela

    dedicao, e por ter me mostrado o que o verdadeiro brincar.

    A minha famlia, porto seguro sempre. Aos meus avs maternos, Pedro e

    Isabel (in memorian), migrantes do serto nordestino, pelo amor, coragem,

    cuidado e f. Aos meus avs paternos, Yoshiro (in memorian) e Sumie,

    imigrantes japoneses pela luta e esperana.

    Aos meus pais, Paulo e Sebastiana, pelo amor, pelo esforo e pela dedicao

    incondicional. tia Toninha pelo carinho e cuidado com nossa famlia.

    As minhas irms e amigas Adriana, Luciana e Liliana, por conseguir extrair de

    mim o que tenho de melhor - em especial Liliana, pela dedicao e

    pacincia ao revisar o trabalho.

    Aos meus cunhados, Adriano, Fbio e Luis, por fazerem parte da famlia - e

    em especial ao Fbio pelo abstract.

    Aos meus sobrinhos amados Sofia e Lucas, por iluminar a nossa famlia com a

    pureza do que ser criana.

    A Jacira, minha sogra, pelo carinho e por elevar sempre meu nvel espiritual

    Ao Fbio Pagani, outro cunhado, por me acolher em So Paulo de corao

    aberto.

    As minhas eternas amigas-irms: Lisa, Manu, N, Gi e V, pela amizade fiel,

    verdadeira e muito divertida.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 9

    amiga Marcele Silveira, por ter me aberto tantos caminhos, pela amizade e

    pela prontido na ajuda de tantas dvidas. Que, ainda, junto ao amigo Luciano

    Ferreti iniciamos a caminhada na Fau.

    Aos amigos da ps-graduao: Alessandra Navarro, Cristiane Larsen, Pablo

    Padin e Thais Bortolato, Pier Paolo Pizzolato.

    amiga Lucia Hashizume pelo carinho, pela amizade e por ter aberto um novo

    caminho para mim.

    amiga Cristina Xavier, por acreditar em mim, pelo apoio e por ter me

    ensinado como pensar a arquitetura.

    amiga Cris Pasquini, por ter me acolhido no mercado de trabalho quando

    recm-formada; por ter sempre me incentivado a fazer mestrado e a acreditar

    em mim.

    Aos amigos Antonio Faria e Rosana Mohacsi, pela amizade verdadeira e

    apoio.

    Arlete e Anglica, pessoas maravilhosas, peas principais no incio do meu

    processo de tomada de conscincia.

  • 10 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 11

    Deus quer, o homem sonha, a obra nasce FERNANDO PESSOA

  • 12 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 13

    RESUMO

    Ttulo: O espao da criana na Aldeia de Carapicuba

    Prope uma reflexo sobre a Aldeia de Carapicuba como elemento essencial na formao do territrio no Brasil. Esse espao surgido como aldeamento pela ao dos jesutas, indica que se tem, desde ento, uma relao bsica com viso comunitria fundamentada em famlias, seus filhos e suas crianas. Isso se mantm no decorrer do tempo atravs de sucessivas transformaes, inclusive, havendo uma insistncia em permanecer no espao mesmo quando se props sua destruio. Contemporaneamente, retomando essa tradio, instalou-se ali a OCA Associao da Aldeia de Carapicuba cujas atividades so voltadas para as crianas com nfase especial no brincar enquanto exerccio fundamental da formao do ser humano. O presente trabalho busca compreender a perenidade dessa vocao do espao da aldeia revivida por meio das atividades ldicas. Palavras-chave: Arquitetura - Espaos Culturais - Brincadeiras Aldeia de Carapicuba

  • 14 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    ABSTRACT

    Title: The space of children at Carapicubas village Proposes a reflection about village of Carapicuba (named Aldeia de Carapicuba) as an essential element in formation of Brazilian territory. That place, aroused as a resort by the action of Jesuits, points that, there is a basic relation with communitarian vision based in families their sons and kids since then. This fact keeps happening through years by successive transformations, its occupation included, even when its destruction was proposed. Contemporaneously, reacting this tradition was installed there, the OCA Associao da Aldeia de Carapicuba which activities are for children with a special emphasize in playing situations as a primordial exercise in human being formation. This paper objectives comprehend perennial vocation of space from the village revived through playful activities. Key words: Architecture, cultural spaces, plays, Carapicubas village

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 15

    SUMRIO 15

    INTRODUO 19

    1. O ESPAO DA CRIANA HOJE 31

    1.1. Educao do amanh o despertar da conscincia 33

    1.2. O Brincar e a Cultura da Infncia 39

    1.2.1. O Ldico 42

    1.2.2. O Brincar 48

    1.2.3. A Cultura Infantil e o Brincar 53

    1.2.4. O Folclore Infantil e a Cultura Infantil 57

    1.2.5. Educao da Sensibilidade 60

    1.3. A Criana e o Ambiente Urbano 72

    1.3.1. CEU Centro Educacional Integrado 80

  • 16 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    2. A IDENTIDADE DA ALDEIA DE CARAPICUBA 89

    2.1. O Processo de colonizao no Planalto Paulistano e os

    Aldeamentos Paulistas 91

    2.1.1. Os Aldeamentos Paulistas 97

    2.2. Histrico da Aldeia de Carapicuba 113

    2.2.1. Localizao 113

    2.2.2. Caracterizao 116

    2.3. A Aldeia como Patrimnio e suas manifestaes 121

    2.3.1. O Patrimnio 122

    2.3.2. Manifestaes da Aldeia 137

    3. A ALDEIA DE CARAPICUBA CONTEMPORNEA 143

    3.1. O entorno da Aldeia de Carapicuba 148

    3.1.1. Implantao do Trecho Oeste do Rodoanel e conseqncias 161

    3.2. Parque Cultural e Ecolgico da Aldeia de Carapicuba 167

    3.3. O Terreiro da Aldeia hoje: uso e ocupao atual 174

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 17

    4. OCA ESPAO DE MANIFESTAO DA CULTURA INFANTIL 185

    4.1. O conhecimento da atuao da OCA: histria, significado e identidade 187

    4.1.1. Histria e Identidade 188

    4.1.2. O incio 192

    4.2. Uma Escola Cultural e suas atividades 197

    4.2.1. As Brincadeiras 201

    4.2.2. Os Folguedos Populares 204

    4.3. O espao da criana na OCA 219

    4.3.1. Os espaos ocupados 221

    4.3.2. O espao construdo para as crianas 244

    CONSIDERAES FINAIS 259

    A Oca na Aldeia, a Aldeia na Oca: relaes e contribuies 261

    BIBLIOGRAFIA 269

    ANEXOS 279

  • 18 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 19

    INTRODUO

  • 20 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    INTRODUO

    A pesquisa volta-se para a reflexo sobre a Aldeia de Carapicuba, nico aldeamento jesutico

    remanescente, levando em considerao as relaes entre a evoluo da sua ocupao, os

    agentes histricos e a vinculao do seu espao com a criana contempornea, em um

    processo que valida sua atualizao.

    Procura compreender a formao da Aldeia e seu entorno - hoje Parque Cultural da Aldeia -,

    sua ocupao e evoluo, destacando os principais aspectos que interferiram na produo

    deste espao, considerado um elemento do nascimento do Brasil.

    O estudo aborda o entendimento da paisagem, sua histria, sua identidade e significado,

    conflitos de interesse, alm das manifestaes populares tradicionais.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 21

    Para compreender a atualizao e perenidade da Aldeia, examina-se o percurso e a atuao

    da OCA - Associao da Aldeia de Carapicuba - numa dinmica existente na apropriao do

    espao pensado para as crianas e sua comunidade. Defende que a atuao da OCA

    acontece por meio do ptio, que se estende para o Parque e este por diversas maneiras

    chega Aldeia, introduzindo, ento, um novo conceito: o de Aldeia Parque, que a prpria

    atualizao da Aldeia de Carapicuba.

    O objetivo do estudo compreender a relao da Aldeia de Carapicuba com a OCA, esta

    como possvel retomada do desgnio da Aldeia, uma atualidade da referncia da cultura

    brasileira. Um exerccio que procura entender e considerar a complexidade da natureza do

    que atual OCA e Aldeia Parque - num processo de entendimento da Aldeia como espao

    social em contnua transformao e evoluo, ainda assim, arraigado na tradio.

    A formao da OCA parte da necessidade de se ter espaos para atividades das crianas na

    Aldeia de Carapicuba direcionados para a socializao, a criao de laos de solidariedade,

  • 22 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    a promoo da auto-estima, a elaborao de uma sensibilidade voltada para criao,

    principalmente no campo da arte e cultura.

    As atividades realizadas a partir da utilizao do prprio corpo individualmente, e em

    conjunto consubstanciado em brincadeiras, jogos, danas, msicas, desenhos, pinturas,

    estendem-se para a alimentao, a criao de hbitos saudveis, o reforo na formao

    escolar e a reciclagem, pessoal e profissional.

    Originou-se um processo orgnico que foi se constituindo numa presena constante,

    dinmica, delineando formas prprias. Foram sucessivos os espaos ocupados e assumidos

    por essa comunidade; a saber: o ptio da Aldeia, a Casa de Cultura, uma edificao nos

    arredores da Aldeia, e um galpo no entorno. Essa ocupao consecutiva dos espaos diz

    respeito construo de um espao prprio, em uma rea em comodato, dentro do Parque

    Cultural da Aldeia de Carapicuba, realizado com o apoio de diversas empresas, associados

    colaboradores e tambm a prpria comunidade.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 23

    O presente trabalho selecionou esse evento no perodo de 12 anos para estudar a relao

    entre a vida e a atividade infantil, dos seus aspectos formativos e os espaos necessrios

    decorrentes.

    A realizao do estudo implicou na consulta a referncias secundrias voltadas para a

    definio do que a Aldeia; tanto o locus geogrfico e histrico. Procura ressaltar seus

    significados maiores e permanentes, inserindo sempre o olhar da criana como fio condutor.

    Realiza-se concomitantemente um trabalho de campo voltado para o reconhecimento da

    atividade realizada desde o seu nascimento at os dias de hoje, buscando traar as

    perspectivas do desenvolvimento futuro.

    A produo do trabalho de campo surgiu da necessidade direta e pessoal nas atividades

    envolvidas para compreender no seu cerne dinmico vital, e, a partir disso, com o

    distanciamento necessrio, formular uma viso analtica e crtica do processo realizado e

    desenvolvido.

  • 24 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    A considerao do ltimo espao ocupado, de sua realizao parcial e a compreenso de

    suas proposies iniciais e da realidade efetiva de sua ocupao, passou a ser o ponto focal

    para compreenso da relao espao, espao comunitrio e desenvolvimento infantil.

    Verificou-se a partir desse reconhecimento, que a atividade inicial agregou novos aspectos e

    outras faixas etrias formando um conjunto coeso, tanto no que diz respeito da atividade em

    si, quanto no que se refere apropriao do espao.

    A reflexo sobre esses resultados obtidos passou a se constituir em um todo rico e

    ilustrativo do tema colocado, e das perspectivas de sua realizao e evoluo.

    Os espaos considerados em sua sequncia constituem-se em objeto de anlise para a

    compreenso da evoluo e crescimento das atividades desenvolvidas.

    O objetivo como linha diretriz da elaborao feita, que a relao criana-espao, ao mesmo

    tempo em que assumiu outros contornos especficos como, por exemplo, a ligao da

    atividade implantada e a continuidade da Aldeia de Carapicuba, entre outros - tambm

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 25

    extrapola o contexto prprio da universalidade dessa relao e da sua perenidade no

    processo de sucesso das geraes.

    A concluso dessa reflexo procura ressaltar tais elementos e investigar sobre os seus

    possveis desdobramentos no que concerne indagao a ser continuada e ampliada, como

    nas atividades que possam vir a agregar nesse ncleo, alm da reprodutibilidade do que a

    Aldeia se encontra e se realiza.

    Atualmente, a territorialidade da Aldeia de Carapicuba mantm-se pela relao com a

    implantao e vida urbana que se desenvolveu em seu entorno, e posteriores intervenes

    que objetivaram tanto a preservao da Aldeia quanto a sua manuteno enquanto espao

    vivo. Dentre essas atividades, vale ressaltar os trabalhos do arquiteto Luis Saia e do IPHAN

    que atuaram definitivamente para a obteno de uma feio permanente, e pela eliminao

    dos elementos agressores.

  • 26 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Merece destaque, tambm, a concretizao importante dessas diretrizes por meio do Parque

    Cultural criado pela Prefeitura Municipal de Carapicuba nos arredores da Aldeia e do

    respectivo anel virio de contorno. Essa iniciativa, alm de valorizar e preservar o patrimnio

    bsico e fundamental, possui um enorme significado pela extensa e efetiva utilizao da

    populao implantada no seu entorno e regio, atualizando sua designao como Aldeia

    Parque.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 27

    A dissertao est estruturada em quatro captulos:

    O Primeiro Captulo discorre sobre as questes contemporneas que permeiam as crianas,

    no que concerne sua formao.

    No se pretende abordar profundamente teorias da pedagogia e nem da psicologia. As

    temticas sobre a educao, o brincar, e o ambiente urbano, so tratadas para mostrar um

    panorama geral contemporneo, e, ao mesmo tempo, expor, a importncia do brincar na

    formao da criana, e tambm da necessidade urgente da educao superar os rgidos e

    arcaicos conceitos pedaggicos pr-estabelecidos.

    O Segundo Captulo abrange o processo histrico da formao e organizao do espao do

    Planalto Paulistano destacando a origem dos aldeamentos, evoluo e funo colonizadora.

    Compreende os diversos perodos histricos e a formao do nico remanescente dos doze

    aldeamentos jesuticos paulista. Destaca sua relevncia enquanto patrimnio histrico e

    humano, por meio da sua implantao e manifestaes populares tradicionais existentes at

    os dias de hoje.

  • 28 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    J o Terceiro Captulo contextualiza o territrio da Aldeia de Carapicuba. Procura caracterizar

    o entorno, compreender a ocupao da referida rea, e as conseqncias.

    Aborda o processo de formao do Parque Cultural da Aldeia de Carapicuba, e mostra o uso

    e ocupao atual das casas do quadriltero histrico.

    O Quarto Captulo examina a formao, o percurso, e a atuao da OCA Associao da

    Aldeia de Carapicuba - em um processo vinculado ocupao da prpria Aldeia e a relao

    do seu espao com a criana contempornea. Aborda suas atividades e os sucessivos

    locais ocupados ao longo dos seus 12 anos.

    Ao final da presente dissertao, so apresentadas as consideraes finais com reflexo que

    procura investigar os possveis desdobramentos enquanto atividades que possam vir a

    agregar no ncleo, e enquanto reprodutibilidade do que a Aldeia se encontra e se realiza.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 29

  • 30 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    1. O ESPAO DA CRIANA HOJE

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 31

  • 32 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    1. O ESPAO DA CRIANA HOJE

    A maturidade de conscincia alcanada por um ser humano depende de como ele vive como criana.

    Humberto Maturana e Gerda Verden-Zller

    1.1 Educao do Amanh - o despertar da conscincia

    [...] uma das vocaes essenciais da educao do futuro ser o exame e o estudo da complexidade humana. Conduziria tomada de conhecimento, por conseguinte, de conscincia, da condio comum a todos os humanos e da muito rica e necessria diversidade dos indivduos, dos povos, das culturas, sobre nosso enraizamento como cidados da Terra... (Morin 2007, p.61)

    H dcadas, o mundo passa por um processo excessivo de racionalizao e fragmentao

    do ser humano, apoiado numa busca desenfreada pelo poder e desenvolvimento tcnico-

    econmico. Fato este que traz conseqncias, no mnimo desastrosas, tanto para a prpria

    humanidade quanto para o planeta e suas relaes.

    Diante disso, percebe-se que, apesar de todo o desenvolvimento da tecnologia e de diversas

    reas do conhecimento, o sistema educacional revela-se falho e pouco eficaz, necessitando

    de uma reforma radical para enfrentar os problemas de sobrevivncia humana que afloram

    agora no sculo XXI.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 33

    Portanto, o grande desafio da educao enfrentar as emergncias planetrias e superar as

    crises da mente, da percepo, e dos valores que acometem os homens.

    Assim, a pesquisa sobre a educao tem como objetivo ampliar seu conceito, ultrapassar

    limites pedaggicos, buscando superar o reducionismo cientificista do sculo XIX ao qual a

    pedagogia vigente se v ainda atrelada comprometendo o prprio objeto de uma

    investigao. Edgar Morin1 (2007, p.69-70), o filsofo que reflete sobre o educar do futuro,

    afirma que necessria uma noo mais rica e complexa do desenvolvimento, que seja no

    somente material, mas tambm intelectual, afetiva, moral....

    E, como j sabida a ineficincia do atual sistema educacional, foi mais oportuno abordar e

    vislumbrar o amanh, j que o arquiteto, como idealizador de projeto, desenha o futuro,

    lanando-se sempre para frente.

    [...] Bem sabemos que a palavra desenho tem originalmente um compromisso com a palavra desgnio. Ambas se identificavam. Na medida em que restabelecermos, efetivamente, os vnculos entre as duas palavras estaremos tambm recuperando a capacidade de influir no nosso viver. Assim o desenho se aproximar da noo de projeto (pr-jet), de uma espcie de lanar-se para frente [...] (ARTIGAS, 1967)

    1 Edgar Morin socilogo e filsofo Frances, um dos principais pensadores do sculo XXI. Em 1999, a pedido da UNESCO, fez uma reflexo sobre os saberes fundamentais que a educao do futuro deveria tratar, publicada sob o ttulo Os Sete Saberes necessrios Educao do Futuro.

  • 34 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    A partir de uma publicao da UNESCO2, em 1998, foram introduzidos novos eixos

    norteadores da poltica educacional; o Relatrio Delors, que estabelece quatro pilares da

    educao contempornea: aprender a ser, a fazer, a viver juntos e a conhecer. Hoje, a

    educao s pode ser vivel se for uma educao integral do ser humano. Uma educao

    que se dirige totalidade aberta do ser humano e no apenas a um de seus componentes.

    O currculo atual ensina mais sobre a individualidade e direitos e pouco sobre cidadania e

    responsabilidade; cria uma lacuna entre o homem e o meio ambiente; utiliza uma pedagogia

    cristalizada e, assim, leva ao conhecimento isolado da realidade e das reais necessidades,

    sendo estas de esprito e no de matria. Estimulando todos os sentidos e no s o intelecto.

    Na realidade, a educao atual, como transmissora de conhecimento, desconhece a

    verdadeira essncia e real tendncia aos erros e iluses do prprio conhecimento. Segundo

    Morin (2007, p.20)

    2 Ttulo: Educao: Um tesouro a descobrir. Relatrio da Comisso Internacional sobre a Educao para o Sculo XXI, 1998 sob coordenao de Jacques Delors.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 35

    [...] O conhecimento no um espelho das coisas ou do mundo externo. Todas as percepes so, ao mesmo tempo, tradues e reconstrues cerebrais com base em estmulos ou sinais captados e codificados pelos sentidos.

    Assim, a educao, acima de tudo, tem o dever principal de gerar lucidez na humanidade.

    O conhecimento deve ser capaz de contextualizar seu objeto no complexo planetrio para

    que adquira sentido (inteligncia geral). Deve tambm quebrar a supremacia do

    conhecimento fragmentado, separado em disciplinas3 que no criam vnculos entre as partes

    e o todo, pois a realidade (era planetria) est cada vez mais global e multidisciplinar.

    Morin defende que o uso da inteligncia geral solicita o exerccio da curiosidade, ao mais

    expandida e mais viva na infncia e adolescncia, que com freqncia a instruo extingue

    e que, ao contrrio, se trata de estimular ou, caso esteja adormecida, de despertar.

    E ainda nos alerta que o enfraquecimento da percepo global leva ao amortecimento da

    responsabilidade e da solidariedade, em que cada um tende a ser responsvel somente por

    sua tarefa e tambm no sente mais os vnculos com seus concidados.

    3 [...] o recorte das disciplinas impossibilita apreender o que est tecido junto, ou seja, segundo o sentido original do termo, o complexo. (Morin, 2007, p.41).

  • 36 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    [...] A inteligncia parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e reducionista rompe o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que est unido, torna unidimensional o multidimensional. uma inteligncia mope que acaba por ser normalmente cega. Destri no embrio as possibilidades de compreenso e de reflexo, reduz as possibilidades de julgamento corretivo ou da viso a longo prazo. Por isso, quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, maior a incapacidade de pensar sua multidimensionalidade; quanto mais a crise progride, mais progride a incapacidade de pensar a crise; mais os problemas se tornam planetrios, mais eles se tornam impensveis. Incapaz de considerar o contexto e o complexo planetrio, a inteligncia cega torna-se inconsciente e irresponsvel. (Morin, 2007 p.43)

    Ento, declara que o sculo XX, mesmo com elevadssimos avanos na rea de

    conhecimento cientfico e tecnolgico, foi dominado pela pseudoracionalidade, atrofiando a

    compreenso, a reflexo e a viso em longo prazo. Tornou-se cego diante dos problemas

    fundamentais, globais e complexos, o que levou aos incontveis erros e iluses.

    E ainda sustenta que a educao do amanh tem a obrigao de ser universal e centrada na

    condio humana, ou seja, nos situar no universo, questionando a nossa posio no mundo.

    Deve restaurar a unidade complexa da natureza humana para que cada um, onde quer que

    esteja, tome conscincia e conhecimento, de sua identidade complexa e de sua identidade

    comum a todos os outros humanos. Tambm tem o dever de buscar contribuies nas

    cincias humanas, no somente a filosofia e a histria, mas tambm a literatura, a poesia,

    as artes....

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 37

    Apesar dos avanos nas telecomunicaes, com o rpido acesso a informaes por meio

    dos telefones, celulares e da internet, a incompreenso permanece geral e deteriora as

    relaes entre os homens. Morin (2007, p. 97) constata que a incompreenso de si fonte

    muito importante da incompreenso de outro. Mascaram-se as prprias carncias e

    fraquezas, o que nos torna implacveis com as carncias e fraquezas dos outros.

    Assim a educao do futuro teria como misso espiritual ensinar a compreenso entre as

    pessoas como condio e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade

    (MORIN, 2007 p. 93).

  • 38 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    1.2 O Brincar e a Cultura da Infncia

    O Homem s inteiro quando brinca; e somente quando brinca que ele existe

    na completa acepo da palavra: Homem.

    Friedrich Schiller

    Hoje, grande parte da educao infantil ainda apresenta posturas autoritrias e desconexas

    com a realidade da criana; no respeita sua natureza e no a reconhece como sujeito

    social. Tem dificuldade de considerar a criana como um ser capaz e competente,

    afastando-a do mundo em que vive e da cultura em que est inserida.

    Acabam por simplificar os contedos e a desconsiderar aquilo que a criana j sabe,

    imaginando que ela um recipiente vazio. Tambm no consideram que existe uma Cultura

    da Infncia e que a criana tem uma maneira ldica de interagir com o mundo, ignorando a

    linguagem infantil universal - o brincar, que o seu processo de conhecimento.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 39

    O brincar a prpria fora da sociedade e da civilizao, um colapso nesta capacidade de

    brincar se refletir num colapso da sociedade.

    Um dos maiores desafios da educao que se compromete com a formao integral do ser

    humano a conscincia do brincar como uma linguagem de conhecimento. A escola, surge

    como espao de encontro e de expresso dessa teia de relaes vinculadoras que

    acontecem atravs das brincadeiras. importante ampliar o espectro da abordagem

    educacional que at ento se constituiu unicamente com a funo de transmitir o

    conhecimento.

    Na verdade, essa mudana radical trata de um novo olhar que opera em um tempo marcado

    pela complexidade e pela crise do modelo de cincia que dominou os ltimos sculos.

    A busca de novos caminhos vem provocando o surgimento de novos paradigmas

    (holomnicos, holistas, de complexidade) que, no entanto, s podem, neste momento, ser

    configurados por via especulativa, pois esto em constituio. (SOUZA SANTOS, 1988)

  • 40 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    So paradigmas que pressupe uma comunicao elaborao transdisciplinar entre

    diferentes reas do conhecimento, oposta ao isolamento disciplinar caracterstico do

    paradigma clssico.

    Trata-se da composio de outra lgica que procura ler o complexo real sob a aparncia

    simples dos fenmenos tais como se nos apresentam.

    No dever mais existir um corte separando o sujeito do objeto, o imaginrio da razo, o

    sagrado do profano. No porque um dos temas desse dualismo ancestral se reduziria ao

    outro, mas porque so ambos significantes de um mesmo significado tertum datum que

    estrutura os dois. (DURAND, 1995, p.20)

    Assim, para fornecer um panorama sobre a criana e educao, a pesquisa busca

    fundamentao na importncia do brincar e no reconhecimento da existncia da Cultura da

    Infncia. Apesar de no pretender uma abordagem profunda, foram observados estudos de

    vrios autores das diversas reas: pedagogia, antropologia, psicologia do desenvolvimento

    infantil, percepo ambiental, filosofia e sociologia como referencial terico.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 41

    1.2.1. O Ldico

    Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae. (O brincar necessrio para a vida humana)

    Tratado sobre o brincar - Toms de Aquino

    Permeando por entre abordagens filosficas, a pesquisa referncia sobre o ldico a do

    filsofo alemo Johan Huizinga que, em seu livro de 1938 - Homo Ludens procura integrar o

    conceito de jogo no de cultura, afirma que no jogo e pelo jogo que a civilizao surge e se

    desenvolve.

    De certa forma o autor se distancia da esfera biolgica e cientfica, aborda o ldico como

    fenmeno cultural, inserido numa perspectiva histrica. Declara que (2001, p.3)

    [...] o jogo mais do que um fenmeno fisiolgico ou um reflexo psicolgico. Ultrapassa os limites da atividade puramente fsica ou biolgica. uma funo significante, isto , encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa em jogo que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido ao. Todo jogo significa alguma coisa... O simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presena de um elemento no material em sua prpria essncia [...]

  • 42 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Assim, Huizinga defende que o ldico possui uma realidade autnoma, que ultrapassa a

    esfera da vida humana, que no est ligado a nenhum grau de civilizao ou qualquer

    concepo do universo.

    Analisa o jogo como funo social, uma atividade voluntria presente nas mais diversas

    manifestaes sociais: na linguagem, nos rituais, na msica, na dana, na poesia, no saber

    e at nas regras de guerra. Outra caracterstica ressaltada define o jogo como uma fuga da

    vida real - o fazer de conta. E afirma ainda que pertence dimenso do sagrado4, sendo

    uma atividade temporria, que tem uma finalidade autnoma e se realiza tendo em vista

    uma satisfao que consiste nesta prpria realizao.

    Alm disso, o autor (2001, p.13) acentua que o jogo cria ordem e ordem

    concomitantemente; introduz na confuso da vida e na imperfeio do mundo uma

    perfeio temporria e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta e, por isso, est

    4 A representao sagrada mais do que a simples realizao de uma aparncia, at mais do que uma realizao simblica: uma realizao mstica. Algo de invisvel e inefvel adquire nela uma forma bela, real e sagrada. Os participantes do ritual esto certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificao, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela que habitualmente vivem (Huizinga, 2001, p17).

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 43

    intimamente ligado ao domnio da esttica, por possuir tambm ritmo e harmonia, alm de

    outras caractersticas singulares descrio dos efeitos da beleza: tenso, equilbrio,

    compensao, contraste, variao, soluo, unio e desunio.

    Define como funo do jogo a luta por algo ou a representao (como exibio) de alguma

    coisa. Huizinga (2001, p.17) complementa que

    A criana representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente ... Fica literalmente transportada de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a acreditar que realmente esta ou aquela coisa, sem contudo perder inteiramente o sentido da realidade habitual. Mais do que uma realidade falsa, sua representao a realizao de uma aparncia imaginao, no sentido mais original do termo.

    Assim, Huizinga (2001, p.33) nos d a noo de jogo como sendo

    [...] uma atividade ou ocupao voluntria, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espao, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatrias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tenso e de alegria e de uma conscincia de ser diferente da vida quotidiana.

  • 44 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Diga-lhe Que pelos sonhos da sua juventude

    Ele deve ter considerao, quando for homem.

    Friedrich Schiller

    Outra abordagem filosfica ocorreu, tambm, nas primeiras dcadas do sculo XX: o filsofo

    alemo Walter Benjamin5 refletiu sobre a educao - uma das suas grandes inquietaes.

    Seus ensaios falam sobre a criana, a juventude, jogos e brinquedos no contexto da

    educao do cidado.

    Delimita, ainda, a existncia de uma cultura da criana6 e defende a idia de garantir s

    crianas a plenitude da infncia, pois todas as manifestaes na vida infantil no

    pretendem outra coisa seno conservar em si os sentimentos essenciais (2002, p.49). O

    autor mostra que as crianas fazem parte do povo e da classe a qual pertencem, no

    constituindo uma comunidade isolada.

    5 Textos escritos entre 1913 e 1932, reunidos no livro: Reflexes sobre a criana, o brinquedo e a educao, traduo de Marcus Vinicius Mazzari, 2002. 6 as crianas no constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem. Da mesma forma, os seus brinquedos no do testemunho de uma vida autnoma e segregada, mas so um mudo dilogo se sinais entre a criana e o povo. (Benjamin, 2002, p.94)

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 45

    Deixa claro que a experincia ldica proporciona o nascimento da auto-reflexo. E que a

    essncia do brincar no um fazer como se e sim um fazer sempre de novo, que a

    transformao da experincia mais comovente em hbito (2002, p.102).

    Para Benjamin, pensador sensvel ao universo da criana, o brincar e o brinquedo formam

    um par dialtico que traduz o relacionamento entre o adulto e a criana. Declara que (2002,

    p.93)

    [...] Hoje talvez se possa esperar uma superao efetiva daquele equvoco bsico que acreditava ser a brincadeira da criana determinada pelo contedo imaginrio do brinquedo, quando, na verdade, d-se o contrrio. A criana quer puxar alguma coisa e torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se bandido ou guarda. Conhecemos muito bem alguns instrumentos de brincar arcaicos, que desprezam toda mscara imaginria (possivelmente vinculados na poca a rituais): bola, arco, roda de penas, pipa autnticos brinquedos, tanto mais autnticos quanto menos o parecem ao adulto. Pois quanto mais atraentes, no sentido corrente, so os brinquedos, mais se distanciam dos instrumentos de brincar; quanto mais ilimitadamente a imitao se manifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva. [...] os seus brinquedos no do testemunho de uma vida autnoma e segregada, mas so um mudo dilogo de sinais entre a criana e o povo. (2002, p.94)

    E critica que o brincar tem sido visto sob a tica do adulto, sob o ponto de vista da imitao.

  • 46 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Todo o pensamento humano representao, isto , passa por articulaes simblicas

    encontrando-se, pois subjacente com os modos de pensar, sentir e agir dos indivduos, das

    culturas, das sociedades.

    A representao que o brincar carrega no pode ser entendida como uma simples

    reproduo e traduo de uma realidade exterior, uma vez que engloba o domnio da fantasia

    ultrapassando a simples representao intelectual.

    Sendo o universo simblico das brincadeiras possuidor de um carter eminentemente

    imaginrio, o brincar representa uma rede na qual o sentido dado pela relao

    constituindo-se no dinamismo organizador das vivncias que a criana vai estabelecendo

    consigo prpria, com o mundo e com o outro.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 47

    1.2.2. O Brincar

    Brincar a mais elevada forma de pesquisa. Albert Einstein

    Segundo Joseph Chilton Pearce (1992), cientista e pesquisador da inteligncia humana, o

    brincar est presente na base da inteligncia criativa, mas necessita ser desenvolvida. a

    tarefa principal da primeira infncia e cria a base da capacidade simblico-metafrica7 tanto

    do pensamento concreto quanto do pensamento operacional,

    [...] A linguagem simblico-metafrico capaz de sugerir estados sutis que, em si mesmos, no podem ser articulados. por isso que a poesia um grande instrumento para elevar a mente, tirar-lhes as razes da matria. Ela pode evocar, ou trazer de volta, sentimentos, anseios e aspiraes indisponveis ao pensamento, lgica ou descrio discursiva.

    A contao de histrias uma das bases do brincar, a criana ouve atentamente e fica

    imvel enquanto sua viso transportada para o lugar onde ocorre a ao da histria

    (estmulo de imagens internas correspondentes) e em seu crebro ocorrem aes de novos

    campos neurais e novas conexes entre si. Pearce (1992, p.159) afirma que

    7 Toda e qualquer forma de brincar um exerccio de pensamento simblico-metafrico, a base da erudio e de todos os estudos mais avanados. (Pearce, 1992, p.163)

  • 48 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    [...] quanto mais forte e permanente se torna a capacidade de interao verbo-visual, mais fortes se tornam a conceitualizao, a imaginao e a ateno, enquanto o escopo e a flexibilidade das capacidades neurais em geral aumentam.

    Porm, com o advento da televiso, a narrao de histrias perdeu espao nas vivncias das

    crianas, alm de ter diminudo drasticamente o dilogo entre a famlia. As relaes entre

    pais e filhos foram prejudicadas e as brincadeiras tambm foram perdendo espaos nos

    lares.

    [...] A televiso inunda de imagens o crebro do beb e da criana justamente no momento em que esse crebro deve aprender a formar imagens interiores. A narrao de histrias propicia um estmulo que provoca uma reao de formao de imagens que envolve cada aspecto do nosso sistema tri-uno. A televiso propicia ao crebro do beb e da criana no s o estmulo, mas tambm a reao, como um efeito emparelhado e nico, e a est o perigo. A televiso enche o crebro com uma reao falsificada, que imita aquela que ele deve aprender a mostrar diante dos estmulos das palavras e ou da msica. Em decorrncia disso, elimina-se boa parte do acoplamento estrutural entre a mente e o ambiente, desenvolvem-se poucas imagens metafricas e poucas ou quase nada estruturas simblicas [...]

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 49

    Assim, o no-desenvolvimento de imagens traduzido na falta de imaginao8, significando

    dificuldade no aprendizado. Seu crebro colocado para dormir, impedindo o

    desenvolvimento neural, visto que no precisa de quase nenhuma energia para processar o

    que est se passando na TV. Alm disso, aprisiona o corpo da criana, que necessita do

    movimento para desenvolver uma vida saudvel, j que a aprendizagem nessa fase

    basicamente sensrio-motora.

    J Maturana e Verden-Zller (2004) afirmam em seus estudos que o brincar, junto com o

    amar, so fundamentos esquecidos do humano9. Eles referem-se a fundamentos da

    condio humana que permeiam o ldico.

    8 Um recente estudo mostrou que as crianas que tm pouca imaginao so muito mais propensas violncia que as crianas imaginativas, pois no conseguem imaginar uma alternativa quando a informao sensorial imediata ameaadora, ofensiva, desagradvel ou pouco compensadora. Elas atacam tudo que desagradvel com a atitude defensiva, ao passo que as crianas dotadas de imaginao podem pensar numa alternativa, isto , criar imagens que, no estando presentes ao sistema sensorial, lhes forneam uma sada. (Pearce, 1992, p.170) 9 O curso da histria humana se desenrola gerao aps gerao. essa mesma trajetria que segue o emocionar adquirido pelas crianas no crescimento em relao com seus pais, outros adultos, outras crianas e com o mundo no-humano circundante. Nessas, circunstncias, para compreender as mudanas culturais, devemos entender as alteraes histricas do emocionar humano em sua relao com o crescimento das crianas. (Maturana e Verden-Zller, 2004, p.12)

  • 50 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Em uma das pesquisas, Verden-Zller (p.141) conclui que a conscincia individual e social

    da criana surge por meio das suas interaes corporais com as mes, numa dinmica de

    total aceitao mtua na intimidade do brincar. Ainda diz que

    [...] O Eu uma dimenso social humana que se realiza por meio de uma dada corporeidade e surge como um entrecruzamento especfico das diferentes conversaes que constituem e definem a comunidade social em que esse Eu vive com outros Eus em mtua aceitao. Portanto, toda criana deve adquirir seu Eu ou identidade individual social como uma forma particular de ser em sua corporeidade, mediante o viver numa comunidade especfica de mtua aceitao. Isso ocorre naturalmente, medida que a criana cresce na estreita intimidade do encontro corporal, em confiana e total aceitao de sua me, bem como na de todas as crianas e adultos com as quais convive [...]

    Para a autora,, o brincar na vida diria qualquer atividade vivida no presente de sua

    realizao, de maneira emocional e sem nenhum objetivo. atentar para o presente.

    Maturana (2004, p. 231) completa que O brincar no tem nada a ver com o futuro. Brincar

    no uma preparao para nada, fazer o que se faz em total aceitao, sem

    consideraes que neguem sua legibilidade.

    Ao brincar, as crianas constroem suas relaes espaciais, seus domnios de aes e as

    configuraes sensrio-motoras. E enquanto vivenciam as experincias recorrentes de

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 51

    movimento, tocando, balanando e fazendo ritmos, elas constituem e desenvolvem

    gradualmente o conhecimento operacional de seus corpos.

    Defendem que o brincar importante para desenvolver na criana a sua autoconscincia,

    conscincia social e de mundo, alm de desenvolver seu auto-respeito e auto-aceitao.

    E Maturana (2004, p. 232) diz que

    Perdemos nossa conscincia social individual medida que deixamos de brincar. E assim, transformamos nossas vidas numa contnua justificao de nossas aes em funo de suas conseqncias, num processo que nos torna insensveis em relao a ns mesmos e aos demais.

    Verden-Zller (2004, p.187) declara que essas brincadeiras ditas como espontneas no

    so arbitrrias e sim dinmicas corporais ligadas a territrios ancestrais de comportamento;

    provm da histria evolutiva da espcie humana.

    Assim, Maturana e Verden-Zller (2004, p.245) concluem que a cultura contempornea

    ocidental

    [...] Nega o brincar como aspecto central da vida humana, mediante sua nfase na competio, no sucesso e na instrumentalizao de todos os atos e relaes. Acreditamos que para recuperar um mundo de bem-estar social e individual no qual o crime, o abuso, o fanatismo e a opresso mtua no sejam modos institucionalizados de viver, e sim erros ocasionais de coexistncia devemos devolver ao brincar o seu papel central na vida humana. Tambm cremos que para que isso acontea devemos de novo aprender a viver nessa atmosfera.

  • 52 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    1.2.3. A Cultura Infantil e o Brincar

    Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas

    No degrau da porta de casa Graves como convm a um deus e a um poeta,

    E como se cada pedra Fosse todo um universo

    E fosse por isso um grande perigo para ela Deix-la cair no cho.

    Fernando Pessoa

    Para Lydia Hortlio10, educadora e etnomusicloga baiana, a Cultura Infantil o fazer

    espontneo das crianas entre elas mesmas na busca de si e dos outros, em interao com

    o mundo. A Cultura da Criana se faz brincando. o acervo dessas experincias que

    desabrocha em inteireza e liberdade.

    Segundo ela, este acervo cria um corpo de conhecimento, na realidade, conhecimento com

    o corpo que comunicado de gerao em gerao, sem quaisquer fronteiras e nos chega

    por meio dos brinquedos de criana. Defende que o brinquedo um gesto da evoluo, um

    impulso de vida como forma de realizao e crescimento; e por meio dele podemos

    10 Lydia Hortlio, baiana, com formao em Msica: piano, educao musical e etnomusicologia. Estudou no Brasil, Alemanha, Portugal e Sua. pesquisadora da Msica da Cultura Brasileira e da Cultura Infantil. Lanou em 2003 o CD Abre a roda tindolel e Bela Alice em 2004.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 53

    compreender a ndole e a natureza do Ser Humano e tambm conhecer a Cultura de um

    Povo.

    Lydia declara que a Natureza o verdadeiro espao das crianas; somente vivenciando no

    seu genuno habitat que ela consegue espontaneamente compreender com o corpo e

    desenvolver uma inteligncia sensvel, ou seja, existir em inteireza, manifestar suas

    carncias infinitas de movimento.

    A inteireza vive do completo assentimento, e a inspirao, o impulso interno que a move,

    corporifica-se no brinquedo que se quer, que se precisa: este e no aquele. E a est a

    oportunidade de libertao. No fenmeno ldico fecha-se o crculo mgico da vida: eu, o

    outro, o mundo, o Universo que se do as mos num Brinquedo de Criana.

    E nesse contexto, busca-se uma compreenso da Msica da Cultura infantil, na qual define

    como,

    [...] Uma msica com movimento, aliada representao e a uma geometria no tempo. uma msica no corpo, prxima ao outro, com o outro, movida pura e simplesmente pela livre vontade de brincar. a cidadania plena, por ndole e direito, sensvel e inteligente. Sua prtica proporciona o exerccio espontneo da msica em todas as suas dimenses, mesmo que de forma elementar, e se constitui, por si mesma, a base de uma educao do sensvel e pressuposto fundamental da identidade cultural.

  • 54 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Desde muito cedo as crianas convivem com msica, desde os acalantos no colo da me

    quando beb, pelas parlendas e cantilenas11, depois, nos brinquedos cantados e mais tarde

    nas rodas de versos, considerados verdadeiros ritos de passagem, em que o contedo

    potico, a atmosfera prpria e a movimentao, mesmo guardando dimenses da infncia,

    apontam, cada vez mais, a expressividade da nova etapa a ser vivida.

    Sendo ento importante o seu resgate, pois a Msica Tradicional Infantil representa em

    todas as culturas a expresso mais sensvel da alma de um povo a alma ancestral, os

    arqutipos da nossa cultura.

    Lydia acredita que devemos refletir sobre o sentido da nossa origem e o valor da nossa

    cultura para, assim, despertar uma conscincia de Brasil, uma busca pela construo de

    uma identidade brasileira. E atravs da prtica da Msica da Cultura Infantil,

    [...] restabelecer o lao efetivo com a lngua a lngua me, aquela que os poetas populares ainda conhecem, e com a lngua me musical a cano popular, comeando pelos Brinquedos Cantados, to carregados do encanto e dos mistrios da Infncia da raa, dos mltiplos arqutipos de nossa Cultura. (Hortlio,1998 apud CRUZ, 2005, p.78)12

    11 Parlendas so versinhos com temtica infantil recitados em brincadeiras de crianas. Possuem rima fcil e, por isso, so populares entre as crianas. J cantilenas so pequenas cantigas suaves, ladainha, lengalenga.

    12 10 HORTELIO, Lydia. Anlise e Sugestes Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil, Salvador, 1998.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 55

    Desse modo, sustenta que a transformao vir por meio de uma educao consciente de

    uma compreenso da criana, por meio da Cultura da Criana, inspirada na cultura do povo

    brasileiro. Lydia afirma que

    [...] Ela carrega em seus fundamentos, os arqutipos, invenes, os gestos, os sentimentos especficos de cada uma de suas vertentes formadoras e as transposies nascidas de uma miscigenao espontnea e infinita. importante afirmar a cultura infantil da criana brasileira porque ela traz em seu nascedouro, o manancial extraordinrio de uma cultura mestia, o projeto prprio de desenvolvimento da raa a ser transcendido pela fora da Alma do Brasil. (Hortlio,1998 apud CRUZ, 2005, p.79)

  • 56 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    1.2.4. O Folclore Infantil e a Cultura Infantil

    O socilogo Florestan Fernandes, ainda estudante da Faculdade de Filosofia, Cincias e

    Letras iniciou, em 1941, seus primeiros levantamentos sobre o folclore paulistano nos

    bairros de imigrantes e populares da cidade de So Paulo. Posteriormente, foram recolhidos

    os vrios ensaios feitos daquele ano at 1959 para a publicao do livro Folclore e mudana

    social na cidade de So Paulo, em 1961.

    O autor preocupou-se com as influncias socializadoras do folclore, principalmente o folclore

    infantil. Chamava a sua ateno os conhecimentos de significao social, que as crianas

    podiam adquirir atravs da participao das trocinhas13 ou dos grupos infantis

    (FERNANDES, 2004, p.14). Comprovou que o folclore infantil tinha influncia na formao da

    personalidade da criana e que esses grupos iniciam a criana na vida social.

    13 Trocinhas um termo usado pelas prprias crianas da poca da pesquisa (dcada de 40) para designar os grupos infantis, principalmente os formados nas ruas.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 57

    Descobriu que, por meio dos folguedos, as crianas tm oportunidade de manter contatos

    pessoais no seu prprio meio, ou seja, com pessoas que possuem a mesma idade, os

    mesmos centros de interesse, a mesma concepo do mundo e o mesmo prestgio social,

    muito diferente das relaes com os adultos.

    Elas alargam, assim, sua rea de contatos humanos, aprendem de modo mais acessvel as vantagens e o significado das atividades organizadas grupalmente, experimentam os diferentes papis associados s relaes de subordinao e de dominao entre pessoas da mesma posio social e se identificam com interesses ou com valores cujas polarizaes de lealdade transcendem ao mbito da famlia. (FERNANDES, 2004, p.16)

    Fernandes (2004) defende tambm a existncia de uma Cultura Infantil que constituda por

    elementos quase exclusivos das crianas e de natureza ldica. Tambm detecta que esses

    elementos vm da cultura do adulto que passam por um processo de aceitao por parte

    das crianas incorporando sua maneira, alm de conjuntamente elaborarem os elementos

    de sua prpria natureza. Fernandes (2004, p.219) nos chama a ateno sobre o

    Aspecto de socializao elaborado no seio dos prprios grupos infantis, ou seja: educao da criana, entre as crianas e pelas crianas. A criana modelada, formada, tambm, atravs dos elementos da cultura infantil, pois estes elementos pem-na em contato direto com os valores da sociedade.

  • 58 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Ou seja, nas prprias palavras do socilogo a verdadeira aprendizagem, em que o mestre

    da criana a prpria criana (2004, p.18).

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 59

    1.2.5. Educao da Sensibilidade

    Amanh, para que a espcie sobreviva, Vamos ter que implodir os prdios

    Para construir jardins da infncia.

    Maria Amlia Pereira - Peo

    Foi por meio das conversas e convivncia com a pedagoga Maria Amlia Pereira14, que a

    pesquisa sobre o brincar tomou corpo, alis, ganhou alma nesta dissertao.

    Maria Amlia fundadora e orientadora da Casa Redonda Centro de Estudos15, um espao

    de educao infantil, nascido no incio dos anos 80 em uma chcara na cidade de

    Carapicuba, regio metropolitana de So Paulo. Pode-se dizer que a Casa Redonda o

    tero gerador da OCA Associao da Aldeia de Carapicuba.

    14Maria Amlia Pereira mais conhecida como Peo, nasceu em Salvador, Bahia. pedagoga com especializao em Cinesiologia. Orientadora da escola Vera Cruz, em So Paulo, de (1963 1076) e de 1982 a 1986), Assessora Pedaggica da unidade de Tratamento de paralisia cerebral do SARAH Instituto Nacional de Medicina do Aparelho Locomotor (1977-1978)Coordenadora do Programa do Ncleo Experimental de Atividades Scio-Culturais da Prefeitura do Municpio de Salvador(1979 a 1982). Membro do Vconseho International do IPA- International Playing Association for the Child Right to Play( 1990-1999). Vice- Presidente do Instituto Brincante (2002 a 2009) Fundadora e Orientadora do Centro de Estudos Casa Redonda (1983 a 2009).

    15 Para mais informaes sobre o trabalho da Casa Redonda, consultar : CRUZ, Maria Cristina Meirelles Toledo. Para uma educao da sensibilidade: a experincia da Casa Redonda Centro de Estudos. Dissertao de Mestrado, ECA/USP, So Paulo, 2005.

  • 60 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    pertinente uma breve apresentao de sua vivncia para contextualizar o percurso como

    educadora e, assim, ter melhor compreenso dos conceitos por ela defendidos.

    Maria Amlia vem inicialmente de uma formao de magistrio em Salvador. Desde cedo

    optou por trabalhar diretamente com as crianas: dos 12 aos 17 anos se uniu a um grupo de

    estudantes para participar de atividades em uma favela vizinha do bairro onde morava. Em

    seguida, criou um espao de brincar que reunia as crianas no quintal da sua casa.

    Vivenciou como estagiria a experincia da Escola Parque de Salvador16, projeto educacional

    da rea pblica idealizado pela equipe de professores liderada pelo Prof. Ansio Teixeira17.

    Esta foi o embrio das demais experincias de educao publica com tempo integral que

    aconteceram no Brasil, como: Escolas Vocacionais, CIEPS, CEUs etc...

    Conviveu com o filsofo portugus Agostinho da Silva, com o qual pode comungar e refletir

    sobre a essncia das crianas e a identidade do brasileiro, ideais que guiam at hoje a sua

    16 Consultar : DUARTE, Hlio de Queiroz. Escola-classe escola-parque. So Paulo: FAUUSP, 1973. 17 Ansio Spnola Teixeira, nascido em 1900 em Caetit, Bahia. Formou-se em direito, foi intelectual, educador e escritor. Personagem principal na histria da educao do Brasil.Foi discpulo e divulgador da filosofia do educador John Dewey. Difundiu os ideais da Escola Nova entre as dcadas de 20 e 30, que tinha como princpio a nfase no desenvolvimento do intelecto e na capacidade de julgamento, em detrimento da memorizao. Fundou a Universidade do Distrito Federal em 1935 que depois foi transformada em Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Reformulou o sistema educacional da Bahia com a criao da Escola Parque em Salvador. Morreu em 1971 no Rio de Janeiro em circunstncias obscuras, pode ter sido vtima da represso do governo Mdici.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 61

    prtica em educao. Tambm teve contato com o mtodo de alfabetizao do professor

    Paulo Freire, experincia que proporcionou olhar o papel da educao tambm no plano

    poltico-pedaggico.

    Em 1963, mudou-se para So Paulo onde integrou um curso de formao de professores

    sobre o mtodo Montessori-Lubienska. Logo em seguida convidada a fazer parte da

    formao da Escola Experimental Vera Cruz, que tinha uma nova viso de educao; onde o

    educador era considerado agente crtico e reflexivo de sua prtica educativa (CRUZ, 2005,

    p.23-24). Sua experincia, ao longo de 16 anos, passou de estagiria a scio-fundadora.

    Neste perodo, paralelamente a atuao na Escola Experimental, iniciou o curso de pedagogia

    na PUC-SP, fato este que comprovou o quanto a teoria universitria se afastava da real

    prtica educacional brasileira.

    Nos anos 70 ocorreu uma reforma no ensino cuja proposio era a unio das metodologias

    do primrio com o ginsio, fato que revela, no sistema de educao, uma burocratizao e

    um endurecimento, distanciando cada vez mais o discurso terico da prtica efetiva.

  • 62 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Assim, em 1975, Maria Amlia decide afastar-se da atuao na escola e segue para Braslia.

    L atuava como voluntria na Comunidade Teraputica do Hospital Sarah Kubitschek com

    atividades ldicas para crianas com deficincia fsica. Neste perodo, longe da escola, pode

    refletir sobre o professor e sua prtica. Iniciou uma pesquisa do repertrio gestual das

    brincadeiras espontneas das crianas que se encontravam fora das escolas... O que

    possibilitou a compreenso da existncia de uma Cultura Infantil. (CRUZ, 2005, p.30).

    Este contato que retomou com as crianas de periferia foi um descortinar sobre o qu a

    incomodava dentro da escola: o massacre dos valores cognitivos e a viso estruturalista

    sobre a espontaneidade, a alegria, o entusiasmo das crianas.

    Aps dois anos em Braslia, volta para Salvador onde participa, junto com Lydia Hortlio, da

    criao de um espao pblico de educao em um parque18, fundamentado nas reflexes de

    Ansio Teixeira.

    No incio dos anos 80 retorna So Paulo e se dedica-se criao de um curso de

    formao de educadores na Escola Vera Cruz. Propunha a reformulao do currculo apoiado

    18 Sobre essa experincia, consultar HORTLIO, Lydia. Histria de uma manh. So Paulo:Massao Ohno, 1987.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 63

    em uma educao que valorizasse a Cultura Infantil de mos dadas com a Cultura Brasileira.

    O projeto foi reconhecido, mas exigia uma reorganizao curricular considerada avanada

    pela Escola e pelo Conselho Estadual de Educao da poca.

    Assim, volta sua pesquisa e vivncia das brincadeiras de rua, mas agora na periferia de

    Carapicuba, na Vila Ariston. Registrou o processo das brincadeiras de pio, bola de gude e

    pipa, esta ltima mais detalhada que, posteriormente, foi apresentada em um Encontro

    Internacional na Argentina e Washington.

    O mdico e psicoterapeuta hngaro Peth Sndor, que desenvolveu a Calatonia no Brasil -

    uma tcnica de integrao fisio-psiquica a partir de uma abordagem corporal por meio de

    toques sutis - marca uma forte influncia em Maria Amlia, que declara:

    a relao psicossomtica, presente na atuao das crianas enquanto brincam, abriu a porta para minha indagao sobre o ato de brincar como um processo espontneo de auto-regulao do desenvolvimento da criana, referendando a sabedoria do corpo, em busca dos gestos que lhe conduzem a uma maturao fsio-psquica. (CRUZ, 2005, p.31)

  • 64 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Tambm integrou o conselho de uma Organizao Internacional sobre o Direito de Brincar,

    IPA Internacional Playing Association - entre 1985 e 1990. Apresentou vrios trabalhos

    sobre suas pesquisas das brincadeiras espontneas de rua, viajando por diversos pases.

    Nesse intervalo de 20 anos dedicou-se, tambm, a treinamentos de professores de creches,

    a pedido das Secretarias de Educao de vrios estados brasileiros, para introduzi-los a uma

    nova compreenso do processo de desenvolvimento da criana sob o reconhecimento do

    Brincar como uma linguagem de conhecimento, e que define uma cultura prpria da Infncia.

    Em meados de 1994, Maria Amlia, junto com Antonio Nbrega e sua esposa Rosane

    Almeida, criaram um curso para formao de educadores no Teatro Escola Brincante19,

    baseado naquele projeto elaborado para a Escola Vera Cruz nos anos 80.

    O curso em sua estrutura permite o contato direto com a cultura popular brasileira e difunde

    a importncia desta na formao das crianas e adolescentes. Oferece o estudo e a prtica

    19 Ver anexo: breve relato do curso Educador Brincante feito em 2007 como parte da pesquisa sobre a cultura popular brasileira e o brincar.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 65

    de cantos, danas, toques instrumentais, histrias, brinquedos e brincadeiras, ou seja,

    aspectos que alimentam a cultura popular e possibilita a reflexo sobre o Brasil.

    Em 1996, Maria Amlia une-se psicloga Maria Cristina Meirelles Toledo Cruz20 e a outros

    profissionais, principalmente por pais dos alunos da Casa Redonda, e inicia um trabalho com

    as crianas da Aldeia de Carapicuba. Cria-se uma Escola Cultural, a OCA Associao da

    Aldeia de Carapicuba, um espao onde as crianas tm acesso cultura brasileira por meio

    dos cantos, das danas, artes, mitos, histrias e brincadeiras.

    [...] Acreditando que uma vez inserido no corpo dessas crianas esse repertrio criativo, elas podero descobrir a si prprias como seres vivos, com uma identidade que lhes permita se integrar na comunidade e ocupar o seu lugar. (CRUZ, 2005, p.32)

    20 Maria Cristina M. Toledo Cruz educadora da Casa Redonda Centro de Estudos, com formao em psicologia e especializao em Arte Educao, hoje diretora executiva da OCA e autora da dissertao de mestrado Para uma Educao da Sensibilidade: a experincia da Casa Redonda Centro de Estudos, defendida na Escola de Comunicao e Artes ECA/USP em 2005.

  • 66 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    A brincadeira pertence dimenso do sagrado. O sagrado enquanto segredo, enquanto mistrio da vida

    presente em cada ser humano que se inicia neste planeta. O brincar sagra a vida porque d sentido ao que est sendo vivido.

    a expresso livre, espontnea e imprevisvel do humano. o exerccio de sua liberdade e, por isso, a seriedade do ato de brincar.

    Maria Amlia Pereira - Peo

    Maria Amlia defende o brincar como linguagem universal da Cultura da Infncia e o espao

    da natureza como o seu habitat. Mas, alerta que h total ignorncia sobre quem a criana

    brasileira; grande parte dos educadores no reconhece a existncia de uma cultura da

    criana.

    Chama a ateno para o fato de que a sociedade atual est abalando a alma da criana e,

    com sua viso racionalista, materialista e fragmentada de si prpria e do mundo, acaba por

    priorizar o TER no lugar do SER. Assim, a criana vista como algo a ser estimulado pelo

    adulto atravs de uma educao cognitivista que rapidamente deve inseri-la no sistema de

    produo e mercado, e, desta forma, a Cultura da Infncia se torna invisvel e, evidente,

    que o brincar acaba sendo excludo da vivncia das crianas.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 67

    A criana que se encontra nos nossos currculos pedaggicos um ser sem corpo e sem alma, classificada por ordem cronolgica, colocada sobre um cho sem terra, aculturada, debaixo de um autoritarismo disfarado em teoria do conhecimento, que determina o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado, desconectado de qualquer relao significativa para a vida real das crianas. (Maria Amlia Pereira, Apostila curso Educador Brincante, 2006, p.70)

    Diz que as escolas enfatizam mais as reas cognitivas e se esquecem das reas de

    expresso da criana, com uma grande ansiedade pedaggica de concluir conceitos e

    estruturar o conhecimento. Aconselha que o ideal seja confiar mais no fato de que o ser

    humano tem dentro dele, como caracterstica bsica, a necessidade de aprender, e ao

    aprender, automaticamente o conhecimento se estrutura. (COUTINHO, 1996, p.7). Alm

    disso, relata que se faz necessria a conscincia de que o processo de conhecimento est

    sempre presente na brincadeira que est acontecendo. A criana um aprendiz nato.

    Alm disso, Maria Amlia acredita que o espao da natureza deve estar presente no

    processo de educao das crianas como o seu cho natural. At o 10 anos de idade, o

    espao fsico importantssimo para a realizao de uma aprendizagem mais harmoniosa

    das crianas.

  • 68 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Certamente, o contato direto com a natureza o melhor lugar para as crianas articularem

    seus movimentos de pernas e braos com equilbrio, fortalecendo, ento, a musculatura para

    a estrutura ssea que se alonga a cada dia, uma vez que seu corpo encontra-se em

    processo de crescimento.

    Confirma que, na realidade, a criana quer do adulto apenas uma escuta e um olhar mais

    sensvel para poder se afirmar em sua essncia brincante consigo mesma, com as outras

    crianas e com o mundo.

    Maria Amlia afirma que a educao entende o ldico de forma equivocada, pois a essncia

    do brincar a espontaneidade e liberdade. O brincar no tem objetivo pedaggico, tcnico

    ou conceitual, ele tem um fim em si mesmo, liberdade. Brincar um ato voluntrio, eu me

    dirijo brincadeira por um ato de deciso interna (COUTINHO, 1996, p.8). E, se o brincar

    for colocado para aprender alguma coisa, imediatamente ele deixa de ser brincar, ele perde

    sua caracterstica de possuir uma finalidade em si mesmo.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 69

    Maria Amlia explica que quando a criana brinca transcende a realidade para, assim, recriar

    o cotidiano e nesta esfera que prepara a fonte de criatividade do adulto.

    No brincar, o indivduo, o espao e possveis objetos da brincadeira saem da esfera exclusivamente utilitria, e esta situao inclui diferentes graus de subjetividade. O mundo interno das crianas emprega parmetros de uma realidade percebida que no coincidem necessariamente com as leis que governam a materialidade no objeto externo. Os efeitos externos so atenuados, e o objeto revela uma vitalidade mais profunda por seu valor subjetivo, pela interao imaginativa e corporal entre a criana e o objeto. Nesse justo momento h um relaxamento das defesas conscientes e se do passos para experincias subjetivas que se encontram em nveis mais profundos, dissolvendo as divises entre o que est dentro e o que est fora, comunicando a experincia do ser. O brincar opera nesta unidade subjetiva. O brincar, entendido como atitude do corpo e da mente, determina uma conduta pensante. (Maria Amlia Pereira, Apostila curso Educador Brincante, 2006, p.71)

    Na ao do brincar, declara Maria Amlia, h uma capacidade de interiorizao sem esforo

    que sinaliza a verdadeira concentrao. Neste momento o mundo ao redor est em total

    sintonia com a pessoa, h um inteiro (COUTINHO, 1996, p 29). A criana est numa

    concentrao to intensa que um canal aberto entre ela e o mundo, e assim ela est

    vivendo o grande exerccio de ligao, de estabelecimento do elo, entre ela e o seu fazer. A

    criana est inteira, sem fragmentao, una. a dimenso subjetiva operando.

  • 70 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    A criana que no tem espao nem tempo para brincar est sendo privada da criao de

    vnculos significativos em relao vida, porque somente aquilo que experimentado passa

    realmente a ser incorporado como conhecimento.

    Maria Amlia afirma que,

    o brincar nasce no corpo, e o corpo a natureza. A criana, antes do intelecto, instinto, sensao. Conhecer a si prprio, nesta faixa de idade, conviver com um espao fsico que lhe permita experienciar no corpo os movimentos de rolar, subir, descer, correr, trepar, pular, caminhar... (Apostila curso Educador Brincante, 2006, p.72-73)

    E conclui que o grande desafio da educao hoje compreender, de fato, a lngua da criana

    o brincar, que na sua essncia sinaliza a linguagem humana em sua verdade. enxergar

    novamente o ser humano, voltar s razes. Juntar dentro de ns esses dois plos, o

    cognitivo e o sensvel. E a natureza , na verdade, o cho que re-une os dois hemisfrios

    cerebrais, o racional e o sensvel, o lado direito e o lado esquerdo, a cabea e o corao

    (COUTINHO, 1996, p 44).

    Maria Amlia luta por uma educao que possibilite criana manifestar-se em sua inteireza,

    pois s assim ser capaz de perceber a si prpria e perceber o outro.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 71

    1.3. A Criana e o Ambiente Urbano

    Quando as regras dos adultos obrigam a criana a ficar passivamente olhando o seu meio ambiente,

    proibindo-a de arranjar sua sala de aula ou playground, ela provavelmente no ter

    um papel ativo na soluo dos problemas.

    Robert Sommer

    Com a crescente e desordenada urbanizao das grandes cidades, a infncia foi perdendo

    espao onde ocorriam brincadeiras entre crianas de diversas idades que utilizavam rua

    como se fossem extenses dos quintais das suas casas. Assim, a eliminao deste modo

    de vida comunitrio das crianas nas ruas, nos quintais, nos parques e nos espaos da

    natureza dentro dos recreios das escolas, altera radicalmente a vida das crianas,

    comprometendo sua sade fsica, emocional e mental.

    Segundo Verden-Zller (2004, p.194-195) o homem moderno acabou criando um mundo no

    qual distorce progressivamente e de maneira extrema as condies normais para o

  • 72 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    desenvolvimento da conscincia humana na criana. O espao da vida humana tornou-se

    deformado e de certa maneira destrutivo para ns, pois configura valores que negam o

    humano e acabam no proporcionando criana o espao de paz e liberdade que ela

    precisa para um desenvolvimento saudvel.

    Verden-Zller alerta (2004, p.195-196) que

    Num mundo assim, sem uma relao bsica com a natureza, sem liberdade de movimentos e de escolha de companheiros para brincar, no possvel desenvolver adequadamente uma conscincia corporal, uma autoconscincia, uma conscincia social e uma conscincia de mundo. Num mundo estranho, elas vivem alienadas de si mesmas e crescem como seres manipulveis e socialmente alienados. Assim, desprotegidas, num ambiente que no lhes proporciona confiana nem aceitao, elas jamais alcanam um desenvolvimento total de suas possibilidades humanas naturais de auto-orientao, auto-respeito, responsabilidade pessoal e social, liberdade e amor.

    J Mayumi Lima (1989), ao observar a organizao dos espaos sociais das crianas em

    seu livro A cidade e a criana, confirma a teoria de Sommer (1973) a qual revela que uma

    tirania do desenho sobre o usurio, e complementa que este usurio sempre representado

    quando h o coletivo, ou seja, o povo - o trabalhador annimo das cidades e dos campos

    (1989, p.9). Suas necessidades, suas expectativas e desejos no so ouvidos, e alerta que

    isso acaba sendo um processo de reduo cultural, de reas, de material... que gera

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 73

    espaos empobrecidos, descompromissados com a qualidade e principalmente utilizados

    como instrumentos de dominao.

    A organizao e a distribuio dos espaos, a limitao dos movimentos, a nebulosidade das informaes visuais e at mesmo a falta de conforto ambiental estavam e esto voltadas para a produo de adultos domesticados, obedientes e disciplinados se possvel limpos destitudos de vontade prpria e temerosos de indagaes. (LIMA.1989, p.10)

    Mayumi nos lembra que no espao fsico onde a criana experimenta as primeiras

    sensaes. onde ela encontra os nutrientes necessrios para seu desenvolvimento e

    estabelece a relao com as pessoas e com o mundo.

    O espao material , pois, um pano de fundo, a moldura, sobre o qual as sensaes se revelam e produzem marcas profundas que permanecem, mesmo quando as pessoas deixam de ser crianas. atravs dessa qualificao que o espao fsico adquire nova condio: a de ambiente. O ambiente significa a fuso da atmosfera, e se define na relao que os homens estabelecem entre si, ou do homem consigo mesmo, com o espao construdo ou organizado. (LIMA.1989, p.13-14)

    Ento, defende que o espao construdo pode ser um excelente material pedaggico para as

    crianas. Mayumi assegura que o espao sempre educativo, pode promover ou mesmo

  • 74 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    inibir o desenvolvimento do potencial criativo, dependendo da maneira que projetado e

    utilizado.

    Constata que, infelizmente, o espao escolar ainda frio, desinteressante, padronizado e

    padronizador na forma e na organizao das salas, fechando as crianas para o mundo,

    policiando-as, disciplinando-as (1989, p.38). E que as escolas ainda apresentam

    comportamento autoritrio e repressivo na maneira de utilizar e organizar seus espaos;

    ignoram o brincar na atividade diria da criana e isso acaba por estabelecer um domnio

    sobre o movimento do corpo e at controle do pensamento da criana.

    H apenas dois tipos de aprendizado: um o verdadeiro aprendizado e o outro condicionamento. Condicionamento uma resposta repleta de medo do primitivo ou o que chamamos de crebro posterior ou crebro reptiliano. Este o crebro dos reflexos, da sobrevivncia, que responde como se estivesse sendo ameaado. Aqui acontece uma forma de aprendizado, mas um aprendizado condicionado e intimamente relacionado com estados emocionais de hostilidade, raiva e ansiedade. Se voc deseja um verdadeiro aprendizado que envolva os lobos frontais superiores, o crebro intelectual e criativo, ento, mais uma vez, o ambiente emocional precisa ser positivo e de apoio. (Joseph Chilton Pearce, 1999)21

    21 Extrado da entrevista com Joseph Chilton Pearce, Revista Journal of Family Life, vol.5, 1999 - por Chris Mercogliano e Kim Debus. Traduo Sonia Gentil, 2003.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 75

    O ideal seria que a criana se apropriasse do espao da escola, deixasse suas marcas ou

    alterasse esse espao sua maneira, isso serviria de estmulos para manifestar sua

    capacidade de desenvolvimento e transformao do seu mundo. A escola se tornaria, ento,

    um espao agradvel e convidativo para as crianas.

    preciso pois, deixar o espao suficientemente pensado para estimular a curiosidade e a imaginao da criana, mas incompleto o bastante para que ela se aproprie e transforme esse espao atravs de sua prpria ao. (LIMA.1989, p.72)

    Outra pontuao diz respeito escola que no contextualiza a criana dentro de sua

    comunidade, alm de no permitir que ela se aproprie do espao da sua cidade. A cidade

    um espao muito rico, com grande potencial educativo; um espao de cultura pouqussimo

    explorado pelas escolas e sem nenhuma interao com as atividades curriculares.

    Para reconstruir a unidade das relaes afetivas, psquicas e cognitivas que lhe assegure simultaneamente a individualidade e a socializao, a crianas tero de encontrar nas novas condies urbanas aqueles espaos permeveis onde seja possvel o jogo e a brincadeira que envolvam os companheiros da mesma idade e observar o mundo dos adultos. (LIMA.1989, p.92)

    Apesar desse quadro, Mayumi (1989, p 101-102) defende que a escola acaba sendo o

    nico espao real e possvel para recuperao dos espaos pblicos e populares, mas que

  • 76 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    requer a transformao na maneira de pensar o espao/ servio educativo como local de

    propriedade coletiva e pblica, alm do rompimento da escola/priso/ fortaleza e sua

    transformao na escola/ praa/ parque.

    Vemos que o afunilamento do espao urbano ocorre porque h um total desconhecimento

    da cultura da infncia, ningum sabe o que a criana. Na realidade, com o entendimento da

    existncia da cultura da infncia passamos a reconhecer a criana como agente

    transformador do espao urbano. Ao observar as crianas, conseguiremos enxergar sua

    capacidade inerente de construo do seu prprio espao, que edificado de acordo com

    suas necessidades, nos seus limites e nas suas funes.

    Paulo Freire (1993 apud GADOTTI, 2006 p.96-97) sempre defendeu a cidade como espao

    educador:

    H um modo espontneo, quase como se as Cidades gesticulassem ou andassem ou se movessem ou dissessem de si, falando quase como se as Cidades proclamassem feitos e fatos vividos nelas por mulheres e homens que por elas passaram, mas ficaram, um modo espontneo, dizia eu, de as Cidades educarem.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 77

    No incio dos anos 90, no primeiro Congresso Internacional das Cidades Educadoras, em

    Barcelona, foi criado o conceito da Cidade Educadora que define os princpios bsicos de

    uma cidade que educa. Segundo Gadotti (2006), a cidade tida como espao de cultura e

    acaba por educar a prpria escola e, esta, numa troca de conhecimentos e saberes, tambm

    educa a cidade. Afirma que o viver na cidade j uma aprendizagem espontnea e

    permanente num grande espao cultural.

    Gadotti diz que uma cidade educadora exerce alm de suas funes tradicionais

    econmica, social, poltica e de prestao de servios - ela alimenta a formao para e pela

    cidadania. Promove a participao de todos, crianas, jovens, adultos e idosos - na busca

    de um novo direito, o direito cidade educadora (2006, p.97).

  • 78 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    O Manifesto das Cidades Educadoras, aprovado em Barcelona, em 1990, e revisado em

    Bolonha, em 1994, (apud GADOTTI, 2006 p.97-98) descreve que

    A satisfao das necessidades das crianas e dos jovens, no mbito das competncias do municpio, pressupe uma oferta de espaos, equipamentos e servios adequados ao desenvolvimento social, moral e cultural, a serem partilhados com outras geraes. O municpio, no processo de tomada de decises, dever levar em conta o impacto das mesmas. A cidade oferecer aos pais uma formao que lhes permita ajudar os seus filhos a crescer e utilizar a cidade num esprito de respeito mtuo. Todos os habitantes da cidade tm o direito de refletir e participar na criao de programas educativos e culturais, e a dispor dos instrumentos necessrios que lhes permitam descobrir um projeto educativo, na estrutura e na gesto da sua cidade, nos valores que esta fomenta, na qualidade de vida que oferece, nas festas que organiza, nas campanhas que prepara, no interesse que manifeste por eles e na forma de os escutar.

    Isso quer dizer que a escola reconquistada pela comunidade, ganha nova vida se

    integrando na cidade, e recuperada como novo espao cultural se transformando num

    novo territrio de construo da cidadania.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 79

    1.3.3. CEU Centro Educacional Unificado

    A cidade de So Paulo mostrou interesse em participar do movimento das Cidades

    Educadoras desde meados de 2003, com a implantao dos Centros Educacionais

    Unificados CEUs22. Construdos a partir de 2002, hoje a cidade conta com 45 unidades em

    funcionamento nas periferias de So Paulo.

    22 Ver artigo ANELLI, Renato. Centros Educacionais Unificados: arquitetura e educao em So Paulo. Arquitextos, n 55.02. So Paulo, Portal Vitruvius, dez. 2004. Consultar tambm a revista Casabella, n 727, Milo, novembro 2004. E a revista ArchPlus, n190, Dezembro 2008 onde Marcos L. Rosa entrevista um dos autores Alexandre Delijaicov.

    Figura 1 CEU Rosa da China bairro de Sapopemba. Foto: David Rego Jr.

  • 80 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    O projeto possui uma viso que ultrapassa a sala de aula e o espao escolar, estendendo

    para toda a cidade, com programao inclusive nos finais de semana; funciona como um

    equipamento urbano agregador da comunidade de periferia.

    Projeto elaborado pela equipe de arquitetos da EDIF - Departamento de Edificaes da

    Secretaria Municipal de Infra-estrutura Urbana e Obras da Prefeitura de So Paulo

    Alexandre Delijaicov, Andr Takya e Wanderley Ariza, tambm chamado de verso

    contempornea da Escola Parque23. Esta ltima, idealizado pelo educador Ansio Teixeira no

    final dos anos 40 na cidade de Salvador, e projeto arquitetnico de Digenes Rebouas e

    23Consultar: DUARTE, Hlio de Queiroz. Escola-classe escola-parque. So Paulo: FAUUSP, 1973.

    Figura 2 e 3 CEU Rosa da China bairro de Sapopemba. Fotos: Nelson Kon.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 81

    Helio Duarte. Assim, tambm so herdeiros do Convnio Escolar24, comisso dirigida por

    Helio Duarte, entre 1948 e 1952, para projetar e construir escolas-parque na cidade de So

    Paulo. Portanto, a histria dos CEUs mais anterior do que se imagina; remete s razes dos

    ideais da Escola Nova na dcada de 20.

    24 O Convnio Escolar (1948-1952) foi uma ao poltica entre os governos do Municpio e do Estado de So Paulo para a construo em massa de escolas para atender o dficit monstruoso de vagas escolares. O diretor de Planejamento da Comisso Executiva do Convnio Escolar foi o arquiteto Helio Duarte, que utilizou a experincia obtida com implantao da Escola Parque em Salvador.

    Figura 4 Escola-parque ou Centro Educacional Carneiro Ribeiro (em duas etapas: 1947 e 1956), em Salvador, de Digenes Rebouas. Fonte: Revista AU. n 178, jan. 2009.

  • 82 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Alm disso, na ocasio da formao da EDIF, o educador Paulo Freire era secretrio

    municipal de educao25, e, a partir desse momento, inicia-se a idia de utilizar o edifcio

    pblico como elemento estruturador da cidade, ou seja, comea a se pensar nos Centros

    Educacionais Unificados implantados nas periferias de So Paulo.

    Os complexos educacionais possuem creche, Escola de Educao Infantil, Escola de Ensino

    Fundamental, playground, centro comunitrio, teatro, cinema, biblioteca, quadras esportivas,

    atelis, parque aqutico, estdios para oficinas de vdeo, TV, rdio e fotografia, telecentro e

    pista de skate, permeados por grandes reas verdes.

    25 No perodo de 01 de janeiro de 1989 a 27 maio de 1991, na gesto da prefeita Luiza Erundina.

    Figura 5 e 6 CEU Butant Fotos: David Rego Jr. e Nelson Kon.

  • O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA 83

    Alm da implantao dos prprios equipamentos, o entorno tambm contemplado com a

    reestruturao viria e saneamento bsico para prover a periferia paulistana de um novo

    desenho urbano.

    [...] O projeto... Agrupa o programa em trs conjuntos volumtricos de formas simples e despojadas. O maior em forma de grelha ortogonal rene as salas de aula, refeitrios, biblioteca, programa de incluso digital, padaria-escola, reas para exposies e para convivncia. O menor, em forma de disco elevado do solo abriga a creche. O terceiro rene em um paraleleppedo de cinco andares, teatro, ginsio esportivo e sala de ensaios musicais. (ANELLI, 2004, p.2)26

    26 Trecho extrado do artigo ANELLI, Renato. Centros Educacionais Unificados: arquitetura e educao em So Paulo. Arquitextos, n 55.02. So Paulo, Portal Vitruvius, dez. 2004.

    Figura 7 CEU Butant. Foto: Nelson Kon Figura 8 Croqui CEU Rosa da China.

  • 84 O ESPAO DA CRIANA NA ALDEIA DE CARAPICUIBA

    Foi desenvolvido um projeto bsico padro em sistemas pr-moldados para adaptar-se a

    variados tipos de terreno e ainda dialogar com diversos contextos. Os espaos livres

    disponveis na cidade para a implantao das Praas de Equipamentos - como os autores

    preferem chamar os CEUs geralmente so reas s margens de rios, vrzeas ou de

    nascentes, protegidas pela legislao ambiental. Para solucionar essa problemtica, os

    arquitetos incorporaram o leito fluvial ao desenho urbano das periferias, transformando as

    antigas reas degradadas em belssimos parques fluviais.27

    27 Vale a pena conferir a dissertao de mestrado: DELIJAICOV, Alexandre. Os rios e o desenho urbano da cidade. Proposta de p