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X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade

Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010

Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica

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O EPISÓDIO DA REVOLTA DO „QUEBRA-QUILOS‟ (1874 A 1875): UMA

ANÁLISE DE UM MOMENTO PARTICULAR DO DESENVOLVIMENTO DA

MATEMÁTICA A PARTIR DA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE

HUMANIZAÇÃO E ALIENAÇÃO

José Roberto Boettger Giardinetto1

Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Bauru

[email protected]

Aline Tomie Kiyan Matayoshi2

Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Bauru

[email protected]

Clarice Gomes2

Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Bauru

[email protected]

Fabiana Souza de Faria2

Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Bauru

[email protected]

Sonia Regina Romero2

Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Bauru

[email protected]

Resumo: O objetivo deste trabalho é inicialmente apresentar algumas considerações acerca

da relação entre humanização e alienação no decorrer do desenvolvimento histórico-social

da matemática. A partir da reflexão sobre essa relação, pretende-se situar as considerações

na análise de um episódio da História do Brasil, a saber, a denominada Revolta do

„Quebra-Quilos‟. A idéia é promover um estudo sobre a dinâmica histórica da inserção do

sistema métrico decimal de medidas a partir da evidência dos fatores sociais, econômicos e

políticos presentes na denominada “Revolta do Quebra-Quilos”. Com isto, espera-se

propiciar uma reflexão sobre as especificidades do processo histórico-social de

sistematização presente na matemática escolar.

Palavras-chave: Multiculturalismo; Educação Matemática; História da Matemática;

Revolta do „Quebra-Quilos‟.

1. INTRODUÇÃO

1 Coordenador do Grupo de Estudo: a Matemática na perspectiva histórico-cultural (GEMaHC) e Prof.

Doutor do Departamento de Educação da UNESP. 2 Aluna do Curso de Licenciatura em Matemática da UNESP.

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Quais são os aspectos históricos essenciais que retratam a ascensão de um tópico,

ou conceito matemático, até se constituir como parte do currículo escolar?

Quais os conflitos gerados neste processo de ascensão até sua constituição hoje

apresentada? Quais os fatores econômico, sociais e políticos que se fizeram presentes ao

longo deste processo?

Essas indagações são objeto de pesquisa à luz da concepção histórico-social do

desenvolvimento da Matemática considerando dos embates ideológicos implícitos à gênese

do gênero humano. Gênero humano é aqui entendido como uma categoria que “expressa o

resultado da história social humana – a história da atividade objetivadora dos seres

humanos” (Duarte,1993,p.15). A “objetividade das características humanas historicamente

formadas constitui o gênero humano” (Duarte, 1993,p.18).

Por conta da divisão social do trabalho e da propriedade privada, a história social

humana tem se processado através de um distanciamento cada vez maior entre as

objetivações genéricas acessíveis a cada indivíduo singular e a somatórias das objetivações

genéricas. Cumpre esclarecer que, uma objetivação é um produto do processo de

transformação da realidade natural, via trabalho, em realidade humanizada.

O distanciamento entre aquilo que é acessível ao indivíduo singular e aquilo já

obtido pelo gênero humano é gerado pelo fenômeno da alienação (Giardinetto, 1999, p.33;

Duarte, 1993, p.74 e Marx, 1985).

A dinâmica do processo histórico de transformação da realidade natural em

realidade humanizada tem apontado a humanização do gênero humano se realizando sob

relações sociais alienadas.

A relação dos seres humanos com suas objetivações é, de início, na

história humana, uma relação alienada porque o desenvolvimento da

genericidade humana tem se realizado através da divisão social do

trabalho e da propriedade privada. Esse foi o caminho possível através do

qual o gênero humano superou os estágios iniciais do processo de

humanização, nos quais a objetivação humana manteve-se num nível que

não ultrapassava a obtenção das condições de sobrevivência dos

indivíduos, não se pode falar propriamente em alienação pois todos os

indivíduos viviam em contato direto com o ser genérico, que nesse caso se

identificava com o ser comunitário. A divisão social do trabalho

significou a ultrapassagem desse nível de objetivação do ser genérico, o

que se constituiu num irreversível desenvolvimento, mas também criou a

cisão entre o indivíduo e as objetivações genéricas. Daí em diante a

história humana tem se caracterizado por esses dois processos, isto é, por

um lado o gênero humano se objetiva de forma cada vez mais universal e

livre e, por outro, isso se realiza às custas da vida dos indivíduos, vida

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esta que não se efetiva necessariamente, ou melhor, que não se efetiva na

maioria dos casos, de forma tão universal e livre quanto o nível de

universalidade e liberdade já alcançado pelo gênero humano.

(DUARTE, 1993, p.76)

A partir do entendimento da dinâmica pelo qual o processo histórico de

transformação da realidade natural em realidade humanizada se realiza, é preciso filtrar das

objetivações produzidas no interior do processo de alienação, as objetivações que apontam

para a humanização do gênero humano, descartando, superando, aquelas objetivações que

tem contribuído para a desumanização dos homens, que tem contribuído para reiterar ainda

mais a alienação em processo. Nas palavras de DUARTE(1993, p.60)

Analisar a objetivação e a apropriação do ser humano no interior da “pré-

história” [conceito de Marx que denota as sociedades, inclusive a

capitalista, anteriores ao comunismo – nota do autor deste trabalho]

significa analisar a humanização se realizando através das relações

sociais alienadas. Uma concepção histórico-social da formação do

indivíduo não pode limitar-se a analisar os processos de objetivação e

apropriação que explicam a formação de determinados processos

cognitivos e comportamentais, ela precisa se posicionar sobre o caráter

humanizador ou alienador da formação desses processos. Esse

posicionamento, por sua vez, requer a mediação de categorias que

sintetizem o que, no atual momento da história humana e nas condições

sociais concretas em que se realiza a formação dos indivíduos, se

constitui nas possibilidades máximas da vida humana existentes numa

sociedade e quais as condições sociais que impedem, ou ao menos

cerceiam, a realização dessas possibilidades na vida dos indivíduos.

Trata-se de se entender que a formação dos indivíduos é contraditória, heterogênea

e se dá por relações sociais de dominação presente na história humana até hoje. Mas por

conta do enfoque historicizador se entende que as forças de dominação são características

históricas elimináveis, isto é, superáveis. No entanto, é preciso buscar nessa superação, o

caráter essencialmente humanizador, aquilo que na cultura tem apontado para a

universalidade e liberdade humanas. Trata-se de efetivar “[...]a compreensão das

contradições que marcam o processo histórico no qual a riqueza material e intelectual

humana é construída e ampliada por meio da exploração das classes dominadas (os

escravos, os servos e os proletários)” (DUARTE, 2009, p.06)

Evidencia-se a necessidade de se captar, nas objetivações criadas, o aspecto

humanizador diferenciando de seu aspecto alienador. O conteúdo de caráter humanizador

pode apontar, dados os interesses dos dominantes, para uma não-humanização dos homens

(Cf. Duarte, 1996, p.24). Isso se dá em todos os campos do conhecimento humano. Não se

pode hoje negar os benefícios da energia nuclear (na medicina, por exemplo) apesar do uso

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alienador dado a ela para coação de nações e promoção de guerras. Não se podem negar os

benefícios possíveis da clonagem apesar de todos os riscos que corremos dados os

interesses escusos, das grandes empresas norte-americanas e européias de bio-teconologia

no desenvolvimento de pesquisas. Enfim, não se pode negar os avanços gerados pelo

capitalismo em aproximadamente dois séculos e meio de existência, apesar de ser

necessário entender, denunciar e apontar sua superação dado seu processo injusto e

alienador de exploração da maioria dos homens por uma minoria que detém o poder

político, econômico e cultural. Deve-se sim fazer a crítica, mais abstraindo aquilo que

permanece como legado possível para a humanização do homem. Em outras palavras, no

âmbito da esfera escolar, trata-se de promover uma pedagogia que “[...] supere a educação

escolar em suas formas burguesas sem negar a importância da transmissão, pela escola, dos

conhecimentos mais desenvolvidos que já tenham sido produzidos pela humanidade”

(DUARTE,2006, p.09).

Considerando o processo histórico-social de produção da matemática como um

momento específico do desenvolvimento do gênero humano (obviamente a matemática é

parte do resultado da história social humana), os conhecimentos aí gerados que se

“firmaram como fundamentais”, os “clássicos”, nas palavras de Saviani(2003, p. 13), são:

a ampliação dos campos numéricos, a álgebra, a geometria, a trigonometria, a análise

combinatória, enfim, os conteúdos matemáticos que hoje compõem a grade curricular de

matemática nos anos escolares.

Um olhar sobre a gênese do processo histórico-social de desenvolvimento do

conhecimento matemático permitir evidenciar a dinâmica do desenvolvimento do gênero

humano na dialética entre humanização e alienação. Nesse sentido, compete às pesquisas

em História da Matemática uma importante tarefa, a saber, de contribuir para explicitar os

múltiplos aspectos implícitos a historicidade do processo pelo qual a matemática escolar é

hoje apresentada em face à relação dialética entre humanização e alienação do gênero

humano.

Trata-se, portanto, de valorizar o acesso aos conteúdos escolares de forma que estes

evidenciem aquilo que retrate as “conquistas mais significativas e duradouras para a

humanidade” (Duarte in Silva, Jr, 1994, p. 143).

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Um momento importante de se realizar essa reflexão é a análise da universalização

do sistema de pesos e medidas a partir do episódio na História do Brasil denominado de a

“Revolta do „Quebra-Quilos‟”.

2. A UNIVERSALIZAÇÃO DO SISTEMA DE PESOS E MEDIDAS A

PARTIR DA REFLEXÃO SOBRE A “REVOLTA DO „QUEBRA-QUILOS‟ ”.

Como se observou, um aspecto interessante da dinâmica do desenvolvimento do

gênero humano na dialética entre humanização e alienação, é a constituição do sistema

métrico decimal de medidas no Brasil, em que se destacando o episódio conhecido como a

“Revolta do Quebra-Quilos”.

A denominada “Revolta do Quebra-Quilos” ocorreu na época do Brasil Imperial,

nos anos de 1874 e 1875. A revolta popular envolveu quatro províncias do Nordeste, a

saber, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Norte (Cf.: Monteiro,1995 e Maior,

1978). Segundo Monteiro(1995, p. 4) atingiu “78 localidades nordestinas: 35 na Paraíba,

23 em Pernambuco, 13 no Rio Grande do Norte e 7 em Alagoas”.

Os motivos do movimento revoltoso foram decorrentes do alto grau de insatisfação

do povo frente à “evolução histórica da economia do Império” (Maior, 1978, p.02). Os

elementos decisivos que explicam a revolta foram:

1º) a imposição de cobrança de imposto (excessos tributários);

2º) os ressentimentos oriundos da denominada “Questão Religiosa”, episódio

ocorrido em 1873, fruto de querelas entre os jesuítas e a maçonaria;

3º) a nova lei de alistamento militar;

4º) a implantação de um novo sistema de pesos e medidas;

5º) a concentração fundiária.

O que se percebe, é que o fato histórico se limitou, já pela sua titulação, a apenas

um aspecto, que aparece desconectado dos demais e, por isso, escamoteia os aspectos

maiores e decisivos para a compreensão do fato: a simples quebra dos pesos e medidas, daí

o nome de “Revolta do Quebra-Quilos”. É neste sentido a observação de

Monteiro(1995.p.09):

Ninguém quebra medidas, balanças e pesos simplesmente porque não

concorda com o sistema métrico. Além disso, arquivos e prédios

públicos também foram destruídos pelo povo, que reclamava dos altos

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impostos e do preço dos alimentos. A destruição dos novos padrões de

pesos e medidas fazia parte de um conjunto de ações que tinham por

objetivo protestar contra as autoridades e externar a grande insatisfação

do povo pelas más condições de vida.

A expressão Quebra-Quilos, portanto, identifica apenas um aspecto da

revolta. Esse nome foi dado pelas autoridades da época e mantido por

muitos historiadores.

Ao atribuir à revolta o nome de Quebra-Quilos, as autoridades

procuravam caracterizar como ignorantes os que dela participavam. Isso

porque o sistema métrico decimal era o que havia de mais moderno para

pesos e medidas, e os principais países da Europa já o adotavam. Assim,

o governo queria transmitir a idéia de que o movimento era resultado do

atraso e da ignorância dos rebeldes, ocultando os outros aspectos da

revolta. Entre esses aspectos estava a miséria em que vivia o povo do

Nordeste.

Interessante verificar que trabalhos de cunho multicultural na Educação

Matemática interpretam o episódio como exemplo para legitimar a idéia segundo a qual se

trata de uma imposição de uma determinada civilização e/ou sociedade sobre outras (no

caso, a sociedade ocidental). O que revela uma visão superficial do fato já que não condiz

com a essência do processo histórico. É preciso considerar, entre outros aspectos, o fato

de que se o sistema de pesos e medidas é uma imposição da Revolução Francesa, o

sistema de pesos e medidas existentes no Império não era algo “genuíno” do povo

brasileiro, mas também uma imposição, a do Império Português. E com graves

problemas, como declara Henrique Pereira de Lucena, governador da Província de

Pernambuco na época da Revolta em “Circular às autoridades policiais e judiciárias da

província” (MAIOR, 1978, p.111):

De muito foi reconhecido que o antigo systema de pesos e medidas

ressentia-se de graves defeitos, porque os múltiplos e submúltiplos das

unidades principaes de uma mesma espécie de grandeza eram

inteiramente arbitrários, em damno da uniformidade necessária as

operações de compra e venda, succedendo que, perdidos os padrões da

unidade principal, meramente convencional, perdida estava a base do

systema. Reconhecendo ainda que adoptando cada paiz um systema

diverso, tornava-se obrigatória nas transações commerciaes a redução,

sob bases vacillantes, das medidas de um as que regulavam em outro

paiz, reducção essa que após serias dificuldades, dava lugar á enganos e

erros muitas vezes de grande prejuízo...

A idéia deste trabalho é defender a necessidade de imprimir uma perspectiva de

análise do processo histórico de desenvolvimento da matemática, entendida esta enquanto

particular objetivação do gênero humano na sua gênese histórica contraditória entre

humanização e alienação de forma a valorizar os conteúdos universais como legado a

todos.

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Esta análise, no tocante à necessidade de padronização de medidas evidencia os

motivos pelos quais ela se sucedeu: o expansionismo da sociedade capitalista através de

suas atividades comerciais internacionais que ditaram a padronização de medidas:

Além das unificações dos sistemas de medidas regionais pré-métricos,

outros aspectos bastante interessantes no desenvolvimento dos sistemas

de medidas foram a expansão e a unificação inter-regionais. Nesse caso,

as relações comerciais e o colonialismo foram fatores decisivos. As

primeiras assumem papel importante na unificação dos sistemas de

medidas, uma vez que as mercadorias importadas, quase sempre, são

quantificadas segundo o sistema de medidas do país exportador. Essa

imposição depende naturalmente da quantidade de mercadorias

exportadas, mas, em geral, ela ocorre nesse sentido. Assim, a partir do

momento em que determinada região firmava-se como exportadora, seu

sistema de medidas passava a ter grandes possibilidades de ser adotado

pelas regiões importadoras, e estabelecia-se, dessa forma, uma forte

condição para a expansão inter-regional dos sistemas de medidas. O

colonialismo, evidentemente, atuou como fator de exportação dos

sistemas de medidas a partir da imposição do uso do sistema de medidas

do colonizador. Foi assim que as colonizações e o mercantilismo, do

século XVI, e a Revolução Industrial, do século XVII, tornaram-se os

grandes catalizadores da expansão dos sistemas de medidas.

(SILVA, 2004, p.75)

O processo histórico-social de padronização de medidas evidencia o aspecto

alienador na dinâmica deste processo na medida em que se deu em decorrência dos

interesses das atividades comerciais internacionais oriundas do expansionismo do sistema

capitalista ao longo do tempo, o que levou a práticas de implementação deste sistema de

medidas ao longo do planeta em detrimento de outros. Mas foram práticas que substituíram

práticas anteriores também impostas dado que o processo histórico tem sido dado pela

exploração de muitos por poucos.

Os padrões portugueses de medida conviviam com padrões espanhóis e ingleses e

sua utilização variava de lugar. Segundo Monteiro(1987, p.05):

Tudo isso era de difícil memorização. Por exemplo, o quintal

correspondia a quatro arrobas; uma arroba, por sua vez, equivalia a 32

libras. Às vezes, a mesma medida tinha valores diversos. A pipa, muito

usada para medir líquidos, equivalia em Lisboa a 430,13 litros, no Rio

de Janeiro a 500 litros, na Bahia a 709, 15 litros. A variação acontecia

também no conteúdo: uma pipa de vinho era diferente de uma de melaço

ou de aguardente.

Embora toda essa confusão de pesos e medidas facilitasse a fraude por

parte de comerciantes, a população estava acostumada a ela desde muitas

gerações.

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Entretanto, como já se evidenciou aqui, a história humana tem se dado na dialética

entre humanização e alienação. Assim, por contradição, a unificação do sistema de pesos e

medidas trouxe avanços para o gênero humano, tornando-se um legado acessível de

apropriação na esfera escolar. Como esclarece SILVA(2004, p.80):

...o Sistema Métrico possui, ainda, um componente social importante: ele

representa o símbolo de uma conquista social que pôs fim aos abusos

comerciais e restituiu a ordem metrológica na época de sua criação.

Tendo sido um dos frutos da Revolução Francesa, ele pode ser

considerado, também, como um dos marcos que estabeleceu o fim do

feudalismo europeu. E, mais do que isso, ele concretizou a possibilidade

da sistematização das ciências que era o anseio geral de outra classe de

homens, que foram os pensadores do século XVIII, o século da razão e

das ciências. Um novo pensamento científico e social eclodiu em todos os

setores da atividade humana naquela época. Homens como Denis Diderot

(1713-84), Jean-Jacques Rousseau (1712-78) e vários outros pregoavam

mudanças sociais radicais e, entre elas, o estabelecimento de um novo

sistema de medidas, que fosse coerente e embasado em padrões

invariáveis. (SILVA, 2004, p.80)

Importante observar que a universalização do sistema de pesos e medidas é

conseqüência de uma universalização intrínseca à lógica expansionista capitalista. O

processo histórico de desenvolvimento do gênero humano que atualmente, se dá pela “[...]

lógica de mundialização do capital, a lógica, já apontada por Marx, da universalização do

valor de troca como a única mediação entre todos os seres humanos e também a mediação

entre cada indivíduo e as atividades que realiza” (DUARTE, 2000, p. 54). Esta

“mundialização do capital”, por se estender a todos os cantos do planeta, implica também a

mundialização de seu conhecimento o que, se por um lado traz em si o aspecto alienador

na constituição do gênero, por outro lado, traz como elemento humanizador a possibilidade

efetiva de unificação do gênero humano pela incorporação daquilo que possa garantir “a

riqueza material e intelectual humana” (DUARTE, 2009, p. 06) mediante uma formação

humana construída a partir das formas mais desenvolvidas de conhecimento, arte, política,

ética e filosofia. Daí, o legado à humanidade, ofertado pela unificação dos pesos e

medidas, apesar dos motivos históricos pelos quais ele foi gerado.

Finalizando, o objetivo deste trabalho é evidenciar que a escolha da “Revolta do

Quebra-Quilos” no contexto da gênese do sistema métrico decimal de pesos e medidas,

constitui uma temática interessante para se trabalhar as questões relativas à perspectiva

histórico-cultural de desenvolvimento da Matemática e se revela exeqüível para abordá-la

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no âmbito do Ensino Fundamental e Médio, inclusive cabendo desenvolvê-la numa

perspectiva interdisciplinar com o ensino de Geografia e História.

3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, N. A socialização da riqueza intelectual: psicologia, marxismo e pedagogia: In: Interface –

comunicação, saúde, educação. Disponível em:

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Acesso em: 29 jun. 2009.

______. A contradição entre universalidade da cultura humana e o esvaziamento das relações sociais:

por uma educação que supere a falsa escolha entre etnocentrismo ou relativismo cultural. Educação e

pesquisa. São Paulo, v. 32, n. 3, set./dez, 2006.

______. Vigotski e o "aprender a aprender": crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da

teoria vigotskiana. São Paulo, Campinas: Autores Associados, 2000.

______. Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski. Campinas, SP: Autores

Associados, 1996 ( Coleção polêmicas do nosso tempo: v. 55)

_____. Elementos para uma ontologia da educação na obra de Dermeval Saviani. In.: SILVA, Júnior,

C.A. da S. Dermeval Saviani e a educação brasileira: o simpósio de Marília. São Paulo: Cortez,

pp.129-149, 1994.

______. A individualidade para-si: contribuições a uma teoria histórico-social da formação do

indivíduo. Campinas: Autores Associados, 1993 (Coleção Educação Contemporânea).

GIARDINETTO, J. R. B. Matemática escolar e matemática da vida cotidiana. Campinas: Editora

Autores Associados, 1999 (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo, nº 65).

MAIOR, A S. Quebra-quilos: lutas sociais do outono do Império. São Paulo: Editora Nacional,

1978.

MARX, Karl. Manuscritos: economía y filosofía. Madrid: Alianza editorial, 1985.

MONTEIRO, H. de M. Revolta do quebra-quilos. São Paulo: Ática, 1997.

SILVA, I. da. História dos pesos e medidas. São Carlos: EdUFSCar, 2004.