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CADERNOS DE MONITORAMENTO EPIDEMIOLÓGICO E AMBIENTAL Caderno Nº 4 - Outubro - 2013 Movimentos sociais e saúde FIOCRUZ

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Page 1: O EPIDEMIOLÓGICO E AMBIENTAL Caderno Nº 4 - Outubro - … · adquiridos pela participação em movimentos sociais do passado. Formas tradicionais de ... cidade do interior nos anos

CADERNOS DE MONITORAMENTO

EPIDEMIOLÓGICO E AMBIENTAL Caderno Nº 4 - Outubro - 2013

Movimentos sociais e saúde

FIOCRUZ

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Fundação Oswaldo CruzPresidente

Paulo Ernani Vieira Gadelha

Produção e divulgaçãoMaria Lana, Ricardo Carvalhal, Vitor Labre, Melquisedeck Gabriel da Silva,

Willdison Carlos dos Passos Gonzaga, Arlindo Machado de Azevedo, Elizeu Alves

Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio AroucaRua Leopoldo Bulhões, 1480 - Sala 609 -Manguinhos - CEP 21041-210

Rio de Janeiro/RJ - Tel. (21) 3838-9189E-mail:

Tiragem: 10.000 exemplaresImpressão: Gráfica........................................

[email protected]

Organizadores:Luciano Medeiros de ToledoPaulo Chagastelles Sabroza

Designer e Ilustrações: Mayrink

Movimentos sociais e saúde

Influência do COMPERJCoordenadores do Plano de Monitoramento Epidemiológico da Área de

Revisão:Marcelo Zabrieszach Afonso

Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio AraoucaDiretor

Antônio Ivo de Carvalho

Eduardo Navarro StotzCarla Moura Pereira Lima

Gil SevalhoMárcia Florentino

Marcos Thimoteo Dominguez

Autores:

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Oxi 25

8

Alguns traços do Brasil nos «retratos» dos censos demográficos

Apresentação

Os movimentos sociais durante a ditadura militar13

3

9

7

Movimentos sociais e saúdeO que são os movimentos sociais 17

Limites e possibilidades dos movimentos sociais 18

Palavras finais 20

Introdução 4

Índice

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A

R

M

H

H

população tem sofrido muito com os atuais problemas da assistência à saúde. Mas os mais antigos sabem que já foi muito pior. Como era pior! Muitas melhorias vieram por meio da conquista de lutas sociais. Desde a década de 1970, nos mais diversos recantos da nação, milhares de grupos, movimentos e pessoas têm lutado para melhorar as condições de saúde da população, enfrentando interesses econômicos e políticos muito poderosos. Trazer para a reflexão e o debate a importância das lutas dos movimentos sociais na defesa do direito universal à saúde, resgatando o nosso passado e inspirando novos caminhos futuros é uma das contribuições desta edição dos Cadernos de Monitoramento Epidemiológico e Ambiental.

econhecer estas conquistas é importante para valorizar a luta social que hoje ainda ocorre. Sem estas lutas, redes de solidariedade e invenções coletivas, nós não teríamos o SUS. Se estas lutas não continuassem, o SUS teria muito menos recursos. E as suas práticas não teriam elementos tão inovadores como o trabalho das agentes comunitárias de saúde, os conselhos de saúde com grande representação da população, vários serviços abordando problemas de saúde de forma participativa com os moradores e as organizações comunitárias, o esboço de uma política procurando a humanização dos atendimentos e uma assistência menos restrita à apenas o tratamento de sintomas e doenças bem definidas pela medicina. Na luta pela saúde, muitas contribuições foram feitas para o avanço geral da democracia e da justiça, o fortalecimento de grupos sociais marginalizados e o reconhecimento e valorização dos saberes e práticas populares.

uitas outras conquistas precisam ser feitas. Quem convive com o sofrimento da população sabe da urgência desta luta. Sem movimentos ativos, esta luta vai se esvaziar e ficar menos criativa. Será uma luta perdida!

á muitos grupos políticos e econômicos interessados em desvalorizar os movimentos sociais. Querem fazer acreditar que a melhoria da saúde virá principalmente pelo trabalho de lideranças políticas eleitas ou de lideranças técnicas dedicadas. Que a melhoria dependerá basicamente do aperfeiçoamento tecnológico da assistência ou de um ensino mais qualificado dos profissionais de saúde. Tudo se resolveria por dentro das instituições de uma nação já democrática. E que saúde não tem nada a ver com justiça, condições de trabalho e moradia. Mas, sabemos que não é assim.

á desafios e dificuldades novas. Os movimentos têm dificuldade de manter sua autonomia no contexto de um Estado composto também de gestores com muitos saberes adquiridos pela participação em movimentos sociais do passado. Formas tradicionais de organização popular estão esvaziadas e é preciso identificar e valorizar novas formas de organização. O individualismo consumista está se expandindo na cultura, tornando as lutas coletivas mais difíceis e exigentes. Enfim, são muitos os novos desafios para os atuais movimentos sociais continuarem fortes na sua luta.

Apresentação

Eymard Mourão VasconcelosMédico, professor na Universidade Federal da Paraíba, participante do

movimento da educação popular em saúde desde 1974Pág. 3

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Introdução Antes de iniciar a leitura deste caderno, consideramos importante você perceber, caro leitor, cara leitora que, apesar de todo mundo falar em movimentos sociais, quase ninguém consegue definir o que são. Na verdade, há uma grande polêmica em torno do assunto. Não há um único significado para esse conceito, isto é, para identificar, descrever e classificar o que são movimentos sociais. O conceito de movimentos sociais foi elaborado pelas Ciências Sociais na Europa em decorrência do surgimento, nos anos da década de 1960, de lutas sociais em torno de diferentes problemas sociais, a exemplo da habitação, dos serviços básicos, do acesso à terra ou dos direitos à saúde e reprodutivos. Nesse sentido, distinguem-se dos movimentos sindicais na medida em que estes lutam contra a exploração da força de trabalho pelo capital. Por isso, dizer “de primeira” o que são movimentos sociais, não é tarefa simples. Aqui ofereceremos subsídios para você refletir criticamente sobre o tema e chegar às suas próprias conclusões. Por isso, a nossa análise dos movimentos sociais adota a perspectiva da Educação Popular em Saúde, que se organiza para a libertação das pessoas envolvidas no ato de aprender, em todos os momentos e em todos os sentidos que se possa e ou precise libertar. Para efeito de introdução, começamos afirmando que os movimentos sociais têm diversas formas de organização e de luta.

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Os movimentos sociais têm em comum o fato de apontarem os problemas f u n d a m e n t a i s d a d e s i g u a l d a d e e d a s injustiças sociais. Movimentos sociais são aqueles que lutam por projetos, significados e orientações que levem a uma sociedade mais justa. Voltaremos a essa definição mais adiante, no item quatro desta publicação. Diferentemente do que ocorreu em outros períodos da história brasileira, temos um retrocesso na compreensão da importância dos movimentos sociais. Atualmente, os movimentos sociais são frequentemente “criminalizados” pelo poder público e pela mídia (imprensa, rádio, televisão e internet) que influencia grande parte da sociedade e difunde como “absoluta verdade” as opiniões das grandes corporações das quais dependem por meio da publicidade e com as quais se identifica em termos de valores. Essas opiniões objetivam reforçar os interesses de quem tem poder e colaboram para a manutenção das injustiças sociais, inclusive para que os investimentos do dinheiro público beneficiem mais quem já tem muito.

Por isso, dizer “de pr imeira” o que são movimentos sociais, não é tarefa s imples. Aqui ofereceremos subsídios p a r a v o c ê r e f l e t i r criticamente sobre o tema e chegar às suas próprias conclusões. Por isso, a n o s s a a n á l i s e d o s movimentos sociais adota a p e r s p e c t i v a d a Educação Popular em Saúde, que se organiza para a libertação das pessoas envolvidas no ato de aprender, em todos os momentos e em todos os sentidos que se possa e ou precise libertar. Para efeito de introdução, começamos afirmando que os movimentos sociais têm diversas formas de organização e de luta.

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Introdução

“Eu estou absolutamente feliz por estar vivo ainda e ter acompanhado essa marcha, que como outras marchas históricas, revelam um ímpeto da vontade amorosa de mudar o mundo, essa marcha dos chamados 'Sem Terra'. Eu morreria feliz se visse o Brasil cheio de seu tempo histórico de marchas. Marcha dos que não têm escola. Marcha dos reprovados, marcha dos que querem amar e não podem, marcha dos que se recusam a uma obediência servil. Marcha dos que se rebelam, marcha dos que querem ser e estão proibidos de ser. Eu acho que afinal de contas as marchas são andarilhagens históricas pelo mundo. E os 'Sem Terra' constituem para mim hoje uma das expressões mais fortes da vida política e da vida cívica desse país. Por isso mesmo é que se fala contra eles. E até de gente que se pensou progressista que fala contra eles, contra os 'Sem Terra', como se fossem os desabusados, como se fossem destruidores da ordem. Não, pelo contrário. O que eles estão é mais uma vez provando certas afirmações teóricas de analistas políticos, de que é preciso mesmo brigar para que se tenha um mínimo de transformação.”

Não estamos sós quando nos lançamos à missão de ressaltar a importância das lutas dos movimentos sociais em prol de outro mundo mais justo para todos. Muitos são os grandes pensadores que afirmaram a importância dessas lutas. Para exemplificar, transcrevemos um trecho da última entrevista de Paulo Freire, em 1997, na qual ele reúne de forma brilhante elementos fundamentais para reflexões que nos parecem cada vez mais atuais.

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Alguns traços do Brasil nos «retratos»dos censos demográficos

A imagem do que somos como pessoas, habitantes e cidadãos do Brasil é muito diversa, tanto pelo pertencimento a diferentes classes e grupos sociais, étnicos e raciais, ao gênero, a culturas e às condições ambientais diferentes. De acordo com o estudo “Brasil mostra a tua cara”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativo ao período de 1872 a 2000, na composição da imagem da população brasileira traçada neste último censo demográfico entram aproximadamente 90 variáveis, ou aspectos da vida da população. Contudo, alguns traços são marcantes; constata-se que o Brasil passou por profundas transformações nos últimos 50 anos de nossa história. Vamos começar pelo fato de que a expectativa de vida dos brasileiros aumentou em 25,4 anos entre 1960 e 2010, ao passar de uma média de 48 anos para 73,4 anos. Nesse mesmo período o número médio de filhos por mulher diminuiu de 6,3 para 1,9 e o número de idosos aumentou de 2,7% para 7,4%. A existência simultânea de três e às vezes quatro gerações numa mesma família traz uma sensação de “aceleração do tempo” para todos. Também permite uma troca de experiências sobre as diferentes épocas vivenciadas pelos membros destas famílias. Uma pessoa que viveu a infância numa cidade do interior nos anos 1950-1960 pôde conviver com a sua avó, nascida no final do século XIX, vê-la passar a roupa com ferro a carvão e, mais tarde, com ferro elétrico, ou acender um fogão à lenha e depois um a gás. Essa pessoa tem a memória de um Brasil que deixou de ser uma sociedade preponderantemente rural e agrária para se tornar uma sociedade urbana, com predomínio da indústria e do setor de serviços.

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Alguns traços do Brasil nos «retratos» dos censos demográficos

Fonte: IBGE

%BRASIL

URBANO

RURAL

1960 1970 % %2010

38.987.526

52.904.744 160.925.79232.004.817

41.603.839 29.830.007

%

45

55

56

44

84

16

A urbanização é outro desses traços marcantes. Os Censos Demográficos de 1960 e de 1970 registraram a mudança com nitidez, pois, como se pode constatar na tabela a seguir, enquanto em 1960 a população rural ainda prevalecia sobre a urbana, em 1970 essa proporção se inverteu:

O problema mais grave é que as transformações ocorridas entre 1960 e 1980 se deram sob uma ditadura militar. Quer dizer, as experiências coletivas dessas mudanças não puderam ser discutidas e menos ainda questionadas. Durante a ditadura militar (1964-1985), a economia capitalista cresceu a taxas elevadas, mas os trabalhadores foram submetidos ao arrocho salarial. Enquanto no período entre 1968 e 1973 o Produto Interno Bruto (PIB – conjunto da riqueza produzida pelo país) cresceu a uma taxa média de 10% ao ano e a inflação oscilou entre 15% e 20% ao ano, os salários foram corrigidos apenas com uma parte da inflação. Os reajustes salariais ocorriam a cada dois anos e apenas depois das greves massivas em 1978-79 passaram a ser semestrais. O valor do salário mínimo, entre 1965 e 1974, mantinha apenas 69% do poder aquisitivo de 1940. Inevitavelmente a desigualdade entre os muito ricos e os muito pobres se ampliou e se aprofundou. Além do arrocho salarial, a falta de uma política habitacional e de transportes públicos, obrigou os trabalhadores a construírem suas próprias moradias, geralmente em áreas de risco. A favelização foi o resultado desse processo de violência social. John Turner, arquiteto e urbanista inglês que esteve no Brasil em 1968 fez o diagnóstico da questão urbana brasileira: favela não é problema, é solução de outros problemas.

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Os movimentos sociais durante a ditadura militar

VEJA MEU FILHO,UM COMUNISTA!

O golpe militar que depôs João Goulart da Presidência da República em 31 de março de 1964, desfechado em nome dos interesses dos capitalistas e latifundiários, ameaçados pelas reivindicações dos trabalhadores da cidade e do campo, somente foi bem-sucedido porque teve apoio na classe média urbana, que tomou as ruas nas capitais e grandes cidades, no movimento conhecido como Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Fortalecidos por essa base social, os militares suspenderam a Constituição Federal do Brasil e fecharam o Congresso Nacional, cassaram o mandato de deputados e senadores e os partidos foram declarados ilegais; os sindicatos sofreram intervenção, sindicalistas e dirigentes políticos presos e banidos. Mas nem se passaram dois anos e essa mesma classe média, que apoiou o golpe, voltou-se contra ele por causa do programa econômico que, em nome do controle da inflação, mediante elevação da taxa de juros e corte do crédito, provocou uma verdadeira quebradeira das pequenas empresas.

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Os movimentos sociais durante a ditadura militar

Os estudantes vocalizaram a revolta da classe média, na luta por mais vagas nas universidades, e radicalizaram até alcançar o auge na Marcha dos Cem Mil, na cidade do Rio de Janeiro, em 1968.

Charge publicada em 1968, no jornal Correio da Manhã do Rio de Janeiro, durante a ditadura militar. A charge resultou na retirada de circulação de toda edição do jornal no dia em que foi publicada, por ordem das autoridades da época. A sigla EP (que significava Escola Pública), inscrita no bolso da camisa do uniforme de um menino, aluno da rede pública do ensino fundamental, ironiza a exagerada forma nas ações de repressão a qualquer um que se apresentasse como estudante. Naquela época, o movimento estudantil organizava com muita coragem passeatas em protesto contra o regime militar. Por isso, era considerado uma espécie de inimigo público número 1 do governo.

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A dura repressão e a retomada do crescimento econômico fizeram o movimento recuar, levando a maioria da classe média a aderir novamente ao regime ditatorial e a contribuir para sustentá-lo por quase uma década. Algumas organizações de esquerda resolveram enfrentar a ditadura com armas na mão, sendo destruídas, com seus militantes presos, mortos ou desaparecidos. Entretanto, a Igreja Católica, a maioria da qual até então estava ao lado dos militares, dividiu-se internamente e afastou-se do regime. A ala à esquerda, que se tornaria conhecida pelo nome de Teologia da Libertação, dirigiu-se para as classes trabalhadoras da cidade e do campo por meio das chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Outras igrejas, como a Metodista, também abraçaram esta perspectiva. Um traço importante da história dos movimentos sociais nasce nesse momento: toleradas pelos militares, as igrejas acabaram por abrigar a resistência popular à ditadura. Assim é que, em 1973, teve início um movimento contra a carestia, organizado por clubes de donas de casa da periferia de São Paulo (capital) impulsionado pelas CEBs. Uma dessas lideranças era Ana Maria do Carmo Dias, então casada com Santo Dias da Silva, um dos militantes da Oposição Sindical de São Paulo, assassinado em 1979 pela Polícia Militar durante a repressão a um piquete na fábrica Silvania, no bairro de Santo Amaro. Ana Maria ajudou a organizar clubes nos bairros da periferia paulistana. As mulheres dos clubes de Jardim Souza, Nakamura, Alto Riviera, Vila das Belezas e Parque Arariba se reuniam para trocar ideias e dali nasceu a ideia de se fazer um questionário para saber como estava o custo de vida. Constatando a carestia, a primeira carta reivindicando a diminuição do custo de vida, a Carta das Mães da Periferia de São Paulo, foi entregue ao deputado F r e i t a s N o b r e , d o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), único partido oficial de oposição no Congresso Nacional. A insatisfação popular foi, assim, canalizada para esse partido. Nas eleições proporcionais de 1974, o MDB obteve 59% dos votos para o Senado e 48% para a Câmara dos Deputados.

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Os movimentos sociais durante a ditadura militar

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QUEREMOSTERRA! CLARO!

A classe média urbana começou então a levantar a bandeira das liberdades democráticas, com a fundação, em 1975, do Movimento Feminino pela Anistia. Em 1977, na medida em que o empresariado brasileiro começava a se distanciar do regime militar, outras vozes sociais emergiram: aconteceram greves estudantis e, no ano seguinte, uma onda de greves de trabalhadores se espalhou por todo o país. Em 1983 esse movimento organizou-se na Central Única dos Trabalhadores. No campo, lutas aconteceram nas áreas desapropriadas para a construção das hidrelétricas, como as do Rio Iguaçu, Tucuruí, Sobradinho e Itaparica. Eram as Comissões Regionais dos Atingidos por Barragens que reivindicavam no início a indenização justa para logo em seguida lutar pelo direito ao trabalho como agricultores, querendo a troca de terra (desapropriada) por terra (para reassentamento). Esta foi a origem do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Em 1984 se constitui um dos movimentos sociais mais organizados até hoje no Brasil: o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). A bandeira principal de luta do MST é a reforma agrária entendida como uma política nacional que busca um processo mais profundo de transformação social. O MAB e o MST, junto com

o Movimento das Mulheres C a m p o n e s a s e o Movimento dos Pequenos Agricultores, constituem a Via Campesina no Brasil. To d a s e s s a s l u t a s contribuíram para o fim do regime militar, em janeiro de 1985, apesar das eleições livres e diretas para a presidência da república somente terem acontecido em 1989.

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Os movimentos sociais voltados para as lutas pela saúde da população se desenvolveram nas capitais e nas grandes cidades a partir de 1976. O mais notório foi o chamado Movimento da Zona Leste, em São Paulo (capital). Esse movimento começou como uma iniciativa do clube de donas de casa que, no Jardim Nordeste, encaminhou à Secretaria Estadual de Saúde um abaixo-assinado reivindicando serviço público de saúde nesse bairro popular. Estudantes de medicina participaram dessa luta pelo posto de saúde, organizada numa Comissão de saúde naquele ano.

A conquista do posto se deu em 1978, mas, tão logo o serviço começou a funcionar, a população reclamou da falta de atendimento médico. O movimento resolveu, então, criar um Conselho de Saúde, eleito pelo voto direto dos moradores, inclusive dos analfabetos, com a divulgação de fotos e currículos dos candidatos. No Jardim Nordeste participaram dessa eleição 8.000 dos 15.000 moradores! Vale notar que essa iniciativa já foi uma antecipação da luta pelo direito de voto aos analfabetos, finalmente alcançada na Constituição de 1988.

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Movimentos sociais e saúde

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A generalização da experiência na região de S. Mateus se deu num contexto de intensas mobilizações estudantis e operárias entre 1977 e 1979. Finalmente o Movimento da Zona Leste organizou e realizou em 1983 o Encontro das Comissões e Conselhos de Saúde da Zona Leste. Nesse Encontro, os 150 participantes de 37 bairros aprovaram:

No longo prazo, fim dos convênios com a Medicina de lucro, atendimento à saúde que seja público, de boa qualidade e igual para todos e participação da população na fiscalização e controle do funcionamento de todos os serviços de saúde.

Percebe-se, nas resoluções do Encontro, o entendimento de que se a saúde era determinada pelo modo como a sociedade estava organizada, esta por sua vez podia ser alterada politicamente pela organização popular. O Movimento da Zona Leste levantou propostas que, mais tarde, viriam a ser debatidas na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986.

No curto prazo, ampliação e melhoria dos Centros de Saúde, construção de hospitais públicos e prontos-socorros, ambulatório do INAMPS e oficialização regimento dos Conselhos;

No médio prazo, saneamento básico e organização de um Conselho Regional da Saúde;

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Até aquele momento os movimentos eram interclassistas, ou seja, reuniam em vários lugares do país estudantes, técnicos, professores e lideranças populares. Mas, com a redemocratização política a partir de 1982, ocorreu uma separação entre os movimentos e as iniciativas de um grupo que, apoiado no Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES), nas instituições de ensino e na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), se autodenominou Movimento da Reforma Sanitária. Isso porque a redemocratização, controlada pelos militares, abriu espaço para a participação desse grupo, de modo a resolver a crise do sistema médico previdenciário brasileiro, desencadeada em 1981 e que somente seria superada, a partir da aprovação do direito à saúde na Constituição de 1988, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1991. Também na área da Saúde deve-se destacar a criação do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), em resposta à reivindicação do movimento feminista de se instituir um programa público de controle da fecundidade no Brasil. Esse processo, que surgiu em 1983, abriu caminho para a luta pela saúde sexual e reprodutiva, embora a desigualdade social vigente em nosso país tenha limitado o alcance dessa política, pela dificuldade de renda para ter acesso aos métodos contraceptivos. A epidemia de HIV-AIDS, que começou a tomar vulto no país naque le momento , d r a m a t i z o u a problemática da saúde sexual e reprodutiva. A luta dos soropositivos por meio de suas organizações permitiu o reconhecimento civil e p o l í t i c o d o s homossexuais e o r e s g a t e d e s u a d i g n i d a d e c o m o pessoas normais, ou s e j a , d a s u a h u m a n i d a d e , a o superar a visão, até então institucionalizada, de um comportamento tido como desviante da normalidade e incluído na categoria das doenças mentais. Nesse momento, surgiram também outros movimentos de luta contra as estigmatizações sociais, a exemplo do Movimento de Reintegração dos Atingidos por Hanseníase (MORHAN), que afetam as parcelas mais empobrecidas da população.

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Movimentos sociais e saúde

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No começo da década de 1990 aconteceu uma experiência de participação popular na Saúde muito significativa no pequeno município de Pintadas, localizado na região do semiárido da Bahia. O ponto de partida foi a luta pela terra, organizada pela Comunidade Eclesial de Base e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais daquele município. Então, essas duas organizações decidiram participar da eleição municipal de 1992. Inicialmente convidaram o Departamento de Medicina Preventiva Universidade Federal da Bahia para ajudá-los a elaborar um diagnóstico da situação da saúde da população, tendo em vista a elaboração de um plano municipal e a aquisição de conhecimentos em prevenção de doenças. O método adotado foi o da mobilização popular direta. O processo todo envolveu três momentos: (1) diagnóstico sociossanitário em assembleias populares nos bairros; (2) cursos para lideranças surgidas nesse processo com metodologia participativa; reuniões de lideranças com a população; (3) elaboração do plano municipal de saúde com base na discussão das assembleias. É interessante registrar que a discussão nas Assembleias Populares de Pintadas era orientada por um roteiro muito simples, mas que pode servir de inspiração para nós até hoje. Pedia-se para responder quatro perguntas:

Essa experiência singular mostra como se pode pensar a convocação, a organização e a realização das conferências de s a ú d e d e m a n e i r a verdadeiramente popular e democrática. Deve-se ter em mente que as conferências e os conselhos de saúde, Instituídos pela Lei 8.142, de 28 de d e z e m b r o d e 1 9 9 0 , generalizaram-se no Brasil a partir de 1991, para viabilizar a municipalização da saúde e, assim, a criação do Sistema Único de Saúde.

Quais os cinco principais pro-blemas em seu bairro?Quais as causas desses pro-blemas?Quais as ações que precisamser realizadas para enfrentaressas causas?A quem cabe a resposabilida-de por essas ações?

POVO

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Para saber mais

FREIRE, Paulo. Cinco minutos (ou pouco mais) com o genial e saudoso Paulo Freire – Educação e Transformação. Disponível em: http://imediata.org/?p=854 GOHN, Maria da Glória Marcondes. Teoria dos Movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 1997.STOTZ, Eduardo Navarro. A Educação Popular nos movimentos sociais da saúde: uma análise das experiências das décadas de 1970 e 1980. Trabalho, Educação e Saúde, volume 3, número 1, páginas 9-30. Disponível em

http://www.revista.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=NumeroAnterior&Num=24

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FIOCRUZ