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O ENSINO RELIGIOSO: UMA BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA José Antonio Sepulveda * ; Helenice Pereira Sardenberg ** A existência do Ensino Religioso (ER) no currículo das escolas públicas brasileiras mobilizou um grande número de personagens ao longo da história da educação nacional. Todavia, é tema pouco frequente na nossa bibliografia. Segundo Cunha (2010), isso evidencia o caráter prescritivo da defesa ou da refutação dessa disciplina. Assim, o objetivo desse texto é fugir do caráter prescritivo e apresentar um pequeno histórico do Ensino Religioso nas escolas oficiais do país, levando em conta o fato de tal disciplina ter sido inserida nos currículos das escolas públicas por pressões externas, em especial, do campo religioso. Para realizar o trabalho adotou-se como referência teórica o conceito de campo desenvolvido por Pierre Bourdieu, que significa um espaço complexo do mundo social, cuja estrutura interna é composta por um conjunto de relações de força entre agentes ou instituições próprias do campo. Assim, o campo é um espaço de disputa de agentes e de instituições pelo monopólio interno da violência simbólica legítima e pela propriedade do capital típico do campo. Segundo Bourdieu (2004), no mundo social, existem características que se atraem por terem os mesmos interesses, ou serem da mesma natureza. Essas áreas de interesse formam os campos. Cada campo possui diferentes graus de autonomia frente ao mundo social e estabelece regras próprias que produzem arenas de disputa interna que não necessariamente reproduzem as disputas do mundo social. Os campos têm diferentes graus de autonomia, isto é, graus nos quais o capital e as regras de disputa por sua posse estão mais ou menos definidos como próprios, não sendo redutíveis às dos demais. Neste sentido, importante pensar, ainda, em Bourdieu (1998) quando este fala sobre o poder simbólico, na medida em que este poder se define, também, nas relações de força, delimitando a cultura que se faz hegemônica. Este poder simbólico, invisível, gera violência simbólica, que é a imposição da cultura e ideologia dominantes e, mais do que isso, a dominação de uma classe sobre a outra. Antecedentes É inútil tratar do campo religioso durante o Império quando a Igreja Católica era a religião oficial porque havia uma forte imbricação entre Estado e Igreja, razão pela qual não é possível problematizar as disputas entre campo religioso e campo político. Conflitos Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 02860

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O ENSINO RELIGIOSO: UMA BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA

José Antonio Sepulveda*;

Helenice Pereira Sardenberg**

A existência do Ensino Religioso (ER) no currículo das escolas públicas

brasileiras mobilizou um grande número de personagens ao longo da história da educação

nacional. Todavia, é tema pouco frequente na nossa bibliografia. Segundo Cunha (2010),

isso evidencia o caráter prescritivo da defesa ou da refutação dessa disciplina. Assim, o

objetivo desse texto é fugir do caráter prescritivo e apresentar um pequeno histórico do

Ensino Religioso nas escolas oficiais do país, levando em conta o fato de tal disciplina ter

sido inserida nos currículos das escolas públicas por pressões externas, em especial, do

campo religioso.

Para realizar o trabalho adotou-se como referência teórica o conceito de campo

desenvolvido por Pierre Bourdieu, que significa um espaço complexo do mundo social,

cuja estrutura interna é composta por um conjunto de relações de força entre agentes ou

instituições próprias do campo. Assim, o campo é um espaço de disputa de agentes e de

instituições pelo monopólio interno da violência simbólica legítima e pela propriedade do

capital típico do campo. Segundo Bourdieu (2004), no mundo social, existem

características que se atraem por terem os mesmos interesses, ou serem da mesma

natureza. Essas áreas de interesse formam os campos. Cada campo possui diferentes graus

de autonomia frente ao mundo social e estabelece regras próprias que produzem arenas

de disputa interna que não necessariamente reproduzem as disputas do mundo social. Os

campos têm diferentes graus de autonomia, isto é, graus nos quais o capital e as regras de

disputa por sua posse estão mais ou menos definidos como próprios, não sendo redutíveis

às dos demais.

Neste sentido, importante pensar, ainda, em Bourdieu (1998) quando este fala

sobre o poder simbólico, na medida em que este poder se define, também, nas relações

de força, delimitando a cultura que se faz hegemônica. Este poder simbólico, invisível,

gera violência simbólica, que é a imposição da cultura e ideologia dominantes e, mais do

que isso, a dominação de uma classe sobre a outra.

Antecedentes

É inútil tratar do campo religioso durante o Império quando a Igreja Católica era

a religião oficial porque havia uma forte imbricação entre Estado e Igreja, razão pela qual

não é possível problematizar as disputas entre campo religioso e campo político. Conflitos

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302860

com o Estado, só surgiram no final do mencionado período, Mas, a problemática acerca

do ER, cuja relevância ganhou força, ocorreu só durante a República. Segundo Cunha

(2010, p.2090),

(...) o desafio da legitimidade de uso religioso das instituições estatais, como

a escola, pela Igreja Católica, pelo menos com a exclusividade anterior. E

mais: o reconhecimento da legitimidade de práticas religiosas até então

reprimidas (como a umbanda) e o enorme crescimento de outras, no próprio

âmbito do cristianismo, fizeram daquela instituição mais uma, ainda que a

dotada de maior força política, dentre as instituições que disputam o

monopólio das práticas religiosas.

Portanto, a República marca um novo momento para a Igreja Católica no Brasil.

Esse período, segundo Sodré (1979), não teve nada de acidental; muito pelo contrário,

resultou do desenvolvimento progressivo de forças que, no penúltimo decênio do século,

tinham se agravado consideravelmente. De fato, a Igreja Católica ficou exposta na

Primeira República. Os militares, em especial os Positivistas, eram defensores do fim dos

privilégios dados a tal instituição, especialmente no campo educacional, cuja direção

ficou a cargo do Ministro da Instrução Pública Correios e Telégrafos, um conhecido

anticlerical, o militar Benjamin Constant.

Com efeito, a construção do ensino público na República, ou seja, a organização

do campo da educação nesse período teve a ajuda do campo militar. As características

positivistas desse campo impuseram uma nova realidade àquele, tanto que as discussões

de moral, patriotismo e nacionalismo entraram com força nas discussões acerca do

problema da educação no Brasil. A importância desse período para a organização do

campo educacional foi bem analisado ao longo do século XX. Todavia, ainda não é

possível falar de uma laicização sobre o campo educacional, já que não necessariamente

as reformas feitas por Constant foram fruto de discussões ou imposições do campo

militar. Cabe notar que existia uma bipolaridade na atuação de Benjamin Constant, afinal,

ele era ao mesmo tempo educador e militar. Porém, é possível afirmar que, por conta de

seu papel formador da juventude militar, acabou, por vias indiretas, tendo importante

participação na organização dos dois campos. Até porque a sua reforma educacional

praticamente só atingiu o Distrito Federal, enquanto São Paulo, por exemplo, aplicava

uma reforma absolutamente independente e mais eficiente, pelo menos no entender de

Saviani (2007).

Durante toda a Primeira República, o ER foi retirado das escolas públicas, por

decisão constitucional que determinou a independência do Estado em relação às entidades

religiosas. A militância católica, em especial a organizada pelo cardeal Sebastião Leme,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

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montou um eficiente esquema de difusão ideológica localizada no campo político, como

forma de recuperar o espaço de influência perdido com a proclamação da República.

Entretanto, segundo Cury (2003), pelo menos seis sistemas estaduais de educação já

adotavam, naquele período, o ER nas escolas públicas, facultativo aos alunos, fora do

horário normal de aulas.

O caráter laico da norma constitucional (Decreto 119-A) foi destruído pela

hegemonia religiosa católica no estado de Minas Gerais. Em 1928, na presidência de

Antônio Carlos de Andrada, foi autorizado por decreto o ER nas escolas e mantido pelo

governo mineiro. O Secretário do Interior e Justiça, responsável pela pasta da educação,

era Francisco Campos, que, enquanto deputado federal, defendera a retomada do ER nas

escolas públicas, na revisão constitucional de 1926. Ele veio a ser, em novembro de 1930,

o titular do Ministério da Educação e Saúde Pública, recém-criado pelo Governo

Provisório.

Governo Provisório – 1931/1934

No período entre 1930-1934, os conflitos entre setores da classe dominante, da

burocracia do Estado, de setores das camadas médias e das classes trabalhadoras

propiciaram o desenvolvimento contraditório de duas políticas educacionais. O

autoritarismo prevalecia na esfera do poder central. Nas esferas das unidades da

Federação, é certo que o liberalismo prevaleceu no Estado de São Paulo e no Distrito

Federal. As ideias liberais no período eram bem aceitas na sociedade civil, pelo que se

pode deduzir da penetração da Associação Brasileira de Educação (ABE)i.

O marco do conflito entre as diferentes visões sobre a educação se dá com a

Reforma de Francisco Campos durante o governo provisório de Vargas. Tal reforma se

apresentava de forma tão autoritária que gerou como resposta a união de diferentes forças

políticas em torno da defesa da escola pública, gratuita e laica, o chamado Manifesto

Pioneiro da Educação Nova (Cunha, 2007). A posição dos chamados pioneiros teve

grande repercussão social, principalmente devido à representatividade social dos nomes

que assinaram esse documento, entre eles: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira,

Lourenço Filho e Cecília Meireles.

Todavia, foi nesse período que ocorreu à projeção para todo o país da

“colaboração recíproca” entre a Igreja e o Estado, igual à estabelecida em Minas Gerais.

O decreto 19.941, de 30 de abril de 1931, facultou o oferecimento, nos estabelecimentos

públicos de ensino primário, secundário e normal, da instrução religiosa. Não obrigava,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302862

mas facultava a oferta, e para que ela fosse oferecida nos estabelecimentos oficiais, seria

necessário que pelo menos 20 alunos se propusessem a recebê-la. (Cunha, 2010)

O sucesso da Igreja Católica com a promulgação do decreto 19.941/31 foi

potencializado na Constituição de 1934. Tal sucesso possibilitou ao cardeal Leme

aposentar a ideia de um Partido Católico, e patrocinar a criação, em 1932, da Liga

Eleitoral Católica. Essa, por sua vez, tinha como objetivo alistar, organizar e instruir os

eleitores em todo o país sobre quais os candidatos representavam o programa da Igreja na

Assembleia Constituinte. A vitória dessa estratégia política foi completa, a maioria dos

candidatos apoiados pela LEC (Liga das Escolas Católicas) elegeu-se e posicionou-se

favorável ao ER nas escolas públicas, de maneira ainda mais próxima das demandas da

Igreja Católica.

Houve pouco movimento contrário ao ER no Congresso Nacional. Segundo

Cunha (2010, p.289),

A liderança contra a plataforma católica na Constituinte foi do deputado

Guaraci Silveira. Eleito pelo Partido Socialista Brasileiro, na bancada de São

Paulo, Silveira era pastor metodista numa época em que os protestantes de

todas as confissões não ultrapassavam os 2% da população brasileira. A

despeito dessa inexpressiva presença quantitativa, os protestantes, em especial

os metodistas, procuravam basear-se no prestígio de suas escolas para

reivindicar maior espaço político-ideológico no campo educacional. Ou, pelo

menos, de não tê-lo reduzido. Na argumentação contra o artigo que tornava a

oferta do ER obrigatória nas escolas públicas, embora facultativo para os

alunos, Silveira empregou argumentos que mostravam que tal medida atendia

apenas aos interesses hegemônicos da Igreja Católica e, na prática,

inviabilizava o ensino de outras religiões.

Em que pese à posição dos metodistas, as tradicionais forças laicas da Primeira

República não se manifestaram. Assim, o que podemos concluir é que todos os aspectos

que denunciavam a existência de uma política educacional autoritária, principalmente

com relação à discreta expansão do ensino, refletiam a sociedade do momento. As frações

de classe que iam gradativamente assumindo o poder contavam entre si com a presença,

de um lado, da nova burguesia industrial, que exigiam inovações de todas as ordens; e,

de outro, contavam também com a presença de parte da velha aristocracia liberal e da

Igreja Católica, ainda apegada às velhas concepções. A expansão do ensino e sua

renovação ficaram, portanto, subordinadas ao jogo de forças que essas camadas

manipulavam na estrutura de poder. Ou seja, tornou-se interessante para ambos os grupos

a existência de ER nas escolas públicas, isso porque um novo inimigo se apresentava, o

comunismo.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302863

Por fim, a Constituição de 1934 foi promulgada com somente um artigo referente

ao assunto que modificava a nomenclatura do decreto de 1931, de instrução religiosa

(1931) para Ensino Religioso. As escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e

normais eram obrigadas a oferecê-lo, pois tal ensino constituiria “matéria dos horários”.

Todavia, a presença continuava facultativa para os alunos, com os pais ou responsáveis

podendo manifestar sua preferência pelas distintas confissões religiosas.

O Estado Novo

Antes de tratar do período de 1937/1945 (Estado Novo), vale uma reflexão sobre

os anos de 1935/1936. Destaque para o movimento que recebeu o nome de “Intentona

Comunista”. Tal movimento fracassado desencadeou uma onda conservadora que

perpassou todos os campos de forma geral e mais especificamente no o campo religioso.

A reação católica foi de aproximação com o governo ditatorial de Vargas, potencializando

ainda mais a importância do ER nas escolas públicas.

Assim, antes do Estado Novo, principalmente nas discussões sobre a elaboração

do Plano Nacional de Educação o movimento reacionário defendia, além do ER, a

introdução de uma disciplina de Educação Moral e Cívica. Segundo Horta (1994), das

contribuições feitas por entidades públicas e personalidades consultadas pelo Ministro

Capanema, em 1936, destaca-se a manifestação de certos personagens sobre a base

religiosa da moral, na mesma linha defendida pela Igreja Católica. A presença do clero

brasileiro na redação final do projeto de lei foi realizada por uma comissão de quatro

membros, entre eles Alceu de Amoroso Lima e o padre Leonel Franca, dois importantes

dirigentes católicos. A dissolução do Congresso, por efeito do golpe de novembro de

1937, abortou o processo de tramitação do Plano e criava um novo cenário político.

O caráter fascista do Estado Novo buscava obter a aceitação do povo sem o

intermédio da religião, mesmo não havendo nenhum tipo de discurso antirreligioso ou

anticatólico. Segundo Cunha (2007, p.290),

(...) a Constituição de 1937, determinou a obrigatoriedade do ensino cívico,

ao lado da educação física e dos trabalhos manuais, em todas as escolas

primárias, normais e secundárias, públicas e privadas, sem o que estas não

poderiam ser autorizadas ou reconhecidas. A obrigatoriedade da oferta do ER,

prevista pela Constituição de 1934, foi, então, substituída pela possibilidade

desse ensino, como em 1931. No entanto, pela primeira vez na legislação,

apareceu o status de matéria para o ER. Mas, a Constituição de 1937 possuía

uma cláusula de dispensa mais clara do que qualquer outro texto legal. Dizia

ela: “Não poderá, porém, [o ER] constituir objeto de obrigação dos mestres

ou professores, nem de frequência compulsória por parte dos alunos.”

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302864

Todas as propostas de reformas educacionais do Estado Novo, as chamadas “Leis

Orgânicas” concebidas pelo ministro Gustavo Capanema, mantiveram o ER, embora com

menos força do que a Igreja Católica havia alcançado no texto da Constituição de 1934,

como é possível perceber na “lei” orgânica do ensino secundário (decreto-lei 4.244, de 9

de abril de 1942), na qual o ER foi tratado como parte fundamental da educação dos

jovens, incentivando os estabelecimentos públicos de ensino incluí-lo no 1º e no 2º ciclo.

Já os currículos seriam estabelecidos pela autoridade eclesiástica, demonstrando a forte

presença da Igreja Católica. Mesmo nas “leis” orgânicas referentes ao ensino profissional

(industrial, comercial e agrícola), destinadas à formação da mão-de-obra, o ER se fez

presente nesses currículos, sem caráter obrigatório.

Entre os governos de Vargas e Dutra, durante o período de José Linhares na

Presidência da República, três “leis” orgânicas foram promulgadas, ainda sob a

perspectiva do ministro Gustavo Capanema. Mas, alguns retoques foram feitos, em

função da nova realidade política que se apresentava a partir de 1946.

A Constituição de 1946 e a Lei 4.024/61

No período de sistematização da legislação educacional durante a tramitação da

constituição, foram eliminados os elementos mais ostensivos da herança estadonovista.

A Assembleia Constituinte desenvolveu seus trabalhos, nos quais as disputas em torno do

caráter do ensino público, se laico ou não, ocupou pequena parte das atenções.

Segundo Cunha (2010, p.293),

A situação do campo político, em sua expressão partidária, era, na Constituinte

de 1946, bem diferente de 1933/34. A maior diferença foi o surgimento do

Partido Trabalhista Brasileiro, que agrupou as lideranças sindicais dos

assalariados, e a inédita atuação na legalidade do Partido Comunista.

O que o autor do fragmento acima buscou enfatizar era que, mesmo sem a atuação

da LEC (Liga das Escolas Católicas), ainda com bastante força política, a Igreja Católica

usufruiu de plena hegemonia na Constituinte de 1946, no que diz respeito às suas

demandas históricas, tendo recebido apoio ativo ou tácito de diversos partidos. Por

exemplo, o PC (Partido Comunista), que rejeitava o ER nas escolas públicas, por questão

de princípio, acabou por apoiar, pragmaticamente, seu oferecimento facultativo para os

alunos.

O deputado Guaraci Silveira, de novo constituinte, mas em bancada diferente

(PTB), defendendo uma plataforma de interesse protestante, se posicionou agora na

defesa da Igreja Católica, diferente de outras entidades evangélicas, que se manifestaram,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

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na ocasião, da mesma forma como ele havia feito em 1933/34. Silveira argumentava que

a situação agora era nova, não se verificando a temida opressão católica, prevalecendo “a

solidariedade religiosa dos credos cristãos”. (Oliveira, 1990, vol I, p. 157).

Segundo Cunha (2010, p.293),

(...) a defesa do ensino laico ficou por conta de socialistas da Esquerda

Democrática, como Hermes Lima, e de liberais, como Aliomar Baleeiro, da

União Democrática Nacional. Ao contrário do Manifesto de 1932, a Carta

Brasileira de Educação Democrática, aprovada no Congresso da ABE, em

1945, substituiu a defesa da escola pública laica pela liberdade de culto,

concentrando suas atenções na demolição do legado estadonovista.

O citado autor entende que como a correlação de forças era favorável ao

catolicismo, o ex-ministro e agora deputado Gustavo Capanema - principal redator do

capítulo sobre a Educação na nova Carta – se posicionou a favor dos católicos. Assim, a

Constituição de 1946 contemplou em um artigo o ER. Ratificava dessa forma, a

obrigatoriedade de seu oferecimento pelas escolas oficiais, dessa vez sem fazer menção

ao nível nem a modalidade que deveria ser oferecida. Nesse sentido, deixava implícito,

então, seu oferecimento também no nível médio. O ER seria uma disciplina dos horários

das escolas oficiais, portanto de oferta obrigatória, mas de matrícula facultativa, e

ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestado por ele, se fosse

capaz, ou por seu representante legal ou responsável.

Foi nesse cenário que se deu a tramitação e a promulgação da Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional, sancionada pelo Presidente João Goulart, em 20 de

dezembro de 1961 (lei 4.024). Segundo Cunha (2010), apesar de o presidente ter “vetado

importantes artigos, particularmente no que dizia respeito ao ensino superior, a matéria

referente ao ER permaneceu intocada”.

A LDB em dois parágrafos contemplou as demandas da Igreja Católica, com uma

diferença das décadas posteriores. O caput do artigo transcreveu literalmente o artigo

correspondente da Constituição de 1946, mas com um enxerto do Deputado Aurélio

Viana do PSB que contrariava os interesses clericais: o ER seria ministrado “sem ônus

para os poderes públicos”. Significa que as escolas públicas não poderiam remunerar os

professores do ER. Numa interpretação estrita, nem mesmo os professores do quadro

poderiam ser deslocados para essa atividade, ao menos durante seu horário de trabalho.

“O voluntariado e a remuneração por entidade religiosa seriam, então, as condições

necessárias para a existência prática desse ensino”. (Cunha, 2010). Por outro lado, a

maioria das propostas da Igreja católica foi atendida, inclusive com características ainda

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302866

melhores do que a do decreto de 1931 que colocava o ER na dependência do número de

alunos interessados, pois agora se eliminava o limite mínimo para sua viabilização. Outra

questão dizia que o registro dos professores do ER seria realizado perante as autoridades

dos respectivos credos, vale dizer, que o poder público abria mão desse poder em proveito

da Igreja Católica, principalmente, e de outras entidades que se propusessem a disputar a

hegemonia religiosa no espaço das escolas públicas.

Durante o governo Jânio Quadros pouca alteração houve em relação o ER, em seu

curto governo, o Presidente Jânio Quadros demonstrou mais interesse na disciplina

Educação Moral e Cívica (EMC), chegando a ressuscitar a “lei” orgânica do ensino

secundário, de 1942. Tal procedimento possibilitava a EMC no ensino secundário, pois o

presidente reestruturou o que havia sido posto de lado. A renúncia de Quadros, quatro

meses após a promulgação desse decreto, a conturbada posse de seu vice, João Goulart,

em seguida a tentativa de golpe, protagonizado pelos ministros militares, não alterou em

nada o ER nas escolas públicas.

Depois do golpe de 1964, a disciplina ER começou a perder muito espaço para

EMC, pois os militares, em especial os membros da Comissão Nacional de Moral e

Civismo entendiam que a EMC remodelada atenderia também aos interesses religiosos,

visto a forte presença de membros do clero em tal comissão.

Segundo Cunha (2010, p.295-296),

Apoiando-se nas tradições nacionais, essa disciplina teria por finalidade: a) a

defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso,

da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade,

sob a inspiração de Deus; b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos

valores espirituais e éticos da nacionalidade; c) o fortalecimento da unidade

nacional e do sentimento de solidariedade humana; d) o culto à Pátria, aos seus

símbolos, tradições, instituições, e os grandes vultos de sua história; e) o

aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à

comunidade; f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o

conhecimento da organização sócio-político-econômica do País; g) o preparo

do cidadão para o exercício das atividades cívicas, com fundamento na moral,

no patriotismo e na ação construtiva visando ao bem comum; h) o culto da

obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade.

Dessa forma, garantia-se o elemento religioso necessário à sociedade brasileira. O

relator da Comissão Especial do Conselho Federal de Educação encarregada de dar as

diretrizes para os programas da disciplina EMC foi o arcebispo-conselheiro Luciano José

Cabral Duarte (parecer 94/71). Apesar do parecer dizer que a EMC não deveria ser

confessional, proclamou-se que a religião era a base da moral a ser ensinada. “Para

escapar do paradoxo, o arcebispo Duarte lançou mão do conceito de “religião natural”,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302867

isto é, aquela que leva ao conhecimento de Deus pela luz da razão, o que subentendia a

tradição judaico-cristã”. (Cunha, 2010).

Com efeito, o ER ganhou na EMC uma aliada. Na constituinte de 1967, o

Congresso Nacional estava mutilado pela cassação de mandatos de parlamentares, o que

desencadeou a elaboração de nova Constituição, um processo de adequação à ordem legal

do país ao quadro definido pela agenda de atos institucionais e complementares.

Em relação ao ER nas escolas públicas, a discussão resumiu-se à questão da

remuneração de seus professores, pelo Estado. A Igreja Católica pretendeu aproveitar o

momento, que lhe era especialmente favorável, como a da Era de Vargas, para ampliar os

benefícios estatais à sua atuação religiosa e educacional. Apesar disso, o pleito não foi

aprovado. O texto da Constituição promulgada em 1967 determinou que, dentre as

normas que deveriam reger a legislação educacional, estaria o ER, de matrícula

facultativa, que constituiria disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau

primário e médio – este, finalmente explicitado. No entanto, a LDB de 1961 permanecia

em vigor, vedando que os ônus do ER fossem assumidos pelos Poderes Públicos. Segundo

Cunha (2007), essa situação só viria a mudar quatro anos mais tarde.

Em 1971 foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1o. e 2o.

Graus, lei 5.692, de 11 de agosto. O ER aparece nela como parágrafo único

do artigo que determina a obrigatoriedade da EMC, ao lado de outras

disciplinas, mas o importante foi a revogação de artigo da LDB de 1961 que

vedava a remuneração dos professores de ER pelos Poderes Públicos. A

legislação ficou, então, omissa sobre essa questão. Em decorrência, os

dirigentes católicos passaram a assediar governadores e prefeitos para obterem

o deslocamento de professores do quadro para o ER, assim como o pagamento

de seus próprios agentes nas escolas públicas de 1o. e 2o. graus. (CUNHA,

2007, p.297)

Tal situação permaneceu até os anos de 1980, com uma nova Carta Constitucional

que tinha como intenção acabar com os vestígios dos longos anos de ditadura.

A Constituição de 1988 e a nova LDB

A Constituição de 1988 repetiu as características das anteriores com o seguinte

texto: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários

normais das escolas públicas de ensino fundamental”, encurtando um pouco a duração

desse ensino. Todavia, isso demonstra o enfraquecimento da posição laica, mesmo com

a limitação imposta pelo Congresso Nacional na aprovação da Lei 9.394/96 (atual LDB)

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302868

reeditando o dispositivo restritivo ao ER da Constituição de 1946: “sem ônus para os

cofres públicos”.

Segunda Cunha (2007),

Uma alternativa inédita se configurou, comparativamente à legislação

precedente, a previsão de que o ER fosse oferecido em uma das duas formas:

confessional, de acordo com a opção religiosa manifestada pelos alunos ou

seus responsáveis; ou interconfessional, resultante de acordo entre as diversas

entidades religiosas, que se responsabilizariam pelo programa. Na primeira

alternativa, os professores ou orientadores religiosos seriam preparados ou

credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas.

Entretanto, logo após a promulgação da LDB, depois de uma forte pressão da

CNBB, um projeto de lei proposto pelo Ministro Paulo Renato Souza da pasta da

Educação, intencionava alterar o artigo sobre o ER nas escolas públicas, que no

Congresso Nacional foi fundido a dois outros, de iniciativa parlamentar, sobre a mesma

matéria. O deputado Padre Roque, do Partido dos Trabalhadores (PR), redigiu o

substitutivo que foi aprovado no Congresso, e depois de uma tramitação ligeira, resultou

na lei 9.475/97. Segundo Cunha (2007, p.299), “de nada adiantou a argumentação de

poucos parlamentares, que evocaram argumentos laicos, a partir da esquerda do espectro

político, a exemplo dos deputados José Genuíno (PT-SP) e Sérgio Arouca (PPS-RJ).” O

ER ganhou uma redação nova que retirava os dispositivos restritivos.

O ER foi considerado “parte integrante da formação básica do cidadão” para isso

era necessário dar mais liberdade aos sistemas de ensino (das unidades da Federação, do

DF e dos municípios) para criarem regras locais para a habilitação e a admissão dos

professores de ER. Foi reconhecido também, o poder das entidades religiosas organizadas

com capacidade de mobilização social. Com efeito, pelo projeto apresentado, cada

sistema educacional deveria interagir com as diferentes entidades religiosas na

formulação dos respectivos programas.

Além disso, foi suprimida do texto constitucional a frase “sem ônus para os cofres

públicos”, eliminando assim qualquer restrição ao emprego de recursos públicos para

cobrir os custos do ER nas escolas públicas. Foi suprimida também a expressão

interconfessionalismo como modalidade expressamente reconhecida de ER. As

mudanças permitiram uma nova negociação. Cada unidade da Federação negociou com

as entidades religiosas, criando assim a possibilidade dos governos estaduais e/ou

municipais financiarem seus agentes no ensino público. Além disso, forneceu-se um

reforço simbólico aos grupos que, dentro das entidades religiosas, especialmente da Igreja

Católica, pretendiam manter o caráter confessional, em detrimento dos que defendiam

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302869

substituí-lo por um presumido denominador comum às diferentes religiões, de caráter

moral.

A recuperação da Igreja Católica não ocorreu sem uma discussão interna dentro

da própria burocracia eclesiástica, principalmente a respeito da estratégia orientadora de

suas relações com os demais segmentos religiosos. Como consequência, duas visões

endógenas ao campo religioso se apresentaram para o ER nas escolas públicas: para uma

corrente, ele deveria ser confessional, para outra, inter/supraconfessional.

Em suma, a situação atual do ER é de disputa entre diferentes grupos de interesses

religiosos na tentativa de implantar um sistema que atenda aos interesses das diferentes

denominações religiosas.

De acordo com o que foi pontuado até aqui, cabe destacar que, em matéria

noticiada no jornal “O Globo”, de 13 de março de 2013, “contrariando a lei, ensino

religioso é obrigatório em 49% das escolas que oferecem a disciplina no país”; os dados

foram levantados no portal qedu.org.br a partir de questionário realizado pelo Prova

Brasil 2011, do Ministério da Educação. Tal prática contraria a própria LDB que indica

o ER como sendo facultativo. Pior, segundo, ainda, a matéria em pauta, cada escola

pública determina a corrente religiosa a ser trabalhada, com a supremacia do ensino de

práticas católicas e evangélicas, com orações e cânticos, e a visível discriminação quanto

às demais manifestações religiosas. Logo, se vê o contrassenso haja vista a lei vedar

quaisquer formas de proselitismo.

Considerações finais

O ER sempre esteve presente na realidade escolar brasileira, não só como presença

efetiva, mas também como forma de pensar o mundo, e, em especial como elemento

construtor de uma moral que garantisse a manutenção do status quo. Durante o Império

foram estabelecidas as bases da estrutura escolar brasileira. A marca principal era um

moralismo classista que reforçava as diferenças sociais. Nesse sentido, a ER tinha

importância capital.

Mesmo com a República, o ER exerceu uma função ideológica. Por isso, foi

sempre objeto de disputa nas legislações, em especial, nas educacionais. A escola laica

que estava na origem do projeto republicano sofreu grandes derrotas e ainda está longe

de se efetivar no sistema escolar brasileiro e isso acarreta uma grande influência nas

práticas desenvolvidas nos cotidianos das escolas.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302870

REFERÊNCIAS

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* Doutor em Educação pela UFRJ. Mestre em Educação pela UFRJ. Professor Adjunto na Faculdade de

Pedagogia da Universidade Federal Fluminense. Membro do Grupo de Pesquisa “Memória, História e

Produção de Conhecimento e Educação” da UFF. ** Pós-doutora em História Política pela UERJ. Doutora em Serviço Social pela UERJ. Mestre em Memória

Social pela UNIRIO e Pedagoga pela UFF. Professora Adjunta da UniLaSalle. Membro do Grupo de

pesquisa “NUCLEAS/UERJ”. i A ABE foi fundada por Heitor Lyra da Silva, líder do grupo formado por maioria de engenheiros,

predominantemente carioca, e visou a elevar a cultura e a dignidade da missão de educar. Nunca foi um

órgão de classe. Caracterizou-se por defender a formação cultural e o aperfeiçoamento profissional do

educador, através de cursos, congressos e semanas da Educação, realizados em várias capitais e cidades

brasileiras. Apresentou-se também por uma disputa interna entre católicos e laicos, principalmente antes

de se nacionalizar em 1932. A partir de 1931, assumiu uma postura laica e lançou o Manifesto dos Pioneiros

da Educação Nova, redigido por Fernando de Azevedo que, pela repercussão alcançada nos meios

educacionais e culturais, constituiu-se num marco na história da educação brasileira. Ao longo dos anos

trinta, principalmente a partir de 1935, tomou uma postura conservadora, e, durante a ditadura na década

de 1960 e 1970, acabou apoiando os governos militares.

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