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O ENSINO RELIGIOSO EM UMA ESCOLA PÚBLICA: SENTIDOS E
FINALIDADES OBSERVADOS NA PRÁTICA ESCOLAR
Aline Pereira Lima
Unespar - FECILCAM
Resumo Visto como área de conhecimento e patrimônio da humanidade que deve ser trabalhado nas escolas públicas brasileiras, o Ensino Religioso participa legalmente dos currículos escolares brasileiros. O componente curricular, em suas prescrições legais, busca romper com o modelo de ensino dos assuntos religiosos, vigente desde as primeiras formas de consideração da religião na educação brasileira visando o estudo do fenômeno religioso como o pensar crítico sobre a condição existencial, o que não passa, necessariamente, pela prática de uma crença em particular. A dimensão religiosa é vista, portanto, como uma propriedade humana que deve ser abordada com seriedade no espaço escolar, de modo que os estudantes possam estabelecer posições referenciadas diante das expressões e manifestações religiosas. Exclui-se, portanto, qualquer forma de proselitismo. Entretanto as práticas escolares em torno do componente curricular mostram-se variadas e controversas. Neste artigo, evidencia-se, a partir dos dados obtidos em uma pesquisa de mestrado, os sentidos atribuídos à religião no interior de uma escola pública situada em Presidente Prudente-SP evidenciando que a questão do Ensino Religioso extrapola o currículo oficial, o currículo prescrito fazendo existir na prática um outro currículo, o currículo praticado, tendo este um forte viés moralizante. Conclui-se que o professor, na busca de soluções para os problemas cotidianos, escora-se em aspectos subjetivos e objetivos para a operacionalização de sua prática pedagógica. Por vezes, essa prática em sala de aula reflete as contradições, mescladas pelas subjetividades e diferentes conflitos, traduzindo desta forma o currículo diferente do prescrito. Diante da constatação, postula-se ser fundamental que as escolas e os sistemas de ensino atentem-se para a gestão do currículo, ou seja, a forma de pensar e organizar as ações educativas, o conhecimento escolar, as habilidades, as atitudes e os valores que orientam a prática pedagógica de todos os sujeitos educativos. Palavras- Chave: Ensino Religioso; valores; moral; educação moral.
Introdução
Embora controverso, o Ensino Religioso (ER) há muito tempo participa dos
currículos escolares no Brasil, seja de forma expressa ou velada. Atualmente, com
espaço garantido tanto na legislação nacional (Constituição Federal de 1988, Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional- 9394/96) quanto nas normatizações estaduais,
o ER é visto como área de conhecimento e patrimônio da humanidade que deve ser
trabalhado nas escolas públicas brasileiras. Dessa forma o ER, de matrícula facultativa,
é definido na Constituição Federal (CF) de 1988 como “parte integrante da formação
básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de
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Educação Básica assegurado o respeito à diversidade religiosa do Brasil, vedadas
quaisquer formas de proselitismo”.
Assumido como parte integrante da formação básica do estudante pelo sistema
educacional brasileiro no campo da organização dos conteúdos do componente
curricular, o ER (pelo menos legalmente) rompe com o modelo de ensino dos assuntos
religiosos, vigente desde as primeiras formas de consideração da religião na educação
brasileira (embora deixe para cada estado a regulamentação da lei e definição dos
conteúdos a serem ministrados). Atualmente, sua efetivação (em grande parte dos
estados brasileiros) visa o estudo do fenômeno religioso como o pensar crítico sobre
nossa condição existencial, o que não passa, necessariamente, pela prática de uma
crença em particular. A dimensão religiosa é vista, portanto, como uma propriedade
humana que deve ser abordada com seriedade no espaço escolar, de modo que os
estudantes possam estabelecer posições referenciadas diante das expressões e
manifestações religiosas.
Entretanto, cremos que, embora diante de uma legislação que busca atribuir ao
ER um caráter epistemológico destituído de proselitismo, há posturas controversas
nesse tipo de ensino e as mais variadas práticas escolares. Em outras palavras,
entendemos que, mesmo diante de um instrumento de controle e regulação que atua
como referência na ordenação do sistema curricular, o que Sacristán (2000) chama de
currículo prescrito, o cotidiano escolar altera esse currículo e a interação entre
professores e alunos modifica e gera outro currículo: o praticado.
Diante isso, propomos pensar, a partir dos resultados obtidos em pesquisa a
nível de mestrado (LIMA, 2008), as reais finalidades atribuídas ao ER no interior da
escola e como este tem se dado. Descreveremos, portanto, os sentidos atribuídos à
religião no interior de uma escola pública situada em Presidente Prudente-SP
evidenciando que a questão do ER extrapola o currículo oficial, o currículo prescrito
fazendo existir na prática um outro currículo, o currículo praticado, tendo este um forte
viés moralizante.
Algumas considerações sobre currículo
Estudiosos sobre currículo tem o definido atualmente como uma práxis que não
se esgota na parte explícita do projeto de socialização cultural nas escolas. “É uma
prática, [...] que reagrupa em torno dele uma série de subsistemas ou práticas diversas,
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entre as quais se encontra a prática pedagógica desenvolvida em instituições escolares
que comumente chamamos ensino (SACRISTÁN, 2000, p.15-16)”.
O currículo pode ser entendido, portanto, como um conjunto de experiências
oferecido pela escola ao educando, que segundo Silva (2003) é tanto resultado de uma
ação intencional e sistemática quanto fruto de ações não intencionais ou que visam
propósitos diferentes dos obtidos. Há uma dimensão chamada “clara” e outra “oculta”
no currículo. A dimensão clara, para o autor em questão
diz respeito ao que se prevê explicitamente e a oculta refere-se àqueles aspectos não imediatamente observados, produzidos por fatores por vezes aleatórios e não previamente estipulados. Exemplos da dimensão “clara” dos currículos são as grades curriculares, os planos de aula, os conteúdos e as atividades programadas. Exemplos da dimensão “oculta” são o clima humano existente na escola, as práticas existentes entre os alunos, a postura da direção, dos funcionários e docentes em relação aos alunos, o ambiente físico da escola (SILVA, 2003, p. 23).
Outros autores também têm evidenciado a questão do currículo prescrito e do
currículo praticado, mas com diferentes nomenclaturas. Galo (2000), por exemplo,
aponta o currículo oficial como aquele produzido pelas autoridades educacionais,
legitimamente constituídas, ou seja, pelas autoridades governamentais. Logo, as
propostas curriculares oficiais são prescritas por uma instituição normativa e difundidas
através dos guias curriculares elaborados pelos estados ou municípios brasileiros.
Para Geraldi (1994) o currículo oficial também se inscreve como um currículo
ideal, aquele que um grupo de especialistas propõe como desejável. Por outro lado,
temos o currículo praticado, aquele "que ocorre, de fato, nas situações típicas e
contraditórias vividas pelas escolas, com suas implicações e compreensões subjacentes
e não o que era desejável que ocorresse e/ou o que era institucionalmente prescrito"
(GERALDI, 1994, p. 117).
Podemos entender essas alterações a partir do que Sacristán (2000) afirma, ou
seja, que o currículo é modelado pelo contexto, visto que ele é o cruzamento de práticas
diferentes, as quais são produtos de tradições, valores e crenças sólidas que acabam
sendo traduzidas nas atividades de sala de aula.
A partir do exposto brevemente e entendendo que no espaço escolar o currículo
ganha vida e de fato representa o cotidiano das escolas, traduzido pelas contradições e,
muitas vezes, marcado pela ruptura entre a teoria e a prática é que passamos nesse
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momento a descrever o currículo praticado no ER em uma escola pública no município
de Presidente Prudente-SP e sua forte intenção moralizante.
O currículo de ER em uma escola pública do interior paulista: o prescrito X o
praticado
O estado de São Paulo, por meio do Conselho Estadual de Educação, ao
regulamentar o artigo 33 da LDB propôs um currículo cujo ER é concebido como uma
área do conhecimento de concepção formativa e cultural, com conteúdo de caráter
universal e supra confessional, não admitindo nenhuma forma de proselitismo.
Pelos documentos oficiais do referido estado percebe-se que a Secretaria de
Educação acredita que falar de ER é mais que simplesmente discutir sobre a doutrina de
uma religião; é desenvolver competências e habilidades para que os educandos possam
alcançar um grau de maturidade em suas atitudes, projetando um país com justiça e
fraternidade. Deste modo, propõe para as séries iniciais do Ensino Fundamental (hoje 1º
ao 5º ano) o ER de modo transversal, exercido pelos próprios professores polivalentes
das respectivas classes e, para as séries finais do Ensino Fundamental (5º ao 9º ano), o
ensino ministrado por professores da rede que atuem na escola e possuam formação em
nível superior e habilitação em História, Filosofia ou Ciências Sociais.
A escola pública observada e descrita neste artigo, embora não contasse com
aula específica de religião (ER), manifestava sua religiosidade em uma série de ritos e
atividades que expressam o cristianismo. Localizada em área central da cidade de
Presidente Prudente-SP, na época com treze classes de 1ª à 4ª série/ 1º ao 5º ano do
Ensino Fundamental, divididas em dois períodos, manhã e tarde, a escola possuía alunos
filhos de trabalhadores de bairros adjacentes.
A partir das observações realizadas percebemos situações constantes que nos
permitiram enxergar alguns objetivos empreendidos no uso da religião em situações
didático-pedagógicas cotidianas e o currículo de ER diferente do prescrito.
As finalidades percebidas no ensino da religião na escola citada foram: o
ensino de uma doutrina; proteção; modelo a ser seguido; forma de ensinar/justificar
regras; forma de garantir cumprimento as normas sob pena de sanções sobrenaturais
(controle disciplinar); forma de resolução de conflitos; acalento; e educar moralmente,
fatores estes não mencionados no currículo prescrito.
Situações em que se objetivava o ensino de uma doutrina puderam ser
verificadas em momentos que a história, características ou mesmo os princípios de
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determinada religião foram tomados como objeto de ensino. Agregamos a essa
finalidade os momentos de oração e de leitura da bíblia. Isso porque, a oração se
configura como uma forma de comunicação com uma divindade a que se atribui valor
sendo um rito característico, até mesmo pela forma como se dá, em algumas religiões.
Uns juntam as mãos, outros ajoelham, outros colocam a testa no chão. O católico, por
exemplo, possui orações pré-estabelecidas pela igreja, os evangélicos geralmente a
fazem como uma conversa com deus, da mesma forma outras peculiaridades são
reservadas a cada religião. Sendo assim, entendemos que quando a professora dispõe os
alunos de determinada forma e ora de determinada maneira está ensinando
procedimentos que são adotados por uma religião determinada, ou por um grupo de
religiões que se denominam cristãs. Portanto, está ensinando um procedimento
característico da religião de origem da escola.
Da mesma forma acontece com o uso da bíblia ou do “novo testamento”, já que
estes são livros que nem todas as religiões adotam. Então, ao pedir que o aluno retire
dali uma mensagem ou um versículo o professor oferece aos alunos um modelo de
cristandade ou de fé.
A ideia de proteção, presente como finalidade no uso da religião, englobou
situações em que diante do medo ou da necessidade de algo correr bem se apelava à
entidade divina. Encontramos a maioria das situações relacionadas à proteção nas
orações em que se clamava por proteção física, espiritual ou mesmo mental (quando se
orava para obter sucesso nas provas, por exemplo).
A fim de se estabelecer um modelo a ser seguido, práticas que envolviam a
religião também se davam, principalmente quando algo ou alguém era tomado como
modelo, dado a suas virtudes ou santidade.
Também vivenciamos momentos em que a religião parecia funcionar como
meio de ensino ou de justificativa para determinadas regras sociais, ou de
convivência. Vimos momentos em que a religião era utilizada até mesmo como forma
de controle disciplinar, um meio para garantir o cumprimento de normas sob pena de
sanções, nesse caso, sobrenaturais.
Para resolução de conflitos, a religião era buscada para de alguma forma
resolver ou mediar conflitos, já para o acalento era utilizada como recurso para acalmar
os alunos fosse para manter a ordem/disciplina ou para abrandá-los diante de algum
medo.
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A finalidade mais evidente no uso da religião foi educar moralmente, educar
em valores, ou seja, o uso da religião em situações em que se buscava ensinar valores
morais ou mesmo tomava-se a religião como base para uma ação moral, as lições de
moral, as ações solidárias, etc.
O quadro a seguir quantifica, a partir das observações, as situações
presenciadas em que a religião se mostra a partir destas finalidades descritas.
Finalidades Numero de situações que aparece
Intenção aparente no uso da religião como forma de educar em valores 28 Ensino de uma doutrina 24 Proteção 22 Modelo a ser seguido 09 Ensinar/justificar regras 12 Garantir cumprimento às normas sob pena de sanções sobrenaturais (controle disciplinar)
08
Resolução de conflitos 05 Acalento 05 Total de situações observadas 113
Quadro 1: Finalidades aparentes no uso da religião na escola obtidas através da observação
Como já esperávamos, uma das finalidades para o uso da religião na escola
fora a educação moral das crianças. Portanto será esse o foco de nossa discussão a partir
de agora, ou seja, buscaremos mostrar como a educação moral tem se feito presente
quando o currículo do ER entra em ação, passa a ser praticado.
As orações e cânticos, muito comuns nas situações escolares observadas, eram
ligados à religião cristã e traziam consigo uma série de valores como fé, piedade, amor
ao próximo, gratidão, mansidão, etc. Observamos na mensagem de uma música, por
exemplo, que o egoísmo seria ruim, que poderia prejudicar a pessoa que age pensando
somente em si. Logo, se não se deve agir assim, o que se supõe é que o agir
coletivamente é melhor. Nessas situações esperava-se que ao cantar a música, a criança
aprendesse a ser cooperativa.
As mensagens encontradas tanto na lousa, por meio do cabeçalho, nas paredes,
em forma de cartazes ou pintura quanto às divulgadas oralmente também revelavam o
desejo de moldar o caráter humano. Ao afirmar por meio da escrita no cabeçalho que “A
humildade é um dom cristão”, “Jesus se agrada ao ver a humildade do homem”, ou
ainda “Seja sempre humilde e alcançará o reino dos céus”, por exemplo, tentava-se
dizer ao aluno dentre outras coisas que: a humildade é uma dádiva, que os cristãos são
humildes, que devemos ser humildes porque esse comportamento condiz com nossa
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condição de cristãos, se queremos agradar a Deus e logo alcançar um lugar bom como o
“reino dos céus” temos que ser humildes, em outras palavras a humildade é
recomendada como algo bom e desejável.
Isso também nos leva a crer que um valor, no caso a humildade, somente se
justifica por ter estreita relação com a entidade divina, que fora dela, ou melhor, fora do
cristianismo não há humildade. Que para ensinar os alunos a serem humildes
precisamos da religião.
Em um cartaz exposto na sala de aula com tirinhas pudemos perceber pelo
menos três valores morais: a honestidade, a solidariedade e a partilha. Nessas situações
sugeria-se que quando se é honesto deus recompensa de alguma forma, por isso vale a
pena assim ser.
O uso de alguns personagens que foram criados e circulam no meio cristão
também eram comuns nesses cartazes. O “smilinguido”, por exemplo, um dos
personagens muito utilizados, é uma formiga que interage com seus amigos e com a
natureza ressaltando os valores cristãos em todas as suas atividades. A proposta de
Smilingüido, para seus idealizadores, é transmitir uma mensagem cristã baseada na
Bíblia. O perfil do personagem representa a fragilidade do homem, remetendo a idéia de
que o homem sem deus nada pode fazer.
O ato de contar histórias com lições morais ao aluno apoiado em um material
da igreja católico também foi outro meio que acreditamos se relacionar à intenção de
formar moralmente o aluno através da religião. Quando a professora de português da
escola pública, por exemplo, lia todo início de aula uma mensagem retirada do livro
“Parábolas que transformam vidas”, organizado por um padre da Igreja Católica
(Marcelo Rossi), e depois conversava com seus alunos sobre ela, tinha possivelmente a
intenção de formar valores. Nessas práticas a professora iniciava a conversa fazendo
referência à figura divina. Logo em seguida, lançava questionamentos até plausíveis
sobre a realidade muitas vezes vivenciada pelos alunos, depois que os alunos falavam
sobre situações cotidianas relacionadas à história a professora sempre buscava
apresentar um desfecho trazendo alguma lição moral e enfatizando o que se podia e o
que não se podia fazer.
Com isso, percebemos que em muitos momentos se esperava que a religiao
educasse os alunos: que lhes ensinasse a sentar, a falar baixo, a não usar palavrões.
Logo, o caráter epistemológico do ER, previsto no currículo prescrito, sequer fora
trabalhado. Percebemos ainda que muitas das finalidades utilizadas na escola são
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características dos espaços privados destinados à religião, ou seja, à igreja, não à escola.
Faz parte da vida nas igrejas o sagrado dar significação ao espaço, ao tempo e aos seres
que neles nascem, vivem e morrem; oferecer a ideia de proteção os seres humanos do
medo da natureza; dar aos humanos acesso a verdade do mundo; oferecer a esperança de
vida após a morte; oferecer consolo aos aflitos; e garantir o respeito às normas, às regras
e aos valores da crença. Entretanto, postulamos que escola não deve se confundir com
igreja.
Vale ainda questionar, mas não é papel da escola educar moralmente seus
alunos? Sim, acreditamos que a educação moral deve fazer parte do currículo escolar,
entretanto, a educação moral laica, a educação moral que permita aos seres humanos
interagir de maneira crítica com seu meio sociocultural, que vise a formação moral do
aluno autônomo, pois como afirma Brakemeier (2002) não há nenhuma necessidade de
a sociedade ser “cristã” para ser justa.
Apoiados em Fischmann (2006) cremos ser um equívoco pensar que apenas
inserção de ER nas escolas supriria o objetivo de oferecer conteúdos que propiciassem o
respeito ao outro e a educação como meio de combate à violência. Direitos humanos,
moral e ética são conteúdos que podem e devem integrar o projeto político-pedagógico
da escola, sem que seja necessário envolver conteúdos religiosos. Afinal, o pensamento
humano tem uma histórica milenar, tanto na tradição ocidental, quanto oriental, que
dispensa o recurso a esta ou aquela religião para justificar a necessidade do
comportamento ético.
Por isso, a educação moral das crianças não deve permanecer nos moldes de
pura transmissão, da sobreposição de um conjunto de fatos, procedimentos e regras que
só serão aceitos por temor enquanto perdurar o controle da autoridade, deixando de ser
assumidos como valores no momento em que a força do controle for enfraquecida.
A educação moral não deve impor valores tidos como prontos e acabados.
Compartilhando os preceitos do desenvolvimento moral, acreditamos que a educação
em valores deve facilitar o desenvolvimento e formação do sujeito, deve orientar o
aluno autonomamente, racional e dialogicamente em situações de conflito.
A formação do sujeito autônomo, grande objetivo da educação moral, passa
obrigatoriamente pelo exercício da construção de valores, princípios, regras e normas
pelos próprios alunos entre si e nas situações em que sejam possíveis relações de trocas
intensas; trocas de necessidades, aspirações, pontos de vistas diversos, pois “quanto
maiores e mais diversas forem as possibilidades de trocas entre as pessoas, mais amplo
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poderá ser o exercício da reciprocidade - pensar no que pode ser válido, ou ter valor,
para mim e para qualquer outro” (MENIN, 2002, p. 97).
Logo, se a finalidade é constituir personalidades autônomas há de se pensar
também nos procedimentos adotados na escola que permitam de fato alcançar os
objetivos propostos, já que os diferentes procedimentos pedagógicos conduzem a
diferentes resultados.
Considerações
Pensar o currículo para o ER não é tarefa fácil, pois, como vimos, este
extrapola o currículo prescrito se transformando na prática em tentativas de educação
moral. O professor, na busca de soluções para os problemas cotidianos, escora-se em
aspectos subjetivos e objetivos para a operacionalização de sua prática pedagógica. Por
vezes, essa prática em sala de aula reflete as contradições, mescladas pelas
subjetividades e diferentes conflitos, traduzindo desta forma o currículo diferente do
prescrito.
É evidente que o currículo não deve apresentar uma postura reducionista diante
da realidade, tampouco ficar engessado nas prescrições, entretanto, é fundamental que
seja refletido e compreendido na dinâmica das relações humanas, nas dimensões sociais,
culturais, históricas, políticas e econômicas.
Estamos certos que a educação moral, mesmo não fazendo parte de um
currículo prescrito, de uma forma ou de outra, se faz presente no interior da escola.
Portanto, estamos diante de dois temas curriculares, (a educação moral e o ER) que
devem ser pensados diferentemente e separadamente. O ER deve, antes de tudo,
segundo o artigo 33 da LDB fundamentar-se nos princípios da cidadania e do
entendimento do outro. O conhecimento religioso não deve ser um aglomerado de
conteúdos que visam evangelizar ou procurar seguidores de doutrinas, nem associado à
imposição de dogmas, rituais ou orações, mas um caminho a mais para o saber sobre as
sociedades humanas e sobre si mesmo.
Assim, o ER sem nenhum propósito doutrinante de uma determinada visão
religiosa, de maneira respeitosa e reverente para com o domínio de cada culto e de cada
doutrina, deve incentivar e desencadear no aluno um processo de conhecimento e
vivência de sua própria religião, mas também um interesse por outras formas de
religiosidade assim como servir para ampliar o universo cultural do aluno.
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Quanto aos propósitos e finalidades da educação moral, cremos que a escola deve ter um
posicionamento nítido quanto aos rumos que quer dar a educação moral, isto porque, numa escola
tradicional, onde as regras são impostas pelas autoridades em relações de respeito unilateral,
provavelmente, será formada, na criança, a moral de heteronomia, do governo exercido por outros. Já
numa escola onde as regras se originam do acordo mútuo e da cooperação, em relações de respeito mútuo,
o desenvolvimento moral tenderá para a autonomia. Defendemos ainda que a educação moral não
necessita do ER para se dar. Estas são diferentes e podem ser trabalhadas separadamente,
pois é possível desenvolver na escola uma moral laica.
Antes disso, é preciso também que o currículo escolar preveja a educação
moral. Esta, muitas vezes, se dá na prática, faz parte do currículo oculto da escola, mas
talvez por medo de parecer tradicional, ou por parecer retroceder a velha e conhecida
educação moral e cívica, os sistemas de ensino acabam não a contemplando a educação
moral os documentos curriculares.
Diante do exposto, torna-se fundamental que as escolas e os sistemas de ensino
atentem-se para a gestão do currículo, ou seja, a forma de pensar e organizar as ações
educativas, o conhecimento escolar, as habilidades, as atitudes e os valores que
orientam a prática pedagógica de todos os sujeitos educativos. Da mesma forma, é
importante que a escola ao buscar superar a rigidez e hierarquização dos currículos
disciplinares e superar a fragmentação do conhecimento das disciplinas tradicionais
considere os limites e o caráter de provisoriedade do conhecimento, se abrindo para a
troca e a reciprocidade entre as diferentes formas de expressão dos conhecimentos
científicos, culturais, éticos e estéticos.
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