o endereÇamento de estereÓtipos na sÉrie “life in … · que proporciona prazer ao/a...

12
Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015 1 O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN THE DREAMHOUSE” DA BONECA BARBIE SOUZA, Michely Calciolari TERUYA, Teresa Kazuko INTRODUÇÃO A contemporaneidade é marcada pelo consumo em excesso e pela descartabilidade. As mídias – sejam elas impressas, eletrônicas, televisivas, online oferecem uma vasta quantidade de informações, carregadas de conceitos, padrões e estereótipos. Bauman (2013) caracteriza esse período de “Modernidade Líquida”. Já outros autores denomina de pós-modernidade Em Bauman (2013), a modernidade líquida refere-se à capacidade dos sujeitos contemporâneos de se adaptarem às novas situações, novos modelos de conduta, novos padrões e novos conceitos. Essa marcação diferencia-se de outros dois períodos que é a “Pré-Modernidade” e a “Modernidade Sólida”. No primeiro os indivíduos são identificados como “guarda-caças”, no qual os sujeitos se empenhavam em guardar sua caça para garantir sua sobrevivência. Assim, homens e mulheres se preocupavam com a estabilidade e com a segurança. Para o segundo período, o autor faz uma analogia com o jardineiro/a, porque, diferente do período anterior, o/a jardineiro/a se preocupa com o planejamento e organização, para que seu jardim progrida. A razão, o conhecimento científico e o planejamento eram valorizados nesse período. Já na modernidade líquida, os sujeitos são caracterizados por Bauman (2013) como caçadores/as, visto que eles/elas não se satisfazem em conseguir uma caça, mas o que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa em buscar outra preza para se satisfazer. Planejamento e estabilidade não fazem parte da organização da modernidade líquida e a satisfação nunca é alcançada. Homens e mulheres da modernidade líquida são guiados pela busca constante do consumo de produtos e discursos propagados pela mídia. Como caçadores e caçadoras,

Upload: hoangkhanh

Post on 16-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

1

O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN THE DREAMHOUSE” DA BONECA BARBIE

SOUZA, Michely Calciolari

TERUYA, Teresa Kazuko

INTRODUÇÃO

A contemporaneidade é marcada pelo consumo em excesso e pela

descartabilidade. As mídias – sejam elas impressas, eletrônicas, televisivas, online –

oferecem uma vasta quantidade de informações, carregadas de conceitos, padrões e

estereótipos. Bauman (2013) caracteriza esse período de “Modernidade Líquida”. Já

outros autores denomina de pós-modernidade

Em Bauman (2013), a modernidade líquida refere-se à capacidade dos sujeitos

contemporâneos de se adaptarem às novas situações, novos modelos de conduta, novos

padrões e novos conceitos. Essa marcação diferencia-se de outros dois períodos que é a

“Pré-Modernidade” e a “Modernidade Sólida”. No primeiro os indivíduos são

identificados como “guarda-caças”, no qual os sujeitos se empenhavam em guardar sua

caça para garantir sua sobrevivência. Assim, homens e mulheres se preocupavam com a

estabilidade e com a segurança. Para o segundo período, o autor faz uma analogia com o

jardineiro/a, porque, diferente do período anterior, o/a jardineiro/a se preocupa com o

planejamento e organização, para que seu jardim progrida. A razão, o conhecimento

científico e o planejamento eram valorizados nesse período.

Já na modernidade líquida, os sujeitos são caracterizados por Bauman (2013)

como caçadores/as, visto que eles/elas não se satisfazem em conseguir uma caça, mas o

que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a

caçador/a logo se preocupa em buscar outra preza para se satisfazer. Planejamento e

estabilidade não fazem parte da organização da modernidade líquida e a satisfação

nunca é alcançada.

Homens e mulheres da modernidade líquida são guiados pela busca constante do

consumo de produtos e discursos propagados pela mídia. Como caçadores e caçadoras,

Page 2: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

2

não adiantaria consumir e adquirir todos os produtos possíveis e necessários, se a

felicidade e a sensação de conforto se encontra no ato de comprar e de consumir. Para

contribuir com essa rotatividade e descartabilidade, a mídia e a publicidade nos

apresentam produtos e modelos a todo instante para que possamos escolher o que

consumir ou o que caçar.

Nesse sentido, buscamos compreender quais os padrões e estereótipos sugeridos

pela mídia para a construção da identidade das meninas, visto que esta também é

descartável. Nosso objetivo é investigar os modos de endereçamento da série disponível

no canal YouTube “Life in the Dreamhouse” que tem a boneca Barbie como

protagonista.

Os endereçamentos da série “Life in the Dreamhouse” para a construção das

feminilidades

A série “Life in the Dreamhouse” foi lançada em 2012 e está disponível para

acesso no canal YouTube e no site da boneca Barbie1. Além disso, a série foi exibida na

emissora SBT, nos programas Bom dia e Companhia e Sábado animado. Os episódios2

possuem duração em média, de três a quatro minutos. São apresentados acontecimentos

corriqueiros da vida de Barbie e de seus/suas amigos/as e irmãs. O cenário principal da

série é a casa dos sonhos da boneca, a Dreamhouse. Barbie proporciona festas em sua

piscina, mudanças na decoração da casa, noites do pijama, lojas de roupas, passeios à

praia etc.

A cor-de-rosa é a principal cor exibida na série, a casa possui todos os detalhes

em rosa, móveis, acessórios, eletrodomésticos, eletrônicos etc. Como protagonista da

série, Barbie toma as decisões de tudo o que irá acontecer, ela oferece todas as ideias

sobre festas, compras, decorações e passeios românticos. Juntamente com seus/suas

amigos/as e seu namorado Ken, ela coloca seus desejos em prática.

Nossa concepção metodológica se baseia nos modos de endereçamento,

fundamentados por Elizabeth Ellsworth (2001). A autora relaciona os estudos de cinema 1 1 www.barbie.com 2 Tendo em vista nosso objetivo, traremos exemplos de alguns episódios da série “Life in Dreamhouse”, tendo em vista a vasta lista de episódios lançados.

Page 3: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

3

com a educação e argumenta que um filme é produzido a partir da relação de emissor/a,

aquele que endereça algo e receptor/a, que recebe a informação. Nessa relação o/a

emissor/a objetiva atingir um determinado público, as perguntas que norteiam esse

processo seriam: quem esse filme pensa que você é? O que esse filme endereça? Para

quem ele endereça?

Ellsworth (2001, p. 13) entende o “[...] modo de endereçamento como um

conceito que se refere a algo que está no texto do filme e que, então, age, de alguma

forma, sobre seus espectadores imaginados ou reais, ou sobre ambos”. Essa reação do/a

receptor/a escapa aos olhos de quem emite, visto que relações subjetivas, culturais,

políticas e sociais interpelam no processo de recepção da mensagem. Ou seja, nem tudo

o que é emitido com um determinado sentido para o/a emissor/a chega ao/a receptor/a

da mesma forma, algo escapa no endereçamento.

Os endereçamentos contribuem com a construção das identidades dos sujeitos e,

os/as receptores/as que não estão sob o foco do endereçamento, do/a emissor/a, podem

se aproximar à ele, reconhecendo e se aproximando do que está sendo endereçado .

Contudo, o contrário também pode ocorrer, o desvio daquele determinado foco e do que

está sendo endereçado. Além disso, todo o endereçamento é estudado para ser

endereçado: luzes, foco, posição da câmera, falas, músicas, cenários etc., justamente

para buscar ao máximo atingir um público alvo.

Pensar nos modos de endereçamento no âmbito da educação é pensar no modo

como o/a professor/a endereça conteúdos e práticas pedagógicas aos/as alunos/as. Como

não há neutralidade no processo de endereçamento, questões subjetivas e culturais estão

presentes no discurso do/a docente e, o modo como a criança receberá o que está sendo

proposto também não é neutro, “[...] o espaço da diferença entre endereçamento e

resposta é um espaço que carrega os traços e as imprevisíveis atividades do

inconsciente” (ELLSWORTH, 2001, p. 43).

Com base nos modos de endereçamento, analisamos o que a série “Life in the

Dreamhouse” endereça às meninas. Qual a concepção de identidade de gênero

endereçada por essa série? Qual é o ideal de feminilidade endereçado? Tais questões

norteiam nossa pesquisa.

Page 4: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

4

Barbie foi pensada para aquelas meninas que já não se interessavam mais pelas

bonecas- bebê existentes até os anos 1950. Ruth Handler, sua criadora, teve a ideia de

criar uma boneca com corpo de uma mulher adulta inspirada nas observações feitas das

brincadeiras de sua filha Barbara e suas amigas. Ela constatou que as meninas se

interessavam pelas revistas de moda e pelas modelos dessas revistas. Ruth conta que a

filha recortava essas imagens e brincava de desfile com as modelos de papel (GERBER,

2009).

Ao viajar para a Europa, Ruth encontrou em uma vitrine uma boneca exposta. A

boneca que ela avistou era a Bild Lilli, uma souvenir que tinha características adultas,

mas era uma boneca sensual destinada aos homens. Ruth comprou diversos exemplares

da boneca, pois acreditava que aquele material abrigava a essência da boneca que ela

gostaria de lançar no mercado.

Ao apresentar a boneca Bild Lilli e seu projeto para a criação de uma nova

boneca à equipe da empresa Mattel3, Ruth não obteve aprovação nem mesmo de seu

marido Eliot. Todos/as acreditavam que aquele projeto era arriscado demais, pois a

boneca era muito sensual para interessar às meninas e também não seriam aprovadas

pelos/as pais/mães (GERBER, 2009).

O projeto foi levado à frente e a boneca foi produzida no Japão, com custos mais

baixos. Em 1959, a Mattel lançou a boneca Barbie, uma homenagem à filha de Ruth

Handler. Em princípio a boneca não agradou lojistas e pais/mães, mas a Mattel investiu

fortemente em propagandas e transformou Barbie na boneca mais desejada das meninas.

Barbie não demorou muito para ganhar o posto de maior destaque de todas as bonecas

lançadas até então e faz sucesso entre as meninas até hoje, com quase 60 anos.

Para sua criadora, Barbie não ensinava uma visão sexista às meninas, ao

contrário, contribuía e contribui com a educação das meninas, porque ela ensina a se

vestirem, combinar modelos de roupas, sapatos, cortes de cabelos adequados,

maquiagem, perfume ideal e a prática de exercícios físicos.

Barbie possui sua própria casa, carros e namorado. É a garota mais popular entre

as personagens da série em questão. É invejada pelas amigas e cobiçada pelos homens.

3 Ruth Handler e Eliot Handler fundaram a empresa Mattel, grande fabricante de brinquedos no mercado mundial.

Page 5: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

5

Ela vai as compras a qualquer hora, muda a decoração de sua casa, sua loja de moda,

cria festas na piscina para estrear um novo tobogã, ganha presentes de aniversários

repetidos, pois já possui todos os tipos de presentes possíveis.

Em um dos episódios da série, Barbie redecora a sala de sua Dreamhouse com a

ajuda de suas irmãs. A boneca conta que redecorou a sala há poucos dias, mas adora

essa atividade. Em outro episódio, Barbie mostra para as amigas seu armário de roupas

e conta que ela comprou uma saia da mesma cor e do mesmo modelo que ela já tinha. O

armário é imenso e abriga milhares de roupas, sapatos e acessórios. No dia de seu

aniversário, suas amigas e seu namorado Ken não sabem com o que presenteá-la, pois

ela já tem tudo o que se possa imaginar.

Nesses trechos destacados evidenciamos a ideia de consumo e descartabilidade

endereçada às meninas. O prazer está no ato de comprar, como pontuamos

anteriormente nos estudos de Bauman (2013). Não basta ter uma saia, Barbie compra

outra igual a que já comprou, ela adora mudar a decoração e consumir novos produtos.

Barbie incute nas meninas o desejo de terem uma casa dos sonhos como a dela, com um

armário de roupas infinito, no qual sempre cabe mais uma peça.

Conforme Siqueira e Faria (2007) os corpos são constituídos biológica, social e

culturalmente. Assim, as mídias contribuem com a construção dos corpos, enfatizando a

ideia de consumo e padrões de gênero, e interferindo na elaboração da identidade de

meninas e meninos.

Com a difusão de padrões de beleza, a mídia supervaloriza “[...] estereótipos que

marcam um ideal de beleza apresentado como pertencente à maioria das pessoas, mas

que, na verdade, consiste na realidade de uma pequena parte dos indivíduos” (SOUZA,

2013). Isso marca os sujeitos como pertencentes a um padrão ou não e aquecem o

mercado de consumo.

Barbie se transformou na melhor amiga das meninas, que oferece dicas de moda,

de etiqueta e de como é a vida de uma verdadeira princesa, Roveri (2004, p. 41)

estudiosa da história da boneca, argumenta que,

Sua peculiar carreira nos dá as pistas de como nossa sociedade está estruturada e o impulso para que busquemos as esferas de autonomia que ainda são possíveis à criança, após tanto ter sido massacrada por

Page 6: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

6

modelos adultocêntricos apresentados como universais e válidos em si.

Ao assistir a série “Life in the Dreamhouse” a criança se relaciona com o

conceito de felicidade, popularidade, beleza, padrão de corpo e com o consumo, que é

apresentado como uma das formas de resolver os problemas, presentar o outro e se

sentir feliz.

A imagem projetada de Barbie é de uma garota rica, heterossexual, branca,

magra, com medidas perfeitas. Ao entrar em contato com essa mídia, muitas meninas se

engajam em práticas de emagrecimento, utilizam produtos de beleza para se

aproximarem da boneca.

Há uma prescrição normativa que faz com que cada indivíduo busque por um ideal de corpo e de aparência. Na cultura das aparências, as cirurgias estéticas, as dietas, os tratamentos artificiais, os cosméticos devem ser empregados para a obtenção da imagem e do corpo ideais. Caso contrário, serão taxados como desmotivados, descuidados e doentes, excluídos do padrão de beleza propagado (SOUZA, 2013, p. 33).

As meninas que não se interessam pelos modelos evidenciados na boneca e não

se sentem pertencentes a esse grupo, são vistas com estranhamento, pois se diferem da

maioria e, essas relações ocorrem também dentro da escola (SANT’ANNA, 2012). Ao

usar uma bolsa escolar com a figura da Barbie, a menina se insere em um grupo desses

que seguem a boneca e, ao mesmo tempo, ela se engaja nas práticas para se equiparar à

boneca. Na série, as amigas de Barbie se engajam em uma competição para descobrir

quem é a melhor amiga da Barbie, todas querem estar ao lado dela e todas possuem

conhecimento da vida da protagonista.

Bianca Salazar Guizzo (2012) destaca em sua pesquisa com crianças da

Educação Básica da cidade de Esteio, no Rio Grande do Sul, que meninas de seis anos

de idade se sentem extremamente preocupadas com a alimentação, pois se amedrontam

com a possibilidade de engordarem. [...] Hoje, há uma repetição intensa do discurso hegemônico sobre a beleza, o que faz um corpo magro, branco e jovem, sinônimo de embelezar e saúde [...] Meninas se engajam em práticas que visam esconder suas falhas. Contudo, essas preocupações não devem ser

Page 7: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

7

vistas como uma maneira natural de pensar da mulher. Elas precisam ser entendidas como parte de um processo histórico, social e cultural do sistema de relações. (GUIZZO, 2012, p. 112-113, tradução nossa)

Esta autora ainda relata que muitas meninas frequentavam a escola utilizando

maquiagem e não aceitavam utilizar sapatos como tênis para frequentar as aulas de

Educação Física, pois ficariam com baixa estatura. Além disso, as brincadeiras

desenvolvidas pela maioria das meninas no horário do intervalo envolviam salão de

beleza e desfiles de moda. “Desde crianças, elas já se auto-regulam e se auto-vigiam,

achando-se feias e com vergonha de seus corpos. Elas parecem entender que beleza e

corpo são fundamentais [...]” (GUIZZO, 2010, p.2).

Sapoznik et al (2011) argumenta que na contemporaneidade, a magreza é uma

exigência para que a menina ou a mulher seja aceita socialmente como uma pessoa

saudável e preocupada com seu corpo. Barbie ensina o que é certo e errado, o bom e o

ruim, ou seja, o adequado para meninas. São práticas que elas devem desenvolver para

se embelezarem e como elas devem se comportar – fragilidade, meiguice, romantismo.

Por exemplo, em um dos episódios, Barbie aparece penteando seu cabelo e brincando de

salão de beleza com sua irmã, elas escovam os cabelos e contam a quantidade ideal de

escovadas para que o cabelo fique deslumbrante.

Barbie transmite que a magreza, simpatia, delicadeza e fragilidade são sinais e sintomas de felicidade. Além disso, o rosa deve compor a cor principal do guarda-roupa feminino. Desse modo, as meninas incorporam práticas que ultrapassam o período da infância e marcam o cotidiano de mulheres adultas e suas preocupações com dietas, regimes, ginásticas, em que a beleza passa a ser sinônimo de felicidade e que a busca pelo corpo ideal passa a ser um projeto individual jamais finalizado (SOUZA, 2013, p. 54-55).

As meninas aprendem a serem românticas e preocupadas com a beleza, já se

deslocam aos salões de beleza para pintar as unhas e escovar os cabelos. Essas

atividades se tornam normais para essas meninas e, possivelmente, continuarão se

dedicando dessa forma quando adultas.

No episódio intitulado “Festa dos cachorros”, uma das amigas de Barbie,

Raquel, é surpreendida pelo seu cachorro, que abocanha sua bolsa. Raquel argumenta

Page 8: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

8

que aquela é uma bolsa de marca caríssima, mas o cão a transforma em um brinquedo.

O consumo de produtos de marca é difundido pela série e deixa claro que não se pode

consumir e utilizar qualquer bolsa. “Consome-se no afã de ser visível, ser aceito

socialmente e, por fim, chegar próximo da felicidade prometida” (DINIZ, 2014, p. 108).

Em outro episódio, “Prefeita de Malibu”, a irmã de Barbie Chelsea e sua amiga

Raquel, se candidatam a prefeitura da cidade e prometem spa e tratamento de beleza

para todos/as moradores/as da cidade de Malibu. Além disso, todas as personagens são

magras, utilizam salto alto, são delicadas e adoram fazer compras.

Essa feminilidade abarcada na série “Life in the Dreamhouse” consiste em

mostrar para a menina que todas as garotas devem ser meigas, gostar de moda, de

comprar produtos novos sem ao menos ter necessidade, se preocuparem com a beleza e

com o corpo, almejando sempre um homem corajoso ao lado delas. Como é o caso de

Ken, namorado da Barbie, que sempre aparece nas horas certas para ajudar a namorada

a se hidratar, construir um tobogã, um carro etc. “[...] sua produção está imersa em

intenções pedagógicas, com o intuito de ensinar a supremacia de um tipo de corpo, raça

e comportamento” (CECHIN; SILVA, 2012, p. 624).

Dessa forma, a boneca Barbie sugere os modos de comportamento para as

meninas (ROVERI, 2004, 2008; CECHIN, SILVA, 2012, DINIZ, 2014). Para isso, a

boneca conta com diversos artefatos pedagógicos como séries televisivas, filmes,

mochilas, cadernos, livretos com dicas de beleza, moda, etiqueta, estojos de

maquiagens, bolsas, sapatos, roupas, dentre outros itens.

Elabora-se hoje, nas ditas estratégias de marketing, uma teia composta de artefatos e táticas capazes não apenas de atrair as crianças para um consumo eventual, mas de torná-las sujeitos que orientam sua vidas para e pelo consumo. (FLOR, 2009, p. 154-155)

A publicidade e as mídias trabalham para que esse mercado destinado às

crianças cresça cada vez mais. Para tanto, eles buscam desenvolver lançamentos a todo

instante para que a criança não deixe de consumir.

Outro aspecto importante de distinção de gênero que identificamos na série é a

não existência de amigos da Barbie. Na maioria dos episódios, Barbie aparece cercada

apenas de suas amigas e em alguns trechos, do namorado Ken. Fica claro que meninos e

Page 9: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

9

meninas não se relacionam, pois possuem gostos diferentes. No episódio que trata da

construção da loja da Barbie, alguns personagens masculinos secundários aparecem,

mas Ken constrói um ambiente específico para meninos, com jogos de videogame,

churrasco e bebidas, enquanto as meninas se divertem nas compras. Isso indica o que é

apropriado para meninas e para meninos.

Louro (1997, p. 84) escreve que as construções de gênero ocorrem também nas

relações sociais. A mídia e a publicidade fazem parte desse conceito e apregoam

padrões de identidade feminina e masculina. A escola também reproduz esse padrão, no

momento em que subestima a capacidade da menina nas aulas de matemática ou quando

divide os alunos em fila de meninos e fila de meninas ou ainda, quando destina a cor

rosa para meninas e azul para os meninos. Essas práticas consistem em “normatização

cotidiana, continuada, naturalizada”.

Essas representações de gênero são vistas como naturais e não uma construção

social. Cabe destacar que não se vende apenas produtos, o conceito de gênero está

embutido nos materiais consumidos. Nunes (2010) verificou em seu trabalho que

meninas e meninos, ao serem questionados pelas suas escolhas de cadernos de um/a

personagem e não de outro/a, afirmavam que meninas são meigas, calmas e por isso

gostam da personagem Moranguinho ou da Barbie, já os meninos são fortes e bravos e

por isso gostam do Ben10. Assim, “[...] fica evidente a reprodução de discursos que

buscam a diferenciação na atribuição de valores femininos e masculinos e a

concomitante identificação pessoal das crianças com seus personagens” (NUNES, 2010,

p. 76).

As meninas não brincam com a boneca Barbie ou assistem a seus filmes e séries,

sem qualquer relação com suas realidades. Pelo contrário, elas criam novos significados

do que é ser menina, bonita, popular e feliz e em muitos casos, buscam se parecer com a

boneca e se sentir pertencente a esse grupo. É no universo visual e de consumo de

produtos, que o processo de consumo e de descarte ocorre. Se aquele brinquedo não me

interessa mais ou já não gosto mais daquele desenho, basta descartar e buscar outro no

mercado de consumo, que está abarrotado de artefatos culturais marcados por distinções

de gênero.

Page 10: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

10

Considerações finais

Buscamos compreender os endereçamentos de feminilidade que a série “Life in

the Dreamhouse” oferece às meninas. Evidenciamos que a série, assim como a boneca e

toda a mídia e publicidade ligada à ela, contribui para a construção da identidade das

meninas, marcando ações relacionadas ao padrão de feminino apregoado na

contemporaneidade.

Constatamos que o consumo faz parte do contexto em que os episódios são

elaborados. Barbie possui um armário imenso para guardar suas roupas, até mesmo

aquelas repetidas, pode mudar a decoração da sua casa em um piscar de olhos e comprar

um avião para satisfazer seu desejo de voar. Ela é popular e disputada pelas amigas e

pelos garotos que se apaixonam por ela. Cuida de seu cabelo escovando-o cem vezes ao

dia e causa inveja àquelas que desejam ser como ela, mas nunca conseguem.

Os autores e autoras destacados/as em nossos estudos evidenciam que as

construções de gênero, ou seja, de masculinidades e feminilidades são marcadas pelas

relações sociais. A mídia e a publicidade contribuem com esse processo de elaboração

da identidade, que também é assinalado pelo consumo e pela descartabilidade de objetos

e relações entre sujeitos.

O ideal de beleza de Barbie e de todas as personagens é o da menina magra,

loira, alta, de olhos azuis, meiga e delicada. Essas características destacam o que é ser

feminina e estão atreladas ao consumo que, consequentemente, representam a felicidade

e a essência do que é ser uma garota. Barbie tem tudo o que deseja com a ajuda do

namorado Ken e de suas amigas. Ela se sente feliz com um desejo realizado e logo se

cansa dele e procura outra atividade com que se preocupar, oferecendo a ideia de que é

fácil ser feliz, basta consumir o novo e descartar o que não lhe agrada mais.

REFERÊNCIAS BAUMAN, Z. A cultura no mundo líquido moderno. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Zahar Ed. 2013a. CECHIN, Michelle Brugnera Cruz; SILVA, Thaise da. Assim falava Barbie: Uma boneca para todos e para ninguém. Fractal, v. 24, n. 3, p. 623-638, Set./Dez. 2012.

Page 11: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

11

DINIZ, Kênia Mendonça. Espaço, tempo e infância: problematizações acerca do artefato midiático Barbie. [s.d] Dissertação (Mestrado). Uberlândia, MG, 2014. ELLSWORTH, Elizabeth. Modo de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. In.: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Nunca fomos humanos. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 7-76. FLOR, Douglas Moacir. Circuitos e teias nas personagens midiáticas que convocam para o consumo. In.: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). A educação na cultura da mídia e do consumo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p. 153-156. GERBER, Robin. Barbie e Ruth: a história da mulher que criou a boneca mais famosa do mundo e fundou a maior empresa de brinquedos do século XX. São Paulo: Ediouro, 2009. GUIZZO, Bianca Salazar. Gender, body, and beautification: girls learning Femininity in brazil. Revista Ártemis. v. 13, p. 110-118, jan/jul. 2012. ______. Gênero e embelezamento na educação infantil. Percursos. v. 14, n. 26, p. 125-143, jan/jun. 2013. Disponível em: <http://www.periodicos.udesc.br/index.php/percursos/article/view/1984724214262013125/2567>. Acesso em: ago. 2013. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1997. NUNES, Luciana Borre. As imagens que invadem as salas de aula: reflexões sobre Cultura Visual. Aparecida/SP: Idéias & Letras, 2010. ROVERI, Fernanda Theodoro. A boneca mais chique é um choque: considerações acerca da educação de meninas. Campinas, SP: [s.n], 2004. ______. Barbie: tudo o que você quer ser...: ou considerações sobre a educação de meninas. Campinas, SP: [s.n], 2008. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Sempre bela. In PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Org.). Nova história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012. p. 105-125. SAPOZNIK, Alessandra et al. Muitos babados e poucos laços. In.: MESQUITA, Cristiane; CASTILHO, Kathia (Orgs.). Corpo, moda e ética: pistas para uma reflexão de valores. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2011. p. 37-44. SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira; FARIA, Aline Almeida de. Corpo, saúde e beleza: representações sociais nas revistas femininas. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo, v. 3, n. 9, p. 171-188, mar. 2007. Disponível em:

Page 12: O ENDEREÇAMENTO DE ESTEREÓTIPOS NA SÉRIE “LIFE IN … · que proporciona prazer ao/a caçador/a é o ato de caçar. Assim, ao capturar sua caça o/a caçador/a logo se preocupa

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

12

<http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/95/96>. Acesso em: fev. 2013. SOUZA, Michely Calciolari de. A educação das aparências: práticas de embelezamento e as feminilidades nas dicas de beleza da Barbie. 63 f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Pedagogia). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2013.