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  • 7/21/2019 O-encontro--uma-ferida-_-final

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    AND_Lab | Centro de Investigao Artstica e Criatividade Cientfica

    O encontro uma ferida

    Fernanda Eugnio e Joo Fiadeiro

    O encontro uma ferida. Uma ferida que, de uma maneira to delicada

    quanto brutal, alarga o possvel e o pensvel, sinalizando outros mundos e outros

    modos para se viver juntos, ao mesmo tempo que subtrai passado e futuro com a

    sua emergncia disruptiva.

    O encontro s mesmo encontro quando a sua apario acidental

    percebida como oferta, aceite e retrbuda. Dessa implicao recproca emergeum meio, um ambiente mnimo cuja durao se ir, aos poucos, desenhando,

    marcando e inscrevendo como paisagem comum. O encontro, ento, s se efectua

    s termina de emergir e comea a acontecer se for reparado e

    consecutivamente contra-efectuado isto , assistido, manuseado, cuidado,

    (re)feito a cada vez in-terminvel.

    Muitos acidentes que se poderiam tornar encontro, no chegam a cumprir

    o seu potencial porque, quando despontam, so to precipitadamente decifrados,

    anexados quilo que j sabemos e s respostas que j temos, que a nossa

    existncia segue sem abalo na sua cintica infinita: no os notamos como

    inquietao, como oportunidade para reformular perguntas, como ocasio para

    refundar modos de operar.

    Com o pressuposto de que primeiro preciso saber para depois agir,

    raramente paramos para reparar no acidente: mal ele nos apanha, tendemos a

    bloquear a sua manifestao ainda precria e incipiente. Recuamos com o corpo

    e avanamos com o olhar que julga apenas constatar objetivamente o que l

    est ou com o ver, que parte da premissa de que h um sentido por detrs das

    coisas, a ser interpretado subjetivamente. Num ou noutro caso, chega-se cedo

    demais com um saber lei ou ponto de vista, uno ou plural: ambos manipulao.

    Ambos verses de uma mesma ciso entre sujeito e objecto, a repartir por

    decreto o que pode e o que no pode cada um destes entes. A setorizar no sujeito,

    de modo unilateral, toda a capacidade de agncia e de produo de sentido,

    assim como todo o direito de legislar sobre o objecto para fins de diagnstico,

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    controle, classificao, pacificao do esprito, etc. Tornado objecto, o acidente

    tambm cancelado na sua inclinao e potncia de afectao cabendo, fora,

    numa certeza ou num achar. E assim se vai existindo. Achando antes de se

    encontrar.Sendo esta a lgica dominante a operar no nosso quotidiano a do

    desespero e no a da espera; a da urgncia e no a da emergncia, a da certeza e

    no a da confiana um acidente, s experimentado como tal se tiver a fora de

    uma catstrofe. Se for to desproporcional na sua diferena, na sua discrepncia

    em relao nossa expectativa e aos nossos instrumentos de decifrao e

    interpretao, a ponto de se antecipar e se sobrepor ao decreto de objectivao,

    levando-nos, num s folgo, de sujeitos a sujeitados. Ento no o conseguimos

    ignorar nem o domesticar: ele, simplesmente, cai-nos em cima. Mas o que

    trgico, que mesmo este acidente-catstrofe, to pouco tende a ser vivido como

    encontro, j que a ciso entre sujeito e objecto preserva-se, apenas se invertem

    os seus sinais. Destitudos do controle que julgvamos nos pertencer de direito,

    paralisamos-nos ultrajados diante da sbita soberania do acidente. Entramos em

    crise, colocamos tudo em dvida; culpamos os deuses, os pais, o estado, o pas.

    Em desespero, precipitamo-nos para a arbitrariedade do tanto faz ou para a

    prepotncia do tudo pode: pomos-nos a resistir. E se mesmo assim no

    funcionar, pior ainda, pomo-nos a desistir.

    S que a j tarde nem o saber se aplica mais, nem os achismos nos

    salvam, nem nos abrimos estimativa recproca, perdendo assim a oportunidade

    de experimentar ao que sabe o encontro. J no detemos o controle e muito

    menos as certezas que o amparavam. J claramente no somos ns quem decide.

    Entretanto, como se nos tivssemos esquecido de sincronizar os nossos

    pressupostos atualizao do mundo, permanecemos refns do decreto que nos

    dava a iluso de decidir. E aqui que est o n: no em termos perdido o poder

    de deciso (ser que alguma vez o tivemos?), mas em sermos incapazes de

    tomar uma des-ciso, de revogar o decreto da ciso.

    O mundo em que vivemos hoje justamente este: aquele em que j

    percebemos que no podemos decidir, mas ainda no aprendemos a des-cindir.

    Um mundo em que, atnitos, nos sentimos consecutivamente apanhados por

    acidente atrs de acidente, crise atrs de crise, incerteza atrs de incerteza.

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    Apanhados pela exasperada sensao de que "j tarde". J tarde para

    insistir na fico de que detemos o controle. J tarde para insistir na negao

    das disparidades, dos conflitos, das discordncias, das intransigncias, dos

    equvocos tornados lei. "J tarde" para insistir em viver "como se" o consensofosse possvel ou mesmo desejvel. Para insistir numa existncia inabalvel, que

    pretende saber por antecipao, apoiada num nexo apriorstico e transcendente:

    a cada coisa o seu nome, o seu enquadramento, a sua regularidade; nenhum

    susto ou risco, tudo explicado, tudo previsto. E isso, tudo isto, j no se sustenta

    mais.

    Mas se j no h como prosseguir numa existncia acomodada, na pacata

    desimplicao do "t-se bem", tambm j tarde tanto para aresistncia como

    para a desistncia: fica cada vez mais claro que no h "sada" nem soluo a

    partir dessas duas maneiras de nos desresponsabilizarmos.

    E, talvez por isso, seja este o momento justo para estancar o desespero e

    reparar no que h volta. Suspender o regime da urgncia, criando as condies

    para uma abertura desarmada e responsvel emergncia. Substituir a

    expectativa pela espera, a certeza pela confiana, a queixa pelo empenho, a

    acusao pela participao, a rigidez pelo rigor, o escape pela comparncia, a

    competio pela cooperao, a eficincia pela suficincia, o necessrio pelo

    preciso, o condicionamento pela condio, o poder pela fora, o abuso pelo uso, a

    manipulao pelo manuseamento, o descartar pelo reparar. Reparar no que se

    tem, fazer com o que se tem. E acolher o que emerge como acontecimento.

    Reencontrar, naquela matria simples e quotidiana em relao qual

    aprendemos a nos insensibilizar a matria da secalharidade reencontrar a,

    nesse comparecer recproco, toda uma multiplicidade de vias contingentes para

    abrir uma brecha. Uma brecha para a re-existncia.

    De forma a explorar essa brecha preciso abdicar das respostas, largar a

    obstinao por se definir o que as coisas so, o que significam, o que querem

    dizer, o que representam. Deixar de lado a obssesso pelas causas, pelos

    motivos, pelas razes, e a procura inscivel por identificar e acusar culpados,

    por fortalecer o lamento enquanto, impvidas, as consequncias vo seguindo

    os seus rumos. preciso, justamente, activar um trabalho com as consequncias,

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    empenhado em assistir e rastrear no bvio as oportunidades para entrar em

    plano comum.

    Se h alguma razo no encontro, no a das causas e a dos sensos, mas a

    razo o ratio

    das distncias que o com-peenquanto modulao distributivade diferenas dinmicas, autnomas porque co-dependentes. este tipo de

    razo que aparece quando nos envolvemos na estimativa das variantes em

    jogo, no clculo infinitesimal dos encaixes e das propores suficientes.

    Isso s pode ser feito se revogarmos os escudos protectores seja do

    sujeito seja do objecto e se largarmos os contornos pr-definidos do eu e do

    outro. Isso s pode ser feito se no avanarmos de imediato com a vertigem do

    desvendamento ou com a tirania da espontaneidade, encontrando tempo dentro

    do prprio tempo das coisas. Um tempo que j l est, entre o estmulo e a

    resposta, mas que desperdiamos na ferocidade com que cedemos ao medo e

    recamos no hbito, nas respostas prontas ou numa reao impulsiva qualquer,

    apenas para saciar o desespero de no saber. Isso s pode ser feito se abrirmos

    mo do protagonismo, transferindo-o para esse lugar terceiro, impuro e

    precrio, que se instala a meio caminho no cruzamento das inclinaes

    recprocas: o acontecimento.

    Se nos dermos esse tempo, esse silncio, essa brecha; se suportarmos

    manter a ferida aberta, se suportarmos simplesmente(re)pararvoltar a parar

    para reparar no bvio at que ele se desobvie ento, eis que o encontro se

    apresenta e nos convida, na sua complexidade embrulhada em simplicidade.

    Encontrar ir ter com. um entre-ter que envolve desdobrar a

    estranheza que a sbita apario do imprevisto nos traz. Desdobrar o que ela

    tem e, ao mesmo tempo, o que ns temos a lhe oferecer em retorno.

    Desfragmentar, nas suas midezas, as quantidades de diferena

    inesperadamente postas em relao. Retroceder do fragmento (parte de um

    todo) aofractal(todo de uma parte).

    Relao: encaixe situado entre possibilidades compossveis que co-

    incidem.

    Relao de relaes: uma tendncia, um percurso, um acontecimento que

    s dura enquanto no ,que s dura enquanto re-existimoscom ele.

    Viver juntos , to somente, adiar o fim.

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