o encontro é uma ferida fiadeiro

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O ENCONTRO É UMA FERIDA João Fiadeiro Fernanda Eugênio O encontro é uma ferida. Uma ferida que, de uma maneira tão delicada quanto brutal, alarga o possível e o pensável, sinalizando outros mundos e outros modos para se viver juntos, ao mesmo tempo que subtrai passado e futuro com a sua emergência disruptiva. O encontro só é mesmo encontro quando a sua aparição acidental é percebida como oferta, aceite e retríbuída. Dessa implicação recíproca emerge um meio, um ambiente mínimo cuja duração se irá, aos poucos, desenhando, marcando e inscrevendo como paisagem comum. O encontro, então, só se efectua – só termina de emergir e começa a acontecer – se for reparado e consecutivamente contra-efectuado – isto é, assistido, manuseado, cuidado, (re)feito a cada vez in- terminável. Muitos acidentes que se poderiam tornar encontro, não chegam a cumprir o seu potencial porque, quando despontam, são tão precipitadamente decifrados, anexados àquilo que já sabemos e às respostas que já temos, que a nossa existência segue sem abalo na sua cinética infinita: não os notamos como inquietação, como oportunidade para reformular perguntas, como ocasião para refundar modos de operar.

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o Encontro é Uma Ferida Fiadeiro

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O ENCONTRO UMA FERIDAJoo FiadeiroFernanda Eugnio

O encontro uma ferida. Uma ferida que, de uma maneira to delicada quanto brutal, alarga o possvel e o pensvel, sinalizando outros mundos e outros modos para se viver juntos, ao mesmo tempo que subtrai passado e futuro com a sua emergncia disruptiva. O encontro s mesmo encontro quando a sua apario acidental percebida como oferta, aceite e retrbuda. Dessa implicao recproca emerge um meio, um ambiente mnimo cuja durao se ir, aos poucos, desenhando, marcando e inscrevendo como paisagem comum. O encontro, ento, s se efectua s termina de emergir e comea a acontecer se for reparado e consecutivamente contra-efectuado isto , assistido, manuseado, cuidado, (re)feito a cada vez in-terminvel.

Muitos acidentes que se poderiam tornar encontro, no chegam a cumprir o seu potencial porque, quando despontam, so to precipitadamente decifrados, anexados quilo que j sabemos e s respostas que j temos, que a nossa existncia segue sem abalo na sua cintica infinita: no os notamos como inquietao, como oportunidade para reformular perguntas, como ocasio para refundar modos de operar.

Com o pressuposto de que primeiro preciso saber para depois agir, raramente paramos para reparar no acidente: mal ele nos apanha, tendemos a bloquear a sua manifestao ainda precria e incipiente. Recuamos com o corpo e avanamos com o olhar que julga apenas constatar objetivamente o que l est ou com o ver, que parte da premissa de que h um sentido por detrs das coisas, a ser interpretado subjetivamente. Num ou noutro caso, chega-se cedo demais com um saber lei ou ponto de vista, uno ou plural: ambos manipulao. Ambos verses de uma mesma ciso entre sujeito e objecto, a repartir por decreto o que pode e o que no pode cada um destes entes. A setorizar no sujeito, de modo unilateral, toda a capacidade de agncia e de produo de sentido, assim como todo o direito de legislar sobre o objecto para fins de diagnstico, controle, classificao, pacificao do esprito, etc. Tornado objecto, o acidente tambm cancelado na sua inclinao e potncia de afectao cabendo, fora, numa certeza ou num achar. E assim se vai existindo. Achando antes de se encontrar.

Sendo esta a lgica dominante a operar no nosso quotidiano a do desespero e no a da espera; a da urgncia e no a da emergncia, a da certeza e no a da confiana um acidente, s experimentado como tal se tiver a fora de uma catstrofe. Se for to desproporcional na sua diferena, na sua discrepncia em relao nossa expectativa e aos nossos instrumentos de decifrao e interpretao, a ponto de se antecipar e se sobrepor ao decreto de objectivao, levando-nos, num s folgo, de sujeitos a sujeitados. Ento no o conseguimos ignorar nem o domesticar: ele, simplesmente, cai-nos em cima. Mas o que trgico, que mesmo este acidente-catstrofe, to pouco tende a ser vivido como encontro, j que a ciso entre sujeito e objecto preserva-se, apenas se invertem os seus sinais. Destitudos do controle que julgvamos nos pertencer de direito, paralisamos-nos ultrajados diante da sbita soberania do acidente. Entramos em crise, colocamos tudo em dvida; culpamos os deuses, os pais, o estado, o pas. Em desespero, precipitamo-nos para a arbitrariedade do tanto faz ou para a prepotncia do tudo pode: pomos-nos a resistir. E se mesmo assim no funcionar, pior ainda, pomo-nos a desistir.

S que a j tarde nem o saber se aplica mais, nem os achismos nos salvam, nem nos abrimos estimativa recproca, perdendo assim a oportunidade de experimentar ao que sabe o encontro. J no detemos o controle e muito menos as certezas que o amparavam. J claramente no somos ns quem decide. Entretanto, como se nos tivssemos esquecido de sincronizar os nossos pressupostos atualizao do mundo, permanecemos refns do decreto que nos dava a iluso de decidir. E aqui que est o n: no em termos perdido o poder de deciso (ser que alguma vez o tivemos?), mas em sermos incapazes de tomar uma des-ciso, de revogar o decreto da ciso.

O mundo em que vivemos hoje justamente este: aquele em que j percebemos que no podemos decidir, mas ainda no aprendemos a des-cindir. Um mundo em que, atnitos, nos sentimos consecutivamente apanhados por acidente atrs de acidente, crise atrs de crise, incerteza atrs de incerteza. Apanhados pela exasperada sensao de que "j tarde". J tarde para insistir na fico de que detemos o controle. J tarde para insistir na negao das disparidades, dos conflitos, das discordncias, das intransigncias, dos equvocos tornados lei. "J tarde" para insistir em viver "como se" o consenso fosse possvel ou mesmo desejvel. Para insistir numa existncia inabalvel, que pretende saber por antecipao, apoiada num nexo apriorstico e transcendente: a cada coisa o seu nome, o seu enquadramento, a sua regularidade; nenhum susto ou risco, tudo explicado, tudo previsto. E isso, tudo isto, j no se sustenta mais. Mas se j no h como prosseguir numa existncia acomodada, na pacata desimplicao do "t-se bem", tambm j tarde tanto para a resistncia como para a desistncia: fica cada vez mais claro que no h "sada" nem soluo a partir dessas duas maneiras de nos desresponsabilizarmos.

E, talvez por isso, seja este o momento justo para estancar o desespero e reparar no que h volta. Suspender o regime da urgncia, criando as condies para uma abertura desarmada e responsvel emergncia. Substituir a expectativa pela espera, a certeza pela confiana, a queixa pelo empenho, a acusao pela participao, a rigidez pelo rigor, o escape pela comparncia, a competio pela cooperao, a eficincia pela suficincia, o necessrio pelo preciso, o condicionamento pela condio, o poder pela fora, o abuso pelo uso, a manipulao pelo manuseamento, o descartar pelo reparar. Reparar no que se tem, fazer com o que se tem. E acolher o que emerge como acontecimento. Reencontrar, naquela matria simples e quotidiana em relao qual aprendemos a nos insensibilizar a matria da secalharidade reencontrar a, nesse comparecer recproco, toda uma multiplicidade de vias contingentes para abrir uma brecha. Uma brecha para a re-existncia.

De forma a explorar essa brecha preciso abdicar das respostas, largar a obstinao por se definir o que as coisas so, o que significam, o que querem dizer, o que representam. Deixar de lado a obssesso pelas causas, pelos motivos, pelas razes, e a procura inscivel por identificar e acusar culpados, por fortalecer o lamento enquanto, impvidas, as consequncias vo seguindo os seus rumos. preciso, justamente, activar um trabalho com as consequncias, empenhado em assistir e rastrear no bvio as oportunidades para entrar em plano comum.

Se h alguma razo no encontro, no a das causas e a dos sensos, mas a razo o ratio das distncias que o com-pe enquanto modulao distributiva de diferenas dinmicas, autnomas porque co-dependentes. este tipo de razo que aparece quando nos envolvemos na estimativa das variantes em jogo, no clculo infinitesimal dos encaixes e das propores suficientes.

Isso s pode ser feito se revogarmos os escudos protectores seja do sujeito seja do objecto e se largarmos os contornos pr-definidos do eu e do outro. Isso s pode ser feito se no avanarmos de imediato com a vertigem do desvendamento ou com a tirania da espontaneidade, encontrando tempo dentro do prprio tempo das coisas. Um tempo que j l est, entre o estmulo e a resposta, mas que desperdiamos na verocidade com que cedemos ao medo e recamos no hbito, nas respostas prontas ou numa reao impulsiva qualquer, apenas para saciar o desespero de no saber. Isso s pode ser feito se abrirmos mo do protagonismo, transferindo-o para esse lugar terceiro, impuro e precrio, que se instala a meio caminho no cruzamento das inclinaes recprocas: o acontecimento. Se nos dermos esse tempo, esse silncio, essa brecha; se suportarmos manter a ferida aberta, se suportarmos simplesmente (re)parar voltar a parar para reparar no bvio at que ele se desobvie ento, eis que o encontro se apresenta e nos convida, na sua complexidade embrulhada em simplicidade.

Encontrar ir ter com. um entre-ter que envolve desdobrar a estranheza que a sbita apario do imprevisto nos traz. Desdobrar o que ela tem e, ao mesmo tempo, o que ns temos a lhe oferecer em retorno. Desfragmentar, nas suas midezas, as quantidades de diferena inesperadamente postas em relao. Retroceder do fragmento (parte de um todo) ao fractal (todo de uma parte).

Relao: encaixe situado entre possibilidades compossveis que co-incidem. Relao de relaes: uma tendncia, um percurso, um acontecimento que s dura enquanto no , que s dura enquanto re-existimos com ele. Viver juntos , to somente, adiar o fim.

Notas BibliogrficasO percurso de Joo Fiadeiro tem-no levado a aproximar-se da investigao atravs da arte e a distanciar-se, a uma velocidade proporcional, da criao coreogrfica e do mundo do espetculo. Este movimento, que ganha agora uma dimenso mais formal com a sua colaborao regular com disciplinas como as Cincias dos Sistemas Complexos, a Neurocincia ou a Antropologia, esteve sempre latente quer na sua prtica enquanto artista, como na forma como desenhou a RE.AL estrutura que fundou em 1990 volta de projetos transversais e laboratoriais. Em qualquer dos casos a sua ambio foi sempre investigar, questionar e experimentar modalidades do como viver juntos. E exatamente essa questo que o leva a encontrar a antroploga Fernanda Eugnio que, por sua vez, se tem aproximado das artes performativas na sequncia de uma crescente inquietao em relao omnipresena do interpretativismo relativista nas prticas de produo discursiva das Cincias Sociais e quilo que comeou, cada vez mais, a lhe parecer uma neutralizao da vivncia etnogrfica na coerncia explicativa do texto e na funo-autor assumida pelo investigador. O encontro entre o mtodo de Composio em Tempo Real desenvolvido por Joo Fiadeiro, e a etnografia como ferramenta paraperformancessituadas de Fernanda Eugnio, toma forma no projeto AND_Lab (do qual SECALHARIDADE uma das suas manifestaes), que se afirma enquanto plataforma de partilha de procedimentos, operaes e modos de fazer problema, vindos tanto da arte como da cincia, na relao-tenso entre poltica, tica e quotidiano.