o emprego de vÍrgulas: evidÊncias de relaÇÕes … · da vírgula não pode ignorar o gênero...

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. 44 O EMPREGO DE VÍRGULAS: EVIDÊNCIAS DE RELAÇÕES ENTRE ENUNCIADOS FALADOS E ESCRITOS Luciani TENANI 1 Geovana SONCIN RESUMO: Este artigo tem o objetivo central de tratar de usos da vírgula identificados nos textos de alunos de oitava série de uma escola pública do interior paulista (Brasil), e o objetivo específico de identificar em que medida os acertos/erros dos empregos da vírgula identificados estão relacionados às fronteiras de domínios prosódicos do Português. A partir da análise dos usos das vírgulas, observamos que: (i) os erros por presença de vírgula quando prevista a ausência desse sinal de pontuação são motivados, predominantemente, por uma tentativa de representação de fronteiras de frases entoacionais; (ii) os erros de presença de vírgula quando previsto o emprego do ponto final são motivados, predominantemente, por uma tentativa de representação de fronteiras de enunciados fonológicos; (iii) os erros pela ausência de vírgulas são motivados, predominantemente, por hipóteses que se mostram mais fortemente baseadas em um imaginário do funcionamento da escrita que, pode ser observado, por exemplo, quando a estrutura sintática da sentença possibilita a recuperação das relações de sentido(s) entre as orações/sentenças e – simultaneamente – as relações entre os enunciados falados e escritos. Essas reflexões têm sido desenvolvidas no âmbito da pesquisa “Os usos da vírgula em textos de alunos da última série do Ensino Fundamental” (FAPESP – 2008/04683-7), vinculada à linha de pesquisa ‘Oralidade e Letramento’, do Programa de Pós-graduação em ‘Estudos Linguísticos’ da UNESP/SJRP. PALAVRAS-CHAVE: Vírgula; Prosódia; Fonologia, Oralidade, Letramento. Introdução O uso dos sinais de pontuação, de modo geral, é considerado um aspecto chave para observar e analisar a organização de textos escritos. Podendo atuar em diferentes 1 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários, Rua Cristóvão Colombo, 2265, Jardim Nazareth, CEP: 15054-000, São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil. (FAPESP/Proc. 2008/04683-7 e FUNDUNESP/Proc. 0076909). [email protected] ; [email protected]

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.

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O EMPREGO DE VÍRGULAS: EVIDÊNCIAS DE RELAÇÕES ENTRE ENUNCIADOS FALADOS E ESCRITOS

Luciani TENANI1 Geovana SONCIN

RESUMO: Este artigo tem o objetivo central de tratar de usos da vírgula identificados nos textos de alunos de oitava série de uma escola pública do interior paulista (Brasil), e o objetivo específico de identificar em que medida os acertos/erros dos empregos da vírgula identificados estão relacionados às fronteiras de domínios prosódicos do Português. A partir da análise dos usos das vírgulas, observamos que: (i) os erros por presença de vírgula quando prevista a ausência desse sinal de pontuação são motivados, predominantemente, por uma tentativa de representação de fronteiras de frases entoacionais; (ii) os erros de presença de vírgula quando previsto o emprego do ponto final são motivados, predominantemente, por uma tentativa de representação de fronteiras de enunciados fonológicos; (iii) os erros pela ausência de vírgulas são motivados, predominantemente, por hipóteses que se mostram mais fortemente baseadas em um imaginário do funcionamento da escrita que, pode ser observado, por exemplo, quando a estrutura sintática da sentença possibilita a recuperação das relações de sentido(s) entre as orações/sentenças e – simultaneamente – as relações entre os enunciados falados e escritos. Essas reflexões têm sido desenvolvidas no âmbito da pesquisa “Os usos da vírgula em textos de alunos da última série do Ensino Fundamental” (FAPESP – 2008/04683-7), vinculada à linha de pesquisa ‘Oralidade e Letramento’, do Programa de Pós-graduação em ‘Estudos Linguísticos’ da UNESP/SJRP. PALAVRAS-CHAVE: Vírgula; Prosódia; Fonologia, Oralidade, Letramento.

Introdução

O uso dos sinais de pontuação, de modo geral, é considerado um aspecto chave

para observar e analisar a organização de textos escritos. Podendo atuar em diferentes

1 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários, Rua Cristóvão Colombo, 2265, Jardim Nazareth, CEP: 15054-000, São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil. (FAPESP/Proc. 2008/04683-7 e FUNDUNESP/Proc. 0076909). [email protected]; [email protected]

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.

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dimensões da linguagem, os sinais de pontuação funcionam, na escrita, como

marcadores prosódicos, como delimitadores de estruturas sintáticas, como recursos de

coesão textual e também como indicadores discursivos utilizados pelo escrevente para

atender a um propósito enunciativo. A vírgula, objeto de estudo deste trabalho, assim

como os demais sinais de pontuação, atua em diferentes dimensões lingüísticas; no

entanto, outras questões estão vinculadas a este sinal, tornando-o um objeto de

investigação bastante complexo e, conseqüentemente, revelador de reflexões do

escrevente sobre a linguagem.

Diante da complexidade envolvida por esse sinal e buscando vislumbrar como se

dá a relação entre enunciados falados e enunciados escritos, este trabalho tem como

objetivo geral explorar os aspectos lingüísticos que envolvem os usos da vírgula em

textos escolares. Mais especificamente, buscar-se-á verificar em que medida os

acertos/erros do emprego da vírgula estão relacionados às fronteiras de domínios

prosódicos e/ou às informações letradas. Para tanto, ancorando-se no Paradigma

Indiciário, proposto por GINZBURG (1987), uma análise fonológica de caráter

qualitativo será proposta para as ocorrências não-convencionais de usos da vírgula

identificadas em textos de alunos da última série do Ensino Fundamental (doravante,

EF).

Pressupostos Teóricos

Considerando que a vírgula atua no entrecruzamento entre os enunciados falados

e os enunciados escritos e considerando ainda os objetivos que o presente trabalho

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buscar alcançar, propõe-se, como ponto de partida para a análise dos dados, uma

interface entre dois lugares teóricos: (i) uma concepção sobre a pontuação e a escrita, a

partir dos trabalhos de Chacon (1998) e Corrêa (2004), respectivamente, e (ii) uma

descrição da organização prosódica do Português Brasileiro (doravante, PB), a partir de

Tenani (2002) e Fernandes (2007).

Corrêa (2004) não opõe fatos lingüísticos a fatos sociais; assim, tanto a fala

quanto a escrita só se definem por meio de uma prática social: há uma relação

constitutiva entre práticas sociais do oral/falado e práticas sociais do letrado/escrito.

Desse modo, o autor afirma existir um trânsito entre as práticas sociais – as do campo

das práticas orais/faladas e as do campo das práticas letradas/escritas – e é por meio da

apreensão dessa noção de trânsito do escreventes por práticas sociais que se chega à

idéia primordial de seu raciocínio: a heterogeneidade é constitutiva da escrita. Dessa

perspectiva, é possível identificar, na escrita, vestígios da fala não apenas nos lugares

mais aparentes, mas também nos lugares que, para o escrevente, se constituem como

lugares supostamente característicos de uma escrita homogênea.

A respeito do sistema de pontuação, Chacon (1998), ao analisar a pontuação de

textos de vestibulandos, conclui que à pontuação estão vinculadas diferentes e

complexas dimensões da linguagem, as quais foram definidas como dimensão fônica,

sintática, textual e enunciativa. Chacon (1998) defende que a escrita tem um ritmo

próprio, definido pela organização das dimensões lingüísticas, e essa organização pode

ser assinalada graficamente por meio dos sinais de pontuação.

Quanto à organização prosódica do PB, Tenani (2002), com base na Fonologia

Prosódica de Nespor & Vogel (1986), caracterizou os domínios prosódicos de frase

fonológica, frase entoacional e enuncidado fonológico (representados, respectivamente,

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por , I e U) como constituintes prosódicos relevantes para a apreensão da organização

da entoação e do ritmo do PB. Fernandes (2007), adotando o mesmo arcabouço teórico

de Tenani (2002), analisa os mesmos domínios prosódicos, caracterizando como se dá a

constituição desses domínios quando considerados enunciados focalizados. Essa autora

estabelece, ainda, relações entre aspectos da sintaxe do Português com a organização

prosódica verificada em enunciados neutros e focalizados. Lembramos que esses três

constituintes fonológicos, , I e U, são definidos a partir de informação de outros

componentes da gramática, como a sintaxe e a semântica, e, nesse sentido, faz-se

coerente a adoção da caracterização da organização prosódica do PB feita por Tenani

(2002) e Fernandes (2007), uma vez que, neste trabalho, os usos da vírgula são

considerados recursos acionados pelo escrevente a partir de uma relação com possíveis

fronteiras de constituintes prosódicos para focalizar certas relações sintático-semânticas,

além de diferentes posições enunciativas.

Material e Método

Os textos a partir dos quais extraímos os usos da vírgula compõem o Banco de

Dados de Produções Escritas do EF (em constituição), desenvolvido no âmbito do

projeto de extensão universitária ‘Desenvolvimento de Oficinas de Leitura,

Interpretação e Produção Textual’, credenciado pela Pró-Reitoria de Extensão

Universitária (PROEx) da UNESP.2 O banco de dados é composto por textos escritos de

2 Esse projeto, coordenado pelas professoras Dras. Luciani Tenani e Sanderléia Longhin-Thomazi, é vinculado ao grupo de pesquisa ‘Estudos sobre a linguagem’ (GPEL/CNPq) – coordenado pelo professor

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alunos de quinta a oitava série de uma escola estadual da cidade de São Jose do Rio

Preto, estado de São Paulo. Para o desenvolvimento do trabalho aqui apresentado, foram

selecionados textos de alunos de oitava série, por ser essa a última série da etapa básica

do sistema de ensino formal no Brasil, quando está previsto o ensino sistematizado do

emprego de estruturas sintáticas complexas que, em sua maioria, exigem o emprego da

vírgula. Essa justificativa baseia-se nas considerações apresentadas nos Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN’s).3

Este estudo está baseado em 116 textos, todos de gênero dissertativo, uma vez

que, em estudo anterior (SONCIN, 2008), verificou-se que os usos de vírgula estão

vinculados a determinadas estruturas que, a depender do gênero textual/discursivo, são

mais empregadas. Portanto, uma pesquisa que tem por meta descrever e explicar os usos

da vírgula não pode ignorar o gênero textual/discursivo, pois ele condiciona a seleção e

a organização de certas estruturas, as quais, por sua vez, configuram a composição do

texto como pertencendo a um dado gênero, conforme definiu Bakhtin (2003).

O ponto de partida deste trabalho foi realizar uma análise quantitativa dos usos

da vírgula tendo como base a flutuação das/nas normas que regem o emprego de

vírgula. Foi feita a sistematização das normas para os usos de vírgula em diferentes

gramáticas previamente selecionadas, a saber, Luft (1998), Bechara (1999), Rocha Lima

(1986) e Cunha & Cintra (2001), e se verificou que um levantamento das ocorrências de

vírgulas que desconsiderasse a flutuação das/nas normas não era possível, uma vez que

a flutuação é constatada em diferentes níveis: (i) na própria norma apresentada, sendo

Dr. Lourenço Chacon (UNESP) – e à linha de pesquisa ‘Oralidade e Letramentos’ do programa de Pós-graduação em Estudos Lingüísticos da mesma universidade. 3 Trata-se de um documento, emitido pelo Ministério da Educação do Brasil, que estabelece parâmetros a serem alcançados pela educação brasileira; os parâmetros são estabelecidos para cada série da Educação básica.

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que em umas gramáticas apresentam algum tipo de exceção para o uso da vírgula em

determinada estrutura sintática, em outras não; (ii) na apresentação da norma, sendo que

umas gramáticas a apresentam, outras não; (iii) na consideração da norma como

facultativa, obrigatória ou ainda ora obrigatória, ora facultativa. Além disso, as

gramáticas tendem a não explicitar normas quando previsto o não-emprego da vírgula

em determinada estrutura, ou seja, explicitam-se as estruturas sintáticas em que a

vírgula deve estar presente, mas não são explicitadas as estruturas nas quais não é

permitido o seu uso.

Diante desse cenário, levantaram-se os acertos pela presença de vírgula, os erros

pela ausência de vírgula e os erros pela presença de vírgula em 28 textos de acordo com

as normas apresentadas por cada uma das quatro gramáticas consideradas, a fim de

observar em que medida o tratamento dos dados seria modificado em função da

gramática de referência adotada. Verificou-se a partir desse estudo que: (i)

independentemente da gramática de referência, há predomínio de acertos em relação aos

erros; (ii) independentemente da gramática de referência, há predomínio de erros pela

ausência do que erros pela presença de vírgulas; (iii) a depender da gramática que se

toma como referência para o levantamento dos dados, altera-se o número total de

ocorrências analisadas bem como o número de ocorrências que são consideradas como

certas ou erradas, tanto pela ausência de vírgula como pela presença de vírgula.

Assim, foi constatado que a norma gramatical, no que tange a aspectos

relacionados à vírgula, é, de fato, heterogênea, embora a priori supõe-se homogênea.

Entendemos que esse fato é motivado por questões de natureza lingüística as quais

levam à natureza complexa do sinal de pontuação em questão, ou seja, concluímos que a

flutuação das/nas normas do emprego de vírgula pode ser motivada pela não-

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consideração e pelo não-esclarecimento de que a vírgula (i) é o único sinal de pontuação

que atua em duas amplitudes: intracláusula e intercláusula (como definiu Dahlet,

2006);4 (ii) atua no entrecruzamento da relação entre enunciados falados e escritos; (iii)

tem relação com várias dimensões da linguagem (conforme definiu Chacon, 1998).

Nesse sentido, adotamos uma postura metodológica que não privilegia a análise

quantitativa e argumentamos a favor de uma análise qualitativa dos usos e não-usos da

vírgula baseada no Paradigma Indiciário (GINZBURG, 1987).

Junto com Corrêa (2004), nossa perspectiva de análise toma os “erros” como

possíveis reflexões do sujeito escrevente sobre a linguagem, sobre a escrita e, mais

especificamente nos dados relativos ao emprego da vírgula, sobre a relação entre

enunciados falados e enunciados escritos. Pela adoção desse paradigma bem como pela

relativização do que pode ser considerado acerto e erro, verificada a partir da flutuação

das/nas normas, abandonamos a perspectiva normativa e assumimos uma perspectiva

enunciativa, na qual o texto é produto da enunciação e o sujeito escrevente é o

enunciador. Nessa perspectiva, levantamos os dados tendo como referência as

gramáticas de Cunha & Cintra (2001) e Rocha Lima (1986), que tendem a assumir

perspectivas semelhantes a respeito da função dos sinais de pontuação e da relação

oral/escrito sem ter, nesse sentido, muitas discordâncias no estabelecimento de normas.

A partir desse levantamento, em nossa análise, buscamos indícios que nos permitam

observar possíveis hipóteses que guiam o sujeito a não seguir as convenções. Portanto,

4 De acordo com Dahlet (2006), os sinais de pontuação se organizam em uma escala de amplitude organizada em cinco níveis decrescentes, de forma que o nível 1 engloba o nível 2, que engloba o nível 3 e assim sucessivamente, não sendo necessário que todos níveis intermediários apareçam numa sentença, ou seja, pode-se passar da amplitude 2 à amplitude 4, por exemplo. A amplitude 1 está no nível do parágrafo, a amplitude 2 está no nível da frase; a amplitude 3 no nível da subfrase; a amplitude 4 no nível inter-oracional; por fim, a amplitude 5 está no nível intra-oracional.

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faz-se relevante tratar do imaginário sobre a escrita, proposto por Corrêa (2004), bem

como da relação que se estabelece entre sujeito e linguagem no momento de sua

enunciação escrita. Aliada à assunção dessa perspectiva está a alteração da terminologia

para o tratamento dos dados. Deixamos de tratar os dados como acertos ou erros e os

entendemos como usos convencionais e usos não-convencionais. Esses termos

pretendem denunciar a decisão do sujeito de não seguir a convenção por uma questão

que extrapola os limites sintáticos e textuais e tem uma dimensão enunciativa.

Ao buscarmos indícios que denunciam a hipótese do sujeito sobre um fenômeno

lingüístico que está intrínseco na matéria gráfico-visual dos sinais de pontuação

presentes na escrita, apresentamos uma descrição, organizada em uma tipologia, dos

usos e não-usos não-convencionais da vírgula. A tipologia a ser apresentada visa a

sistematizar as possíveis hipóteses dos sujeitos sobre um fenômeno lingüístico. Essas

hipóteses dos escreventes não se mostram únicas, ou seja, exclusivas apenas a um

sujeito, mas podem também ser vistas, ao mesmo tempo, como coletivas, uma vez que o

sujeito está inserido em um contexto histórico, ideológico, cultural e institucional. Esse

posicionamento ancora-se em Corrêa (2004): “Nesse sentido, a presente análise poderia

ser vista como um trabalho explicativo a respeito de uma “descrição” não sistemática

que, orientada pelo deslizamento de um modo de circulação a outro, o escrevente faz

sobre fenômenos da língua”. (CORRÊA, 2004, p. 89).

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Os usos não-convencionais da vírgula em textos escolares

Conforme já afirmado, o tratamento adotado nos permitiu propor uma tipologia

para os usos não-convencionais da vírgula, uma vez que regularidades referentes à

motivação para o uso e para o não-uso da vírgula foram observadas em muitos dos

textos escolares. Tal tipologia foi proposta a partir da análise de indícios das possíveis

hipóteses do sujeito escrevente sobre o imaginário da escrita e, mais precisamente, sobre

a relação existente entre enunciados falados e enunciados escritos. Portanto, a tipologia

aqui proposta não se configura como regras seguidas pelos sujeitos, mas,

primordialmente, como uma descrição da relação estabelecida entre sujeito e escrita, ou,

de uma perspectiva mais ampla, entre sujeito e linguagem: relação esta que, por ser

reciprocamente constitutiva, é denunciada por meio de pistas inclusive nos lugares

menos aparentes.

Antes de apresentar a tipologia para os dados identificados, trazemos breves

informações sobre a proposta de redação a partir da qual os alunos deveriam

desenvolver um texto dissertativo. Como se observará na análise, os usos da vírgula

estão relacionados ao gênero e, mais especificamente, à posição enunciativa adotada

pelos sujeitos escreventes no momento da escritura de seus textos, sendo, pois, a

proposta de produção textual importante para o desenvolvimento da análise.

De acordo com a proposta (elaborada segundo as diretrizes pedagógicas da escola

onde o projeto de extensão universitária é desenvolvido), os alunos deveriam escrever

um artigo de opinião se posicionando a respeito da polêmica que envolve a

internacionalização da Amazônia; mais especificamente, eles teriam que adotar um

posicionamento ou favorável ou contrário à internacionalização da Amazônia,

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sustentando-o com argumentos suficientes. Para construir um raciocínio e adotar uma

posição sobre o assunto, os escreventes poderiam contar com os textos da coletânea que

apresentavam argumentos para sustentar tanto uma quanto outra posição.

Iniciando a apresentação de nossa proposta tipológica, o primeiro uso não-

convencional, nomeado tipo A, diz respeito à presença indevida de vírgula, ou seja,

engloba os casos em que a vírgula foi usada em posições não-previstas pelas gramáticas

normativas tomadas como referência. Esses usos não-convencionais acontecem,

predominantemente, em fronteiras de frases fonológicas (I), no entanto, as motivações

para a colocação da vírgula nessas posições podem ser organizadas em três diferentes

domínios: 1) domínio pragmático: quando o sujeito escrevente procura dar ênfase a

algum argumento do texto; 2) domínio argumentativo: quando o sujeito evidencia a

relação de força entre argumentos no interior de uma escala argumentativa; 3) domínio

semântico: quando o sujeito procura marcar o escopo semântico da sentença. Esses

domínios podem ser observados nas ocorrências de vírgula assinaladas com uma elipse

nas Figuras 1 e 2. 5

Figura 1: (8B_06_02_03)

Na Figura1, do ponto de vista normativo, o sujeito escrevente colocou a vírgula

indevidamente entre elementos que estão sintaticamente ligados: para segmentar a

locução ser a favor de. De um ponto de vista prosódico, tem-se, na ocorrência

5 A codificação de cada dado segue as normas de identificação de sujeitos e amostras escritas do Banco de Dados do qual se extraiu o corpus desse projeto de pesquisa. Os elementos separados pelos traços correspondem, respectivamente, a: série/turma, sujeito, proposta de redação, linha do texto em que se encontra a ocorrência.

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apresentada, uma seqüência de três Is: [ao contrário de um brasileiro comum ou

normal]I, [eu sou a favor]I, [da internacionalização da Amazônia]I. Tem-se que a

vírgula foi colocada numa fronteira prosódica, mas não em um limite sintático, e, nesse

caso, o limite sintático é o que prevalece para definir que o uso não está adequado à

convenção. Dessa relação, constata-se que a vírgula empregada indicia a segmentação

do enunciado em diferentes contornos entoacionais que configuram a segunda e a

terceira Is. Nessa escolha de vírgula feita pelo escrevente, a segunda I se constitui a

partir de um contorno que delimita a porção do enunciado que é focalizada pelo fato de

ali estar presente o argumento central do texto que, para o escrevente, o destaca em

relação aos demais textos que veiculam um posicionamento sobre a internacionalização

da Amazônia: o posicionamento do sujeito escrevente é a favor, e não contra, a

internacionalização. Nesse sentido, esse uso não-convencional pode ser interpretado

como um marca de delimitação de I que, nos enunciados falados, carrega o contorno

entoacional que dá ênfase à porção do enunciado que denuncia o posicionamento do

escrevente em relação à polêmica da internacionalização da Amazônia.

Outra ocorrência semelhante à primeira é apresentada na Figura 2, a seguir.

Figura 2: (8B_06_02_09)

Na Figura 2, as vírgulas que separam indevidamente o argumento oracional da

oração matriz (tanto antes quanto depois do elemento subordinativo-QUE) foram

colocadas em fronteiras de I, assim como a ocorrência anteriormente analisada. No

entanto, a motivação para essas vírgulas não parece estar associada apenas à função de

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enfatizar alguma porção do enunciado que corresponderia a um argumento, mas

também à função de destacar/focalizar um argumento em relação a outro argumento.

Desse modo, as vírgulas indiciam possíveis contornos entoacionais do enunciado que

configuram porções do texto que compõem em jogo argumentativo.

Uma análise prosódica do enunciado, com base no algoritmo de formação de I

(definido em Tenani, 2002), 6 pode nos ajudar a prever um fraseamento do enunciado

em Is da seguinte forma: [Também temos que lembrar]I, [que, a Amazônia concentra

uma boa parte de terra aqui]I, [mas não “toda” a parte aqui]I. No entanto, devido à

possibilidade de re-estruturação, prevista também pelo algoritmo de formação de I,

pode-se tanto unir material fônico a fim de transformar Is menores em Is relativamente

mais longas, quanto segmentar o enunciado constituído de Is mais longas em Is

relativamente menores. As condições para haver a reestruturação de Is estão

relacionadas ao tamanho dos constituintes, à taxa de elocução (por alguns autores

nomeada como velocidade de fala) e ao estilo de fala, os quais interagem com restrições

sintáticas e semânticas definidas para o domínio da frase entoacional. Considerando

essas possibilidades de reestruturação de Is, a configuração prosódica de um enunciado

é, em alguma medida, permeada por escolhas do sujeito-falante que dizem respeito, por

exemplo, às relações entre os enunciados e as unidades que os constituem.

Partindo da hipótese que essas possíveis configurações prosódicas dos

enunciados falados são relevantes para explicitar como se dão os usos não- 6 Algoritmo de Formação de (I) – inicialmente adaptado por Frota (1998, p. 51) para o Português Europeu e adotado por Tenani (2002) para o PB: Intonational Phrase (I) Formation: (a) I Domain: (i) all the s in a string that is not structurally attached to the sentence tree (i.e. parenthetical expression, tag questions, vocatives, etc); (ii) any remaining sequence of adjacent s in a root sentence; (iii) the domain of an intonation contour, whose boundaries coincide with the positions in which grammar-related pauses may be introduced in an utterance. (b)I Restructuring: (i) restructuring of one basic I into shorter Is, or (ii) restructuring of basic Is into a larger I. Factors that play a role in I restructuring: length of the constituents, rate of speech, and style interact with syntactic and semantic restrictions.

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convencionais da vírgula, retomamos a análise das vírgulas destacadas na Figura 2. Do

ponto de vista argumentativo, verifica-se que o escrevente chama atenção para o fato de

que ‘é necessário lembrar também X’ ([Também temos que lembrar], que configura a

primeira I do trecho em análise), mas o argumento lembrado pelo escrevente não se

configura como um simples ‘lembrar X’, pois o argumento apresentado ([que, a

Amazônia concentra uma boa parte de terra aqui], que constitui uma I, segundo o

algoritmo de formação desse constituinte) não é tão relevante quando comparado ao

argumento que é apresentado em seguida, introduzido por mas ([mas não “toda” a

parte aqui], que se configura como a última I da seqüência). Portanto, a primeira vírgula

assinalada indicia a fronteira da primeira I, e, assim, é chamada a atenção para algo que

não deve ser desconsiderado, ou, nas palavras do texto, ‘que também deve ser

lembrado’. Já a vírgula após ‘que’ sinaliza um possível contorno entoacional que

focaliza esse elemento relacional e, por meio dessa focalização, cada um dos

argumentos configura-se como um constituinte prosódico, mas – simultaneamente –

evidencia-se o destaque para o segundo argumento, representando-se, assim, um jogo

argumentativo. Por meio desses empregos não-convencionais da vírgula, verifica-se (i)

como o sujeito-escrevente tece as relações entre os argumentos a fim de evidenciar sua

posição (no caso, a favor da internacionalização da Amazônia) e (ii) como se dão as

relações entre os enunciados falados e escritos (no caso, a relação entre a configuração

de frases entoacionais e a presença de vírgulas).

O segundo uso não-convencional de vírgula, nomeado tipo B, diz respeito à

presença de vírgula na posição em que outro sinal de pontuação é previsto pelas

gramáticas tomadas como referência. Esses usos não-convencionais são motivados,

predominantemente, por uma tentativa de representação de fronteiras de enunciados

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fonológicos (Us), como é possível observar por meio da análise da ocorrência

apresentada na Figura 3.

Figura 3: (8C_02_02_18)

A vírgula em destaque foi colocada no final de um enunciado interrogativo,

numa posição em que era previsto, portanto, o uso do sinal de interrogação <?>. O

contorno entoacional ascendente do enunciado interrogativo é recuperado por meio da

estrutura subjacente da oração o que será de nós: o pronome interrogativo Qu-, no caso,

o que, configura um enunciado interrogativo nessa oração. No entanto, o escrevente

utilizou, fora das convenções, a vírgula na posição onde previsto o sinal de interrogação.

Esse uso pode ser entendido como uma tentativa de o sujeito não segmentar em partes

menores uma unidade maior, o U, cujo significado não se encerra onde a vírgula foi

colocada, mas na posição onde o ponto final foi utilizado, após a palavra bebê. A

possível hipótese do sujeito se define por meio da imagem de que a vírgula não termina

um enunciado (mas apenas o delimita em função de outro enunciado), enquanto os

sinais de ponto de interrogação e ponto final encerram, simultaneamente, uma sequência

semântica e uma sequência fônica, seja esta definida pelo contorno entoacional

descendente, como nos casos em que o ponto final é empregado, seja definida pelo

contorno entoacional ascendente, casos como o apresentado na Figura 3. Portanto, a

vírgula foi colocada na fronteira de I por não ser coincidente com a fronteira de U.

Passamos a tratar agora dos casos, que denominamos de tipo C, em que é

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previsto o emprego de duas vírgulas, dada uma estrutura sintático-semântica. Foram

encontrados no corpus usos não-convencionais definidos pela ausência em uma das

posições exigidas (ou na primeira posição – P1 – ou na segunda posição – P2) ou pela

ausência tanto em P1 como em P2. Desse modo, identificamos três usos não-

convencionais das vírgulas em relação às posições consideradas: (i) presença –

ausência; (ii) ausência – presença; (iii) ausência – ausência. A seguir, exemplificamos o

primeiro subtipo CI em que há a sequência presença – ausência de vírgulas.

Figura 4: (8B_05_02_11)

Observa-se, na Figura 4, que o constituinte sintático a ser isolado é a conjunção

conclusiva portanto. Porém, o isolamento não foi efetivado, uma vez que P2 não foi

preenchida por uma vírgula. Prosodicamente, tem-se uma sequência de Is definidas

pelos contornos entoacionais e a conjunção portanto poderia configurar uma I

independente, no entanto, pela possibilidade de re-estruturação do constituinte

prosódico, a conjunção, por ter pouco material fônico, se une à I subsequente pertence

sim aos brasileiros, formando uma unidade prosódica única [portanto pertence sim aos

brasileiros]I. Portanto, há evidências de a hipótese do sujeito para a não-colocação da

vírgula em P2 estar ancorada nessa organização prosódica. Nota-se que a primeira

vírgula está na fronteira de uma I e, portanto, também motivada por uma mudança de

contorno entoacional. Uma evidência de que essa hipótese é o que conduz o sujeito a

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escolher não colocar vírgula em P2 é o fato de, no período anterior, como se verifica na

Figura 4, uma estrutura semelhante com a conjunção por isso estar convencionalmente

sinalizada por vírgulas. Desse modo, não se pode afirmar que o escrevente não saiba

utilizar as vírgulas quando previsto o emprego de duas vírgulas, mas, é possível

interpretar que a flutuação entre seguir e não seguir a convenção é motivada pela

confluência entre a organização prosódica e sintático-semântica dos enunciados no

texto.

O uso não-convencional do tipo C.II diz respeito à ausência – presença das

vírgulas, como se ilustra na Figura 5, a seguir.

Figura 5: (8B_06_02_13)

Na Figura 5, nas posições onde indicadas, deveriam, de acordo com a norma, ser

empregadas vírgulas para o isolamento do adverbial antecipado quando chega aqui. No

entanto, a vírgula em P1 não é colocada. Observa-se que o elemento que está à direita

da P1 é a conjunção aditiva e, que, por ser constituída de uma sílaba apenas, pode ser

incorporada pela I seguinte, formando, assim, uma única I: [e quando chega aqui].

Dessa forma, as posições assinaladas na Figura 5, portanto, dizem respeito,

respectivamente, à (i) não-colocação da vírgula em P1 pela realização de um contorno

entoacional único entre a conjunção e o adverbial que a segue, sem, por esse motivo,

delimitar uma fronteira prosódica entre os dois constituintes sintáticos, e (ii) à colocação

da vírgula em P2 por se encontrar aí a fronteira final da I.

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Outro indício, de natureza letrada, que pode ser também considerado na análise

dessa mesma ocorrência de não-preenchimento de P1 por vírgula é o fato de haver uma

‘tendência’, por parte dos escreventes em processo de aquisição da escrita, em se evitar

vírgula antes da conjunção e, a qual é motivada, possivelmente, na imagem que palavras

de pequena extensão, como a conjunção e, dificilmente são isoladas por vírgula (mesmo

que a presença das vírgulas seja exigida gramaticalmente pela estrutura em que a

conjunção ocorre). Constata-se, assim, que as hipóteses explicativas para ausência

seguida de presença da vírgula, como no caso mostrado na Figura 5, podem advir das

práticas letradas/escritas (representações dos usos das vírgulas com base em regras

gramaticais) e das práticas orais/faladas (representações de características prosódicas

dos enunciados falados) simultaneamente.

Por fim, apresentamos a ausência de vírgula em duas posições sintaticamente

relacionadas. Esse uso não-convencional, ilustrado na Figura 6, que denominamos por

tipo C.III, leva a uma conclusão interessante quanto aos empregos das vírgulas.

Figura 6: (8B_30_02_10)

Na ocorrência apresentada na Figura 6, as duas posições assinaladas dizem

respeito ao isolamento de orações reduzidas por meio de vírgulas, conforme previsto

pela norma gramatical de emprego de vírgulas. No entanto, a oração reduzida sendo

internacionalizada, que também poderia ser considerada como uma I independente, é

relativamente pequena (por ser constituída de duas palavras prosódicas) e, sendo

enunciada com uma taxa de elocução relativamente rápida, pode ser reestruturada

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(como previsto pelo algoritmo de formação do domínio de I – já apresentado) de forma

que se obtém uma I longa: [e ela sendo internacionalizada não será mais brasileira]I.

Constata-se, com base na análise da ocorrência na Figura 7, que também a

ausência de vírgula pode ser motivada por informações predominantemente prosódicas.

A princípio, poderia se supor que apenas a presença de vírgula faria remissão às

características dos enunciados falados, mas verificou-se, neste estudo, que também a

ausência das vírgulas se relaciona a características da dimensão fônica da linguagem.

Nesse sentido, os dados relativos ao emprego de vírgula parecem confirmar a tese

defendida por Corrêa (2004) de que a escrita é heterogeneamente constituída, uma vez

que as vírgulas, mesmo quando não empregadas, indiciam características dos

enunciados falados em lugares que supostamente são vistos como característicos de uma

escrita homogênea.

Por fim, apresentamos, na Figura 7, dados por meio dos quais se explicita que a

tipologia aqui proposta visa a vislumbrar como se dão as relações entre os enunciados

falados e escritos e não se constitui como uma forma de apreensão completa das dessas

relações. A ocorrência de vírgula destacada na Figura 7 nos leva a diferentes

possibilidades de interpretação do enunciado escrito tanto referente à classificação

normativa quanto à realização falada do enunciado.

Figura 7: (8B_11_02_12)

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Do ponto de vista normativo, a dúvida está em saber por qual constituinte

sintático o uso da vírgula é motivado. A vírgula foi colocada no limite entre sujeito e

predicado e, além disso, o adverbial com certeza (grafado concerteza) é o primeiro

termo do predicado da oração. Como se observa, o sujeito da oração é longo: quem

mora aqui na América do Sul e nunca veio até aqui no Brasil. A dúvida consiste em

saber se a vírgula assinalada foi motivada pela extensão do sujeito ou se pela introdução

do adverbial com certeza. Neste último caso, a norma prevê que esse adverbial seja

isolado por vírgulas. Se se considerar que a vírgula foi motivada pela extensão do

sujeito, tem-se um emprego não-convencional do primeiro tipo aqui apresentado (tipo

A); se, alternativamente, se considerar que a vírgula foi motivada pelo adverbial, tem-se

um emprego não-convencional do terceiro tipo apresentado (subtipo C.I.).

Faz-se relevante observar que, após o emprego não-convencional da vírgula na

Figura 7, há a hipossegmentação do adverbial com certeza (concerteza). Tanto o uso

não-convencioval da vírgula quanto a hipossegmentação podem estar relacionados a

características dos enunciados falados, particularmente à organização dos enunciados

em constituintes prosódicos (sobre a relação entre hipossegmentação e domínios

prosódicos ver Tenani, 2009). A hipossegmentação é a juntura entre as palavras gráficas

que pode ser interpretada como evidência do que ocorre nos enunciados falados. Dessa

forma, tem-se uma pista, por meio da segmentação não-convencional, que com certeza

pode ser reestruturada, conforme previsto no algoritmo, de modo a deixar de ser uma I

pequena para se realizar como parte de uma I maior: [concerteza irá querer conhecer o

que agora vai ser de todos,]I. As vírgulas antes de concerteza e depois de todos

constituem outra pista a favor dessa configuração prosódica.

Embora tenha sido possível reunir pistas a favor de uma interpretação dos

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motivos que tenham levado aos usos não-convencionais de vírgula no caso apresentado

na Figura 7 (e, assim, classificar essa ocorrência segundo a tipologia proposta), optamos

por tratar ocorrências semelhantes a essas como casos de dúvida e explorar as

possibilidades de relações lingüísticas entre os constituintes das sentenças e de relações

entre os enunciados falados e escritos. Essa opção pareceu-nos mais coerente com a

concepção teórica assumida sobre a escrita, uma vez que a escolha por uma única

análise como a preferencial sublimaria a complexidade lingüística do objeto de nosso

estudo e apresentaria uma relação supostamente bem estabelecida por meio da tipologia

e da análise dos dados propostas.

Considerações finais

Mostramos, por meio da análise qualitativa de ocorrências não-convencionais de

vírgulas em textos de alunos da última série do EF, como se dá o entrecruzamento da

relação entre enunciados falados e escritos e como se observa uma relação do sistema de

pontuação e, mais especificamente a vírgula, com várias dimensões da linguagem

(CHACON, 1998). De modo geral, argumentamos como os usos não-convencionais da

vírgula trazem evidências de como se dá a relação do sujeito com a linguagem – com o

seu texto, com a escrita e, especialmente, com os imaginários da escrita (CORRÊA,

2004).

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