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2304 O EMOLDURAMENTO DOS VALORES RELIGIOSOS NA VIDA DOS RAIZEIROS NO MUNICIPIO DE MIRABELA- MG. Amanda Maria Soares Silva RESUMO: E notório que que os raizeiros do município de Mirabela-MG detêm todo um conhecimento apoiado na tradição, no costume e em outros elementos acumulativos, que os tornam capazes de utilizarem plantas do Cerrado para tratamento de doenças. O sistema de saúde popular dessa população é norteado por expressões e elementos da religiosidade. Dessa maneira o presente artigo pretende levar uma reflexão acerca da religiosidade na medicina popular desses raizeiros. Esta pesquisa, sob o ponto de vista de sua natureza, classifica-se como pesquisa aplicada e de caráter descritivo. Quanto aos meios de investigação, procurou- se buscar dados bibliográficos e de campo. A religiosidade está presente nas diversas falas e rituais no cotidiano desses grupos sociais, peculiaridades que acaba, transformando-se em instrumentos para a obtenção de curas através das plantas medicinais do Cerrado. Embora, a representatividade católica seja maior, nota-se que a apropriação da natureza é girada em torno de uma transcendência sagrada, partilhada em crenças e ritos de cura, autônoma do princípio de fé envolvida. Alguns raizeiros alegam que a eficiência do remédio depende da época em que as plantas são coletadas. Por isso, a coleta durante a semana santa é um ritual comum, cascas, raízes, folhas e sementes são colhidas e armazenadas para serem consumidas durante o ano todo. A partir dessa análise percebeu-se a existência de uma estreita relação da religiosidade com os aspectos sociais e culturais da comunidade, fator que permite a contextualização histórica, sociocultural e religiosa acerca do uso prático das plantas medicinais do bioma Cerrado. Palavras chave: Religiosidade; Medicina popular; Bioma Cerrado. INTRODUÇÃO O bioma Cerrado além de toda riqueza ambiental esse ambiente chama atenção pela diversidade sociocultural: o saber popular, ligado à cura, presente através de raizeiros e benzedeiros. Estes ofícios são transmitidos de geração a geração através da oralidade. Segundo Pollack (1989) e Halbwachs (2006) A oralidade é, sem sombra de dúvida, uma ferramenta que permite a manutenção da memória, e é justamente esta tradição que viabiliza o desenvolvimento de sentimentos de pertencimento cultural e social, e consequentemente a formação da identidade de um grupo social. O conhecimento tradicional acumulado por estas populações, através de várias facetas permite entender o estreito contato com o meio, possibilita impetrar dados acerca do uso prático das plantas medicinais. Sendo assim, essa rica biodiversidade do Cerrado, conjugada com uma rica diversidade cultural, molda o homem dentro de uma relação harmoniosa entre os grupos humanos e o ambiente do Cerrado. A sociedade humana reúne uma bagagem de subsídios sobre o ambiente em que vive, incluindo o conhecimento sobre a utilização de plantas medicinais. Os

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O EMOLDURAMENTO DOS VALORES RELIGIOSOS NA VIDA DOS RAIZEIROS NO MUNICIPIO DE MIRABELA- MG.

Amanda Maria Soares Silva

RESUMO: E notório que que os raizeiros do município de Mirabela-MG detêm todo um conhecimento apoiado na tradição, no costume e em outros elementos acumulativos, que os tornam capazes de utilizarem plantas do Cerrado para tratamento de doenças. O sistema de saúde popular dessa população é norteado por expressões e elementos da religiosidade. Dessa maneira o presente artigo pretende levar uma refl exão acerca da religiosidade na medicina popular desses raizeiros. Esta pesquisa, sob o ponto de vista de sua natureza, classifi ca-se como pesquisa aplicada e de caráter descritivo. Quanto aos meios de investigação, procurou-se buscar dados bibliográfi cos e de campo. A religiosidade está presente nas diversas falas e rituais no cotidiano desses grupos sociais, peculiaridades que acaba, transformando-se em instrumentos para a obtenção de curas através das plantas medicinais do Cerrado. Embora, a representatividade católica seja maior, nota-se que a apropriação da natureza é girada em torno de uma transcendência sagrada, partilhada em crenças e ritos de cura, autônoma do princípio de fé envolvida. Alguns raizeiros alegam que a efi ciência do remédio depende da época em que as plantas são coletadas. Por isso, a coleta durante a semana santa é um ritual comum, cascas, raízes, folhas e sementes são colhidas e armazenadas para serem consumidas durante o ano todo. A partir dessa análise percebeu-se a existência de uma estreita relação da religiosidade com os aspectos sociais e culturais da comunidade, fator que permite a contextualização histórica, sociocultural e religiosa acerca do uso prático das plantas medicinais do bioma Cerrado.

Palavras chave: Religiosidade; Medicina popular; Bioma Cerrado.

INTRODUÇÃO

O bioma Cerrado além de toda riqueza ambiental esse ambiente chama atenção pela diversidade sociocultural: o saber popular, ligado à cura, presente através de raizeiros e benzedeiros. Estes ofícios são transmitidos de geração a geração através da oralidade. Segundo Pollack (1989) e Halbwachs (2006) A oralidade é, sem sombra de dúvida, uma ferramenta que permite a manutenção da memória, e é justamente esta tradição que viabiliza o desenvolvimento de sentimentos de pertencimento cultural e social, e consequentemente a formação da identidade de um grupo social. O conhecimento tradicional acumulado por estas populações, através de várias facetas permite entender o estreito contato com o meio, possibilita impetrar dados acerca do uso prático das plantas medicinais. Sendo assim, essa rica biodiversidade do Cerrado, conjugada com uma rica diversidade cultural, molda o homem dentro de uma relação harmoniosa entre os grupos humanos e o ambiente do Cerrado. A sociedade humana reúne uma bagagem de subsídios sobre o ambiente em que vive, incluindo o conhecimento sobre a utilização de plantas medicinais. Os

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sistemas de crença entrelaçados na história da medicina popular brasileira, apresenta diferentes categorias de personagens que foram se consolidando na medicina popular brasileira, com suas denominações próprias, como por exemplo: curandeiros, benzedeiras, rezadores, raizeiros, pais e mães-de-santo, mestres catimbozeiros, juremeiros, pajés urbanos e pajôas, entre outros doutores na arte de curar, eleitos pelo povo (CAMARGO, 2011). Nesta pesquisa centralizarei a discursão acerca dos raizeiros, também conhecidos como herbários, curandeiros (FRANÇA ET AL. 2008), ervateiros (MIURA ET AL. 2007) ou erveiros (ALVES ET AL. 2008), trata-se de pessoas reconhecidas pela cultura popular como detentores de conhecimentos tradicionais que envolvem o preparo, indicação de remédios naturais, como também, a comercialização de plantas medicinais e responsáveis na transmissão e divulgação do conhecimento popular sobre as plantas e seus relativos usos. Os signifi cados que os raizeiros embutem ao espaço e a maneira de inserir-se nele estão baseados à cultura e ao modo de vida dessas comunidades. Fato destacado nas falas de Rivière:

(... )o espaço, não se trata somente de uma relação concreta, física, com ele, feita de práticas e de descolamentos, ou de uma fenomenologia do espaço vivido, mas de uma imaginário no qual entram os estereótipos da civilização e os valores ligados à identidade e à diferenciação social. (Rivière 1999, p. 59)

É interessante dizer que dentro da medicina popular, há um entrelaçamento entre o saber popular e as diferentes de crença que foram se fi rmando no país desde o séc. XVI ampliou-se uma medicina popular moldada a um universo sacralizado.A exploração da Religiosidade Popular com a saúde ainda é pouco trabalhada nos meios acadêmicos, com ênfase nas ciências humanas. Uma possível defi nição de religiosidade popular pode estar ligada a um conjunto de novos signifi cados a crenças e ritos das religiões ofi ciais, a partir de mesclas da cultura local, no Brasil, aponta-se nesse tecido sociocultural, subsídios das culturas indígenas e africanas. Sabe-se que antes da vinda dos Portugueses e dos Africanos ao Brasil, a população indígena já detinha o conhecimento das plantas para o tratamento de sua saúde. Assim, para o negro escravizado foi essencial essa permuta com o índio brasileiro, para ajustar-se a fauna local e apoderar-se das plantas medicinais brasileiras, integrando-as à sua carga cultural. Um dado a considerar-se é que as duas culturas defende que os males que norteiam o ser humano não estão ligadas a esfera do corpo humano, mas também ligada a desiquilíbrios espirituais. Desponta aí a necessidade dos ritos ou rituais no processo da colheita na seleção de folhas, raízes, além de todo um outro ritual em sua preparação e aplicação, que passa desde de períodos, horários e de fases da lua para a correta preparação dos remédios (CAMARGO, 2011).

A religiosidade popular é uma produção das camadas subalternas que molda e cria suas crenças religiosas a parti das vivências do cotidiano e estão entrelaçados aos preceitos não apenas aos preceitos católicos, como de outros credos provenientes das matrizes africanas e indígenas assim como os seus rituais. (MAUÉS, 1995).

Segundo Barbosa, falando sobre os conceitos de religiosidade popular, afi rma que:

[...] ela é uma produção dos leigos, que sofrem infl uências da religião institucionalizada, e expressam sua religiosidade através de rituais den-

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tro de um ambiente coletivo, sofrendo forte infl uência também do meio sociocultural em que estão inseridos, refl etindo seus anseios imediatos (Barbosa, 2010, p. 23).

As populações tradicionais, como os raizeiros podem ser enquadrados tem uma rela-ção próxima com a natureza, fato que permite uma intensa transmissão de conhecimentos que passam de geração em geração perdurando os valores, crenças, hábitos alimentares e modos de vida específi cos do grupo. Conforme explica um entrevistado:

Tem muita criança que tem vontade de aprender. Os meus sobrinhos mesmo vai “pro” mato me ajuda arrancar e assim vai aprendendo. O menino vai tem hora que ele “ta” arrancando remédio, ele “tá intendendo” melhor que eu, fala nos remédio que tem, ele já conhece “dimais” (Entrevistado um, 2007).

Assim, os raizeiros acumulam crenças e práticas mágico-religiosas através das expe-riências cotidianas que estão entrelaçadas principalmente ao catolicismo e as religiões afro-brasileiras para traçar os sistemas de cura. As curas atribuídas a partir da religiosidade popular, sendo doenças de origem natural e sobrenatural, combatem os males que ameaçam o indivíduo e o ambiente em que ele está inserido. (CAMARGO, 2014). Sendo assim, os mecanismos de cura são constituídos de simpatias e benzições e os especialistas de curas de acordo com a en-fermidade de cada pessoa podem ser utilizados chás, garrafadas, emplastos, xaropes, banhos, assim como o preparo e o emprego de diferentes plantas, ervas e cascas de árvores dependerá do tipo de cura que se quer alcançar. Dado que encontramos respaldo em Fontenelle:

O benzedeiro ou rezador, bem como o curandeiro, desempenham pa-pel importante na cura dos males [...]. A utilização dos meios de cura varia de acordo com a natureza da doença, ou seu grau de intensidade, além de outras circunstâncias que podem aparecer durante o tratamento e determinar as decisões que podem aparecer durante o tratamento e determinar as decisões que devem tomar. É a doença que qualifi ca a pessoa que vai ser consultada. Há “doenças que não são para médico”, provenientes de pragas, malefícios, feitiçaria, onde são inúteis os esfor-ços empregados pelos médicos (Fontenelle, 1959, p. 38).

Ademais, a esfera religiosa brasileira é abalizada por uma diversidade de expressões reli-giosas que trazem em seu resultado da fusão de culturas indígenas, europeias e africanas. Den-tro das diferentes perspectivas a religião determina sentido para a existência humana diante de diferentes circunstancias cotidianas, das dores dos infortúnios. Sendo assim, os grupos sociais se comportam mediante as suas crenças e valores moldados a partir da sua convivência com o meio.

Nas práticas medicinais populares o ser humano, as plantas e a magia atuam em conjunto para manutenção da saúde e proteção dos indivíduos. As manipulações dos elementos da natu-

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reza caracterizam a religiosidade popular e no modo de vida doa raizeiros de Mirabela. CONTEXTUALIZAÇÃO E LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA

O município de Mirabela está situado na mesorregião do Norte de Minas, na microrre-gião de Montes Claros, de acordo com a regionalização do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE, 2010), ocupando uma área de 723, 276 km e tem a população estimada em 13.043 habitantes distribuída entre a população rural e urbana. A fi gura 01 mostra a localização geográfi ca do município de Mirabela.Figura 1. Mapa de localização do Município de Mirabela – MG

Fonte:IBGE,2010

Este estudo buscou utilizar métodos etnográfi cos de pesquisa por se entender a grande importância que os diálogos com os sujeitos da pesquisa – os raizeiros exercem no entendimento dos códigos, vocábulos e expressões culturais. A técnica utilizada no trabalho de campo foi a entrevista semiestruturada, uma vez que ela permite compreender experiências, valores e opiniões, como também atitudes e sentimentos das pessoas.

Foram selecionadas como informantes oito raizeiros, sendo três mulheres e cinco homens, moradores de áreas rurais e urbanas do município de Mirabela. Essa seleção considerou principalmente, o tempo de ofício do entrevistado sujeito pesquisado, ou seja, o tempo de trabalho com o manejo das plantas medicinais. As entrevistas foram realizadas com antigos moradores dos gerais, são pequenos agricultores que extraem as plantas medicinais na circunvizinhança da área urbana ou em áreas extrativistas de proprietários particulares ou pertencentes ao próprio raizeiros. A vegetação predominante no município é o cerrado, que é de acordo com Barbosa (1990), a cobertura mais antiga da terra, com 65 milhões de anos. O cerrado se apresenta em suas diver-sas fi tofi sionomias, em decorrência de suas características geoecológicas peculiares, as quais possibilitaram um arranjo de conhecimentos da população sobre medicamentos elaborados com esses ecossistemas, que são guardados no saber popular “Aqui é uma farmácia”, diz o entre-vistado três, raizeiro em Mirabela-MG. As manipulações artesanais dos medicamentos feitos pelos raizeiros apresentam-se sob várias formas (xaropes, emplastos, chás etc.). Os remédios caseiros elaborados pelas comunidades possuem informações essenciais para sua confi rmação científi ca, cabendo aos pesquisadores aprofundarem nos estudos sobre as plantas medicinais

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desse bioma. Por isso, acredita-se que essas comunidades são detentoras de conhecimentos sobre o uso das plantas medicinais desse bioma.

Na relação com a natureza, os raizeiros incorporam múltiplas formas e objetivos de convivência social, condicionados historicamente. Eles evocam o “campo ambiental” de formas distintas. Diferentes são os signifi cados dados ao meio ambiente e aos modos sociais de apropriação e uso que fazem do ecossistema local. O modo de vida dos raizeiros está diretamente imbricado com a natureza, são dependentes do acesso aos recursos naturais. A relação que estabelecem com a o cerrado é como suporte de reprodução material e simbólica. Nessa perspectiva, os modos de vida dos raizeiros estão relacionados com os elementos culturais, sociais e religiosos com a própria convivência permanente com a natureza, a qual permite a compreensão da complexidade do meio onde estão inseridos. Os conhecimentos empíricos desses povos do cerrado possibilitam práticas populares de preparação de remédios, atendimentos primários à saúde e o zelo pelo ambiente e seus recursos naturais.

No tocante ao processo de ocupação e povoamento A o município de Mirabela originou-se a partir da colonização da região de Montes Claros, por meio das expedições que desbravavam a Colônia em busca de riquezas minerais. A vertente histórica em torno da origem do município denuncia o caráter da religiosidade como esteio da sua ocupação e povoamento. Isso ocorreu em, virtude da abundância de terras e a devoção católica que levaram muitas famílias abastadas que povoaram o Norte de Minas até o século 19, a doar parte de seus patrimônios aos santos prediletos, em troca do perdão de um pecado ou em retribuição a um pedido atendido. A região onde é atual cidade de Mirabela, não foi diferente o que justifi ca a cidade ser denominada como “cidade de santo” resultado do modo de ocupação das terras no Norte de Minas. Em 1889 estas terras, que até então pertenciam a quatro ricos fazendeiros: João Antônio Alves de Almeida, José Antônio Mendes, Plácido da Silva Maia e Pedro Ferreira de Aquino forma doadas ao Santo São Sebastião, o Santo de devoção dos fazendeiros, os quais mandaram construir, no local, uma pequena Capela, e em torno da qual se iniciou a formação do povoado.

Dentro desse campo, analisamos que nos dias atuais a cidade abarca muitos aspectos implicados nas presenças religiosas no município. O discurso do senso-comum ressalta a cato-licidade na localidade imprimindo assim, uma identidade própria a cidade.

As festividades populares do município estão relacionados com a religião, com festas tra-dicionais da igreja e o padroeiro da comunidade mirabelense. Os festejos populares começam no dia 20 de janeiro, com a Festa de São Sebastião padroeiro da cidade. Durante os festejos que antecedem as novenas e leilões, ocorre show pirotécnico, levantamento de mastro. É tradição o cortejo ser seguido por um carro que distribui café, biscoitos e bebidas. Durante os festejos, há o encontro de folias, missa e procissão. Nas festas religiosas sempre tem aquele que assume o papel de festeiro, ou seja, é o responsável pelos comes e bebes para os fi éis e foliões.

Outro evento religioso na cidade está centrado na festa do Divino espirito Santo que ocorre na 9ª quinta-feira após a Páscoa, que conta com a confecção dos tapetes com símbolos bíblicos, desenhados no chão e preenchidos com diversos materiais, como serragem, folhagens e sementes. São verdadeiros trabalhos artísticos. A procissão dos fi éis que levam no cortejo o Santíssimo Sacramento acompanha um tapete que cobre as ruas da cidade, levando beleza e fé

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e a identidade cultural da população. A Festa de Nossa Senhora Aparecida no dia 12 de outubro, faz parte do calendário popular atividades como o levantamento do Mastro, show pirotécnico, café com biscoitos, Missa, batizados, casamentos e procissão marcam os dias de festividade.

A religiosidade da cidade também é misturada por apresentações fol-clóricas com a presença de cavalhadas e congados, embutindo ressignifi ca-dos temporais e espaciais ligados aos rituais, valorativos, musicais e simbólicos.

Resultados e discussões

A religiosidade popular é uma produção do povo que molda e cria suas crenças religio-sas a partir das vivências do cotidiano e estão entrelaçados aos preceitos católicos assim como os seus rituais. As formas mais populares de religiosidade é o catolicismo popular

Os sujeitos das populações tradicionais tem uma relação próxima com a natureza, onde ocorre uma constante transmissão de conhecimentos que passam de geração em geração perpetuando os valores, crenças, hábitos alimentares e modos de vida específi cos do grupo. Os saberes dos raizeiros do Cerrado são transmitidos por meio da oralidade. Assim, os raizeiros reúnem suas crenças e práticas mágico-religiosas através das experiências cotidianas que estão entrelaçadas ao catolicismo, para formar os sistemas de cura. As curas feitas por meio da religiosidade popular, nas quais as doenças podem ser de origem natural e sobrenatural, combatem os males que ameaçam o indivíduo e o ambiente em que ele está inserido. Segundo Galvão (1955) faz-se uso de todas as ervas e plantas conhecidas no local, e que são combinadas sob várias fórmulas e aplicações, a utilização desses conhecimentos depende de uma vasta experiência individual. Por isso, a coleta durante a semana santa é um ritual comum, cascas, raízes, folhas e sementes são colhidas e armazenadas para serem consumidas durante o ano todo. Segundo o informante o extrativismo das plantas medicinais no período da Semana Santa favorece uma maior efi ciência do remédio e consequentemente o tratamento exigirá um tempo curto. Outro requisito abordado pelos informante diz respeito a crença que deve existir por parte do doente em relação ao tratamento, segundo s raizeiros para que tenha efi cácia é necessário que o indivíduo envolvido nas práticas da utilização de remédios naturais tenha fé. Ademais, para que que não sobre qualquer dúvida, vale também mencionar as palavras do antropólogo Lévi-Strauss sobre o poder da crença:

[...] a efi cácia da magia implica na crença da magia, e que está se apre-senta sob três aspectos complementares: a crença do feiticeiro na efi -cácia de suas técnicas; em seguida, a crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro; fi nalmente, a confi ança e as exigências da opinião coletiva (Lévi-Strauss, 2003, p. 194).

A partir dessa análise percebeu-se a existência de uma estreita relação da religiosidade com os aspectos sociais e culturais da comunidade, fator que permite a contextualização histórica, sociocultural e religiosa acerca do uso prático das plantas medicinais do bioma Cerrado.

Alguns raizeiros acreditam que as plantas medicinais, além de não possuírem valor co-

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mercial, seu uso na medicina popular é cada vez menos interessante de que os remédios far-macêuticos (alopáticos industrializados). Outros acreditam que esse saber está cada vez mais ameaçado, em virtude de poucas pessoas se interessarem pelas suas propriedades medicinais. Os detentores do conhecimento tradicional sobre as propriedades medicinais das plantas nati-vas são geralmente pessoas idosas, por isso esse tipo de conhecimento é cada vez mais raro em nossa sociedade dado mencionado pelo entrevistado dois

Tá em poucas pessoas que faz, envolvendo em farmácia, no médico. Aqui mesmo tinha muita gente que fazia e largaram tudo. Não é que não tava dando certo não, é que eles mesmo foi fi cando “véios”. Eu mesmo não to agüentan-do saí pro mato pra rancar. Mas a base de Deus do Céu tem muito remédio. (entrevistado dois”, 2007).

O cotidiano popular dos raizeiros é norteado por expressões religiosa, que valorizam muito os santos da Igreja Católica. Constatou-se, nas entrevistas, que a percepção e a apropriação da natureza se realizam em torno de uma transcendência sagrada, partilhada em crenças e na fé, conforme se pode verifi car na fala de um dos entrevistados: “A base de Deus tem muito remédio do mato que levanta uma pessoa que tá quase morrendo “. Aparecem nesta explanação palavras de erudição, sabedoria, e religiosidade além de prudência, tino, sensatez, as quais remetem a planos que transcendem o conhecimento adquirido, não deixando, certamente, de envolver a experiência, prática e a religiosidade. Vê-se que, os sentimentos religiosos dos raizeiros são simples tradições ou repetições, mas se realizam a cada momento, em cada ato da vida, no modo de agir e de pensar, na vida familiar de cada um. No que se refere a essa abordagem religiosa, percebe-se que a medicina popular é vista,

dentro de um caráter sagrado, qualidade que endossa no grupo social ao qual pertence, a convicção de que o raizeiro possa diagnosticar doenças, indicar terapias e preparar remédios. Neste sentido, o curador escuta o lamento do doente atentamente e, usando dos recursos naturais do Cerrado e das crenças, busca estratégias que possam reabilitar a saúde daquela pessoa que busca auxílio no tratamento de alguma doença, seja para sanar problemas de saúde com relação ao útero, vermes intestinais, bronquite, rins, impotência sexual, doenças sexualmente transmissíveis e circulação sanguínea e até mesmo problemas de fertilidade

Conclusão

Face ao exposto, os resultados deste estudo revelam a necessidade de ampliarmos esse debate. A relação homem-natureza dentro da ótica da religiosidade é um campo que merece ser discutido, tendo em que somos um país com uma cultura popular embasada em várias matrizes como a indígena, europeia e africana. Sendo assim, a medicina popular não é diferente, a partir dos raizeiros de Mirabela vemos que ainda permanece viva a cultura popular de cultivo, coleta, preparo, indicações e uso de plantas medicinais, como forma de tratamento para algum mal ou

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enfermidade, que tanto contribuiu e ainda continua colaborando para a prática e o desenvol-vimento da medicina popular. Necessário salienta que essa medicina popular apresenta forte inter-relação entre com a religiosidade. Mas para a manutenção e valorização da prática dos raizeiros é fundamental estudos que aprofundem as questões aqui levantadas e para o resgate dos valores e costumes girados em torno da medicina popular do Norte de Minas.

Notamos que as manifestações da religiosidade na medicina popular são ferramentas importantes na construção da identidade, do imaginário e da cultura dos raizeiros da região estudada, e seus costumes possibilitam construir tramas de coexistência com o sagrado, desen-cadeando que investigações sobe o assunto sejam construídas.

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